Capítulo II monografia

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CAPÍTULO II SEPARAÇÃO CONJUGAL: COMO FICA A FAMÍLIA? Do ponto de vista sistêmico, o divórcio pode ser entendido como uma crise no ciclo de desenvolvimento (ou ciclo vital) da família. Como toda crise, abala emocionalmente seus protagonistas e propicia intensas mudanças. Pesquisadores dessa temática destacam que a separação conjugal é um fenômeno complexo, multifacetado e que ocorre de forma diferenciada em cada núcleo familiar (Féres- Carneiro,2003). No entanto, existem algumas características comuns às família e serão abordadas a seguir. 2.1 – Considerações sobre o casamento. Antes de iniciarmos nossas reflexões acerca da separação conjugal, vale fazer algumas ponderações acerca daquilo que ocorre anteriormente a qualquer separação: o casamento (ou união consensual). Um novo ideal de conjugalidade se formou na era burguesa. Com a revolução burguesa, uma nova ordem social se inaugurou e ocorreu uma dessacralização do poder da Igreja. O casamento, antes visto como um contrato entre duas famílias, tornou-se o lugar da felicidade, onde o sexo e o amor passaram a ser elementos fundamentais. Vale frisar que, somente a partir do século XVIII, a sexualidade foi incluída na instituição casamento. Parece consenso entre os 1

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CAPÍTULO II

SEPARAÇÃO CONJUGAL: COMO FICA A FAMÍLIA?

Do ponto de vista sistêmico, o divórcio pode ser entendido como uma

crise no ciclo de desenvolvimento (ou ciclo vital) da família. Como toda crise,

abala emocionalmente seus protagonistas e propicia intensas mudanças.

Pesquisadores dessa temática destacam que a separação conjugal é um

fenômeno complexo, multifacetado e que ocorre de forma diferenciada em

cada núcleo familiar (Féres-Carneiro,2003). No entanto, existem algumas

características comuns às família e serão abordadas a seguir.

2.1 – Considerações sobre o casamento.

Antes de iniciarmos nossas reflexões acerca da separação conjugal,

vale fazer algumas ponderações acerca daquilo que ocorre anteriormente a

qualquer separação: o casamento (ou união consensual).

Um novo ideal de conjugalidade se formou na era burguesa. Com a

revolução burguesa, uma nova ordem social se inaugurou e ocorreu uma

dessacralização do poder da Igreja. O casamento, antes visto como um

contrato entre duas famílias, tornou-se o lugar da felicidade, onde o sexo e o

amor passaram a ser elementos fundamentais. Vale frisar que, somente a partir

do século XVIII, a sexualidade foi incluída na instituição casamento. Parece

consenso entre os historiadores que, até pelo menos o século XVIII, o

cristianismo ditou as regras morais que regiam a união conjugal, restringindo a

sexualidade a sua função reprodutiva e repudiando qualquer relação sexual

fora do casamento (Araújo,2002).

Áries (1987) afirma que as significativas transformações no casamento

iniciaram-se na Modernidade. A união conjugal por amor, amor-paixão, se

estabeleceu na espreita da valorização do amor individual, vigente na ideologia

burguesa. Surge, então, um novo ideal de casamento que impõe ao casal que

se amem e se respeitem mutuamente e mantenham ideais de felicidade

matrimonial. No entanto, Araújo (2002) destaca que essa idealização da união

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entre homem e mulher criou uma armadilha para a convivência conjugal, uma

vez que acentuou os conflitos que resultam da desilusão pelo não atendimento

das expectativas criadas.

Quando o amor romântico coloca-se como fator primordial das uniões

conjugais, outra questão surge: a durabilidade dessas uniões. O amor-paixão é

o tipo de sentimento que tem prazo de validade e chega ao fim, após algum

tempo. Desta feita, o amor conjugal ligado a ele também tende a chegar a um

final. Nesta conjuntura, a separação aparece como uma possibilidade.

Shine (2002) argumenta a esse respeito que casamento, tal como o

vivenciamos a partir da Modernidade, pode ser considerado a relação

interpessoal de maior durabilidade e intimidade. Ainda segundo o autor, o

casamento possui aspectos tanto de satisfação como de conflito. As pessoas

buscam a satisfação na união, mas o conflito faz parte da dimensão humana.

No casamento, cada membro do casal precisa ajustar com o outro aquilo

que espera da relação conjugal. É preciso que ambos possam suportar as

frustrações e conflitos resultantes dessa negociação. A separação conjugal

pode estar relacionada à impossibilidade da continuidade da negociação entre

marido e mulher (Shine, 2002).

2.2 – Quando chega a separação...

Juridicamente a separação conjugal põe fim aos deveres de fidelidade

recíproca e coabitação, assim como com o regime de bens – ou seja, dá termo

ao contrato de casamento. Do ponto de vista psicológico, podemos afirmar que

o divórcio não significa o fim da família, mas sim sua transformação (Cano et

al.,2009).

Segundo Pereira (2003), a separação conjugal pode ser considerada

como o mais sofrido rito de passagem1 que um indivíduo pode enfrentara na

vida. Pondera-se que o sofrimento advém da dissolução de projetos elaborados

em conjunto pelo casal. Com o fim da união, inúmeros projetos de vida são

deixados de lado e isso pode representar, em muitos casos, o surgimento de

1 Segundo Pereira, rito de passagem consiste naquilo que ajuda uma pessoa a iniciar numa nova fase, uma nova posição social, lugar, idade etc; no caso, passar de casado à separado/divorciado.

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sentimentos de abandono e rejeição. Sendo assim, pode-se afirmar que o

processo de separação é doloroso e, muitas vezes, traumático (Farkas,2003;

Pereira, 2003).

É neste sentido que Farkas (2003) afirma que toda separação implica

na passagem por um período de luto. O luto consiste numa reação à perda. O

processo de luto demanda tempo e energia para ser ultrapassado e, em geral,

trata-se de um processo penoso e demorado. A elaboração do luto pela perda

associada ao fim da união conjugal é fundamental. Como destaca Farkas

(2003), faz-se imprescindível reconhecer que existiu uma separação e que com

ela algumas propostas de vida se liquidaram; porém, também é preciso que

cada um possa perceber que tal ruptura não destrói seu ser, apenas dá fim ao

vínculo mantido até então.

Após uma separação, muitos não conseguem superar o período de luto

e podem, então, passar a idealizar exageradamente aquilo que perderam com

o fim do casamento, assim como a odiar extremamente o que terminou,

denegrindo a imagem do outro cônjuge. As duas posições trazem sofrimento

inesgotável (Farkas, 2003).

É comum que um ou os dois ex-cônjuges adotem uma postura de

relembrar apenas os aspectos negativos da relação amorosa. Segundo Shine

(2002), é a possibilidade que os membros do ex-casal têm de integrarem

aspectos negativos e positivos do relacionamento acabado, que reside a

chance deles de conseguir discriminar o que diz respeito ao ex-casal conjugal e

o que se relaciona ao casal parental (aquele formando por pai e mãe). “Quanto

maior a cisão e a necessidade de ataque e defesa, menor a capacidade de

discriminação.” (Shine, 2002, p. 68).

Os motivos que levam a separação de um casal são incontáveis. Castro

(2003) avalia que tanto a imaturidade emocional, quanto o processo de

amadurecimento de um dos membros do casal podem levar ao divórcio. A esse

respeito, podem-se destacar algumas conhecidos fatores que levam à

separação:

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“a diferença de status socioeconômico (quando a mulher

ganha mais, instabilidade de renda e do emprego do

marido); o menor grau de instrução do homem (quando

comparado com a sua esposa); a idade dos cônjuges

(quanto mais jovens, mais alta é a incidência); a

ocorrência de gravidez pré-nupcial; a diferença racial, e

as questões de gênero.” (Peck & Manocherian, 1980/2001

apud. Cano et al.,1999, p. 216)

Ainda pode-se destacar que, em alguns casos, sobretudo aqueles que

vão parar na Justiça, o fim da união pode ter sido causada por algum tipo de

distúrbio da paternidade. A chegada de um filho coloca à prova o equilíbrio da

relação conjugal. Muitas vezes, o casal vivia bem até a chegada dos filhos,

mas, com o nascimento deles, ocorre uma modificação na dinâmica vivenciada

até então, que pode resultar em conflitos incontornáveis que culminam no fim

do relacionamento amoroso (Castro, 2003).

2.3 – Os efeitos do divórcio na vida familiar.

O divórcio é um evento que pode ser caracterizado por abranger

aspectos legais, sociais, psicológicos e econômicos e produz mudanças

significativas na dinâmica familiar como um todo, assim como para cada

membro da família (Motta,1998). De acordo com Cano (2009), o fim do

casamento afeta todos o membros da família, porém de forma individualizada.

Neste sentido, o divórcio pode ser considerado um processo singular que

atinge cada um dos envolvidos, dependendo de fatores individuais. É desse

aspecto que decorre as diferentes reações ao divórcio observados nas diversas

famílias que enfrentam essa circunstância.

A despeito do crescente número de separações/divórcios observados

em nosso meio social, conforme atestam dados do IBGE, é possível afirmar

que, de uma forma genérica, os membros da família nunca se encontram

preparados para enfrentarem suas consequências sociais, econômicas e

emocionais (Peck & Manocherian, 1980/2001 apud. Cano et al., 2009).

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Torres (1999), em seus estudos sobre divórcio na Europa, percebeu que

o aumento do número de divórcios, observado no final do século passado,

longe de retratar uma desvalorização do casamento, parece apontar para a

valorização da vida afetiva, a ponto dos sujeitos não suportarem que ela se

desenrole de forma insatisfatória.

É certo que o divórcio, atualmente, pode ser vivido de maneira não

estigmatizante para os ex-cônjuges e para os filhos. Porém, é fato também que

nem todos vivem essa situação de forma tranqüila. Percebe-se que quando as

mulheres não têm independência financeira, possuem idade mais avançada e

vivem em um meio social onde o divórcio é pouco freqüente, as situações pós-

divórcio tornam-se mais complicadas (Torres, 1999).

O estágio de desenvolvimento em que vivência a família no momento da

separação atua de forma decisiva em suas repercussões na dinâmica familiar.

Peck & Manocherian (1980/2001 apud Cano et al., 2009) descreveram acerca

dos diferentes efeitos do divórcio de acordo com a etapa do ciclo de vida

familiar. No caso de recém-casados, o fim da união tende a ser facilitado, tendo

em vista o curto tempo de convívio e os poucos laços familiares formados.

Já em famílias com filhos pequenos, observa-se que existe uma

dificuldade na comunicação sobre a decisão de separação aos filhos, o que

pode causar uma sensação de confusão nas crianças. Pesquisas têm

demonstrado que o maior número de separações ocorre no período após o

nascimento do filho até este completar dezoito meses, ou seja, no período de

transição para parentalidade, onde o casal precisa lidar com as

responsabilidades implicadas nos papéis paterno e materno (Cano et al.,

2009).

No caso de famílias com filhos adolescentes, verifica-se uma

intensificação dos conflitos entre pais e filhos, tendo em vista que ambos os

pólos estão passando por situações parecidas relativas à independência,

sexualidade e novos relacionamentos. Nas separações em famílias com filhos

jovens que já saíram de casa, em geral, os filhos passam a se preocupar com

seus próprios relacionamentos amorosos, uma vez que seu modelo de

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conjugalidade (aquele relativo ao casamento de seus pais) se desfez. E,

quando o fim da união ocorre na terceira idade, torna-se um choque para toda

família, tendo em vista a expectativa de eternidade da relação. Tal choque

causa uma redefinição dos valores morais nas gerações mais novas da família

(Peck & Manocherian, 1980/2001 apud. Cano et al., 2009).

Muitas vezes, as dificuldades econômicas transformam-se em motivos

para o litígio entre o ex-casal, quando ocorre a separação. Sabe-se que uma

das principais consequências do divórcio é o declínio financeiro dos ex-

cônjuges. As mulheres, em geral, obtêm salário inferior ao do homem no

mercado de trabalho nacional e também são elas, em sua maioria, que detêm a

guarda dos filhos. Os homens, por sua vez, freqüentemente precisam aumentar

sua carga de trabalho para dar conta das novas obrigações advindas da

separação. Estudos têm apontado que grande parte dos problemas emocionais

vivenciados pelas crianças no período pós-separação, advém do estresse

provocado pelos problemas financeiros (Motta,1998).

A vida após a separação incluiu uma nova rotina e surgem novos

desejos para os membros do ex-casal, agora solteiros. Com isso,

provavelmente novos gastos financeiros serão efetuados. Ainda existe a

possibilidade de que os membros do ex-casal constituam nova família, onde a

responsabilidade financeira aumenta consideravelmente (Motta,1998)

Motta (1998) destacou que muitas mulheres, nas negociações sobre a

pensão alimentícia, aceitam valores menores do que aqueles a que fazem jus.

Nessas negociações, muitas vezes aspectos emocionais ainda não resolvidos

relativos ao relacionamento amoroso são os responsáveis por dificultar a

resolução da questão de forma satisfatória. Muitas vezes, tempos depois, elas

retornam à Justiça, a fim de rever esses valores acordados anteriormente. São

muito freqüentes batalhas judiciais intermináveis acerca da pensão alimentícia.

Motta (1998) lembra o valor simbólico do dinheiro, que tem um

significado muito além de sua dimensão econômica. O dinheiro abrange

concepções sócio-culturais, relaciona-se com a história pessoal de cada

indivíduo, sua dinâmica intrapsíquica e sua maneira de se relacionar com os

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demais. Neste sentido, podemos analisar as questões que envolvem o

pagamento da pensão alimentícia. Muitos homens, a fim de punir a ex-esposa

ou alegando que elas gastarão o dinheiro de forma indevida, pagam os

alimentos de forma irregular, ou mesmo não pagam o valor devido. Em outros

casos, o pai ou a mãe enche o filho de presentes, a fim de aplacarem sua culpa

ou de buscar a lealdade deles. Na verdade, existem inúmeros motivos que

levam o ex-casal a litigar a respeito do dinheiro.

Em geral, estudiosos do tema divórcio têm referido que a crise gerada

pela ruptura conjugal tende a ser ultrapassada com a passagem do tempo.

Autores propõem o período de dois a três anos para que haja um ajuste da

família à situação do divórcio. Posteriormente a esse período de adaptação, os

efeitos negativos da separação conjugal não são vistos com tanta freqüência

(Cano et al., 2009). Com o passar do tempo o divórcio pode ser percebido

como favorável pelos membros da família, desde que eles avaliam melhorias

na qualidade de vida de pais e filhos (Wagner & Féres-Carneiro, 2000 apud

Cano et al., 2009).

2.4 – As conseqüências da separação conjugal para os filhos

Estudos americanos a respeito dos efeitos do divórcio sobre os filhos

destacam a idéia de que seria mais saudável para as crianças viverem num lar

pacífico com apenas um dos genitores, do que viverem junto aos dois pais,

mas num lar permeado por conflitos conjugais (Raschke, 1987, citado por

Torres, 1999).

Em alguns estudos foi percebido que os efeitos do divórcio para os filhos

dependem diretamente da atitude dos pais, assim como da idade da criança.

Alguns fatores podem contribuir para facilitar o ajuste das crianças à situação

do divórcio, como: informar aos filhos sobre a decisão da separação do casal, o

envolvimento e proximidade do genitor que não detém a guarda dos filhos,

assim como livre acesso da criança ao genitor não-guardião; a ausência de

hostilidade entre os membros do ex-casal; e, também, a manutenção de uma

rotina organizada e estável para os filhos (Torres, 1999).

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Ramires (2004), em seu estudo sobre como crianças e pré-adolescentes

vivenciam a separação dos pais, destaca que:

“Nas crianças de 5 e 6 anos de idade, associada à conflitiva edípica, surgiu a fantasia de culpa pela separação dos pais e temores de retaliação. Nas crianças de 8 e 9 anos de idade encontramos conflitos importantes no processo identificatório, possivelmente resultantes das fantasias agressivas dirigidas aos pais, do tipo de vínculo que haviam estabelecido com eles e das inadequações percebidas nessas figuras parentais em alguns casos. Finalmente, nos pré-adolescentes percebemos certa ambivalência em relação às tarefas e atividades próprias da idade, acompanhada da fantasia de que tinham que cuidar dos pais, o que também lhes ocasionava sentimentos de raiva.” (Ramires, 2004, p.191)

Souza (2000), em seu estudo sobre a percepção dos filhos em relação à

separação conjugal dos pais, entrevistou quinze adolescentes que vivenciaram

a separação dos pais durante a infância. Em relação ao período em que o

evento ocorreu, dez dos participantes contaram que observaram o conflito

conjugal entre seus pais. O marco da separação para os entrevistados foi a

saída do pai de casa. Os sentimentos comuns entre eles foram de tristeza,

angústia, raiva e medo do que poderia acontecer. No entanto, os entrevistados

reconheceram a separação como uma saída para as dificuldades enfrentadas

pela família.

De acordo com Motta (1998), os efeitos da discórdia a respeito da

pensão alimentícia entre os pais atingem aos filhos. Além de muitas vezes

perderem conforto, as crianças podem sentir-se desprotegidas e abandonados

pelo pai/mãe que não oferece a pensão alimentícia adequada às suas

necessidades.

Ainda segundo a mesma autora, outra situação muito comum em casos

de separação é que o genitor-guardião incite o filho a pedir dinheiro ou outro

bem diretamente ao outro genitor. Esta situação tende a gerar uma sobrecarga

para criança/adolescente que, em geral, não apresentam condições de

enfrentar essa situação sozinha.

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Motta (1998) assinalou a constatação feita por pesquisadores do

assunto de que entre um terço e a metade das mães americanas obstruem a

visitação do pai aos filhos, como maneira de expressarem sua raiva. Da parte

dos pais, o artifício mais utilizado para retaliação é o inadimplemento da

pensão alimentícia.

Shine (2002) observou que, quanto menos elaborado o luto pela

separação conjugal e maior a necessidade de ataque ex-cônjuge, pior será a

capacidade de haver uma cisão entre as questões conjugais e as relativas aos

filhos.

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