Capitalismo, monopólios e patentes: propriedade intelectual e a desmedida exploração dos bens...

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ARTIGO Wellington Fontes Menezes . Introdução A propriedade é um pressuposto básico do modo de produção capitalista. Com o advento do capitalismo de exploração dos bens intangíveis, a lógica da acumulação ultrapassa as construções materiais da propriedade no que tange a exploração dos bens tangíveis e cerceia o âmbito dos elementos produzidos pelo intelecto humano, ou seja, os limites dos bens intangíveis como fontes quase inesgotáveis de lucros. A apropriação dos bens intelectuais (patentes e direitos autorais) permite ao capitalista mercantilizar o conhecimento e a conduzir seu desenvolvimento e processos de criação intelectual humano segundo os critérios da lucrativa produtividade. Como foi enfatizado por Menezes (2007), é possível construir a trajetória dessa vertente capitalista que marcantiliza os bens intelectuais se voltar às suas origens agrárias como modo de produção e acumulação 2 . É compatível e necessária a analogia entre a “Lei do Cercamento” imposta nas terras comunitários inglesas no século XVI com o processo de cerceamento dos bens intelectuais. Assim como nas terras comunais inglesas cooptadas em propriedades particulares que transformaram homens livres em uma amorfa massa de assalariados dependente de patrão, a exploração capitalista do conhecimento por via da detenção dos direitos de propriedade intelectual se configura em uma amplitude mercantil jamais vista nas mutações sofridas do processo de produção capitalista. A mundialização do capitalismo no século XX e o aprofundamento do neoliberalismo com o livre fluxo de Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus Marília; Bacharel e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP); Professor da Rede Pública do Estado de São Paulo. Contato: [email protected] ou [email protected] 2 MENEZES, Wellington Fontes. “Propriedade Intelectual: Das origens agrárias ao capitalismo mundializado”. Anais do V Colóquio Marx e Engels, CEMARX/Unicamp, 2007. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/ arquivos/comunicacoes/gt3/sessao/Wellington_Menezes.pdf. capitais possibilitam que empresas transnacionais fluam em total liberdade entre os países e suas economias assimétricas como verdadeiros e avassaladores Estados apátridas. A posse incondicional dos direitos de propriedade intelectual (DPI) por essas empresas impõe aos países signatários da Organização Mundial do Comércio (OMC) diversas políticas e praticas jurídicas de defesa dos direitos de patentes que certificam e asseguram seus lucros de exploração. A patente como uma poderosa mercadoria intangível e rentável via exploração mercantil de seu ornamento jurídico favorável é um fluxo de lucros quase ilimitado que praticamente liberta o capital do trabalho, ou seja, prescinde do trabalho, seja ele vivo ou morto. Distingue- se a patente de um dado invento da simples prestação de um serviço. Ambos podem ser trabalhados na qualidade de “bens imateriais” no que tange sua capacidade de ser bens intangíveis. Todavia, a patente de uma invenção possui um arcabouço teórico-jurídico muito superior ao mero desenvolvimento de um serviço. A respeito da “economia política do imaterial”, Eleutério Prado faz um comparativo pertinente nas considerações dos trabalhos da dupla Hardt e Negri com as afirmativas de Karl Marx 3 . Para o destaque de Hardt e Negri, [...] a maioria dos serviços de fato se baseia na permuta contínua de informaçoes e conhecimentos. Como a produção de serviços não resulta em bem material e durável, definimos o trabalho envolvido nessa produção como trabalho imaterial − ou seja, trabalho que produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação. Logo, para a concepção de Karl Marx, “serviço não é, em geral, senão uma expressão para o valor de uso particular do trabalho, na medida em que este [valor de uso] não é útil como coisa, mas como atividade” . É 3 PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: Crítica da pós- grande indústria. São Paulo: Xamã, 200, p. 9. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 200, p. 3. MARX, Karl (978, p. 78) apud PRADO, op. cit, p. 9. Capitalismo, monopólio e patentes: propriedade intelectual e a desmedida exploração dos bens intangíveis

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Wellington Fontes Menezes�

�. IntroduçãoA propriedade é um pressuposto básico do modo de

produção capitalista. Com o advento do capitalismo de exploração dos bens intangíveis, a lógica da acumulação ultrapassa as construções materiais da propriedade no que tange a exploração dos bens tangíveis e cerceia o âmbito dos elementos produzidos pelo intelecto humano, ou seja, os limites dos bens intangíveis como fontes quase inesgotáveis de lucros. A apropriação dos bens intelectuais (patentes e direitos autorais) permite ao capitalista mercantilizar o conhecimento e a conduzir seu desenvolvimento e processos de criação intelectual humano segundo os critérios da lucrativa produtividade. Como foi enfatizado por Menezes (2007), é possível construir a trajetória dessa vertente capitalista que marcantiliza os bens intelectuais se voltar às suas origens agrárias como modo de produção e acumulação2.

É compatível e necessária a analogia entre a “Lei do Cercamento” imposta nas terras comunitários inglesas no século XVI com o processo de cerceamento dos bens intelectuais. Assim como nas terras comunais inglesas cooptadas em propriedades particulares que transformaram homens livres em uma amorfa massa de assalariados dependente de patrão, a exploração capitalista do conhecimento por via da detenção dos direitos de propriedade intelectual se configura em uma amplitude mercantil jamais vista nas mutações sofridas do processo de produção capitalista.

A mundialização do capitalismo no século XX e o aprofundamento do neoliberalismo com o livre fluxo de

� Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Campus Marília; Bacharel e Licenciado em Física pela Universidade de São Paulo (USP); Professor da Rede Pública do Estado de São Paulo. Contato: [email protected] ou [email protected]

2 MENEzES, Wellington Fontes. “Propriedade Intelectual: Das origens agrárias ao capitalismo mundializado”. Anais do V Colóquio Marx e Engels, CEMARX/Unicamp, 2007. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt3/sessao�/Wellington_Menezes.pdf.

capitais possibilitam que empresas transnacionais fluam em total liberdade entre os países e suas economias assimétricas como verdadeiros e avassaladores Estados apátridas. A posse incondicional dos direitos de propriedade intelectual (DPI) por essas empresas impõe aos países signatários da Organização Mundial do Comércio (OMC) diversas políticas e praticas jurídicas de defesa dos direitos de patentes que certificam e asseguram seus lucros de exploração.

A patente como uma poderosa mercadoria intangível e rentável via exploração mercantil de seu ornamento jurídico favorável é um fluxo de lucros quase ilimitado que praticamente liberta o capital do trabalho, ou seja, prescinde do trabalho, seja ele vivo ou morto. Distingue-se a patente de um dado invento da simples prestação de um serviço. Ambos podem ser trabalhados na qualidade de “bens imateriais” no que tange sua capacidade de ser bens intangíveis. Todavia, a patente de uma invenção possui um arcabouço teórico-jurídico muito superior ao mero desenvolvimento de um serviço. A respeito da “economia política do imaterial”, Eleutério Prado faz um comparativo pertinente nas considerações dos trabalhos da dupla Hardt e Negri com as afirmativas de Karl Marx3. Para o destaque de Hardt e Negri,

[...] a maioria dos serviços de fato se baseia na permuta contínua de informaçoes e conhecimentos. Como a produção de serviços não resulta em bem material e durável, definimos o trabalho envolvido nessa produção como trabalho imaterial − ou seja, trabalho que produz um bem imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação.�

Logo, para a concepção de Karl Marx, “serviço não é, em geral, senão uma expressão para o valor de uso particular do trabalho, na medida em que este [valor de uso] não é útil como coisa, mas como atividade”�. É

3 PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 200�, p. �9.

� HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 200�, p. 3��.

� MARX, Karl (�978, p. 78) apud PRADO, op. cit, p. �9.

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desmedida exploração dos bens intangíveis

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importante ressaltar o busca do desvelo de Prado (200�) quanto à distinção de trabalho imaterial e serviços:

Já foi visto que a conexão entre trabalho imaterial e serviços é algo equivocada. Mas não se examinou ainda a origem do problema, ou seja, por que afinal esses dois autores [Hardt e Negri] centram a caracterização do modo de produção capitalista recente no caráter concreto do trabalho? É evidente que assim podem falar de produtividade do trabalho de um modo que consideram conveniente para refazer a crítica do capitalismo�.

Invocando o próprio Karl Marx, Prado (200�) enfatiza o desvelo de quaisquer equívocos sobre a conceituação entre trabalho imaterial e serviços:

A mania de definir o trabalho produtivo e o improdutivo por seu conteúdo material origina-se [...] da concepção fetichista, peculiar ao modo de produção capitalista, e derivada de sua essência, que considera as determinações formais econômicas, tais como ser mercadoria, ser trabalho produtivo, etc., como qualidade inerente em si mesma aos depositários materiais dessas determinações formais ou categorias.7

Assim como nos cercamentos das terras comunais inglesas que visavam ser “melhoradas” para a produtividade, o conhecimento encarcerado pelas políticas de patenteamentos de mercadorias intangíveis mercantilizadas subjuga a ciência e a tecnologia através da lógica do imediatismo produtivo capitalista. Com essa dinâmica imposta pelo capitalismo de exploração dos bens intangíveis, o conhecimento não mais é usufruto do interesse coletivo e tampouco socializável, mas uma voraz máquina destinada à multiplicação da acumulação8.

2. As políticas de direitos de propriedade intelectual (DPI) no lastro da mundialização do capital

Salientado a dinâmica ideológica proveniente dos cercamentos, até meados da Revolução Industrial os

� PRADO, op. cit., p. ��.

7 MARX, Karl (�978, p. 78) apud PRADO, op. cit, p. ��.

8 Andre Gorz faz uma distinção entre os diversos conceitos associado à economia baseada no conhecimento: “os anglo-saxões fa-lam do nascimento de uma knowledge economy e de uma knowledge society; os alemães, de uma Wissensgesellschaft; os autores franceses, de um ‘capitalismo cognitivo’ e de uma ‘sociedade do conhecimento’. O conhecimento (knownledge) é considerada como a ‘força produtiva principal’. Marx [no Grundrisse] mesmo já notava que ele se tornaria ‘die grösste Productivkraft’ e a principal fonte de riqueza. [Para Marx, nos Grundrisse, vaticinava que] ‘o trabalho em sua forma imediata, mensurável e quantificável, deverá, por conseqüência, deixar de ser a medida da riqueza criada. [...] [e] ‘dependerá cada vez menos do tempo de trabalho e da quantia de trabalho fornecida’. [Por sua vez, a dependência resultará] ‘do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia’”. GORz, André. O imaterial: conhecimento, valor e ca-pital. São Paulo: Annablume, 200�, p. ��-��.

fundamentos eram em torno da riqueza pelo acúmulo da propriedade de terras, uma vez que a sociedade era predominantemente rural. Progressivamente, mudou-se a bússola da riqueza que agora incorporaria novos parâmetros da propriedade levando em consideração instalações fabris, maquinários, insumos e estoques, momento em que culminaria numa nova e poderosa classe social, a burguesia. Neste eixo de mudanças, caracteriza-se, então, com maior importância a propriedade material, imóvel ou móvel. Todavia, somente nas últimas décadas do século XX é que se passa a fazer presente uma maior atenção à propriedade intelectual, como ativo econômico relevante ao desenvolvimento econômico entre todos os países, independente de seu potencial desenvolvimentista.

Conforme Carvalho (2007), tal afirmativa pode ser comprovada pelas datas de constituição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC) e decorre fundamentalmente da valoração da propriedade alicerçada pelo desenvolvimento do comércio internacional9. Neste ínterim, acerca da economia mundial, Celso Furtado destaca que:

O advento de um núcleo industrial, na Europa, significou uma modificação qualitativa na economia mundial da época e passou a condicionar o desenvolvimento econômico subseqüente em quase todas as regiões da terra.�0

Não é possível desassociar a questão dos direitos de propriedade intelectual (DPI) da crescente mundialização�� do capital (Chesnais, �99�). É um fenômeno que atinge todos os blocos econômicos e de todos os países inseridos nas práticas do comércio internacional. O livre fluxo de capital e da grande mobilidade de trânsito das empresas multinacionais que se tornaram conglomerados vastos e poderosos que permitem se constituírem verdadeiros estados apátridas

9 CARVALHO, Patrícia Luciane. “O direito internacional da propriedade intelectual: a relação da patente farmacêutica com o acesso a medicamentos”. Revista Eletrônica de Direito Internacional [on line], v.�. Belo Horizonte: CEDIN, 2007. Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/O%20DIREITO%20INTERNACIONAL%20DA%20PROPRIEDADE%20INTELECTUALPatr%EDcia%20Carvalho.pdf. Acesso em 29 maio 2009.

�0 FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, �983, p. ���.

�� CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, �99�. Em concordância com François Chesnais adotamos o conceito de origem francesa “mundialização” por permitir desenvolver com muito mais força as novas construções e interações comerciais do mundo ao invés da terminologia vaga e apologética da “globalização”. Lembrando ainda que a “mundialização” não é um fenômeno apenas do final do século XX, mas que se acentou nesse período de forma avassaladora como nunca antes na história do capitalismo.

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dentro dos estados nacionais. Destacando o avanço histórico do capitalismo mundializado, temos que:

Na medida em que o capitalismo se desenvolve nas várias partes da economia mundial, as relações econômicas internacionais já não se limitam às simples trocas de mercadoria; estas são suplementadas pelos movimentos de capital, ou seja, pela exportação por alguns países, e importação por outros, de mercadorias que têm características e funções específicas de capital.�2

Desta maneira, Carvalho (2007), descreve que “nesta conjuntura de fomento e incremento do comércio internacional tem-se a complexa compatibilização dos interesses dos países desenvolvidos com os países em desenvolvimento, situação que perdura até hoje”.�3

Assim, haveria uma construção baseada na troca concorrencial de interesses em que um contribui para com o outro através da complementação de competências. Conforme salienta Paul Sweezy, “os industriais nada tinham a temer da importação dos produtos industriais semelhantes aos seus, já que suas fábricas eram técnica e economicamente muito superiores”.��

Todavia, nasceria a disparidade tecnológica entre os diferentes países que deram o “salto industrial” uma vez que estaria também correlacionada ao acúmulo de recursos financeiros e experiência do desenvolvimento de bens de maior potencial de conhecimento e valor agregado. Neste sentido, é natural que afetaria demasiadamente as estruturas do comércio internacional, de maneira a aprofundar cada vez mais o desequilíbrio com o advento mais aprofundado da mundialização do capital:

Frente ao comércio internacional, os países em desenvolvimento e os de menor desenvolvimento relativo não tiveram tempo ou condições de se preparem para a concorrência que se impunha; a situação perdura e se repete nos atuais ciclos econômicos, uma vez que estes países dependem da solidariedade internacional para com as suas necessidades sociais. Esta situação, aparentemente apenas econômica, proporciona vários problemas de ordem interna relacionados ao fundamento mesmo da constituição estatal, como a realização do bem comum. Necessário, então, que condicionantes fossem estabelecidas ao uso da riqueza, é neste momento que surge a limitação ao direito de propriedade, representada pela função social.��

�2 SWEEzY, Paul M. Teoria do Desenvolvimento Capitalista. Coleção “Os Economistas”. São Paulo: Abril Cultural, �983, p. 222.

�3 CARVALHO, Patrícia Luciane. “O direito internacional da propriedade intelectual: a relação da patente farmacêutica com o acesso a medicamentos”, cit., on-line.

�� SWEEzY, Paul M., Teoria do Desenvolvimento Capitalista, cit., p. 22�.

�� CARVALHO, Patrícia Luciane. Idem, ibidem, on-line.

Saindo do modelo de explicação sucessivo do modo de produção capitalista (escravatura, servidão, capitalismo), Braudel (�987) considera uma ampliação mundializada desse processo dinâmico segundo o qual:

[...] o capitalismo é uma criação da desigualdade do mundo; para desenvolver-se, necessita das conivências da economia internacional. É filho da organização autoritária de um espaço evidentemente desmedido. Não teria progredido de um modo tão pujante num espaço econômico limitado. Talvez não tivesse progredido nada sem o recurso ao trabalho servil de outrem.��

A privatização crescente das esferas políticas onde antes eram redutos obrigatórios dos agentes estatais ganha impulso mercantil com uma ordem neoliberal de crescente ampliação do “livre comércio” entre os diversos e assimétricos países. Izerrougene (200�) ressalta a respeito das transformações do modo de produção do capital como se expropria a parcela conhecida como “trabalho cognitivo”, cuja fonte é a matriz essencial da propriedade intelectual:

O desenvolvimento econômico é hoje nitidamente dominado pelo intangível, que re-configura os processos de produção, altera as suas formas institucionais de regulação e abre espaço considerável para a acumulação. O trabalho cognitivo ocupa um lugar de destaque na produção de externalidades. A produção de serviços e o manuseio de informações estão no coração da economia, apoiados na revolução da comunicação e da informática que transforma as práticas laborais, inserindo-as no modelo das tecnologias de informação e comunicação. Toda atividade econômica tende a ser permeada pela informação e a ser qualitativamente transformada por ela, agindo em todo o campo social.�7

Jappe (200�) alerta sobre a “revolução conservadora” presente no cerne da mundialização econômica como sendo produto de uma construção impositiva essencialmente política:

A mundialização econômica não é um efeito mecânico das leis da técnica ou da economia, mas sim o produto de uma política posta em ação: tal política teria sido imposta pelo esforço constante dos think tanks neoliberais. Tratar-se-ia de um processo de involução, de uma verdadeira “revolução conservadora”: Começa-se assim a suspeitar de que a precariedade é produto não de uma fatalidade econômica, identificada pela famosa “mundialização”, mas de uma vontade política. [...] Não há abuso no fato de os liberais se apresentarem a si mesmos como os representantes do “progresso” e

�� BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, �987, p. 77.

�7 IzERROUGENE, Bouzid. “Economia Política do Cognitivo”. Encontro ANPEC, 200�, p.�-�.

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das “reformas”: eles constituem a melhor expressão do que são o progresso e as reformas na sociedade capitalista.�8

Na crescente mercantilização dos aspectos econômicos e sociais, a pesquisa científica torna-se peça fundamental nas engrenagens de novas possibilidades de lucros para as empresas que dominam a tecnologia como centro de suas atividades. Conforme aborda Gorz (200�), “a pesquisa privada quase sempre tem como objetivo principal permitir à empresa erguer um monopólio do conhecimento que lhe proporcione um rendimento exclusivo”�9. No caso específico, aborda-se a questão da biotecnologia nesse novo cenário de desenvolvimento capitalista:

Dada a natureza intensiva de biotecnologia industrial na atualidade, a privatização progressiva de organismos vivos, propiciada pela introdução de patentes, produzirá impactos adversos sobre a atividade científica realizada em universidades e institutos de pesquisa de países em desenvolvimento.20

Cada país ingressante na Organização Mundial do

Comércio (OMC) tem como “regra geral” uma série de medidas que internalizam suas políticas locais em nome de um estado de liberdade comercial praticamente irrestrita. Neste nicho que se insere o poder econômico das empresas transnacionais nos países que se instalam e buscam um conjunto de ornamentos jurídicos que protegem seu patrimônio, como é o caso da inovação, e por sua vez, seus lucros:

Para a maioria das empresas, a sobrevivência passa pela pesquisa permanente de novas aberturas comerciais que levam à definição de gamas de produtos sempre mais amplos ou diferenciados. A inovação não é mais subordinada somente à racionalização do trabalho, mas também aos imperativos comerciais. Parece então que a mercadoria pós-industrial é o resultado de um processo de criação que envolve tanto o produtor quanto o consumidor.2�

A adesão de um país membro para ser signatário da OMC é sua assinatura de diversos acordos para o desenvolvimento e maturação local do “livre comércio” e em destaque no caso específico dos direitos de propriedade

�8 JUPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 200�, p. 2��-2�7.Lisboa: Antígona, 200�, p. 2��-2�7.

�9 GORz, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital, cit., p. ��. 20 MARQUES, Marília Bernardes. Saúde pública, ética e mercado no entreato de dois séculos. São Paulo: Brasiliense, 200�, p.São Paulo: Brasiliense, 200�, p. 87.

2� LAzzAROTO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 200�, p. ��.

intelectual (DPI), o “Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio” (TRIPS, na sigla em inglês22). Entre outros dispositivos jurídicos, esse acordo regulamenta uma série de normas de proteção relativas aos DPI das empresas desenvolvedoras de inovações tecnológicas instaladas nos países-membros da OMC.

3. O poder do monopólio das patentes e suas dimensões econômica

A patente confere a seu titular o monopólio da produção e da distribuição de produtos num determinado território e por um dado período de tempo. A não utilização da patente é aqui entendida como a ausência da produção no país; a importação e a distribuição do produto ou processo patenteado podem acontecer, o que é levado a efeito quer pelo titular ou por um distribuidor licenciado.

Segundo relatório preparado pelo departamento das Nações Unidas para assuntos econômicos e sociais, pelo Secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) e pelo Escritório Internacional da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), existe quatro aspectos da definição de patentes que merecem menção e alguns ou todos eles podem ter importância em casos específicos e a análise aproximada dos custos e dos benefícios precisariam ser adaptados para cada caso:

Em primeiro lugar podem haver diversas razões pelas quais a patente não é utilizada. Presume-se que a ausência da produção local representa uma escolha deliberada pelo titular estrangeiro da patente tomada como parte da implantação de uma estratégia internacional de marketing e produção. Em segundo lugar pressupõe-se que o produto ou o processo patenteado tenha algum valor econômico e social para o país em desenvolvimento. [...] Em terceiro lugar, uma patente pode ficar sem ser utilizada somente parte de sua vida [mediante cálculo de custos e benefícios por parte do detentor da patente]. [...] E quarto lugar em circunstâncias excepcionais um estrangeiro titular de uma patente pode evitar tanto importação quanto produção local.23

Uma patente utilizada ou não, fornece uma

22 Na grafia original, Na grafia original, Agreement on Trade Related of Intel-lectual Property Rights (TRIPS).

23 CNUCED/OMPI. Departamento das Nações Unidas para assuntos econômicos e sociais/Organização Mundial de Propriedade Intelectual. O papel do sistema de patentes na transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento. Relatório preparado pelo Departamento das Nações Unidas para assuntos econômicos e sociais, pelo Secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e pelo Escritório Internacional da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, �979, p. �79.

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vantagem tangível ao país concedente da patente: as taxas pagas pelos requerentes. Existe uma retórica econômica para os defensores das patentes segundo a qual a mera concessão de patentes por um país em desenvolvimento contribuiria para a criação de clima favorável para o investimento estrangeiro e que, “mesmo que a produção não se inicie num país em desenvolvimento com base nas patentes concedidas ali, o fato de haver a concessão poderia encorajar o investimento estrangeiro”2�. Todavia, não é possível encontrar uma prova convincente dessa afirmação, e os argumentos disponíveis indicam que as patentes têm pouca influência nas decisões de investimento:

Os investidores ao contemplar investimentos externos não são aparentemente muito influenciados em suas decisões pela natureza da proteção das patentes que lhes é disponível. Numerosas pesquisas referentes aos fatores obstruindo ou encorajando investimentos externos, não levam muito a sério a questão de patentes.2�

A existência de uma patente que não serve como base para a produção nacional implica que ou o produto ou processo carece ser importado ou que os consumidores internos precisam utilizar-se de qualquer sucedâneos possíveis (quer de produção local, quer de origem externa). A importância normalmente envolve um desembolso superior ao incorrido na produção doméstica e ao saldo de divisas poupadas, ou pagas em excesso nesses casos é o custo da não exploração da patente. A dimensão deste custo pode naturalmente variar enormemente e tende a ser baixo quando a produção doméstica envolve de forma ponderável a importação de matérias-primas, bens de capital e partes complementares, como um baixo valor agregado de produção e alto quando esta importação é baixa.2�

Segundo a análise de Gorz (200�), “o valor de um conhecimento é inteiramente ligado à capacidade de monopolizar o direito de servir dele”27. Tal conceito se insere com grande exatidão na esfera do monopólio de patentes oriundas de invenções, uma vez que:

[...] tratando-se de mercadorias que têm forte conteúdo imaterial, em vez de dizer que seu valor tem seu conhecimento como fonte, será mais justo dizer que ele tem sua fonte no monopólio do conhecimento, na exclusividade das quantidades que esse conhecimento confere às mercadorias que incorporam, e na

2� CNUCED/OMPI. O papel do sistema de patentes na transferência de tecnologia aos países em desenvolvimento, cit., �979, p. �7�.

2� Vernon, �9�7 apud CNUCED/OMPI, idem, ibidem, p. �77.

2� CNUCED/OMPI, idem, ibidem, �979.

27 GORz, op. cit., p. ��. GORz, op. cit., p. ��.

capacidade da firma para conservar esse monopólio.28

A inovação, por este caminho, se perfaz pela rapidez que se processa seu próprio mecanismo de inventabilidade e reprodução, sendo por sua vez, conquistar cada vez mais espaço dentro do mercado. Desta maneira, os defensores do monopólio patenteário, justifica as barreiras comerciais com pressuposto básico para as supostas “condições de criação”. Todavia, monopolizar o conhecimento nem sempre é uma tarefa tão trivial dada a natureza intangível de sua criação:

A monopolização de um conhecimento, de uma competência, de um conceito, continua sendo uma tarefa difícil. Ela exige um investimento financeiro freqüentemente muito superior àquele que demandou a produção do conhecimento que lhe serve de base. Isso é verdade mesmo na indústria farmacêutica e na [indústria] dos programas de computador.29

Muitos destes defensores argumentam outros

imperativos da necessidade do monopólio patenteário, entre eles, o de maior “sensibilidade perante governos e opinião pública” busca se sustentar nos altos custos que as indústrias demandam para a pesquisa e desenvolvimento (P&D) de seus produtos. Na realidade, é praticamente impossível de saber com exatidão quanto realmente tais empresas gastam com P&D, todavia é possível inferir que os custos de marketing são particularmente excepcionais:

Também não temos conhecimento de que atividades são incluídas sob o título de “P&D”. Grande parte pode, na realidade, ser marketing, que é computado como P&D porque causa uma impressão melhor ter um grande orçamento de P&D do que ter um grande orçamento de marketing.30

Gradativamente vêm se agravando os conflitos presentes entre o interesse pelo usufruto da lucratividade comercial presente nos direitos de propriedade patentária com os direitos sociais e humanitários e se tornam mais evidenciados quando tange a esfera da saúde humana:

Com respeito à proteção do direito as patentes farmacêuticas não é diferente, uma vez que o incremento do comércio internacional fez necessária a criação de um patamar de proteção internacional que conjugasse os direitos sobre a propriedade com os interesses sociais. Assim, em decorrência da inter-relação entre o comércio internacional, os direitos humanos, principalmente

28 Idem, ibidem, p. ��.

29 Idem, ibidem, p. ��.

30 ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farma-cêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito. São Paulo: Record, 2007.

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os sociais, os problemas do pós-guerra e os trabalhos realizados pelas organizações internacionais, fez-se necessária a proteção dessas duas esferas de direitos a partir da ordem internacional, para que esta servisse de parâmetro para as respectivas ordens jurídicas nacionais. Portanto, a conjugação harmônica entre os direitos humanos (acesso a medicamentos) e os direitos da propriedade intelectual (patente) não é novidade e nem tema exclusivo do Brasil.3�

Segundo Berle e Means (�987), sob uma visão jurídica, proposta da inter-relação entre o acesso a medicamentos e a proteção da patente farmacêutica é reconhecida pelas organizações internacionais e principalmente a conjugação entre esses direitos estabelecida pela esfera da “ordem econômica internacional”. Dessa maneira, uma vez que:

O rápido aumento do desenvolvimento técnico diminui necessariamente a importância das coisas palpáveis ou físicas e eleva os fatores de organização e conhecimento técnico. Não é possível reduzir organização a uma fórmula. O conhecimento técnico não pode ser atribuído a um único indivíduo, grupo de indivíduos ou empresa. Faz parte da herança do país e da raça. Em nenhum desses dois casos a fórmula tradicional aplicável à lei de propriedade cabe ao fator corrente.32

Neste contexto, tais autores salientam a construção simbólica da propriedade intelectual como produtos oriundos das necessidades de um coletivo e suas implicações e amplitude dentro da esfera social.

4. Comentários finaisRefletindo a respeito das considerações de Marx

sobre a sociedade industrial capitalista, este sistema de produção que traz a semente da expropriação da propriedade privada, que se concentra em quantidades cada vez maiores em mãos de um número cada vez mais limitado de pessoas. O sistema capitalista de acumulação se desdobra e metamorfoseia-se de muitas formas e práticas cujo objetivo máximo e declarado é sintetizado num único e totêmico vocábulo: “lucro”. Ao cercear o conhecimento como forma de extrair de elementos abstratos as novas configurações para a materialização desta lucratividade, o capitalismo adquire formas mais sutis e avassaladoras de poder. O monopólio patentário é uma das formas mais sofisticadas de exploração de bens tangíveis e imateriais com forte impacto na vida econômica e social. Particularmente, o caso do monopólio de medicamentos das indústrias farmacêuticas protegidos por patentes expõe uma das faces mais cruéis deste regime

3� CARVALHO. Idem, ibidem, on-line.

32 BERLE, Adolf A.; MEANS, Gardiner C. A Moderna Sociedade Anônima e a Propriedade Privada. São Paulo: Abril Cultural, �98�, p. 7.

de controle e usufruto dos teares do conhecimento. Hoje, a humanidade por meio de seus pesquisadores

e técnicos, adquiriu conhecimento científico e tecnológico, além de possibilidades reais de ampliar a produção de medicamentos a fim de atender a demanda necessária e evitar mais tragédias humanitárias. É notório que investimentos para laboratórios e corpo técnico especializado demandam altos recursos de investimento, porém é urgente socializar o conhecimento tendo em vista a busca incansável de salvaguardar vidas. Reconhecem-se os investimentos e a necessidade de remuneração de seus criadores pelos novos inventos. Algumas propostas como o “fundo de premiação” como defende Joseph Stiglitz poderá ser uma das alternativas possíveis ao monopólio patentário33. Todavia, no caso de descobertas no campo de medicamentos, não é possível a concessão deste monopólio que inviabiliza novas pesquisas e prejudica demasiadamente o acesso de medicamentos aos que deles necessitam para amenizarem suas moléstias.

É importante salientar que o conhecimento acumulado ao longo do tempo é resultado de um esforço coletivo, uma vez que, ao criá-lo, o homem se aproveita do previamente existente. Os mecanismos patenteários de cerceamento do conhecimento se situam na contramão do desenvolvimento de uma sociedade. A centralidade do conceito de propriedade privada da capacidade de criação do homem inviabiliza o seu próprio desenvolvimento. Desta maneira, a propriedade do conhecimento somente terá justificativa se for entendida como propriedade comum, como resultado do esforço de todos os membros da sociedade e que gera para os indivíduos o direito de ter o acesso sem nenhum impeditivo. Somente assim o homem poderá continuar se desenvolvendo e produzindo um mecanismo mais solidário que beneficiará a todos os membros da sociedade, cuja propriedade comum se justifica pelo fato de todos os membros da sociedade terem contribuído para sua produção.

33 STIGLITz, Joseph E. “Pizes, Not Patents”. Project Syn-Project Syn-dicate, 2007. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/com-mentary/stiglitz8�. Acesso em 29 jan. 2008. Todavia, esta alternativa seria um mero paliativo que não resultará em significativas modifica-ções nas atuais políticas de concessão de patentes.