Capitalismo modo de usar 1ed-Giambiagi-E-sample · Um dia qualquer de 1984 ... faltavam muitos anos...

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PARTE I Introdução

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P A R T E I

Introdução

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17 anos, 5 meses e 4 dias

O que mais vale no homem é sua capacidade de insatisfação, o

instinto frenético em direção ao ótimo.

JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Um dia qualquer de 1984

Era minha primeira semana no emprego, mal saído do estudo na universidade e eu ainda estava me acostumando com a rotina dos horários. Na faculdade, quando se estuda em um curso difícil, não há horários fixos e rígidos. Não se estuda “das 9 da manhã às 5 da tarde”: simplesmente, as coisas têm de ser feitas. Se o professor de Álge-bra tinha passado uma lista de 40 exercícios na sexta-feira para fazer até segunda-feira, não tinha jeito, os exercícios teriam de ser respondidos durante o final de semana. Se numa quinta-feira o trabalho de fim de ano, que valia uma das duas notas de História do Pensamento Econômico (a nem sempre popular “HPE”), ainda não estava pronto e tinha de estar na mesa do professor às 7 da manhã de sexta, havia apenas uma saída: trabalhar durante a noite, num “rush” final regado com doses generosas de café. Esse hábito de chegar no horário X e sair na hora Y era muito estranho para mim.

E foi então que um colega – jovem e meu amigo – me contou uma história que me marcou. Ele ouviu a frase de uma das pessoas com as quais compartilhava a sala de trabalho, num desses espaços de mais ou menos 20 metros quadrados em que se distribuem cinco ou seis empregados. A frase que me marcou e que ele me relatou foi dita por outro colega – mais velho – enquanto este se espreguiçava e fechava as gavetas, ali pelas 5 horas de uma tarde qualquer de agosto de 1984.

– Faltam 17 anos, 5 meses e 4 dias para me aposentar.Confesso que hoje, 31 anos depois, a memória pode me trair em algum detalhe.

Talvez a pessoa não tenha dito “4 dias”. Não tenho, devo dizer, 100% de certeza de que o número de meses citado tenha sido de 5. O que lembro muito bem, sim, é que: (a) faltavam muitos anos para essa pessoa se aposentar, não eram apenas 2 ou 3: eram mais de 15, com certeza; e (b) ela fez menção, sim, ao número de anos, de meses e de dias para a ocorrência do evento.

Com apenas 22 anos, ouvindo essa história, eu estava começando a aprender uma das lições da vida: a de que, enquanto há pessoas que procuram se superar, ir

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atrás de novos desafios e tentar sempre chegar além dos objetivos traçados, outras têm ambições mais limitadas, associadas a certos objetivos que, se concretizados, po-dem prescindir do traçado de metas mais arrojadas. A proporção em que um e outro tipo de pessoas podem ser encontrados no universo de indivíduos que compõem um país definirá que tipo de sociedade se terá.

A idiossincrasia, essa força monolítica

O Brasil é um país com um componente anticapitalista fortemente enraizado na sociedade. A persistência desse elemento cultural e idiossincrático é um dos maiores obstáculos para que o país tenha nos próximos 10 a 20 anos uma pujança maior. “Alavancar o crescimento”, no mundo em que vivemos, significará combater fron-talmente esse viés. No limite, os anos acabarão por convencer mais pessoas acerca dos equívocos de certas posições. O problema é que, como diz um antigo ditado anônimo, “o tempo é o melhor professor, mas infelizmente demora muito a chegar”. Na ausência de uma mudança de atitude, é difícil vislumbrar um cenário de grande dinamismo para a economia. A idiossincrasia é uma força monolítica contra a qual será importante se mobilizar.

Tomem-se alguns exemplos, aqui selecionados.1 Um dos intelectuais de esquerda mais conhecidos do país manifestou-se nos seguintes termos, em artigo publicado no jornal O Globo em julho de 2013, pouco depois das manifestações de junho daquele ano: “Esses jovens têm fome de quê? Reivindicam um sentido para a existência que os liberte da pressão do consumismo neoliberal” (grifos nossos). O mesmo intelectual, em declarações publicadas também no jornal O Globo pouco mais de um ano depois, em setembro de 2014, afirma: “Julgo o capitalismo intrinsecamente nefasto. A própria denominação o define: prevalência do capital sobre os direitos humanos”.

Não se trata de uma manifestação isolada. Seria possível escrever um livro intei-ro com referências desse tipo, das quais aqui selecionamos apenas algumas. Tendo novamente como referência os acontecimentos do país de meados de 2013, outro conhecido intelectual, na época colunista do jornal O Globo, escreveu numa de suas colunas, em agosto de 2013, o seguinte, acerca dos atos de vandalismo que tinham se verificado na época: “As depredações de bancos e butiques respondem a uma raiva anticapitalista que é parte do impulso político que fez nascer as manifestações” (grifos nossos). Escrita com evidente simpatia pela causa dos revoltosos, a colu-na, curiosamente, foi rigorosamente precisa nesse particular: de fato, como parte do “impulso político que fez nascer as manifestações”, havia, sem sombra de dúvida,

1 As citações apresentadas, aqui e em outras passagens do livro, são feitas com as palavras tex tuais uti-lizadas, mas sem menção a quem as escreveu ou pronunciou. A razão disso é que não nos move aqui o intuito de polemizar com pessoas específicas, e sim o de questionar as ideias que elas defendem. Daí a intenção de evitar “fulanizar” o debate, para que ninguém se sinta ofendido. Quando a referência, porém, for elogiosa ou quando o objetivo for apenas o de respaldar algum dado citado, para registrar a devida fonte, optou-se por dar o devido crédito à pessoa, não havendo motivos para não o fazer. As referências a pessoas serão explícitas, porém, em alguns casos, quando o autor de uma frase for um personagem político, naturalmente exposto ao debate público.

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entre os manifestantes iniciais – e voltaremos a este ponto em breve – uma evidente, assumida e indisfarçável “raiva anticapitalista”.

Uma terceira referência intelectual da esquerda brasileira, igualmente colunista do jornal O Globo, no contexto do debate sobre as opções de país expressas na disputa eleitoral daquele mês, manifestou-se no mesmo tom crítico para com o sistema, em outubro de 2014. Após citar um escritor com “visão apocalíptica do esgotamento do planeta pela voracidade capitalista”, ele condenava a adesão dos grupos de menor renda – popularmente, nos termos do debate eleitoral, “os pobres” – ao padrão de consumo dominante, “num sistema de consumo cego que os associa aos ricos cada vez mais ricos, produzindo necessariamente novos pobres, e à custa do esgotamento dos recursos do planeta”.

Não deixa de ser espantoso esse tipo de chavões subsistirem num contexto em que, no caso do Brasil, mesmo os mais fervorosos críticos dos Governos Lula e Dil-ma reconhecem que o Brasil passou por um importante processo de distribuição de renda. Não deixa também de ser espantoso que se diga isso quando, mundialmente, o fato de o país mais populoso da terra – a China – ter tido o crescimento impressio-nante que teve nos últimos 40 anos diminuiu acentuadamente o número total de mi-seráveis no mundo, secundado, em menor intensidade, pela Índia, um pais também com um contingente populacional enorme que tem passado por um crescimento também expressivo. Em tais circunstâncias, a ideia de termos “ricos cada vez mais ricos, produzindo ‘necessariamente’ [por quê?] novos pobres” é de um determinismo reducionista inteiramente divorciado da realidade.

Ainda no jornal O Globo, um quarto colunista, antes disso, em setembro de 2014, crítico do que julgava ser um debate ideológico pobre, mais uma vez no con-texto eleitoral, citara o “auge da barbárie neoliberal”, expressão que aparentemente dispensa a necessidade de comentar em mais detalhes o que caracterizaria o “auge”, quais os traços distintivos da “barbárie” e, muito menos, o que se entendia como “neoliberalismo”, talvez uma das expressões mais escritas na mídia e certamente uma das mais mal explicadas, pelo fato de que aqueles que a utilizam subentendem que o leitor sabe a que se está se referindo, embora frequentemente isso não esteja claro sequer para o autor da frase.2 Já a facilidade com que se usa o termo “barbárie” lem-bra a conclusão de Montaigne, em seus Ensaios, de que “chacun appelle barbarie ce qui n’est pas de son usage”.

Indo num crescendo ideológico, um dos ícones da crítica ao capitalismo assim se expressou, outra vez no jornal O Globo e novamente no calor do debate eleitoral, em setembro de 2014, ao fazer uma reflexão sobre o mundo que nos cerca: “A escolha continua sendo entre socialismo e barbárie. Pode-se não saber mais o que é socialis-mo, mas para saber o que é barbárie basta abrir os olhos”. Definitivamente, o leitor é levado a passar uma borracha de leve nas atrocidades do governo Mao na China, na pré-abertura dos anos 1970, e o autor da frase infeliz parece ter se esquecido num

2 Cabe aqui um pequeno esclarecimento: a intensidade de citações do jornal O Globo não reflete ne-nhum viés em particular nem do jornal, nem dos seus colunistas, e sim espelha apenas o fato de ser o principal jornal da cidade onde o autor deste livro mora. Argumentos do mesmo gênero, porém, podem ser encontrados em qualquer grande jornal da imprensa brasileira.

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breve lapso de memória do que representou o stalinismo na Rússia, magnificamente retratado recentemente por Leonardo Padura no seu livro sobre a saga de Leon Trotski.3 É evidente que, comparativamente a essas versões de socialismo, qualquer capitalismo de hoje, por mais “selvagem” que pareça, não passa de um piquenique no parque.

Finalmente, no mesmo mês de setembro de 2014, opinando com ar de superio-ridade acerca da suposta falta de opções ideológicas na eleição presidencial daquele ano, assim se manifestava em entrevista um conhecido sociólogo, decano dos críticos do capitalismo, ao declarar, como síntese da explicação das razões do seu ceticismo, que “nem a Dilma nem o Aécio têm propostas que ameaçariam os interesses do ca-pital”, como se “ameaçar os interesses do capital” fosse o “termômetro” para medir o grau de “pureza ideológica” das propostas dos candidatos à Presidência da República.

E essa é a nossa vanguarda!

O que era ruim ficou pior

O Brasil já tinha uma boa dose de carga de preconceito contra o sistema capitalista antes da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Poder em 2003. Desde en-tão, porém, esses preconceitos se acentuaram enormemente, por três razões.

Em primeiro lugar, porque os oito anos do Governo Lula (2003-2010) foram inequivocamente de bom desempenho macroeconômico, com crescimento da ordem de 4% a.a., incremento do emprego, redução da inflação e melhoria distributiva. Assim, é até certo ponto compreensível que o cidadão comum associe tais feitos às características do governo da época, com suas feições ideológicas assumidas.

Em segundo lugar, porque esses anos coincidiram com uma ação ideológica persistente, do PT em geral e de Lula em particular, tendente a acentuar a crença de parte importante da sociedade brasileira no papel redentor do Estado e o seu já enraizado preconceito contra o capitalismo. Da crítica contundente ao processo de privatização, à exaltação retórica do papel do Estado, passando pela protelação das concessões na infraestrutura, pelo consumismo e pelo ataque subliminar à educa-ção avançada presente no discurso contra “aqueles que estudaram e não consegui-ram fazer o que esse operário que não cursou faculdade está fazendo para o povo brasileiro”, não houve baluarte do crescimento econômico de longo prazo que não tenha sido atacado naqueles anos. O papel do setor privado, a infraestrutura, o es-forço de poupança, o orgulho pela boa educação, nada ficou incólume aos ataques.

Finalmente, porque nos anos de governo do PT eclodiu a crise econômica inter-nacional de 2008, objeto da crítica de que ela se deveu à própria essência “perversa” do capitalismo. Isso ignora o fato de que a defesa dos princípios do capitalismo é perfeitamente compatível com a firme defesa de uma regulação financeira sólida, algo que evidentemente falhou no coração do sistema e pelo qual este paga uma cota importante no que se refere à perda de empatia da população – não apenas no Brasil como também no mundo em geral.

3 Padura, L. O homem que amava os cachorros, Boitempo Editorial, São Paulo, 2013.

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As grandes distorções se notam nas pequenas coisas. Observe-se, como exem-plo do tipo de postura que passou a ser aceita no dia a dia, estes argumentos de um conhecido colunista do jornal Folha de S.Paulo, acerca da suposta existência de “fascismo” na cidade de São Paulo, em texto de setembro de 2014. A sua linha de argumentação era de que haveria uma “segregação territorial”, caracterizada pelo fato de que “numa jogada de mestre e sempre com apoio do Estado, os agentes imobiliá-rios conseguiram tirar os pobres do convívio nos bairros centrais”. Isso, na opinião do articulista, seria fruto da “mentalidade higienista”, da “fobia”, do “nojo” e da “recusa da convivência” da parte mais abastada da população. Ato contínuo, ele critica aos “comerciantes e moradores de Pinheiros, que se organizaram contra um albergue para moradores de rua no bairro” e denuncia que os “condomínios do Morumbi es-tão se mobilizando contra a ocupação Chico Mendes, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) num terreno municipal”.

Ainda que envolta na roupagem de uma espécie de “compaixão” para com os despossuídos, vejamos a essência da argumentação. Primeiro, o que o articulista en-tende como “higienismo social” é simplesmente a expressão de uma realidade de mercado, que se observa em qualquer das grandes cidades do mundo. Ela se caracte-riza pelo fato de que os preços elevados da propriedade em determinados bairros são proibitivos para uma parte da população. Pode-se não gostar, mas é como reclamar da lei da gravidade: não há muito o que fazer diante dos fatos.

Segundo, a citada atitude dos moradores do bairro de Pinheiros, denunciada como “fascista” no artigo, nada mais é que a manifestação óbvia em defesa da propriedade privada, o que é o “bê-á-bá” do capitalismo. É evidente que não é preciso um raciocínio muito profundo para entender que, num bairro com propriedades da ordem de grandeza de R$ 1 milhão ou mais, a instalação de um abrigo para moradores de rua no meio do bairro depreciaria violentamente o valor da propriedade. O fato equivaleria a que alguém que tivesse R$ 100 mil em um banco e um belo dia recebesse a notícia de que seu capital passou a ser de metade disso.

Terceiro, as cidades costumam estruturar políticas públicas para que a propriedade seja valorizada – e não depreciada – pelas ações que uma prefeitura implementa no seu entorno. Ora, é de uma obviedade gritante que conceder títulos de propriedade a in-vasores sem-teto na vizinhança de propriedades de alto valor irá provocar exatamente o oposto! Ou seja, uma redução intensa no valor destas últimas. Atribuir uma reação a essa perspectiva a inclinações supostamente “fóbicas” ou como se queira denominar implica significa apenas ignorar os rudimentos de como funciona o sistema capitalista, onde o respeito da propriedade privada é a base da constituição do sistema. O fato de isso causar tanta celeuma é em si a expressão de nosso atraso cultural.

O mesmo colunista da Folha de S.Paulo, em outra coluna de setembro de 2014, de crítica a Armínio Fraga, na época anunciado como possível futuro ministro da Fazenda em caso de vitória de Aécio Neves nas eleições para a Presidência da Re-pública, questiona a tentativa de “rever as regras do seguro-desemprego, aumentar a idade mínima para aposentadoria e dificultar a concessão de pensões” e ainda o fato de que “o pré-sal foi concedido à iniciativa privada, assim como aeroportos e

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rodovias”. Ressalte-se que “rever as regras do seguro-desemprego” implicava apenas corrigir a distorção resultante do fato de que nos 10 anos entre 2003 e 2013, a taxa de desemprego tinha caído a menos da metade, enquanto no mesmo período, em termos reais, as despesas com seguro-desemprego tinham aumentado nada menos que ina-creditáveis 158%. Mencione-se ainda que, na ausência de idade mínima, as mulheres no Brasil se aposentam no INSS por tempo de contribuição à espantosa idade de 52 anos – e são, majoritariamente, mulheres localizadas na metade distributiva superior da distribuição de renda –, enquanto nos EUA uma garçonete de Ohio precisa traba-lhar até os 65 anos para poder se aposentar. Por fim, cite-se que o Brasil tem o regime de concessão de pensões mais generoso do mundo. A ponto de, no limite, permitir que um senhor de 80 anos de idade case com uma jovem de 20 e se morrer um mês depois – mesmo que não se saiba ao certo se de causas naturais ou não – deixe um benefício integral que a “pobre viúva” irá receber durante 60 ou 65 anos.4

Eis aí como, por trás de palavras teoricamente de defesa das “causas populares”, esconde-se a perpetuação, não apenas de verdadeiras aberrações, como a constatação de algo mais profundo: a crença de que os recursos que os indivíduos recebem de-pendem não do esforço individual e sim da maior ou menos disposição dos governos e da sua inclinação ideológica. As implicações dessas crenças são deletérias para o dinamismo do sistema.

Junho de 2013. Desculpem, saudar o quê?

Em junho de 2013, como se sabe, o país foi sacudido por um ciclo de intensas mani-festações populares, Brasil afora, com reivindicações que começaram contra o preço das passagens de ônibus em várias cidades e, rapidamente, incorporaram palavras de ordem de todo tipo. Estas iam desde a reivindicação de hospitais “padrão Fifa” até a exigência de ética na política. Surgidas em um contexto em que a Presidente Dilma navegava tranquilamente nas águas da elevada popularidade e parecia se encaminhar rumo a uma reeleição tranquila, as passeatas alcançaram níveis de adesão que bei-ravam a unanimidade. Pesquisas feitas na época indicavam percentuais de apoio de mais de 80% às reivindicações, mesmo que estas não fossem muito claras.

A oposição, acanhada como estava pela popularidade da presidente, viu nisso uma oportunidade para capitalizar o episódio e, de certo modo, “renascer das cin-zas”. Já do lado dos “movimentos populares” que estiveram na raiz da formação do PT e de seus aliados históricos, a ocupação da rua por bandeiras como “mais verbas para a saúde e a educação” e “redução das tarifas de ônibus” era uma forma de “volta às origens”, após anos “engordando” nos gabinetes oficiais.

E, curiosamente, em que pese a algaravia que tomou conta do país naqueles dias, qualquer observador que, no calor dos acontecimentos, conseguisse conservar o raciocínio frio, identificaria claramente sintomas bastante perigosos. Vamos a alguns fatos emblemáticos:

4 Estes argumentos foram, justamente, a base das medidas que o próprio governo Dilma Rousseff propôs em janeiro de 2015, adotando as propostas que três meses antes acusara seu rival nas eleições de, supostamente, defender.

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i) no final das passeatas de 100 mil ou 200 mil pessoas, invariavelmente entra-vam em ação grupos de pessoas que incendiavam ônibus, destruíam vitrines e saqueavam lojas. A fotografia final de todas as passeatas combinava o “kit” completo de ônibus incendiados, agências bancárias destruídas e concessio-nárias de carros depredadas. Por trás do frenesi que se percebia no relato do noticiário, o nome disso é claro: destruição de capital;

ii) naqueles dias de loucura, temendo a possibilidade de invasões, um dia de se-mana, a partir do começo da tarde, o BarraShopping, no Rio de Janeiro, teve de fechar as portas. Esse shopping é um símbolo da cidade e fecha apenas em 3 ou 4 ocasiões nos 365 dias do ano: nos dias 25 de dezembro, 1o de janeiro e no Carnaval. Que ele tenha decidido abrir mão de um dia de faturamento – com um dos metros quadrados de aluguel mais caros da cidade – liberando todos os funcionários para ir para casa e fechando completamente as portas do esta-belecimento – nem a praça de alimentação funcionou – por conta da ameaça de 100 ou 200 marginais invadirem o local, dá uma ideia da situação, encarada com total naturalidade. O fato de essa verdadeira aberração ter ocorrido sem que tenha merecido mais que um registro casual em página interna dos jornais dá uma pista do escasso valor atribuído à notícia, o que seria inimaginável em sociedades mais avançadas onde impera o respeito à lei;

iii) a origem das manifestações era simplesmente bizarra: a revolta contra o au-mento da passagem de ônibus em São Paulo de R$ 3,00 para R$ 3,20, algo que simplesmente cobria a inflação acumulada desde o último reajuste, em um contexto em que todos os usuários de ônibus vinham tendo aumentos reais das suas remunerações entre 1% e 3% a.a. Na liderança das passeatas estava um movimento que prega o passe livre, ou seja, que seja extinta a pas-sagem paga nos ônibus. Isso, por definição, implicaria estatizar o transporte público, proposta digna da antiga União Soviética, com eficácia, para sermos bondosos, duvidosa;

iv) antes de os governos recuarem na decisão de aumentar as tarifas, uma das noites em que a massa enfurecida estava concentrada na porta da prefeitura de São Paulo e enquanto a câmera focava as pessoas tentando quebrar a porta de acesso para invadir o prédio da prefeitura, a âncora de uma das principais redes de te-levisão, ao vivo, comentando o que estava assistindo – um ato de depredação do patrimônio público – disse o seguinte, em mensagem compreensiva e simpática para com os agressores: “temos que entender que isso tudo não estaria aconte-cendo se o prefeito tivesse recuado e aceito retornar a tarifa ao preço anterior” (o que ele acabou fazendo no dia seguinte);5 e

v) nos dias seguintes, país afora, em diversos episódios, grupos de indivíduos de repente tomavam uma rodovia sujeita a pedágio, interrompiam a circulação de milhares de veículos e pregavam a revisão do valor dos pedágios, a maioria das vezes tendo como consequência a vitória de suas reivindicações.

5 Para que o leitor tenha a dimensão do absurdo da frase, imagine-se na posição de um dentista cuja se-cretária pede um aumento salarial e, quando recebe a notícia de que não lhe foi concedido, em represália incendeia o consultório. Qual seria a sua reação se um amigo, diante do fato, fizesse o comentário de que “temos que entender que isso tudo não teria acontecido se você tivesse dado o aumento que ela pediu”?

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A mídia, de forma unânime, apoiou as manifestações daquelas semanas, des-tacando a defesa da melhoria da gestão pública e a reclamação contra os sucessivos escândalos que proliferavam há anos nas páginas dos jornais. Na expressão muito utilizada na época, dizia-se que “o gigante acordou”. Ou seja, o povo, depois de anos de conformismo com o maior acesso ao consumo, teria saído à rua para manifestar o seu desagrado com o modo com que os políticos estavam governando.

A rigor, porém, independentemente da óbvia justiça da defesa da ética e das crí-ticas à corrupção, o fato é que aqueles episódios revelavam de forma nua e crua quão longe o país está de entender como deve funcionar idealmente o sistema.

Em primeiro lugar, a exigência de “padrão Fifa” para as escolas e hospitais públicos esconde um profundo desconhecimento acerca de como funciona a economia. Os está-dios de uma Copa do Mundo somente têm “padrão Fifa” justamente porque são poucos. Mesmo na Alemanha, exemplo-mor de boa organização de uma Copa, um time do interior do país que joga na série C do Campeonato não dispõe de instalações como as que caracterizaram os estádios da Copa. Em qualquer coisa que for objeto de uso mas-sificado – como é o caso da saúde e da educação –, há uma impossibilidade absoluta de atendimento com a qualidade ideal. Por isso, em qualquer país capitalista, esses grandes sistemas são duais, com uma parte atendendo ao grande público – com o melhor padrão de qualidade compatível com o estágio de evolução do país – e outra parte, menor e de maior qualidade, atendendo a quem pode pagar mais por isso. Tal fato, que é inteira-mente natural – ou alguém pensa que é possível, em um país de 200 milhões de habitan-tes, atender a todo mundo com a mesma eficácia com que o paciente particular espera ser atendido quando paga R$ 600 por uma consulta médica de uma hora de duração? – não é facilmente compreendido por uma parte importante da população.

Em segundo lugar, os estudos econômicos de melhor reputação apontam de forma clara que, na raiz da explicação para o melhor desempenho de algumas econo-mias na comparação com outras, está a existência de instituições sólidas, com desta-que para o papel do que a língua inglesa denomina rule of law (o papel da lei). E nada está mais divorciado disso que os atentados à propriedade observados naqueles dias.

Em terceiro lugar, é preciso entender que serviços são remunerados. Empresá-rios de ônibus não são populares em quase nenhum país, mas isso não significa que a tarifa possa se depreciar com a inflação. Se isso ocorrer, a consequência será uma só: a deterioração da frota, em prejuízo dos usuários.

Por fim, a resultante concreta do que aconteceu foi que a tarifa dos ônibus bai-xou, os pedágios não foram corrigidos e os governos estaduais e municipais gastaram com a sustentação de compensações às empresas de ônibus e de rodovias; recursos que seriam muito importantes para melhorar, por exemplo, a infraestrutura, base da capacidade de crescimento de um país.

Os grupos de ultraesquerda entraram em êxtase, e, na época, a oposição capita-lizou o episódio politicamente, mas o fato é que ônibus incendiados, bancos destruí-dos, prédios públicos invadidos diante do beneplácito generalizado e uma alocação de recursos públicos enviesada contra a infraestrutura era exatamente o contrário do que deveria constituir a base do progresso. A racionalidade econômica saiu de férias no Brasil em junho de 2013 – e há quem suspeite que ainda não retornou.

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O Plano Nacional de Educação, um paradigma da alma nacional

Talvez poucas coisas representem de forma mais emblemática a propensão nacional a julgar que os grandes problemas do país se resolvem pelo voluntarismo da generosi-dade oficial, que é o Plano Nacional de Educação (PNE). Quem, em sã consciência, pode ser contra aprovar mais recursos para a educação, a princípio? E, entretanto, quando se pensa no que aconteceu, trata-se de uma das leis mais absurdas de toda a História brasileira. É uma síntese de algumas das “taras” nacionais: a noção de que os recursos são infinitos, a exasperante tendência a detalhar tudo na legislação e uma espantosa incapacidade de ter uma discussão racional e profunda acerca das grandes questões nacionais.

A base do que será dito é uma projeção: de que, entre 2015 e 2050, a popu-lação de brasileiros entre 5 e 19 anos cairá de 49,8 para 33,6 milhões de pessoas, conforme as projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da revisão populacional de 2013. Isso representa um encolhimento médio de 1,12% a.a. Admitindo que o Produto Interno Bruto (PIB) cresça a uma média anual de 3% no mesmo período, isso significa que, mesmo que o gasto em educação se conservasse constante como proporção do PIB, ele aumentaria, em termos reais, a uma taxa acu-mulada de nada menos que 317% em 35 anos. É uma projeção? Sim, mas baseada em fatos: a população jovem já está encolhendo no Brasil há algum tempo. Entre 2000 e 2010, aquele mesmo grupo de 5 a 19 anos diminuiu na proporção de 0,31% a.a., mas o subgrupo inferior, de 0 a 4 anos, se reduziu a uma velocidade de 0,90% a.a., apontando para uma aceleração desse processo na medida em que esse grupo for aumentando de idade.

O Brasil gasta com educação algo em torno de 6% do PIB, número esse que no começo da estabilização, em meados dos anos 1990, era de aproximadamente 4% do PIB. O detalhe é que simplesmente não há país no mundo que gaste mais de 8% do PIB em educação: a Coreia gasta em torno de 7,5%; os EUA, próximo de 7,0%; a Alemanha, apenas 5,0%; e a média da OECD é de mais ou menos 6,0% do PIB. O argumento, aparentemente sedutor, de que em dólares há países que gastam muito mais que o Brasil em educação é, no fundo, intelectualmente indigente. Isso, pelo simples fato de que a renda per capita desses países é muito maior que a do Brasil. Pretender que o Brasil gaste por aluno o mesmo que gasta a Suíça ou a Noruega equivale a supor que o time do São Cristóvão pode ter a mesma folha salarial que o Real Madri. É simplesmente ridículo.

O projeto, longamente discutido no Congresso, estabelecia como meta, inicial-mente, o objetivo de elevar a despesa a 7% do PIB, o que já seria parcialmente questionável, pelas razões apontadas. Eis que, no decorrer da negociação legislativa, a meta foi elevada para 8% do PIB, e um belo dia, prestes a levar o tema ao plenário, sem mais nem menos se aumentou a meta para 10% do PIB. O mais constrangedor do processo é que a redação do texto que rege o PNE (Lei 13.005/2014) ficou as-sim: “Ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB no quinto ano de vigência desta lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio”. Nenhuma alma cândida se deu ao

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trabalho de fazer uma conta trivial e verificar que se já seria difícil, em 5 anos, passar de algo como 6% do PIB para 7% do PIB entre 2014 e 2019 (mais 1% do PIB), muito mais difícil seria elevar depois o percentual em mais 3% do PIB, até 10%, em 2024. Donde se deduz que o lobby da educação falhou miseravelmente na matemá-tica de jardim de infância.

O ponto a ressaltar é que, por mais importante que seja a educação, os países não gastam mais de 8% do PIB no tema porque há outras questões com as quais os governos precisam gastar! No caso do Brasil, com o envelhecimento da sociedade que teremos pela frente, será inevitável gastar mais com saúde e, provavelmente, também a relação entre o gasto com aposentadorias e o PIB irá aumentar. Se, justamente num universo populacional no qual teremos uma diminuição do público beneficiário, também teremos aumento do percentual do PIB gasto com a rubrica, a pergunta que não quer calar é: vamos a caminho de uma carga tributária de 50% do PIB?

Não bastassem esses absurdos aritméticos, a Lei 13.005, de 25 de junho de 2014 (ou seja, o PNE), é um verdadeiro compêndio de como não se deve proceder. Co-mecemos pela filosofia do projeto. O leitor pensa que uma lei sobre educação estaria preocupada com a melhor formação de cientistas e engenheiros para encarar o difícil mundo que temos pela frente? Ledo engano! Todo o teor da lei parece dar razão a Sir Alexander Cadogan, o delegado britânico que, ao escutar na ONU a um colega sul--americano desfiar uma argumentação interminável acerca de um assunto irrelevante, cochichou no ouvido do delegado brasileiro, Roberto Campos, sabendo que no ínti-mo este compartilhava do mesmo enfado: “Sempre me impressionou muito a capa-cidade de vocês latino-americanos de converter poucas gramas de fatos em toneladas de palavras”. Observe-se a linguagem da lei. Entre as diretrizes, estão a “promoção da cidadania”, a “erradicação de todas as formas de discriminação” e a “promoção do princípio da gestão democrática” e “do princípio do respeito à diversidade”. Deixando de lado o fato de que os princípios parecem mais apropriados à educação das crianças brancas na África do Sul logo depois do fim do apartheid e que o aluno corre o risco quando adulto de pretender, num avião, organizar uma discussão entre os passageiros para avaliar o que o piloto deveria fazer, não deixa de ser sintomático que as palavras “ciência” e “matemática” simplesmente não aparecem uma única vez entre as diretri-zes do plano enunciadas no artigo 2o da referida lei.

A lei chega ao requinte de estabelecer, no artigo 5o, que “a cada 2 anos, o Insti-tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) publicará estudos para aferir a evolução no cumprimento das metas estabelecidas no anexo desta lei”. Parafraseando Mr. Walmsley, antigo funcionário do Departamento de Estado dos EUA, que, conforme relatado nas memórias de Roberto Campos (A lanterna na popa), considerava que algumas comissões oficiais sem nenhum resultado prático não passavam de “cativantes incursões no terreno da fantasia”, o artigo 6o. determina que “a União promoverá a realização de pelo menos 2 conferências na-cionais de educação até o final do decênio, precedidas de conferências distrital, mu-nicipais e estaduais, articuladas e coordenadas pelo Fórum Nacional de Educação”. Trata-se de uma proposição cuja megalomania delirante salta aos olhos de qualquer pessoa com um mínimo de sensatez, considerando que o país tem mais de 5.500

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municípios. Disto podemos estar certos: se conseguirmos fazer a mobilização de pessoas, esforços e recursos que essa articulação implica, no final de 10 anos teremos discutido muito – e, enquanto discutimos, até a África terá passado à nossa frente em matéria de desempenho escolar...

A tipificação da lei como um exemplo paradigmático das manias nacionais se completa com a lista enorme de metas e estratégias: o quilométrico “Anexo de metas e estratégias” da lei contempla 20 metas, cada uma das quais com 10 a 20 estratégias, o que, adotando uma média de 15 estratégias por meta, nos dá algo como 300 estra-tégias a serem devidamente quantificadas e avaliadas. Se multiplicarmos isso pelas conferências municipais em mais de 5.500 municípios, teremos então o retrato cabal de um hospício.

Enquanto isso, em Las Vegas...

Enquanto aqui deixamos a imaginação solta com planos mirabolantes, o resto do mundo está tocando a vida. O crescimento está claramente restabelecido nos EUA, a Alemanha se destaca na Europa, a Coreia vai bem na Ásia, a China ainda cresce a um ritmo expressivo e, entre os vizinhos, Chile e Colômbia vão bem, obrigado.

Alguém poderá alegar, com razão, que os exemplos citados no parágrafo anterior foram selecionados, porque há outros países com problemas. É verdade, mas esses países foram escolhidos justamente porque, cada um a sua maneira, têm um deno-minador comum: o protagonismo do setor privado. Mesmo na China – de raízes maoístas –, a pujança manifesta da sua economia está claramente associada ao papel cada vez maior do setor privado como motor do crescimento.

Um contraste interessante entre duas concepções antagônicas de modelo de so-ciedade é revelado pela comparação entre Brasília e Las Vegas. Por um lado, pare-cem não ter qualquer relação entre elas, dado que uma é a capital do Brasil e a outra é apenas mais uma cidade dos EUA. O elemento em comum que as duas têm, porém, é que ambas surgiram no meio do deserto, onde antes não havia nada. Daí em dian-te, porém, suas histórias diferem radicalmente.

Não se quer aqui fazer a apologia de Las Vegas. A mercantilização exacerbada do sexo e a quantidade de almas solitárias, apostando compulsivamente nos cassinos madrugada afora, são traços que, a mim em particular, me pareceram bastante depri-mentes. Por outro lado, a perfeição absoluta na organização do show business ligado à cidade – com sua constelação de hotéis das grandes redes, espetáculos grandiosos e turismo de alta qualidade no entorno do canyon – é algo que chama poderosamente a atenção de qualquer visitante. Em um lugar onde décadas atrás não havia nada, hoje há uma hotelaria de luxo, shows de primeiríssimo nível – com atrações como o Cirque du Soleil, David Copperfield, Britney Spears etc. – e serviços de turismo que funcionam à perfeição. São atividades eminentemente ligadas a atores privados: os empregos são privados, a oferta é privada e os consumidores são privados. E funcio-na perfeitamente!

O contraste com Brasília não poderia ser maior. Ali também se ergueu uma cidade no meio do nada, com prédios, hotéis etc., mas qualquer pessoa que tenha

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passado 24 horas na cidade sabe que praticamente tudo ali depende do Governo. Um contingente expressivo de moradores da cidade é de servidores públicos, o setor privado empresarial – excetuados a hotelaria e os serviços prestados aos moradores da cidade – está praticamente limitado a atividades de lobby, e a dinâmica é regida pelo que acontece com o setor público. Nos dias de maior movimento do Congresso, a cidade se agita e, na época de recesso, mergulha em um marasmo. Ali perto, no estado de Tocantins, sem as características de “corte” do Distrito Federal, outra ca-pital, Palmas, vive uma experiência parecida: tendo surgido há relativamente pouco tempo em função da criação do novo estado como um desprendimento de Goiás, ela já se caracteriza pelo peso do funcionalismo e pela importância das decisões acerca de medidas como o aumento do salário mínimo ou dos salários dos funcionários públicos. Não apenas no sentido físico, como também no figurado, Las Vegas fica a léguas disso.

O modelo dos EUA

A origem do modelo de forte intervenção do Estado na economia e a concepção de que cabe a este o papel de zelar pela melhoria de bem-estar da população, espe-cialmente através de atos dirigidos aos estratos mais pobres da população, remonta

LAS VEGAS

Las Vegas: aqui também surgiu uma cidade, mas o governo não se mete

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a Getúlio Vargas. O nosso paternalismo se relaciona com o fato de que o progresso desses grupos, nesse arranjo político, não depende do direito a ter condições mais igualitárias de acesso a uma boa educação e sim da benevolência do “pai dos pobres” da ocasião, atenda este pelo nome de Getúlio Vargas ou de Lula. Este se torna, en-tão, credor da gratidão das massas, satisfeitas pelas concessões feitas por quem, na cúpula do Poder, sabe “interpretar os seus anseios” e com quem a maioria se sente “identificada”.

Em contraste com essa atitude, Fernando Henrique Cardoso (FHC) se pro-pôs, com um novo enfoque, virar a página desse esquema de relacionamento entre a população e o Poder de turno, com uma visão reformadora do Estado. A ideia era que este tivesse um relacionamento menos impessoal com o cidadão: na economia, mediante o surgimento e posterior fortalecimento de entidades reguladoras no caso dos serviços públicos e insumos essenciais como o petróleo – em detrimento da for-ça política das empresas estatais – e, no campo social, mediante a ênfase na maior igualdade de oportunidades.

Se essa guinada tivesse seguido seu curso, provavelmente o Brasil se tornaria um país progressivamente mais parecido com os EUA. Neste, vigora um contrato social em moldes muito claros: o Estado se encarrega de criar as condições para permitir ao cidadão ter uma boa educação e receber serviços de saúde de qualidade razoável para o conjunto da população, além de assegurar certas condições mínimas na velhice. O restante corre por conta de cada indivíduo.

Tal contrato, cujas raízes históricas se relacionam com a forma em que se deu a colonização do país e com o perfil dos seus pioneiros, gerou uma sociedade com traços bem nítidos e que combinam elementos favoráveis e outros nem tanto. Por um lado, o individualismo e certa divisão da sociedade entre winners e loosers podem ser conside-rados por vezes algo exagerado e até certo ponto brutal. Para a índole do brasileiro, isso chama negativamente a atenção e se encontra na base da queixa famosa de Tom Jobim (“Viver no Rio é uma m... mas é ótimo; viver em Nova York é ótimo mas é uma m...”). Por outro lado, a internalização, na mente de cada pessoa, desde cedo, de que sua vida dependerá de si mesma e não dos favores que vier a receber ou deixar de receber dos governantes, forja um espírito empreendedor que prepara o ser humano, desde cedo, para encarar as durezas da existência. À luz do sucesso fabuloso que a economia norte--americana experimentou desde a data duplamente emblemática de 1776 – ano da publicação da História da riqueza das nações, a “Bíblia” do capitalismo; e da declaração da Independência dos EUA – não se pode dizer que seja um modelo fracassado – pelo contrário. O fato de ser um país que tradicionalmente recebeu um fluxo migratório muito maior que o de pessoas que saíam do país sugere também que, para a maioria das pessoas, há vantagens inegáveis em que a economia funcione dessa forma.

Um livro de Thrity Umrigar publicado há alguns anos, mostrando o entrechoque entre a cultura de uma família indiana e a forma de ser da maioria nos EUA, retrata o que foi dito acerca desse espírito empreendedor, comentando sobre o personagem principal, um indiano que migra para lá:6 “Ali nos Estados Unidos, essa ambição e

6 Umrigar, T., A doçura do mundo, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2007.

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essa avidez eram reverenciadas, incentivadas e recompensadas [...] Aqui, nesse país, ele podia ser tão competitivo, agressivo, insistente, ganancioso e expansivo quanto bem entendesse. Podia tentar alcançar as estrelas, sem que ninguém lhe dissesse para tomar cuidado, ou que, quanto maior a altura, maior a queda; não havia nenhum avô para lhe contar a história da falta de cuidado de Ícaro, que voara perto demais do sol e se queimara. Aqui era o país da ambição ilimitada e dos sonhos grandiosos, no qual o céu era o limite, um país de fábulas que acreditava em sonhos”.

O desenvolvimento econômico e o próprio modelo de sociedade observados num país são fruto de um longo processo e nada muda da noite para o dia ou de um ano para outro. FHC começou a mudar as coisas no Brasil, mas tratava-se de uma mudança naturalmente lenta. O próprio FHC mais de uma vez fez o paralelo entre o Brasil e a figura de uma “baleia” ou de um “transatlântico”, ou seja, um país que, contrariamente à destreza dos felinos asiáticos, demora a se movimentar e a mudar de rumo, pelas suas próprias dimensões.

Quando Lula assumiu em 2003, habilmente, ele manteve as linhas gerais da economia e, até mesmo, indicou alguns dos técnicos ligados ao governo anterior para posições-chave. O Presidente do Banco Central (Henrique Meirelles) tinha sido eleito Deputado pelo PSDB; o Secretário do Tesouro Nacional (Joaquim Levy) tinha sido até a véspera Chefe da Assessoria Econômica do Ministério de Planeja-mento do governo anterior; e boa parte dos técnicos da área fiscal e da diretoria do Banco Central tinham sido claramente adeptos das políticas implementadas pelo Ministro Pedro Malan e sua equipe, nos anos anteriores. FHC poderia muito bem ter repetido a frase de Washington Luís, que, vendo como seus antigos aliados eram cooptados progressivamente pelo governo Vargas após a Revolução de 1930, teria dito sobre Getúlio: “ele está caçando com meus cavalos!”.

Obtida a tranquilidade que desejava para poder implementar as suas políticas sem que a macroeconomia o atrapalhasse, porém, aos poucos Lula foi restabelecendo a orientação tutelar do Estado que o anterior pretendia superar. Em vez de priorizar a importância da formação individual para poder enfrentar um mundo crescentemente competitivo, o presidente, utilizando fortemente a arma de sua retórica, foi reforçando as características do antigo relacionamento entre o Estado e o cidadão. Este era visto não como o indivíduo de uma organização republicana na qual as oportunidades fossem cada vez mais equalizadas e sim como o objeto da compreensão e benevolência de uma classe política superior, defensora dos “trabalhadores” contra a “elite” e portadora da “vontade política” de satisfazer os desejos dessa população. A ideia de que as pessoas estavam me-lhorando de vida porque havia um líder e um partido que as representavam e que assim a determinavam foi calando fundo, aos poucos, na alma da sociedade. O “pai dos pobres”, Getúlio Vargas, renascia das cinzas na figura do Lula. As implicações disso serão discu-tidas exaustivamente em diversas passagens deste livro.

E se o que tiver que mudar for a cabeça do eleitor?

Um velho dramaturgo francês, Rémy de Gourmont, dizia que “a política depende dos políticos mais ou menos como o tempo depende dos astrônomos”, querendo

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com isso explicar que são as sociedades que devem fazer os países evoluírem e não ficar à espera de serem conduzidas. A frase merece reflexão, no momento atual da sociedade brasileira.

Outro analista da realidade, este mais próximo, o nosso conhecido jornalista econômico Joelmir Betting, com a sua escrita recheada de ironias, escreveu certa vez que “o crediário leva o brasileiro a comprar coisas de que não precisa com o dinheiro que não tem”. Justamente, a proliferação do crédito combinada com a melhora dos rendimentos e a alta do emprego levaram a um expressivo aumento do consumo nos anos de Governo do Presidente Lula. Apesar da evidente perda posterior de dinamismo da economia, esse ambiente de certa euforia consumista se manteve no Governo Dilma, que em parte por isso acabou reeleita nas eleições de 2014.

As características da divisão do eleitorado nessa disputa suscitou muita controvér-sia, incluindo algumas reações francamente disparatadas, como a proposta de cons-trução de um muro separando o Nordeste do restante do Brasil ou a pregação de uma minoria em favor de um golpe militar. Um ponto ao qual não se deu a devida atenção, porém, é o fato de que, para poder ter chances de vencer – e ela esteve perto disso –, a oposição foi levada a acolher uma série de elementos em geral associados a quem tra-dicionalmente esteve do lado oposto dela. Primeiro, foi obrigada pelas circunstâncias a fazer profissão de fé na manutenção do Bolsa Família, pela óbvia repercussão negativa da boataria acerca da suposto fim do programa caso o Poder mudasse de mãos. Segun-do, comprometeu-se com o fim do fator previdenciário, que ela mesma tinha aprova-do quando estava no governo com FHC e que foi tradicionalmente combatido pelos sindicatos. E terceiro, de modo geral, somou-se ao espírito com o qual as campanhas eleitorais são encaradas no Brasil, com grande ênfase numa profusão de promessas, muitas das quais de difícil viabilidade orçamentária.

O script de uma campanha é mais ou menos o mesmo para todos os candida-tos: os jornalistas levantam todas as mazelas nacionais e perguntam a eles “O que o Sr. pretende fazer para resolver isso ou aquilo?”. Como o conjunto de problemas é enorme, a tendência das campanhas é fazer dos programas uma vasta coleção de promessas. Isso faria sentido, se não fosse a restrição orçamentária – e o fato é que as promessas não cabem no PIB.

Não precisamos retroagir ao famoso discurso de John F. Kennedy, que com os sacrifícios do pós-guerra ainda vivos e num ambiente épico muito diferente do que se observa nos dias de hoje, disse a seus concidadãos: “Don’t ask what the country can do for you; ask what you can do for your country.” (“Não pergunte o que o país pode fazer por você; pergunte o que você pode fazer pelo seu país.”). O ponto é que, com certa boa vontade, se poderia levar aos poucos a população a perceber duas coisas:

i) em qualquer casa precisando fazer um monte de reformas (porque a torneira pinga, o teto vaza, a descarga não funciona direito, o ar-condicionado precisa ter a fiação trocada para não causar curto-circuito, a parede está descascada, sem falar da necessidade de trocar a correia do carro e de construir uma pe-quena garagem para abrigar ele da intempérie), há de se definir prioridades e entender que não dá para fazer tudo ao mesmo tempo, e que a casa só ficará

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boa mesmo depois de muitos meses de consertos sucessivos. O que numa re-sidência se mede em meses, num país deve se medir em anos, eventualmente abrangendo vários mandatos presidenciais; e

ii) enquanto há coisas que são inerentes à gestão pública (segurança, por exem-plo), há outras em que o fundamental é a ação de cada indivíduo.

É esse aspecto, relacionado com o peso relativo daquilo que é cobrado do go-verno e aquilo que está na alçada de cada indivíduo fazer, que é preciso começar a repensar no Brasil. Enquanto as campanhas eleitorais para presidente da República no Brasil forem entendidas como uma competição para ver quem oferece mais coi-sas, a tendência é que nós tenhamos apenas a plantação de futuras frustrações. Isso porque, tirando situações muito particulares – como as que o Brasil viveu nos anos Lula, quando uma combinação zodiacal não repetível de condições iniciais favoráveis e da evolução dos preços das commodities e dos juros externos permitiu ao país uma bonança excepcional – será impossível ao governante, qualquer quem tenha sido o eleito, cumprir com a sua palavra. Isso, por sua vez, alimentará a oposição de plantão, levando a novas cobranças na eleição seguinte e a nova decepção.

O que o país necessita é de uma mudança da concepção com a qual o governo é encarado. Este precisa passar a ser visto pela população de forma mais parecida com o modo com que o eleitor encara as autoridades nos EUA, para citar o caso já exposto. Ele deve cobrar, sim, naturalmente, serviços públicos progressivamente melhores. É preciso ficar claro, porém, que a mudança fundamental que deve se ope-rar é uma transformação da maneira de pensar da sociedade brasileira. Precisamos entender que o progresso individual deve ser encarado não como fruto de concessões oficiais – por emprego público ou aumento do salário mínimo ou da aposentadoria – e sim como resultado do ambiente econômico adequado, que faça aflorar devida-mente a melhor capacidade de cada um. Voltaremos a esse ponto repetidas vezes ao longo dos diversos capítulos a seguir.

A razão de ser deste livro

Este livro é uma espécie de manifesto. Neste capítulo, foram expostos de forma despre-tensiosa alguns assuntos: a vontade de se aposentar do colega que tinha mais tempo de trabalho pela frente que o tempo de serviço até a época; o poder da idiossincrasia; o efeito do discurso ideológico contra os pilares do desenvolvimento capitalista; algumas aberra-ções registradas nas manifestações de junho de 2013; o PNE como expressão máxima do voluntarismo divorciado da realidade; o contraste entre nossa pasmaceira e o empreen-dedorismo que se observa em outros lugares; a oposição entre nosso modelo dependente do Estado e o modelo de sociedade dos EUA, e a tendência a encarar as eleições como um enunciado de favores a serem concedidos graciosamente por um Estado paternalista. Todos esses temas se articulam entre si como um alerta: o de que estamos indo por um caminho equivocado e de que, portanto, o país precisa mudar de rumo.

Escrevendo com uma mistura de tristeza e resignação, Eça de Queiroz escre-veu há muitos anos estas palavras contundentes: “O país perdeu a inteligência e a

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consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação”. Por mais duras que sejam, são palavras cuja atualidade obriga a pensar sobre os (des) caminhos nacionais.

Uma hábil narrativa, desenvolvida ao longo de anos pela combinação de pro-gressos efetivos na área social, da retórica do ex-Presidente Lula e da competência do marketing oficial, levou o eleitorado, ao longo de eleições sucessivas, a associar a melhora observada nas condições de vida ao modelo adotado nos anos de governo do PT. A estratégia subliminar foi tão bem-sucedida que, de certa forma, Lula se apro-priou, politicamente, até mesmo da estabilização. À medida que o passado se perde nas brumas do tempo, a própria paternidade dessa estabilização fica meio difusa na cabeça do eleitor médio. Ironizando acerca da era de aparente castidade no ambien-te do cinema de antigamente, ao opinar sobre uma atriz famosa daqueles tempos, Groucho Marx disse que “eu a conheci quando ainda não era virgem”. Metafori-camente, algo assim pode ser dito do Lula, que ascendeu ao Poder em 2003, antes de ter se associado, no imaginário de parte do eleitorado, à estabilização... de 1994!

A pregação em favor de um Estado forte e a condenação, em maior ou menor grau, de valores que são a essência do capitalismo – a competição, o desejo de su-peração, a procura do lucro etc. – não deixam de ser algo exótico quando se leva em conta que, numa perspectiva histórica, como lembra Thomas McCraw, o biógrafo de Joseph Schumpeter, nos mil anos que antecederam o século XVIII, a renda pes-soal na Europa Ocidental duplicava a cada período de aproximadamente seis séculos e, com o capitalismo, começou a duplicar a cada cinco ou seis décadas e, nos EUA, a cada quatro décadas.7

Ficou célebre a frase de Winston Churchill – personagem que será um visi-tante frequente destas páginas, com suas tiradas geniais – de que “a democracia é o pior dos regimes – com exceção, naturalmente, de todos os demais”. Parodiando Sir Churchill, algo assim pode ser dito sobre o sistema capitalista: é o pior de todos os sistemas econômicos – com exceção, naturalmente, de todos os outros. Até agora, o ser humano não conseguiu uma forma mais eficiente de estimular o progresso e o desenvolvimento. A tarefa dos homens deveria ser aprimorá-lo e não o substituir por métodos alternativos de organização social que, a longo prazo, a História já demons-trou serem um completo fracasso.

É importante frisar aqui que não se trata de exacerbação de suspeitas infunda-das. Como sinal de que há uma ação orquestrada contrária aos princípios que serão defendidos neste livro, é eloquente transcrever o que vem a seguir. O PT em nota aprovada por sua Comissão Executiva Nacional em 3 de novembro de 2014, poucos dias após as eleições que deram o segundo mandato à Presidente Dilma Rousseff,

7 McCraw, T. O profeta da inovação, Editora Record, São Paulo, 2012.

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tomando o trem no túnel do tempo na direção da Guerra Fria, avaliou a vitória como resultado de “uma disputa duríssima, contra adversários apoiados pela direita, pelo oligopólio da mídia, pelo grande capital e seus aliados internacionais”. Ao contrário do que normalmente ocorre após as eleições, quando os ânimos políticos tendem a se distender, o documento aponta, escalando na agressividade com uma linguagem que fala por si, que “a oposição incorreu nas piores práticas políticas: o machismo, o racismo, o preconceito, o ódio, a intolerância, a nostalgia da ditadura militar”. Ato contínuo, a Comissão convoca a militância “para transformar o Brasil”, combinando “ação institucional, mobilização social e revolução cultural”, o que “exigirá renovar nossa capacidade de compreender a sociedade brasileira, a natureza do seu desenvol-vimento capitalista, a luta de classes que aqui se trava sob as mais variadas formas”. Nesse ponto, à medida que o texto avançava pelas páginas do documento, mas an-dando de ré na linha do tempo, o leitor já tinha chegado a 1917...

O que está em curso é uma guerra de narrativas. Por um lado, a narrativa de acordo com a qual foi só a partir de 2003 que o Brasil passou a ter governantes comprometidos com a defesa dos interesses da maioria da população e que teriam implantado um projeto com base no consumo de massas e plenamente sustentável. Por outro, o argumento de que na segunda metade dos anos 1990 o Brasil passou, corretamente, a se afastar de uma visão paternalista do Estado; visão essa retoma-da intensamente anos depois e que nos conduziu a um caminho de dificuldades econômicas crescentes, jogando no chão o “espírito animal” (animal spirit) dos em-presários, incitando a cultura da dependência de parcelas crescentes da população, desestimulando o empreendedorismo da juventude e exaurindo os recursos do Es-tado. É, no fundo, uma guerra ideológica. Um prócer vizinho, Domingo Faustino Sarmiento, talvez o melhor presidente argentino da História, dizia que “a guerra deve ser feita alegremente”. Vamos, então, encarar a batalha das ideias, com uma leitura que seja agradável ao leitor.