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Capítulo 1 3 – O agir, que é uma espécie do tornar-se, 2 resolve-se num emprego de meios para alcan- çar um fim. A coincidência do seu resultado com o objetivo depende da adequação dos meios ao fim; por outras palavras, da boa escolha deles e do seu uso acertado. Conforme tem ou não tais qualidades, assim é a ação útil ou fecunda, inútil ou infecunda. Esta coincidência é o que costuma chamar-se sucesso. Em princípio, o sucesso resolve-se em um fenômeno de intuição. Pode ser, quanto às ações 2 No texto diz-se, em italiano, divenire. É difícil traduzir aquele verbo quando empregado como neste caso. A tra- dução literal, além de tornar-se, podia ser dada por estas outras expressões: vir a ser, chegar a ..., transformar-se. To- das elas são pobres de sentido, quando não completadas com aquilo em que se torna, ou se transforma, ou que vem a ser o sujeito do verbo. São, afinal, as mesmas dificulda- des que surgem para a tradução do verbo francês deve- nir. O essencial é, porém, dar a impressão de que o agir é uma forma de modificação, de transformação, de evo- lução. Todas as vezes que o texto obrigue o emprego da palavra em exame, traduzi-la-ei por uma das for- mas indicadas, mas irá sempre entre “N. do T.”.

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Capítulo 1

3 – O agir, que é uma espécie do tornar-se,2 resolve-se num emprego de meios para alcan-çar um fim. A coincidência do seu resultado com o objetivo depende da adequação dos meios ao fim; por outras palavras, da boa escolha deles e do seu uso acertado. Conforme tem ou não tais qualidades, assim é a ação útil ou fecunda, inútil ou infecunda. Esta coincidência é o que costuma chamar-se sucesso.

Em princípio, o sucesso resolve-se em um fenômeno de intuição. Pode ser, quanto às ações

2 No texto diz-se, em italiano, divenire. É difícil traduzir aquele verbo quando empregado como neste caso. A tra-dução lite ral, além de tornar-se, podia ser dada por estas outras expressões: vir a ser, chegar a ..., transformar-se. To-das elas são pobres de sentido, quando não completadas com aquilo em que se torna, ou se transforma, ou que vem a ser o sujeito do verbo. São, afinal, as mesmas dificulda-des que surgem para a tradução do verbo fran cês deve-nir. O essencial é, porém, dar a impressão de que o agir é uma forma de modificação, de transformação, de evo-lução. Todas as vezes que o texto obrigue o emprego da palavra em exame, tra duzi-la-ei por uma das for-mas indicadas, mas irá sempre entre “N. do T.”.

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inferiores, que se trate também somente de ins-tinto. Assim, com a variável dose de intuição de que os agentes podem dispor, se explica que uns tenham sucesso e outros não. Aquilo que é co-nhecido por sorte no agir explica-se, não raro, com uma dose superior de intuição.

Por outro lado, o agente que consegue, gra-ças à intuição, alcançar o fim é útil não só a si próprio, mas também aos outros, que aprendem com ele seguindo-lhe o exemplo. Assim se pro-paga o fenômeno de intuição em virtude de um fenômeno de imitação.

Este agir, que se realiza por via da intuição ou de imitação, pode designar-se por agir empí-rico.

Além disso, ao fenômeno de intuição e de imitação sucede, naturalmente, um fenômeno de reflexão, que opera em dois planos.

Antes de mais nada, no plano teórico, me-diante a pro cura do segredo do sucesso, isto é, mediante o conhecimento das regras do agir. Pouco a pouco, a experiên cia multiplicada dos sucessos e dos insucessos ensina os homens que se pode encontrar regras, a obediência às quais, se não garante absolutamente o sucesso, ao me-nos aumenta a sua probabilidade. A procura das regras do agir determina a formação da ciência;

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mais precisamente daquela parte da ciência que poderia chamar-se a ciência da prática. De resto, o objeto da ciência é mais vasto pois que se esten-de, além das regras do agir, a todas as regras do “vir a ser”. Ora, estas regras do “vir a ser” e, em particular, do agir, são regras da natureza; dize-mos assim para explicar que não são postas pelo homem, mas são-lhe superiores; podem também se chamar regras da experiência, não no sentido de que esta as constitui, mas no sentido de que as revela. Quando consegue descobrir tais regras, a ciência ensina a via do agir, que é o que se chama método.

Em segundo lugar e sucessivamente, no pla-no prático, a reflexão substitui ao agir intuitivo o imitativo, isto é, ao agir empírico, o agir segun-do regras, ou seja, o agir técnico. Se a ciência é a investigação das regras, a técnica é a aplicação destas. A primeira pertence ao campo do conhe-cimento, a segunda ao campo da ação.

4 – Também o conhecer é um agir. Também a ciência é um trabalho. Entre uma e outro, a relação é recíproca; antes, trata-se de uma troca: assim como para agir é preciso conhecer, assim também para conhecer é preciso agir.

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Por isso, também o sucesso da ciência, ou, melhor, da ação científica, depende da adequa-ção dos meios ao fim.

Também no campo da ciência se dão os su-cessos e os insucessos; há os intuitivos, os imi-tativos e até os afortunados. Também o agir científico se utiliza, como qualquer outra es-pécie de agir, e numa primeira fase, da intui-ção e da imitação. É a fase da ciência empírica ou do empirismo científico.

Eis um modo de dizer que, se pode surpreen-der alguém, não tardará a convencer, quem so-bre ele refletir calmamente, de que corresponde à verdade.

Só esta fórmula resolve logicamente o apa-rente paradoxo da tese de Colonna quando recusa a muitos, antes, a um número demasia-damente grande de trabalhos de direito, a digni-dade da ciência: ao seu livro, verdadeiramente, quadrava bem por título aquele trocadilho da Unwissenschaftlichkeit der Rechtswissenschaft, que tornou célebre, há anos, uma obra medíocre de Lundt; mas, além do mais, a língua italiana não tem desses recursos. Empírica é a ciência que, enquanto procura as regras do agir alheio, não conhece as regras do próprio. Que isto seja, es-pecialmente no campo do direito, um fenômeno

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infelizmente comum, é demonstrado de forma assaz corajosa, e muitas vezes convin cente, por Colonna; e faz lembrar o medice cura te ipsum, com que mais de uma vez os obreiros do direito poderiam responder aos cientistas.

A ciência supera a fase do empirismo, para entrar na do tecnicismo, quando põe o problema das suas regras. Também, na verdade, o trabalho científico, como qualquer outro, se-gue, conscientemente ou não, linhas obrigadas, que são descobertas pela sua experiência, como acontece a qualquer outro gênero de ação. Há, portanto, regras de experiência científica como de expe riência de qualquer outro setor. Se, na ver-dade, a ciência (digamos, no seu ser) tem por ob-jeto a expe riência, é ela própria uma experiência (digamos, no seu “vir a ser”).

Ora, o problema das regras da experiência cientí fica é, por sua vez, como o problema das regras de qualquer outra experiência, um pro-blema teórico e prá tico e não apresenta, nesta zona do agir, uma natureza diversa, mas só, tal-vez, uma maior dificuldade.

Sob o aspecto teórico é, ainda uma vez, como disse há pouco, o problema da ciência. Por outro lado, como a ciência se estuda a si mesma, e é, assim, uma ciência da ciência ou também

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uma ciência ao quadrado, é oportuno distinguir de algum modo a espécie do gênero. Se se olha ao significado puro do vocábulo, toda a ciên-cia ou, pelo menos, a ciência da prática é meto-dologia, porque não tem outro papel que não seja a procura das vias de agir. Mas também aqui se trata de atribuir às palavras um valor conven-cional; a metodo logia pode bem significar, por antonomásia, discurso sobre o método científi-co. Não é menos exato, decerto, falar de lógica da ciência, ou também, como fazem os filósofos, de epistomologia; mas escolho aquele vocábulo, que segue melhor as vias comuns do pen samento, e, mais tarde, a propósito das denominações jurí-dicas, procurarei descobrir-lhe a razão. Depois, conquanto a ciência da ciência do direito esteja ainda em grande parte por fazer, a consciência da sua necessidade está bastante espalhada e to-mou forma; exatamente, como consciência de um problema do método. Não haveria qualquer razão para afastamento deste caminho, já hoje seguido.

Resta, depois disto, o aspecto prático do pro blema das regras da experiência científica. Aqui é preciso falar resolutamente de uma téc-nica científica e, por isso, de uma ciência técnica em contraposição à ciência empírica. É que não se

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descobre as regras da ação científica pelo gosto de descobri-las, mas pela necessidade de as pôr em prática. O pô-las em prática, isto é, o fazer ciên-cia segundo as regras descobertas, por sua vez, pela ciência, nada mais é, ainda, que técnica da ciência. Naturalmente, a fase empírica da ciência contrapõe-se à fase técnica como a sua infância à sua maturidade.

Portanto, assim como sucede entre a ciên-cia e a arte, assim entre ciência e técnica a re-lação é recí proca, e seria ainda melhor falar de troca: a ciência serve à técnica e a técnica ser-ve à ciência; não se faz técnica sem ciência, mas é preciso a técnica para que a ciência atinja a sua perfeição.

5 – Expresso numa forma um tanto diver-sa, isto é, em forma técnica, que não o meu maior engenho, mas a minha maior expe-riência, relativamente a Colonna, me permite forjar, é este o fundamento da sua acu sação severa, mas em boa parte merecida, contra a ciência do direito. Quando o meu jovem ami-go faz a amarga constatação de um notável desnível entre a ciência do direito e a mate-mática, a física ou a biologia, não diz senão a verdade; mas a consequência a tirar daqui não

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é a que não existe a ciência do direito, mas sim que atingiu bastante menos que as outras aquele grau de tecnicismo que assinala, como disse, a sua maturidade. Por quê?

A ciência do direito não nasceu, certa-mente, depois das suas irmãs. Não se trata de uma maior juventude, mas de um mais lento desenvolvimento. Que esta lentidão seja im-putável a um menor valor dos homens que a ela se dedicam é, naturalmente, de excluir; nem Colonna pensou nisso; decerto, nem to-dos os cultores do direito estão à altura da missão, mas, em média, uma diferença para pior a cargo da ciência do direito não pode-ria seriamente ser estabelecida. Se a razão não está, portanto, no lado dos homens, que tra-tam a matéria, deve estar na matéria, que tor-na o trabalho deles singularmente duro.

Também Colonna acabou por admiti-lo, pois, ao lado das genéricas dificuldades do estu-do científico, tocou em duas ordens ou graus de dificuldades espe cíficas: as que respeitam ao es-tudo dos fenômenos sociais e as que se referem ao estudo dos fenômenos jurídicos.

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6 – Mas o que é então a matéria jurídica? Eis o primeiro ponto a estabelecer no campo da me-todologia.

Pode-se concebê-la, e o próprio Colonna assim a concebe, como o complexo das normas jurídicas. Com algumas reservas, que serão de-senvolvidas dentro em pouco, está bem. Mas as normas jurídicas, por sua vez, não são mais do que normas de agir; diz-se, o mais das ve-zes, que são regras postas pelo homem e não pela natureza; melhor seria talvez dizer regras arbitrárias em antítese a regras necessárias; mas, em suma, regras também.

Pode ficar-se por aqui ao assinalar a pri-meira e talvez a mais grave dificuldade que diz respeito à missão mesma da ciência do direito. Esta é, sem dú vida, uma subespécie da ciência da prática; como tal, procura as regras do agir jurídico. Mas como o agir jurídico significa di-tar ou aplicar as regras do direito, a sua missão resolve-se, portanto, na investigação das regras para fazer agir as regras do direito. A dificulda-de culmina nesta espécie de trocadilho e aca-ba não raramente numa confusão entre o dado e o resul tado da ciência; o que há de comum entre estes dois termos é serem constituídos de regras tanto um como o outro; mas o dado

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consiste nas regras do direito, e o resultado, di-

gamos, nas regras sobre o direito; po demos chamar, a estas últimas, regras da experiência jurídica. Aquela confusão chegou a tal ponto que até se duvidou de se poder falar de uma ciência do direito, porque, justamente, as re-gras que nós procuramos não seriam regras da natureza.

A verdade é que também o arbítrio do legis-lador tem os seus limites; ou, por outras palavras, a verdade é que também o legislador, embora dite leis aos homens, obedece às leis da natureza. Pode ele, por exemplo, ordenar que um homem, se praticou uma dada ação, deixe de viver; mas não consegue obter que ele morra sem ser morto. São, portanto, as regras que estão acima do direito

,

que nós procuramos, para ensinar a construir, a manobrar, a observar as regras que estão dentro do direito; ou, por outras palavras, procuramos as leis das leis.

Eis que a ciência do direito, diferentemen-te do que sucede, não apenas às ciências mate-máticas, fí sicas e biológicas, mas, até, às outras ciências socioló gicas, se encontra desde os pri-meiros passos numa confusão, pela dificuldade em distinguir entre o dado e o resultado do seu trabalho.

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Há uma quantidade de modos de pensar que nos convidam ao equívoco; quando se diz, por exem plo, que o caso julgado, isto é, a sen-tença, e, com mais forte razão, a lei facit de albo nigrum, o pro vérbio deslumbra-nos com a ima-gem de um legislador ou de um juiz extrapoten-te, ou, antes, onipotente, de modo que não nos resta outra missão além de conhecer o produto desta potência; mas a verdade é que nós traba-lhamos, ao contrário, para descobrir os limites de tal potência, e o resultado do nosso tra balho é a destruição destes mitos.

Por isso, é preciso não confundir o cientista com o intérprete das leis; este último é um obreiro, ou seja, um prático, não um teórico do direito; decerto, também ao primeiro interessa a inter-pretação, mas o seu mister não é interpretar e sim ensinar como se interpreta, o que também se pode fazer interpretando, por meio da imitação, mas se deve fazer principalmente descobrindo e mostrando as leis da interpre tação. Exatamente no exemplo da diferença entre as leis do interpre-tar e as leis a interpretar culmina a dificuldade, que neste ponto tentei esclarecer, e que, se não

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se esclarece, ameaça no seu fundamento a ciên-cia do direito.

7 – Ora, as regras de experiência a que deve obedecer quem faz direito são da mais variada natu reza; e nesta variedade está uma outra das razões por que a missão da ciência, que as deve descobrir, é extraordinariamente vasta e árdua.

Também aqueles, e não são muitos, que se aper ceberam da distinção, que há pouco tentei pôr a claro, pensam sobretudo nas leis lógicas a que estão sujeitos os fenômenos do direito. Por exemplo, as leis da inter pretação, que formam o grupo mais visível, ou, pelo menos, mais co-nhecido entre essas regras, não são, justamente, mais do que regras lógicas; de fato, o comando3 jurídico opera, antes de mais nada, pelas vias do pensamento; os modos do seu operar são, antes de tudo, o conhecer e o fazer conhecer; o seu instrumento é, portanto, a linguagem; assim, as regras da linguagem servem, primeiro que tudo, a quem cumpre mandar, para fazer compreender o que manda, e a quem cumpre obedecer, para saber o que lhe é ordenado. Bastaria, quanto à

3 Entende-se que comando significa, neste sentido ordem, aquilo que é mandado, a ordem dada. N. do T.

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dificuldade, ter constatado que as regras procu-radas estão no campo da lógica, pois não há, afi-nal, vias mais misteriosas do que as percorridas pelo pensamento.

Mas, a verdade é que as regras lógicas não são mais do que um dos grupos das inumeráveis regras que governam os fenômenos do direito. Ao lado daquelas, há que ter em conta regras de todos os outros gêneros: psicológicas, fisiológi-cas, sociológicas, econômicas e até físicas. Assim, basta refletir, ainda a propósito da mani festação do pensamento, em que há, ao lado da lógica, a física da linguagem, para daí dever concluir que, no próprio campo do comando, a lógica não bas-ta; e são precisamente os cultores do direito pro-cessual que, com as conhecidas polêmicas sobre a oralidade e a escritura, têm ocasião de sentir, mais que os outros, a importância deste setor dos resultados das suas investigações. Mas, ainda, é decisivo refletir em como, em última análise, o comando não serve sem a experiência da sua atua-ção, o que quer dizer sem a aplicação das san-ções que, como todos sabem, se traduzem no uso da força, pelo que o obreiro do direito não pode limitar-se a ordenar, mas, para se fazer obedecer, deve ir até ao que se chama a execução forçada das suas ordens; ora, aqui, é, precisa mente, a regras

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físicas e até biológicas, por sua vez, que ele deve prestar obediência. É assim que, além do mais, uma lei sobre a pena de morte não pode ser feita sem o conhecimento de algumas regras de fisio-logia; se, por exemplo, fosse verdade que, como li há pouco, a cadeira elétrica apenas causa uma morte aparente, certas leis norte-americanas es-tariam horrendamente enganadas. Noto, de ras-pão, que é este um dos aspectos da sua ciência em que, demasiadas vezes, os juristas cometem o erro de não pensar; daqui deriva, além do mais, aquele menosprezo, para não dizer aquele des-prezo, do problema das coisas no processo, ou, an-tes, no direito em geral, e sobre o qual procurei já, mais de uma vez, dizer umas palavras.

Por outro lado, se a sanção devesse ser apli-cada em todos os casos, seria a falência e não o sucesso do direito; no fim de contas o engenho custaria mais de quanto rende; é, ao contrário, preciso que baste o medo da sanção para deter-minar a obediência ao comando; é preciso tam-bém que a obediência, para ser mais segura, seja tornada o menos grave possível a quem deve pres tá-la. Aqui, as próprias palavras por mim usadas mostram que o direito não pode ser feito nem por parte de quem deve mandar, nem da parte de quem deve obedecer, sem se fazer contas,

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isto é, sem se ter em vista outras regras, as re-gras da economia, que está em lugar dominante, provavelmente entre a sociologia e a psicologia. É duvidoso que o direito chegue a dominar a economia; mas é certo, pelo contrário, que a eco-nomia regula o direito; e não são, infelizmente, raros os casos em que o direito não opera porque, num lado ou noutro, as contas estão erradas.

Mas ainda não é tudo em matéria de regras que se encontram não dentro, mas sobre o direi-to. Ousarei mesmo dizer que tudo isto é o menos. O resto é o que torna mais dura e quase inatin-gível, no seu cume, a missão da ciência. A verda-de é que os fenômenos do direito obedecem não só a leis lógicas, psicológicas, biológicas, físicas, econômicas, mas também, e sobretudo, a leis éticas. Conquanto todas as outras regras sejam escrupulosamente respeitadas, a obra do legisla-dor nada vale se não corresponde à justiça. Não sabemos e, creio, nunca saberemos como isso é, mas a experiência ensina -os que não servem e não duram as leis injustas: não servem porque não trazem a paz; não duram porque cedo ou tarde, em vez de produzirem a ordem, acabam

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na revolução. Há, portanto, outras regras que o legis lador deve observar; se não as observa, o preço é terrivelmente elevado; e, nunca como por este lado, se mostra em que vaidade se resol-ve a sua apregoada onipo tência. Ora, também a descoberta destas leis, que são as mais altas e as menos apreensíveis,4 e a propósito das quais se percebe que a natureza, que as estabelece, não é senão ordem divina, também, dizia eu, é obra da ciência. Faço deste modo penitência, nos fins do meu caminho, daquela espécie de agnosticismo ético, que me pareceu, por longo tempo, o cará-ter da ciência do direito; era, no princípio, e foi, durante muito tempo, a consequência inevitável das correntes de pensamento que dominaram a minha educação; foram precisos anos e anos de experiência e de meditação para me poder liber-tar desses laços; e esta verdade, se não me tives-se custado tanta fadiga, não me teria dado tanta alegria.

Essas leis éticas, a que deve obedecer o di-reito, não são, ainda uma vez, as regras do direi-to; mas aqui, de novo e mais grave, se mostra o perigo da confusão entre o dado e o resultado da

4 No texto, “afferrabili”; poderia traduzir-se literalmente por “agarráveis”, mas, é evidente, não soaria bem.

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ciência, pelo que se falou e se torna a falar, no decorrer dos séculos, do direito natural como de outra espécie de direito, ao lado do direito positi-vo, ou de direito racional e até de direito filosófico, ou (por que não?) de direito científico: tudo equí-vocos, cada vez menos perdoáveis com o passar dos anos se a ciência há de começar a conhecer- -se a si própria; pior que equívocos, tudo erros, culminando na incoerência entre o substanti-vo e predicado, pois o direito, como tal, não é e não pode ser senão positivo, complexo de co-mandos humanos; aquilo que está acima do di-reito não é nem pode ser direito; a verdade é, ao contrário, que também o direito obedece a uma ordem, que não é apenas ordem lógica, ou física ou econômica, mas sobretudo ordem ética, e a visão desta ordena, se não é dada de um só golpe pela intuição, só pode ser ganha pouco a pouco com o lento caminhar da ciência. Ora, porque neste ponto a ciência do direito che-ga à sua maior altura, eis que muitos voltam a chamar-lhe filosofia; e aqui se levanta a outra questão, em torno das relações entre estes dois termos, questão que não quero agora tampou-co aflorar; no meu entender, e porque não tende, mesmo assim, senão à descoberta das regras do “vir a ser”, o homem, ainda quando

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prescruta as leis éticas do direito, não faz mais que ciência; que fosse mesmo filósofo, e não cientista, e ainda assim a diferença seria ape-nas de nome.

A verdade é que é esta a missão mais alta e mais árdua de quem se empenha em conhe-cer o direito, e por isso é a missão em volta da qual a ciência do direito menores sucessos pode obter. As leis éticas, diversamente do que sucede com as leis lógicas, econômicas ou físicas, não se deixam catalogar. A luz da justiça é difícil, talvez impossível de decompor no espectro, como se faz com a luz solar. Mas a ciência já cumpriu, neste setor, grande parte da sua missão quando adver-tiu os obreiros do direito, e, entre estes, primei-ro que nenhum outro, o legislador, de que a sua obra, ainda mesmo se lógica, física e economica-mente bem construída, é mais frágil que o vidro se o metal que ele emprega não é escavado das vísce ras da justiça; não é outro o bronze em que pode ser fundida a glória do legislador. O caber precisamente ao cientista do direito, e não a ou-trem, advertir disso o legislador, e recordar-lhe, assim, que ele é o primeiro dos servos de Deus, é talvez o maior risco, mas tam bém a maior no-breza da sua obra.

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8 – Uma primeira verdade que pode emer-gir destas reflexões é a que se pode chamar da unidade da ciência, ou, também, por outras palavras, da interdependência das ciências. Assim como as matérias das ciências diversas não são um mundo diverso, mas um aspecto diverso do único mundo, aspecto a que de vemos li-mitar o nosso trabalho porque nós somos pe-quenos e o mundo é imenso, assim também os resultados daquele trabalho só são diversos por serem as diversas faces de um prisma só. É preciso falar não tanto da unidade do direi-to e, portanto, da ciên cia do direito, como da realidade única e da ciên cia única. A divisão entre a ciência do direito civil e a ciência do direito penal não é mais arbitrária do que a di-visão entre a sociologia e a psicologia, ou en-tre esta e a biologia e assim sucessivamente. Todas estas fronteiras não são mais que jogos de sombras originados pela limitação do feixe luminoso projetado pela nossa mente. Não há outro remédio contra esta nossa incapacida-de senão ter dela consciência. Somente assim os limites da obra individual podem desapa-recer na grandeza da obra comum. Mas pro-vavelmente, por isso, é preciso sentirmo-nos

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irmãos. Quer dizer que também a ciência, em última análise, tem necessidade da caridade.

Não tanto uma relação quanto uma troca há, pois, não só entre a ciência e a prática, entre a ciên cia e a técnica, entre a ciência e a metodo-logia, mas ainda entre a ciência e a ciência, isto é, entre as várias espécies ou famílias da ciência. As divisões que, entre elas, de um modo empíri-co ou mesmo científico, costumamos traçar não valem mais do que as fronteiras marcadas pelo geó-grafo sobre a carta, com várias tintas. Acontece por vezes que alguém, tendo atravessado alguma destas fronteiras, se surpreende por não estar em um mundo diverso; ou também que, não haven-do na fronteira rede ou guarda, não dê por tê-la atravessado. Assim acontece também no mundo do pensamento. Há, é certo, também cien tistas que pretendem fazer a guarda nas fronteiras; mas nenhum trabalho é vão como este. A verda-de é que nós temos continuamente necessidade uns dos outros, e não podemos deixar de nos re-conhecer cidadãos da mesma pátria.

Deste modo, também a ciência do direito toma, entre todas as outras, o seu lugar, com a mesma missão e a mesma dignidade. É preciso começar a dizê-la, porque nem todos, talvez nem mesmo entre os juristas, têm disso consciência. A

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missão e a dignidade resplendem na fórmula: des-coberta das regras da experiência jurídica. Também o jurista, como o astrônomo, perscruta o seu fir-mamento para descobrir as leis que lhe guiam o eterno movimento. Também as do jurista são, como as do astrônomo, do físico, do químico, do biólogo, descobertas. Também a ciência do direito tem os seus santos e até os seus mártires. Mas o vulgo não dá por isso. Todos falam da descober-ta de Pasteur; mas quem considera descobridor, não digo já Cesare Beccaria, mas Pietro Bonfante ou Giuseppe Chiovenda? E quem se lembraria de dar lugar também aos juristas no Conselho das investigações?5 Ora, para criar fora de nós a com-preensão e a reverência, que não satisfazem tan-to o amor-próprio dos cientistas como favorecem o desenvolvimento da ciência, devemos começar nós próprios a ter a convicção destas verdades.

5 O autor refere-se ao “Consiglio delle ricerche”, organis-mo oficial encarregado de promover e orientar os trabalhos de investigação em todos os setores da ciência. Teve como primeiro presidente o grande inventor Marconi, ao qual sucedeu o atual presidente, Marechal Badoglio. N. do T.