Capital: more human than human

45
_________________ (*) Professor Titular do Departamento de Economia da UFF. Texto apresentado no IV Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cinema, Florianópolis, novembro de 2000, publicado aqui com autorização do autor. Os professores Maria Célia M. Moraes (UFSC), Ricardo Müller (UFSC) e Marcio Schuler leram e comentaram versões preliminares deste trabalho. Ajudaram-me, diria com Ahmad, a acreditar que a interpretação aqui defendida faz algum sentido. Sou-lhes grato por isso e, mais ainda, pelo incentivo em sistematizá-la sob a forma de ensaio. Agradeço, igualmente, às oportunidades que me foram oferecidas para discutir o trabalho em seminários realizados na UFF e na UFSC. As faltas e insuficiências, não havendo nada e ninguém por perto para inculpar, são todas de minha responsabilidade, infelizmente. TrabalhoNecessário – www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, Nº 10/2010. ENSAIO CAPITAL: More Human than Human (Blade Runner e a Barbárie do Capital) Mário Duayer * If the future is one you can see and touch, it makes you a little uneasier because you feel it’s just around the corner”. Ridley Scott “Assim, tacitamente ameaçados, estamos imobilizados dentro de espaços sociais condenados, locais anacrônicos que se autodestroem, mas onde temos o estranho e apaixonado desejo de permanecer, enquanto o futuro se organiza, debaixo de nossos olhos, em função de nossa ausência já programada de maneira mais ou menos consciente”. Viviane Forrester Blade Runner (O Caçador de Andróides) 1 é decerto um dos mais impressionantes filmes de ficção científica jamais realizados. Feito nada desprezível, é preciso reconhecer, em especial numa época em que a ciência ameaça tornar supérflua a ficção. A sua relevância enquanto produto cultural de e para nossa época é confirmada igualmente pela enorme literatura que originou. 2 Na tentativa de entender as causas de seu impacto cultural, grande parte da literatura crítica parece ter produzido mais “ficção” do que o próprio filme. Em lugar de partirem da ficção apresentada pelo filme, muitas críticas procuram explicar o fascínio que exerce elaborando sobre a ficcionalização de certos elementos presentes no filme. Desta ficcionalização, que magnifica determinado elemento da ordem 1 É importante sublinhar que o título do filme em português não traduz a intenção do original. A produção do filme não usou a expressão andróide, empregada na novela de Philip K. Dick, com o explícito propósito de evitar que o filme fosse interpretado como algo relacionado a robôs. Razão pela qual o termo andróide (da novela) foi substituído por replicante. 2 Ver Kolb3 para uma imensa bibliografia comentada.

description

Filosofia; ontologia; marxismo

Transcript of Capital: more human than human

  • _________________ (*) Professor Titular do Departamento de Economia da UFF. Texto apresentado no IV Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos do Cinema, Florianpolis, novembro de 2000, publicado aqui com autorizao do autor. Os professores Maria Clia M. Moraes (UFSC), Ricardo Mller (UFSC) e Marcio Schuler leram e comentaram verses preliminares deste trabalho. Ajudaram-me, diria com Ahmad, a acreditar que a interpretao aqui defendida faz algum sentido. Sou-lhes grato por isso e, mais ainda, pelo incentivo em sistematiz-la sob a forma de ensaio. Agradeo, igualmente, s oportunidades que me foram oferecidas para discutir o trabalho em seminrios realizados na UFF e na UFSC. As faltas e insuficincias, no havendo nada e ningum por perto para inculpar, so todas de minha responsabilidade, infelizmente.

    TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    ENSAIO

    CAPITAL: More Human than Human

    (Blade Runner e a Barbrie do Capital)

    Mrio Duayer*

    If the future is one you can see and touch, it makes you a little uneasier because you feel its just around the corner.

    Ridley Scott

    Assim, tacitamente ameaados, estamos imobilizados

    dentro de espaos sociais condenados, locais anacrnicos

    que se autodestroem, mas onde temos o estranho e

    apaixonado desejo de permanecer, enquanto o futuro se

    organiza, debaixo de nossos olhos, em funo de nossa

    ausncia j programada de maneira mais ou menos

    consciente.

    Viviane Forrester

    Blade Runner (O Caador de Andrides)1 decerto um dos mais impressionantes filmes de

    fico cientfica jamais realizados. Feito nada desprezvel, preciso reconhecer, em especial numa poca em que a cincia ameaa tornar suprflua a fico. A sua relevncia enquanto produto cultural de e para nossa poca confirmada igualmente pela enorme literatura que originou.2 Na tentativa de entender as causas de seu impacto cultural, grande parte da literatura crtica parece ter produzido mais fico do que o prprio filme. Em lugar de partirem da fico apresentada pelo filme, muitas crticas procuram explicar o fascnio que exerce elaborando sobre a ficcionalizao de certos elementos presentes no filme. Desta ficcionalizao, que magnifica determinado elemento da ordem

    1 importante sublinhar que o ttulo do filme em portugus no traduz a inteno do original. A produo do filme no usou a expresso andride, empregada na novela de Philip K. Dick, com o explcito propsito de evitar que o filme fosse interpretado como algo relacionado a robs. Razo pela qual o termo andride (da novela) foi substitudo por replicante. 2 Ver Kolb3 para uma imensa bibliografia comentada.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    2

    social delineada no filme, resulta uma imagem unidimensional e, portanto, empobrecida da sociedade representada no filme, reduo to mais paradoxal porquanto feita em nome da pluralidade de leituras. Naturalmente, um trusmo afirmar que este filme em particular, enquanto produto cultural complexo, admite leituras diferentes e divergentes. No entanto, a interpretao unilateral, monocromtica, est em flagrante contraste com uma obra que, como afirmou um crtico, oferece a mais abrangente viso de uma futura distopia jamais realizada em filme.3 Ao contrrio de tais interpretaes, pretende-se mostrar neste artigo que a fora de Blade Runner reside em sua habilidade de capturar os momentos centrais, as tendncias e foras operantes na sociedade capitalista e projet-los num futuro no muito remoto. Certamente, este carter do filme no escapou a muitos crticos. Fato que no os impediu, porm, de analisar a temtica central do filme em termos abstratos em lugar de apreci-la desde um ponto de vista histrico-concreto, tal como vem apresentada no prprio filme. Em particular, as contradies presentes no desenvolvimento da cincia e de suas aplicaes tecnolgicas em relao s necessidades humanas so abstratamente discutidas, no sentido de que a apreciao crtica est sempre referida cincia em geral. No filme, ao contrrio, tais problemas so focalizados tendo presente as condies histrico-concretas em que opera a cincia enquanto fator crucial do processo de acumulao do capital. Em outras palavras, o filme oferece, entre outras coisas, a imagem dos possveis efeitos do desenvolvimento de uma forma particular de cincia e de sua aplicao tecnolgica cincia e tecnologia a servio do capital. Salientando o fato de que Blade Runner constitui uma viso prospectiva da sociabilidade do capital, e no da sociedade humana em geral, o artigo sugere que o filme exibe em grandes linhas o que se poderia considerar a mxima barbrie do capital, ou o resultado do movimento autnomo do capital levado ao paroxismo.

    No entanto, antes de apresentar os argumentos que amparam tal convico parece prudente

    enfatizar a atualidade do filme, que, sendo produto do incio da dcada de 80, poderia muito bem ser objeto daquele desdenhoso olhar que merecem os presumidos trastes que o progresso acelerado vai deixando pelo caminho. 1. A ATUALIDADE DE BLADE RUNNER Blade Runner foi lanado nos EUA em 1982, simultaneamente ao filme ET. Durante a primeira semana de exibio chegou a rivalizar com este ltimo em termos de bilheteria. A partir da, no entanto, ET transformou-se em sucesso de pblico enquanto as receitas de Blade Runner despencaram e o filme, com um prejuzo de $12 milhes, mostrou-se um desastre de bilheteria (Wood: 182; Kolb1: 133). No obstante, do ponto de vista do establishment, Blade Runner teve seus mritos reconhecidos como, de fato, atestam as premiaes a que fez jus: indicao para o Oscar em duas categorias Efeitos Visuais e Set Direction/Set Decoration; indicao para a British Academy of Film and Television Arts Film Awards em 8 categorias, tendo sido premiado nos quesitos Best Cinematography e Best Production Design/Art Direction; ganhou a Special Technical 3 Wright, G., apud. (Slade, 1990: 13).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    3

    Award do British Critics Circle; e, ainda na Inglaterra, foi premiado com a Hugo Award como Melhor Filme de Fico de 1982 (Kolb1: 143). Apesar de seu fracasso comercial Blade Runner adquiriu o status de cult movie, filme sempre visto e evocado enquanto marcante produto cultural de nossa poca, coisa que dificilmente poderia ser dita de ET, que, como tantos outros produtos culturais de tipo fast food, desapareceu da memria cultural to rpido quanto atingiu picos de pblico.4 Ser cult movie j de certa forma um indicativo da atualidade de Blade Runner, se por isso se entende no apenas suas contnuas reapresentaes em salas especiais ou seu sucesso no mercado de vdeo-laser5 mas, sobretudo, a recorrncia com que citado sempre que algum desenvolvimento cientfico de impacto recoloca em pauta a discusso sobre o proveito humano do progresso da cincia, faz ressurgir a questo de se a cincia funciona em benefcio da humanidade e se est sob seu efetivo controle. Sempre que tais interrogaes se impem, Blade Runner relembrado como ilustrao exemplar de que a tecnologia pode no redimir o humano dvida que parece cada vez mais sedimentada. Tratando de um futuro hipottico no qual a engenharia gentica tornara possvel manufaturar um ser em tudo idntico ao ser humano, um prodgio biomecnico (Slade, 1990: 13), no chega a constituir uma surpresa que Blade Runner volte a ser evocado no momento em que a engenharia gentica anuncia seu mais novo e espetacular rebento o clone da ovelha. Apesar da clonagem em si mesma, segundo os especialistas, no ser to surpreendente, pois fora realizada em outros experimentos ou tivera sua viabilidade tcnica antes demonstrada, o fato que fez precipitar uma torrente de matrias noticiando as reaes das ditas autoridades cientficas, polticas e eclesisticas. Para se ter uma idia da repercusso do evento, em apenas um dos grandes jornais de circulao nacional o conjunto de matrias abordando o assunto chega a mais de cem pginas do formato aqui empregado e isto em apenas trs meses.

    De acordo com essas notcias, a ovelha replicante Dolly provocou uma febre legal em governos e parlamentos de todo o mundo, que preparam comisses e projetos de lei para evitar que sejam criadas rplicas de seres humanos. De Bill Clinton a Carlos Menem, clones medidicos mais ou menos grotescos,6 incluindo dirigentes de vrios pases e o Vaticano, o objetivo assegurar que o experimento com ovelhas no seja realizado com humanos (FSP, 01.03.97). Preocupao mais do que pertinente, uma vez que os prprios idealizadores do experimento afirmam que no h

    4 De acordo com Wood, o establishment norte-americano recebeu ET de maneira exttica e reservou uma fria acolhida para Blade Runner. Para o crtico o fato de ET ter obtido mais premiaes do que Blade Runner indica o tipo de escolha feita pelo pblico e pela crtica, escolha esta que iria mais alm da mera preferncia de um filme em relao ao outro. Tal escolha expressa, ao seu ver, a preferncia do tranqilizante sobre o perturbador, do reacionrio sobre o progressista, do seguro sobre o ameaador, do infantil sobre o adulto, da passividade sobre a atividade do espectador (Wood, 1986: 184). 5 Em 1990, pelo segundo ano consecutivo, foi considerado o mais bem produzido disco laser e ficou em primeiro lugar dentre os 10 discos-laser mais preferidos (Kolb3: 242). 6 Ver na seqncia o comentrio de Baudrillard sobre a clonagem.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    4

    diferena substantiva entre clonar uma ovelha e clonar um ser humano.7 Em suma, Dolly deixa claro que a cincia e sua aplicao tecnolgica so capazes de reproduzir o humano, ou que a base produtiva criada sob os auspcios do capital tem condies tcnicas de fabricar o ser humano. Ou, para coloc-lo mais dramaticamente, que o objeto pode literalmente criar o sujeito. Diante de tal fato, falar da atualidade de Blade Runner quase uma tautologia. Alis, o diretor do filme, Ridley Scott, antecipou em uma de suas entrevistas, em 1982, que provavelmente em cerca de doze ou quinze anos a engenharia gentica estaria em condies de produzir um ser em tudo idntico ao humano.8 O prprio fato de o noticirio referir-se Dolly como ovelha replicante constitui uma evidente citao de Blade Runner, que popularizou o termo, referncia qual se juntam inmeras outras para confirmar a atualidade do filme. De todas estas citaes ou presentificaes de Blade Runner, talvez valha a pena reproduzir de modo mais extenso a opinio de Baudrillard, publicada no jornal francs Liberation e divulgada no pas sob o ttulo O Clone, um Crime Perfeito (FSP, 28.03.97). Para este autor, cujo agudo diagnstico uma vez mais desgua na desiluso e no desespero, talvez produtos de uma interdio voluntria, coerente porm com sua averso a meta-narrativas, que o impede de enxergar sadas ou imaginar propostas9 , a vaca louca e a ovelha clonada,

    no por acaso, desenham o tema astral deste final de sculo. Vamos poder clonar cada vez mais ovelhas e, assim, fabricar mais e mais raes que vo alimentar mais e mais vacas loucas. Mas a analogia vai mais longe: a prpria clonagem uma forma de epidemia, de contgio, de metstase da espcie tomada pela reproduo idntica e pela proliferao ao infinito, para alm do sexo e da morte. O acontecimento mais importante consiste na aniquilao da reproduo sexuada e, conseqentemente, de qualquer diferenciao e destino individual nico do ser vivente. [Efeito paradoxal e irnico, poder-se-ia acrescentar, em uma sociedade que cultiva o individualismo narcsico. / MD] Usando das vias paradoxais da cincia e do progresso, estamos simplesmente anulando a maior revoluo no reino dos seres vivos a passagem da multiplicao indiferenciada, de protozorios e

    7 Other ethical commentators are more forthright in their objections. In my view, the current prohibition [on human cloning] should remain in force, says Margaret Brazier, professor of law at Manchester University. If brain-dead clones were nurtured and used as organ banks, she says, this would radically change the nature of what it is to be human. New Scientist, 01.03.97. 8 O que aconteceria se nas prximas dcadas grandes monoplios tornarem-se to poderosos quanto o governo? O que possvel. Eles teriam penetrado em todos os tipos de indstriaeventualmente lidariam com a gentica. Ento voc chega a um ponto no qual a gentica comea a desenvolver o primeiro homem man-made. Eu penso que isso poderia acontecer nos prximos 12 ou 15 anos (Kerman, 1991: 20). 9 Antonio Negri sintetiza, como se segue, a crtica de outros autores tendncia a um s tempo ctica e cnica de muitas posies ps-modernas, dentre as quais a de Baudrillard: [] No territrio poltico, as filosofias ps-modernas aceitam a crtica spinozista do absolutismo transcendental da autoridade, mas negam que a constituio do comum seja conferida prxis da multido. A ironia sobre as massas, o desprezo da multido instauram-se na filosofia ps-moderna como uma espcie de libertinagem ctica e cnica, que escarnece a democracia. [] Certamente no podemos dizer que essas filosofias do ps-moderno (de Lyotard a Baudrillard, de Rorty a Vattimo, de Virilio a Latour, para citar os mais conhecidos) deixem de perceber qualidades essenciais da fenomenologia de nosso tempo. Mas todas, sem exceo, nos apresentam, com a sacrossanta narrao do fim do transcendentalismo moderno, um espetculo insensato do que resta aps a sua morte. uma espcie de apologia da resignao, um desempenho que se acomoda, por vezes comiserativo, por vezes divertido, beira do cinismo. Uma ontologia cnica? Talvez (FSP, Mais, 28.02.99).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    5

    bactrias, da imortalidade dos seres monocelulares, reproduo sexuada e a morte imprevisvel de todo ser individual, em benefcio da monotonia biolgica do reino anterior Enquanto o ser vivente passou centenas de milhes de anos esforando-se para arrancar o Mesmo do Mesmo, para se distanciar dessa espcie de incesto e entropia primitiva, ns estamos trabalhando em prol da desinformao da espcie, por meio da anulao das diferenas e da fabricao da entropia informada. o fim da picada! nessa reviso crucial de toda a evoluo dos seres vivos que estamos engajados ao praticarmos a clonagem, que representa ao mesmo tempo o triunfo cientfico de uma espcie e sua morte, pela repetio de sua prpria frmula.

    Baudrillard sublinha que tal multiplicao do Mesmo, entretanto, s pode ser considerada positiva em nosso sistema de acumulao, sistema de acumulao este que, sem a licena do autor, aqui entenderemos como sistema capitalista. Mas esta acumulao ou multiplicao do Mesmo representa a supresso da individualidade e, para usar um termo de Marx, o retorno da espcie muda, s que agora, ao contrrio do que ocorre com as espcies do mundo orgnico, um mutismo artificialmente produzido por nosso sistema de acumulao. o que se deduz quando Baudrillard afirma que se clonarmos ao infinito o valor de cada um [indivduo / MD] ser igual a zero. E para quem acredita que este futuro est distante, s se materializaria com ulteriores desenvolvimentos da engenharia gentica, Baudrillard lembra que j somos a manifestao de uma sutil clonagem, a clonagem mental,

    [] j visvel no registro social, onde se encontra aquilo que o sistema produz e reproduz; so seres conformados, substituveis entre eles, seres que j so mentalmente clonados. No fundo essa histria toda de clonagem no nova; j temos a experincia viva dela em todos os campos, intelectuais, culturais, operacionais, sem contar com os do trabalho e da tcnica, onde o sistema h muito tempo nos obriga a sermos clones de ns mesmos ou clones uns dos outros. A clonagem, desenho automtico de indivduos prontos para consumo e sua identificao numa frmula mnima (seu cdigo mental e comportamental), j realizada em grande escala. Os clones j esto aqui, os seres virtuais j esto aqui somos todos replicantes! No sentido em que, como em Blade Runner, j praticamente impossvel distinguir o comportamento propriamente humano de sua projeo sobre a tela, de sua duplicao na imagem e de suas prteses informticas.

    Mas se o nosso sistema de acumulao torna-se capaz de clonar o humano, de incio mentalmente e, por fim, fisicamente, se, portanto, o humano parece desenvolver-se a ponto de transformar-se em muda espcie artificial, nada garante que neste processo de desenvolvimento o nosso sistema garanta, por motivos tcnicos ou sentimentais, sequer a manuteno do humano clonado, por insatisfatria e hedionda que seja esta ltima alternativa. A atualidade de Blade Runner consiste justamente em explorar, como tentaremos mostrar neste trabalho, esta caracterstica de nosso sistema de acumulao, a saber, a sua capacidade de levar a cabo uma desantropomorfizao total. possibilidade de tal desenvolvimento que transparece nas trgicas palavras finais do diagnstico de Baudrillard:

    [] por isso que os comits de tica no vo conseguir mudar nada. Com todas as suas boas intenes, eles no passam de expresso de nossa conscincia pesada diante do desenvolvimento irresistvel e fundamentalmente imoral de nossas cincias, que nos trouxeram at aqui, e com o qual consentimos secretamente, ao mesmo tempo em que nos permitimos o gozo moral do arrependimento.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    6

    Em ltima anlise, o que se torna o ser humano que relegado por seu prprio clone e, assim, tambm passa a ser intil? Uma reserva? Uma relquia? Um fssil? Um fetiche? Um objeto de arte? O conflito entre o original e sua cpia no est perto de terminar, nem aquele entre o real e o virtual. Se esta, afinal, uma tendncia possvel de nosso sistema de acumulao, coadjuvado pelo

    desenvolvimento irresistvel e fundamentalmente imoral de nossas cincias, h uma razo adicional para nos convencermos da atualidade de Blade Runner. A afirmao recente, ou a presumida confirmao emprica, do carter perene do capital sob a forma de incontida e exttica apoteose do mercado , nada mais significa do que afirmar que nosso sistema de acumulao adquiriu sua forma definitiva e que com ele temos que nos haver da melhor forma possvel. Diante de sua inelutabilidade, fcil deduzir, as atitudes moral e cognitiva mais adequadas so as que se conformam a este presumido dado da realidade. razovel, neste registro, pretender reduzir as injustias e iniqidades resultantes da operao irresistvel das leis do mercado, mas esto interditadas por definio quaisquer veleidades crtico-emancipatrias, prticas e tericas. Em sntese, a naturalizao do mercado tem por condio o imprio da realpolitik nos planos cognitivo, moral e esttico. E, se considerarmos a realpolitik como supresso da liberdade do sujeito humano, ou sua total conformidade aos imperativos da prtica imediata ou ainda, parodiando Baudrillard, a sua clonagem destinada a dot-lo dos cdigos mentais e comportamentais adequados, Blade Runner reafirma sua atualidade ao retratar um mundo no qual os sujeitos no tm mais papel enquanto sujeitos, um mundo no qual so meros figurantes do capital. Isso enquanto for til ao capital clonar ou manufaturar os seres humanos! Em uma palavra, se o mercado mesmo o fim do mundo, Blade Runner delineia este fim de mundo enquanto progressiva eliminao do humano, fim da humanidade. Progressiva eliminao, alis, de que a tecnologia informtica e a robtica so prenncio, ao tornarem os seres humanos crescentemente dispensveis para a produo do capital. Pois que papel podem ter os sujeitos humanos na perene economia do capital se o seu trabalho no tem mais utilidade, se redundante, suprfluo? Esta sinistra interrogao para a qual os discursos tericos, oficiais e dos meios de comunicao ainda no encontraram seus usuais lenientes tem em Blade Runner a resposta consistente: nenhum.

    A perenidade do mercado apresenta-se hoje na figura da globalizao, colonizao total do planeta pelas categorias mercantis, sua intervenincia em todos os assuntos, esferas e cantos do terrestre. Neste particular, Blade Runner muito mais realista e, por isso, antecipa genialmente o prximo estgio da colonizao do mercado o universo. Se, como mostrou Marx, as relaes mercantis tendem universalizao tendncia hoje reapresentada como tremenda novidade sob o rtulo de globalizao , Blade Runner apresenta esta tendncia literalmente realizada. Nele o capital ocupa-se j da colonizao de outros planetas e galxias colonizao do universo. Se hoje se celebra a globalizao do mercado, Blade Runner anuncia a sua cosmologizao. 2. BLADE RUNNER E A LGICA DA EXTRAPOLAO NA FICO CIENTFICA

    Sob tal perspectiva, Blade Runner tanto uma reflexo sobre a sociedade contempornea

    como uma reflexo sobre as reflexes da sociedade sobre si mesma. uma obra sobre o nosso

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    7

    mundo enquanto totalidade, sobre a dinmica de tal totalidade, sobre a configurao do mundo que tal dinmica desenha e sobre os estreitos limites dentro dos quais se move nosso pensamento sobre tal destino. O filme projeta nossa sociedade no futuro; as resenhas crticas especulam sobre as razes da expressividade do filme ou, noutros termos, sobre as razes pelas quais somos afetados pelo filme e, por extenso, pela viso do futuro deprimente e opressor que constri, ou que vimos construindo e, por isso, nos assusta.

    Talvez a maior evidncia a revelar o que pretendiam os realizadores do filme tenha sido a reao de Philip K. Dick, autor do livro que inspirou o roteiro de Blade Runner, ao visitar os estdios onde se realizavam as filmagens. parte da crnica da produo do filme a existncia de srios desentendimentos e divergncias entre o autor da novela e os produtores do filme. A suposta declarao de Scott, por exemplo, de que no lera nem leria a novela causou naturalmente profundo mal-estar no autor da novela. Da mesma forma, em vrias oportunidades o escritor mostrara-se insatisfeito com os roteiros iniciais aos quais tivera acesso. Apesar desses antecedentes, Philip K. Dick ficou literalmente assombrado ao presenciar algumas tomadas do filme, em especial por perceber o sentido que os produtores haviam extrado de sua novela. Ao final da tomada em que Harrison Ford, o blade runner, tenta localizar a replicante que fugia em meio ao turbilho de figurantes que circulavam aparentemente sem rumo, um reprter perguntou ao ator como se sentia fazendo outra fantasia no espao. Em sua resposta, Ford afirma que isto futurismo aqueles outros filmes (Star Wars, por exemplo), no assim que vai ser. Dick confessa, emocionado, que ao ouvir aquelas palavras compreendeu que Ford estava certo.

    De repente compreendi E eu pensei, por Deus, esses caras conseguiram imaginar como vai ser a vida daqui a quarenta anos! Meu Deus, estou completamente convencido. Esta uma nova forma de arte. tudo o que voc odeia da vida urbana atual magnificado at o nvel do Inferno de Dante. Era medonho. Ele (H. Ford) no podia sequer encontrar algum espao na calada. Voc no pode sequer correr no futuro, h tantas pessoas perambulando sua volta, sem fazer nada E h milhes de sinais, informao para todo lado: faa isto, compre aquilo. Era to real que tive o sentimento de que eles tinham criado uma nova forma de arte. Literalmente criaram uma nova forma de arte Era to revigorante. Lendo meu livro, eles devem ter captado que sob a aventura os policiais, os ladres, etc. havia um certo elemento de realismo no livro No se trata de um tira matando um bando de replicantes. Isto no como tudo o que temos visto, e no dirigido a crianas de 12 anos. Estas pessoas literalmente equiparam-se para imaginar como seria Los Angeles daqui a quarenta anos. Eles poderiam estar errados Mas, como aquela coisa dita por Herlein, if this goes on. [Em outras palavras], se [permanecem] as tendncias que temos agora uma projeo Vai ser exatamente igual quilo (Rickman: 106).

    Mas se para Philip K. Dick fora uma surpresa perceber que sua novela pudera inspirar uma projeo de nossa sociedade, as declaraes do diretor Ridley Scott no deixam margem a dvidas de que o filme foi estruturado em torno desta idia. Como assinala Kerman, a cidade de Blade Runner foi concebida explicitamente como uma sria extrapolao de nosso presente. E acrescenta que embora alguns crticos tenham refutado a idia de que o filme continha uma crtica de esquerda sociedade contempornea, na verdade nele est inescapavelmente presente uma crtica poltica sociedade atual e suas tendncias. Em outras palavras, apesar de operarem no contexto da indstria cinematogrfica Scott e seus colaboradores observaram e extrapolaram as

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    8

    contradies de nosso tempo (Kerman: 16). Estendendo-se sobre a razo do extremo detalhamento da arquitetura e da paisagem urbana da Los Angeles (LA) retratada no filme, e sobre seu carter hbrido, Scott afirma que

    isto o que vai acontecer. Creio que a influncia em LA vai ser muito latina, com enorme influncia cruzada oriental. Acho que vrios grupos esto se desenvolvendo hoje, faces que so religiosas, sociais, etc., punk, algumas rsticas e toscas que desenvolvem sua pequena cultura de protesto. Elas vo enrijecer, de modo que haver faces polticas, religiosas, sociais, ou meramente excntricas, malucas. A polcia ser transformada num tipo de fora paramilitar, o que j est perto de acontecer (op. cit.: 17).10

    Kerman sublinha, neste particular, que o filme no contm apenas uma pitoresca projeo de alguns traos ou tendncias do presente, mas uma extrapolao que procura capturar tais caractersticas e tendncias com um mximo de acuidade e com o objetivo de vislumbrar o mundo resultante de sua conjugao. Ilustram este esforo as explicaes de Scott para o visual exoesqueletal das edificaes que aparecem no filme, i.e., para justaposio de novas tecnologias sobre antigas estruturas:

    o propsito primariamente lgico. Estamos em uma cidade que est num estado de excesso, de energia crescente e emaranhada, na qual voc no pode mais remover um prdio porque isso custa muito mais do que construir um em seu lugar. Assim o processo econmico como um todo reduzido (Kerman: 17).

    Kolb salienta tambm o cuidado da direo do filme com o desenvolvimento de conceitos para o ambiente, sociedade, arquitetura, transporte e tecnologia de modo a fornecer uma lgica auto-consistente para o visual do filme, e apia-se numa citao de Scott para mostrar que houve de fato um esforo deliberado neste sentido:

    gostei especialmente do fato de que o futuro de Meed (cenografia) parecia bem fundamentado na lgica, e era isto que queria para Blade Runner, queria que fosse futurista sem ser simplrio (Kolb1: n. 15).

    Ao contrrio, portanto, de outros filmes de fico cientfica, toda a tecnologia aplicada no filme para criar sua atmosfera futurstica tem um fundamento lgico, o resultado de uma cuidadosa elaborao (ibid.: 143).

    Para Kerman, nesta viso de Scott, que comanda a elaborao do filme e reforada por sua enorme convico de que se trata de uma imagem verossmil, onde deve-se buscar a explicao para o fato de o filme ser to convincente (op. cit.). Kerman adverte, entretanto, que as entrevistas concedidas pelo diretor e roteiristas de Blade Runner permitem concluir que, pelo menos conscientemente, no havia o propsito de fazer um filme marxista. Observao decerto interessante, pois a expresso das muitas instncias em que opera a interdio a Marx. Mas seria de se perguntar se de fato possvel fazer uma extrapolao sria das tendncias da sociedade atual sem recorrer a Marx. Se a resposta negativa, qual ser ento o efeito de tal interdio? Se,

    10 No deixa de ser interessante o contraste entre esta viso pessimista de Scott da formao de subculturas autnomas, hostis e incomunicveis enquanto tendncia da sociedade atual, com a viso otimista do pragmtico norte-americano Richard Rorty, para quem a privatizao das diferentes culturas a virtude mxima das sociedades liberais-democrticas, como as denomina. Segundo ele, a privatizao e autonomia das diversas culturas que permite o seu contato livre e sem preconceitos, do qual resulta sua recproca inseminao (Duayer: cap. 2).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    9

    de fato, conforme afirma Kerman, os produtores pretenderam explicitamente fazer uma extrapolao a partir de uma clara viso de nossa sociedade, interditar Marx no equivale a desarmar a crtica e, desse modo, deixar que tais tendncias operem sem resistncia (op. cit.: 18)? O efeito imediato de tal interdio, ao que parece, o de voltar-se contra a prpria crtica, que captura criticamente a natureza contraditria do objeto analisado mas, simultaneamente, forada a atenuar o resultado do prprio trabalho crtico. Da porque Kerman, ao lado de reconhecer que Scott tem razes estticas para construir seu tangvel futuro por meio de uma extrapolao brutalmente honesta o propsito artstico era o de provocar um desconforto no pblico, acrescenta que no importa se Scott pretendeu fazer um filme radical [sic?] ou no. Comentrio que suscita a seguinte indagao: qual seria o sentido de provocar um desconforto no pblico se os sentimentos crticos radicais esto antecipadamente proscritos?

    Se uma obra de arte focaliza um aspecto repulsivo da realidade, deve prevenir eventuais

    reaes de radical rejeio por meio de algum artefato artstico? Se, como agudamente sublinha Kerman, Blade Runner levanta penetrantes questes polticas sobre nosso mundo, sua economia poltica, suas tecnologias e seu futuro, e isso por sua lgica da extrapolao, [pelo] poder de seus arqutipos e [pela] visceral exatido do mundo que delineia (op. cit.: 23), por que atenuar a radicalidade do filme? Se pela lgica da extrapolao o futuro de nosso mundo mostra-se impalatvel, a repulsa que este futuro provoca no deve justamente suscitar reaes radicais de rejeio? Se o mundo promete ser intolervel, a radical recusa no um dos momentos indispensveis para abortar, se tal um projeto factvel, este vir-a-ser do mundo? Questes todas que ficam sem resposta quando a crtica, conscientemente ou no, interdita o pensamento de Marx por sua radicalidade. Posteriormente tentaremos defender a idia de que no possvel entender Blade Runner sem algumas categorias centrais do pensamento de Marx, de modo que aqui fazemos apenas um parntese para sublinhar o prejuzo causado por esta renncia voluntria, sem dvida alimentada por um preconceito profunda e compreensivelmente arraigado. Retomando o problema em considerao nesta seo, ou seja, o certo realismo de Blade Runner, possvel verificar, pelo exame da opinio de outros crticos, que a impresso de Philip K. Dick praticamente unnime: esses caras conseguiram imaginar como vai ser a vida daqui a quarenta anos! Robert Silverberg, por exemplo, sugere que Blade Runner conseguiu realizar aquilo que considera a maior virtude do filme de fico cientfica, a saber, mostrar a cara do futuro, e o fez com tamanha convico, com tal riqueza de detalhes, com tal intensidade de textura, que as vises do amanh s quais nos expe dificilmente abandonam nossa imaginao. Sendo ele prprio um escritor de fico cientfica, tem um significado especial sua anlise de Blade Runner, em particular quanto ao aspecto que nos interessa aqui enfatizar, sua habilidade em criar uma imagem verossmil do amanh. Assim descreve ele este aspecto do filme:

    tenho visto argumentos de que se trata de uma maior realizao para um novelista criar uma a textura do mundo com rpidos toques descritivos do que o para um diretor cinematogrfico perdido em meio a um batalho de carpinteiros e eletricistas, mas apesar de meu vis de novelista no estou to seguro disso; os efeitos que Scott cria construindo cenrios e deixando-nos ter deles to somente meros relances so pelo menos to elegantes e atraentes como qualquer exemplo da arte descritiva do escritor de fico cientfica. A LA de Blade Runner uma inveno impar a prpria

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    10

    cidade permanece enquanto a realizao imaginativa essencial, e cumpre a coisa essencial da fico cientfica: exibir e iluminar uma paisagem de outro modo inacessvel para os olhos. [Por criar] uma paisagem mental vvida, tocante e completa, uma paisagem que, por um momento sem flego, um momento de suspenso da incredulidade, parece ser a coisa real, o futuro autntico, o qual no temos outro modo de experimentar seno por intermdio de lentes, luzes e tela (apud Landon: 99).

    Em sntese, so todas essas qualidades de Blade Runner que respondem pelo impacto visual

    do filme e por seu continuado fascnio. So tais atributos e cuidados que produzem sua intensa qualidade visual, no apenas bela mas verdadeira, e fazem a cidade (LA) parecer mais real do que o mundo real (Warner: 178). A riqueza da construo prospectiva da sociedade atual elaborada em Blade Runner dissolve, de acordo com Kolb, a primeira impresso de que se est diante de uma estria simplista tornada confusa pela combinao de gneros de filmes. Pois a trama desenvolve-se no interior de uma viso enormemente rica, intoxicante, do futuro prximo, de modo que a representao opressiva de uma possvel cidade do futuro revelada em fragmentos isolados e detalhes exagerados [faz-nos sentir] como se tivssemos viajado no tempo at o ano 2019 (Kolb1: 133).11 Todos os comentrios crticos, como se v, consideram a maior virtude de Blade Runner o realismo com que projeta nosso futuro. Ao que parece, portanto, a maioria dos crticos ignora que aquela categoria est proscrita faz algum tempo do domnio do esttico, e no apenas deste.12 E h que se concordar que, independentemente de se acatar ou no tal banimento, soa estranho julgar realista uma representao do futuro, do que ainda no existe. De qualquer forma, esta a opinio quase unnime dos crticos: Blade Runner desenha o nosso futuro. Na prxima seo, procuraremos mostrar que tal realismo, tributrio da aplicao da lgica da extrapolao na fico cientfica, como o denominam os crticos, deve-se em grande medida ao fato de o filme extrapolar legalidades fundamentais da economia regida pelo capital.

    Antes disso, porm, preciso enfatizar que em Blade Runner, diferentemente do que ocorre na maioria dos filmes de fico cientfica, a cincia e a tecnologia, to centrais na figurao do futuro da sociedade atual, no aparecem como panacias para resolver os problemas da humanidade. Como observa Bruno, o futuro no realiza uma ordem tecnolgica idealizada, assptica (Bruno: 63). Em outras palavras, em Blade Runner no ocorre a inflexo que Carter observa, de um modo geral, na cultura popular: a mudana radical de uma atitude de suspeita em relao tecnologia,

    11 Muitos outros autores reconhecem a qualidade de Blade Runner enquanto representao verossmil do futuro. Uma evocao brutalmente efetiva deste desconsolado mundo do futuro prximo, Ridley Scotts Blade Runner -como todos os filmes de fico de primeira linha- tem firmes razes nos fatos atuais (Stark, S., apud Kolb3: 268). O objetivo real da fico cientfica fornecer alimento para o pensamento. Ele desafia o leitor e nem sempre explica-se completamente. E isto que faz Blade Runner (Martin, M., apud Kolb3: 260). Certamente, nem todos ficam satisfeitos com o filme, como o demonstra o seguinte comentrio. Uma confuso, pelo menos no que diz respeito narrativa. Praticamente nada explicado coerentemente, e a trama tem grandes lapsos (Maslin, J., apud Kolb3: 261). Em nossa opinio, entretanto, o nus de tal formalismo crtico recai sobre quem o formulou, e no sobre o filme. 12 Para tendncias anti-realistas na filosofia da cincia ver, por exemplo, Norris, 1997.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    11

    como em Modern Times (Chaplin), para uma celebrao da metafsica das quinquilharias high-tech (Carter: 95). Muito pelo contrrio,

    em contraste marcante com filmes tradicionais de fico cientfica, Blade Runner abandona a imagem de um futuro brilhante resultante da nova tecnologia [os] avanos cientficos retratados simplesmente coexistem com a tecnologia em operao, ou so a ela superpostos, a ponto de que a inteira infra-estrutura encontra-se beira de um colapso (Kolb1: 144).

    Cincia e tcnica, claramente regidas pelo capital, como se mostra no filme, em lugar de libertarem o humano, podem escraviz-lo e, no limite, extingui-lo. 3. O MUNDO FUTURO DO CAPITAL

    J vimos que Blade Runner cria uma imagem do futuro ricamente articulada. Imagem, nas palavras de um crtico, no s visualmente bela mas verdadeira. Ou, na assombrada expresso de Philip K. Dick: o mundo vai ser aquilo. Mas no possvel compreender como a lgica da extrapolao, denominao de vrios comentaristas para este artefato da fico cientfica, pode alcanar resultado to formidvel, pode oferecer uma viso do futuro facilmente identificada enquanto desdobramento verossmil do presente, sem capturar tendncias e foras realmente fundamentais e determinantes do mundo contemporneo. De fato, foi visto antes que inmeros crticos referem-se lgica da extrapolao enquanto projeo de tendncias. No entanto, mesmo nas anlises mais penetrantes as tendncias jamais so explicitadas. Somos informados que h tendncias ou, se se quiser, que h legalidades regendo o nosso mundo; que o diretor Ridley Scott soube perceber e projetar com rara habilidade tais tendncias; que o impacto do filme deve-se ao fato de retratar tais tendncias; mas nunca nos dito que tendncias so essas. Pesa sobre as tendncias um misterioso silncio. O mesmo silncio que parece ter levado Baudrillard, como vimos, a enrustir as referidas tendncias sob a indefinida designao de nosso sistema de acumulao.

    Blade Runner, porm, no se estrutura extrapolando sobre tendncias genricas,

    indeterminadas. Alis, nem poderia, pois se assim tivesse procedido delinearia a viso de um futuro genrico, uma imagem na qual todas as formas de sociedades, presente e passadas, ver-se-iam espelhadas. E no isso absolutamente o que a crtica enxerga no filme, pois assegura unanimemente que Blade Runner consiste de uma viso prospectiva da sociedade atual. Um primeiro e fundamental indcio de que o filme estrutura-se a partir da percepo de que a sociedade atual apresenta uma dinmica determinada, de que h certas tendncias particulares que regem o funcionamento de nossa sociedade e que a distinguem de formas anteriores de sociabilidade, foi a mudana estratgica promovida no filme, em relao novela, na explicao oferecida para as condies de degenerao e decadncia do mundo. Na novela de Philip K. Dick tais circunstncias resultam de uma guerra nuclear. Como a guerra em si mesma, nuclear ou qualquer outra, no traz consigo qualquer explicao para seu advento, sendo mais propriamente uma ocorrncia que requer explicao, o artifcio de utiliz-la enquanto causa principal do estado deplorvel da ordem social descrita na novela no poderia seno obscurecer as causas reais. O filme, ao contrrio, ao omitir a referncia da novela a uma guerra nuclear, deixa subentendido que h de se buscar na prpria estrutura e dinmica do mundo as causas do estado funesto da vida social representada. Tal

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    12

    supresso, sugere Wood, expressa o fato de que as preocupaes do filme so predominantemente sociais, enquanto a novela de Philip K. Dick girava em torno de questes metafsicas. De acordo com este autor, Blade Runner apresenta uma viso do capitalismo, projetada no futuro, mas com a inteno de ser claramente reconhecvel (Wood: 183). Neste sentido, foi essencial suprimir a referncia a uma guerra nuclear, pois somente desta forma seria possvel enfatizar que o carter perverso da ordem social projetada resultava da dinmica do prprio capital. Assim, a sociedade mostrada em Blade Runner a

    nossa prpria magnificada, seus atuais excessos so levados aos extremos lgicos: poder e dinheiro controlados por uns poucos, em monoplios cada vez maiores; pobreza, fome e degradao cada vez piores; opresso racial; planeta poludo Em oposio viso de Marx sobre o inevitvel colapso do capitalismo, o filme oferece uma glida viso da continuidade do capitalismo, atravs da manuteno do poder e da opresso, em meio a uma civilizao essencialmente desintegrada (ibid.).

    Este no o local apropriado para mostrar que Marx, de modo algum, nutre a ingnua viso do colapso inevitvel do capitalismo que lhe atribuda por Wood. Neste ponto suficiente assinalar que no escapou a alguns crticos como Wood que Blade Runner, deliberadamente ou no, expe, magnificando, tendncias da ordem social capitalista teorizadas por Marx. Em outras palavras, no s o filme toma por objeto uma forma de sociabilidade particular, aquela posta pelo capital, como, ao faz-lo, no pode deixar de aludir ao autor que exps de maneira mais sistemtica e articulada a dinmica desta forma.13 Seja negando a citao intencional de Marx por parte do diretor do filme, seja ressaltando a compreenso intuitiva e, portanto, no terica, deste ltimo ao apreender a dinmica da sociedade capitalista, os crticos no logram contornar a necessria meno anlise marxiana do capitalismo. Este o caso de Slade que, sustentando a interpretao de Wood, acrescenta que a crtica s estruturas capitalistas [no filme] parecem derivar-se menos das noes convencionais de explorao (i.e., socialistas e marxistas), do que da compreenso intuitiva [de Scott] do papel crtico exercido pelo capitalismo na evoluo dos sistemas de controle e de comando (Slade: 15). Quando no prprio interior do marxismo a crtica de Marx s estruturas capitalistas reduzida muitas vezes a noes convencionais de explorao, no chega a surpreender que o crtico atribua a uma compreenso intuitiva do diretor aquilo que o ponto central do pensamento de Marx o capitalismo enquanto sistema de produo social cujo controle e comando esto perdidos para os sujeitos. Se, ao contrrio, compreende-se que no pensamento de Marx a explorao uma categoria subordinada ao estranhamento e que este se refere justamente, como aponta, entre outros, Mszros (1996), ao fato de que controle do metabolismo social est perdido para os sujeitos, ento a intuio de Scott, como quer Slade, captura precisamente aquilo que seria uma compreenso no simplista economicista ou vulgar do pensamento de Marx, ou das caractersticas ou categorias fundamentais da economia regida pelo capital, das relaes sociais governadas pelo mercado, tal como Marx as exps. Se, portanto, Blade Runner consiste, como quer G. Wright, da mais abrangente viso de uma futura distopia (apud, Slade: 13), preciso acrescentar imediatamente que se trata, como apontam vrios crticos, de uma viso futurista da sociedade capitalista e no da sociedade humana

    13 Sem, entretanto, sempre bom aduzir, perder de vista que se trata de uma forma.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    13

    em geral. O filme explora o flagrante contraste entre um mundo tecnologicamente avanadssimo e a degradao das condies de vida no planeta as maravilhas produzidas pelo ser humano e a misria material e espiritual da vida humana. A tecnologia avanada patenteia-se nas torres altssimas a sede da Tyrrel Corporation uma torre piramidal de 700 andares , nos equipamentos de comunicao e de transporte, a exemplo do carro-nave da polcia e outros que cruzam os cus incessantemente, mas, sobretudo, na colonizao de outros planetas e galxias, como anuncia o gigantesco outdoor que sobrevoa a cidade, e na fabricao de replicantes, duplos aperfeioados do humano. Mas nada disso resultado de um desenvolvimento espontneo da cincia e da tecnologia enquanto tais.14 Ao contrrio, h inmeras indicaes no filme de que este extraordinrio desenvolvimento tecno-cientfico impulsionado pelo movimento de auto-expanso do capital. No filme, a equao entre acumulao de capital, colonizao espacial, produo de vida artificial e deteriorao da vida humana parece sugerir que o capital adquiriu tal autonomia em relao s necessidades humanas que a devastao irreversvel do solo originrio do humano e a produo de uma humanidade replicante apresentam-se como faces de uma mesma moeda. Gradualmente dispensando o humano natural, pode o capital prescindir igualmente do ambiente natural propcio ao humano lgica ensandecida do capital. Em contraste com o mundo high-tech, o antigo e ultrapassado vem representado pelas ruas da cidade transformadas em labirntico e decadente mercado oriental; pela deteriorao dos equipamentos urbanos; pela imundcie e pela poluio da cidade; pela degradao das figuras humanas que por ali transitam aparentemente para lugar nenhum; por reas inteiramente abandonadas e destrudas, a exemplo do prdio onde vivia sozinho Sebastian, engenheiro gentico envolvido no projeto dos replicantes. No entanto, a relao entre o novo e o antigo, muito antes de consistir na simples e progressiva substituio de um pelo outro, em verdade a imediata produo do antigo, do deteriorado e do degradado pelo efeito da introduo do tecnologicamente novo. Tais imagens so manifestaes daquilo que se designa habitualmente de destruio criativa ou criao destrutiva para caracterizar os efeitos do progresso tcnico posto pela acumulao de capital (Harvey: 312). De fato, em diversos momentos do filme o que se afirma como resultado concreto do avano tecnolgico a runa dos espaos nos quais a acumulao de capital tornou-se desinteressante. Tal dinmica explica a tanto a necessidade da colonizao espacial como a desocupao e a deteriorao do espao terrestre. A produo de replicantes sintetiza, em Blade Runner, a relao entre acumulao de capital, progresso tecnolgico e a tendncia do capital de colonizar espaos cada vez mais amplos. A trama que se desenrola no primeiro plano da narrativa o blade runner Deckard com o encargo compulsrio de perseguir e retirar (eliminar) um grupo de replicantes evadidos de colnias extraterrestres serve de pano de fundo sobre o qual, em rpidos movimentos, so traados os elementos centrais necessrios caracterizao da sociedade em 2019. Se os replicantes fugiram de colnias extraterrestres, de se deduzir, por um lado, que a colonizao de outros planetas constitui uma atividade econmica corrente e, por outro, que os replicantes, humanos artificialmente

    14 No se trata, como diz Baudrillard, do desenvolvimento irresistvel e fundamentalmente imoral de nossas cincias (ibid.).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    14

    produzidos, so um instrumento essencial desta atividade. A inter-relao dessas atividades engenharia gentica e explorao e colonizao espacial que, por sua vez, conjugam outras tantas, todas tecnologicamente hiper sofisticadas, subentende a economia dominada por grandes corporaes e conglomerados, estruturas organizacionais capazes de centralizar recursos tecnolgicos e financeiros compatveis com a escala de tais empreendimentos.15 A Tyrrel, corporao especializada na produo de replicantes a nica caracterizada no filme com algum detalhe, serve de ilustrao exemplar da natureza de uma economia dominada por gigantescas empresas, cujo poder tecnolgico e financeiro demarca, no espao sideral, as fronteiras mveis no interior das quais concorrem entre si. Se a Tyrrel Corporation fabrica replicantes indispensveis colonizao extraterrestre, esta atividade pressupe, sem prejuzo de seu poder econmico especfico, a existncia de outras mega-corporaes, nos mais variados ramos e setores, dos quais fornecedora, todas operando em um contexto de concorrncia e cooperao csmicas. Nestas circunstncias, como observa um crtico, na sociedade em que operam corporaes como a Tyrrel criar vida artificial uma indstria em expanso, um respeitvel big business (Gray: 66). O fato do desenvolvimento da cincia e da tecnologia possibilitar a produo de vida artificial pe, sem dvida, inmeros interrogantes sobre o sentido e o carter de uma produo social capaz de (re)produzir seu produtor. No entanto, antes de tratar destas questes, necessrio indagar o prprio sentido de toda a produo social sob o controle de mega-corporaes capitalistas, e no apenas o de um de seus produtos mais crticos a rplica do humano.

    Tendo o universo como limite ltimo de sua operao, as mega-corporaes encontram nessa ausncia de limite o sentido de suas existncias enquanto entificaes do capital: o movimento infinito de auto-expanso do capital tem como cenrio literalmente a extenso infinita do universo. As mega-corporaes, sugere o filme, esto todas engajadas na colonizao do universo. Nesse processo de permanente expanso, os replicantes fabricados pela Tyrrel so utilizados na explorao e na pacificao de todos os quadrantes do espao, usualmente assassinando aqueles que se opem ao controle corporativo, funcionam assim como tropa de

    15 Sobre a combinao de dois tipos de narrativa em Blade Runner e o seu efeito extremamente produtivo sobre o processo interpretativo do espectador, parece bastante pertinente a anlise de Morrison:

    o filme depende de camadas de aluses e reverses demandando tempo da reflexo do espectador, o que desautorizado pela narrativa estrita e deliberadamente clssica. Em conseqncia, em um filme no qual a oposio dialtica tem precedncia sobre as conexes causais, somente metade das cenas do filme terminam com um gancho causal para a prxima cena. Em razo disso, na metade dos cortes, o processo de formao de hipteses do espectador est ocupado iluminando vrias conexes possveis enquanto novas dicas importantes esto sendo apresentadas. Na narrativa clssica de Hollywood a velocidade de corte reduzida quando o espectador tem muitas hipteses alternativas e aumentada quando o nmero de hipteses possveis reduzido. Em Blade Runner o corte rpido empregado no incio do filme, num momento em que dzias de hipteses errticas do espectador so suspensas pelo processo narrativo. Isso demonstra que na coliso dos modos de narrativa clssica e potica o espectador induzido a desejar fechamento e conexes fceis, mas frustrado pelas dificuldades encontradas em faz-lo, frustrao que leva a narratividade e conceituao agressivas (Morrison, 1990: 7).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    15

    choque da colonizao espacial so soldados, assassinos, prostitutas e capatazes (Slade: 14).16 Afinal, como afirma Kerman, apesar da pouca informao que se tem em Blade Runner sobre as colnias Alm-Mundo (Off-World)17, parece claro que a expanso interplanetria do capital foi acompanhada de guerras coloniais (Kerman: 22). Produzindo equipamentos to essenciais atividade econmica das grandes corporaes, a Tyrrel Corporation pode ser considerada um modelo do capitalismo ciberntico (ibid.).

    A idia de que a produo de replicantes e a explorao espacial so atividades articuladas e

    complementares no processo de acumulao de capital corroborada por Harvey, para quem os replicantes

    so criados com o propsito especfico de desempenhar tarefas altamente qualificadas e em ambientes particularmente difceis nas fronteiras da explorao espacial [] dotados de foras, inteligncia e poderes que ultrapassam aqueles dos seres humanos ordinrios, [] projetados como ltimo tipo de fora de trabalho flexvel, altamente qualificada e de curto prazo [os replicantes de ltima gerao (Nexus 6) tinham uma vida til de quatro anos - MD].

    Para o autor, os replicantes constituem um exemplo perfeito de um trabalhador dotado de

    todas as qualidades necessrias s condies da acumulao flexvel (Harvey: 310). No de todo improvvel, como quer Harvey, que em 2019, com o aprofundamento da automao, o capital tenha levado s ltimas conseqncias sua tendncia recente de flexibilizar o processo produtivo. No entanto, absurda a identificao feita por Harvey (e outros crticos) dos replicantes com a fora de trabalho. E to mais absurda porquanto o autor escreve desde uma perspectiva marxista. Mas esta uma questo a ser tratada adiante, pois neste estgio cumpre incorporar outros aspectos do filme que delineiam as particularidades da ordem capitalista naquele futuro. A tendncia concentrao e centralizao do capital jamais cancela a possibilidade de combinao de grandes corporaes, assim constitudas, com redes mais ou menos complexas de pequenas e mdias empresas. Por essa razo, no h qualquer contradio quando, na LA de Blade Runner, o poder evidentemente avassalador das corporaes oligoplicas capitalistas convive com uma fervilhante produo em pequena escala (op. cit: 311). A articulao de escalas to dspares de produo expressa-se na terceirizao utilizada pela Tyrrel Corporation na produo dos replicantes, a exemplo dos olhos, produzidos no laboratrio criognico da pequena oficina de Chew, que, segundo outro autor, est localizada em uma espcie de favela (Kerman: 19). Por isso, pode-se admitir, como faz Kerman, que o modelo Nexus 6 fabricado geneticamente, mas em partes, o que

    16 De acordo com Kerman, os replicantes focalizados no filme tm as seguintes especificaes: um modelo de defesa, combate/colonizao (Batty); um mecnico de fisso nuclear para alimentar e lidar com lixo atmico (Leon); uma assassina poltica (Pris); uma prostituta militar (Zhora) (p. 22). Isso, sem mencionar Rachel, prottipo mais avanado de utilizao ainda indefinida. 17Optamos por traduzir a expresso Off-World colonies, usada em Blade Runner, por colnias Alm-Mundo, em lugar de colnias extraterrestres. Parece-nos que tal opo respeita o carter metafrico da expresso inglesa, que traa um evidente paralelo entre dois momentos da colonizao do capital: a colonizao do Novo Mundo (New World) e, em 2019, a colonizao do Alm-Mundo (Off-World). Nesta acepo, o capital agora oferece humanidade um novo mundo literalmente no Alm.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    16

    sugere mais um processo manufatureiro do que industrial (op. cit.) decerto por se tratar de um prottipo. Do mesmo modo, a produo de escamas da cobra artificial utilizada por uma das replicantes fornece outra ilustrao da existncia de uma rede industrial muito fragmentada combinando produo em grande escala e manufatura de pequeno porte. No obstante, a produo extremamente fragmentada est sem dvida subordinada a um controle central, como o demonstra, entre outras coisas, o nmero de srie das referidas escamas, atravs do qual foi possvel a Deckard, valendo-se da informao de outra pequena produtora, localizar seu fabricante rabe. Tal numerao subentende uma padronizao geral da produo e, mais do que isso, a identificao imediata de qualquer produtor. Assim, sob o aparente caos da produo de pequenos fabricantes sobressai uma organizao que regula e subordina a todos. O fato de o filme omitir qualquer referncia ao governo interpretada por alguns autores como evidncia de que as corporaes teriam em grande medida substitudo o governo no controle social. Neste sentido, para Harvey no filme manifesta-se a existncia opressiva de uma fora organizadora oculta: no evidente poder coercitivo das autoridades policiais que foram Deckard a retomar seu antigo ofcio de exterminador de replicantes; no rpido aparecimento dos poderes da lei e da ordem quando necessrio estabelecer o controle nas ruas. Em sntese, o caos tolerado justamente porque parece to pouco ameaador ao controle geral (Harvey: 311). Talvez Harvey devesse ter acrescentado que o caos tolerado precisamente porque a contrapartida da forma do controle total. A ausncia de controle direto, manifesto, o que legitima a forma de controle, certamente opaca e difusa, mas objetiva e concreta, que se realiza pelo movimento irregular e relativamente autnomo das partes. Ser preciso citar Marx sobre o controle direto (racional) nas fbricas (ordem) e o controle externo (irracional), indireto, sem prejuzo, no entanto, de sua efetividade, do mercado? Caos e ordem, irracionalidade e racionalidade so, afinal, a essncia mesma do mercado. Assim, a constatao de Harvey o caos tolerado porque parece to pouco ameaador ao controle geral ilustra por que, por um lado, a ideologia liberal pode caracterizar-se pela permissiva aceitao do existente e, por outro, pode justific-la em nome da produtiva espontaneidade resultante da suposta ausncia de controle. Postulaes que no so contraditadas pela interveno do controle e da represso ostensivos, pois que estes presumidamente dirigem-se to somente contra as aes que ameaam a ordem espontnea, annima do mercado.18 Outras indicaes do carter capitalista da sociedade de Blade Runner so, por exemplo, o anncio de algum tipo de aplicao financeira oferecendo a taxa juros de 36% (Kolb2: 160) supostamente ao ano, e a imagem de Mr. Tyrrel em sua cobertura, recostado em seu leito monumental, aplicando em aes por telefone. Ao que tudo indica, portanto, Mr. Tyrrel o dirigente mximo da Tyrrel Corporation e no simplesmente, como pensa Harvey (op. cit.: 309), o

    18 O sistema liberal atual bastante flexvel e transparente para adaptar-se s diversidades nacionais, mas bastante mundializado para confin-las pouco a pouco no campo folclrico. Severo, tirnico, mas difuso, pouco identificvel, disseminado por toda parte[] Seu domnio anima um sistema imperioso, totalitrio, em suma, mas, por enquanto, em torno da democracia e, portanto, temperado, limitado, sussurrado, calafetado, sem nada de ostentatrio, de proclamado. Estamos realmente na violncia da calma. (Forrester, 1996; 43/45).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    17

    engenheiro gentico responsvel pelo projeto dos replicantes. No s o especialista que domina os mistrios de seu ofcio engenharia gentica, mas o dirigente capitalista que conhece todos os segredos de seu negcio, os tcnicos e os financeiros. Por isso, est envolvido no projeto e desenvolvimento dos replicantes, mas cuida igualmente das finanas da corporao. De mais a mais, seguro presumir, mais amanh do que o hoje, que o capital, na medida do possvel, procure sempre se encarnar preferencialmente em sua forma mais perfeita e adequada, a de capital financeiro, forma que revela de imediato sua essncia e dispensa com os padecimentos por que passa o capital na esfera da produo.19 Se assim, a taxa de juros anunciada e as aplicaes financeiras de Mr. Tyrrel implicam no s uma estrutura industrial engrenada por grandes corporaes como subentendem, do mesmo modo, sua associao e concorrncia no plano financeiro. Mr. Tyrrel, alis, no deixa margem a dvidas quanto natureza capitalista de seu negcio ao revelar enfaticamente para Deckard: Commerce, more human than human, thats our motto. Lema este, da Tyrrel Corporation, repleto de significados. Significa que o comrcio a humanidade? Ou que a humanidade reduz-se ao comrcio? Ou que a mercadoria comercializada pela Tyrrel (a rplica do humano) mais humana do que o ser humano? Ou que, sendo o comrcio o contedo de sua atividade e, de resto, do humano, a Tyrrel faz comrcio de mercadoria e de dinheiro indiferenciadamente? Rachel, sendo um modelo mais avanado de replicante, pde formular com rara acuidade e poder de sntese o contedo da atividade da Tyrrel, em particular, e das corporaes, em geral. Replicante, fabricada pela Tyrrel, diz para Deckard: Im not in the business; I am the business. A Tyrrel, assim como as demais corporaes, fazem business, independente do que produzem rplicas de seres humanos ou outra mercadoria qualquer, ou mesmo quando no produzem. Business fazer do dinheiro mais dinheiro para, em seguida, tornar a fazer o mesmo. Este o insofismvel significado das palavras de Rachel, ainda que certos crticos, incapazes de perceber o que se passa no filme, por isso mesmo concedem-se a liberdade de criar suas prprias fices dentro da fico. Na interpretao de um desses crticos, Rachel, ao afirmar que o business, quer dizer a Deckard que o business deve predominar sobre o envolvimento pessoal (Heldreth: 43). Diante de tamanha barbaridade, h que se concordar que a obra de arte pressupe, de fato, um repertrio mnimo do pblico ao qual est dirigida, crticos includos.

    19 No capital produtor de juros, a relao capitalista atinge a forma mais reificada, mais fetichista. Temos nessa forma D-D, dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo sem processo intermedirio que liga os dois extremos. No capital mercantil, D-M-D, temos pelo menos a forma geral do movimento capitalista, embora se mantenha apenas na esfera da circulao e o lucro parea por isso uma mera decorrncia da venda; todavia, configura-se em produto de uma relao social e no em produto de uma simples coisa. [] O capital em sua marcha completa unidade de processo de produo e de circulao, proporcionando por isso determinada mais-valia em perodo dado. Na forma capital produtor de juros, esse resultado aparece diretamente, sem a interveno dos processos de produo e de circulao. O capital aparece como fonte misteriosa, autogeradora do juro, aumentando a si mesmo. [] O capital produtor de juros o fetiche autmato perfeito -o valor que se valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e nessa forma desaparecem todas as marcas de origem. A relao social reduz-se a relao de uma coisa, o dinheiro, consigo mesma. [] Torna-se assim propriedade do dinheiro gerar valor, do mesmo modo que dar pras propriedade de uma pereira (Marx, 1984, III/5: 450-1).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    18

    Se, como deixa patente o slogan da Tyrrel Corporation, o contedo de toda atividade econmica , em ltima anlise, o comrcio, ento natural que na LA de 2019, tanto quanto hoje, a propaganda seja uma indstria fundamental. Se, por um lado, vender a finalidade exclusiva do produzir, por outro, h uma relao apenas contingente, no necessria, entre produo e consumo. A venda determinando a produo, deve a produo determinar o consumo de modo a assegurar a venda. Nessas circunstncias, sendo o consumo, dizer, a satisfao de necessidades, o momento subordinado da espiral vendaproduovenda, evidente a importncia da indstria da propaganda. Indstria muito particular, a propaganda produz esta coisa intangvel que so os carecimentos dos consumidores, produz o consumo, alimento indispensvel movimentao da espiral. Muito justo, portanto, que na LA de Blade Runner haja milhes de sinais, informao para todo lado: faa isto, compre aquilo, assustada expresso de Philip K. Dick a indicar a saturao de anncios na LA do futuro. A profuso da publicidade tamanha que, na opinio de um crtico, vista do alto a cidade parece pouco mais do que um pano de fundo para comerciais (Kolb1: 154). H por toda parte imagens familiares de corporaes como PanAm, Coca-Cola, Budweiser, etc. (Harvey: 310); no alto de um prdio h um anncio luminoso de Kyoryoku Wakamoto, tradicional remdio para indigesto (Kolb2: 155). To importante quanto as propagandas corporativas a publicidade institucional arregimentando voluntrios para a colonizao espacial. Essa espcie de propaganda evidencia o estreito vnculo entre corporaes e governo. A colonizao espacial, atividade que mobiliza todas as energias das corporaes e governo(s), parece pouco atrativa para os habitantes de LA, no obstante as aviltantes condies de vida na Terra. Da a necessidade da providencial interveno da propaganda, provavelmente patrocinada por uma associao entre governo(s) e empresas. Especializada na programao de comportamentos, gostos, etc., ou, como sugere Baudrillard, na produo de um cdigo mental e comportamental dos indivduos (vide seo 1 acima), a propaganda corporativo-institucional trata de apregoar, dourando o falso como de costume, as maravilhas e vantagens da vida Alm-Mundo. Outdoors flutuantes com gigantescas telas sobrevoam a cidade exaltando incessantemente as oportunidades abertas para os imigrantes nas colnias Alm-Mundo. As telas anunciam um futuro brilhante, uma vida com mais espao, mais limpa, com ar mais puro, etc.; coadjuvando, alto-falantes reforam a manipulao louvando as vantagens da emigrao: uma nova vida espera por voc nas colnias Alm-Mundo; a chance de comear de novo em uma terra dourada de oportunidades e aventura; novo clima e facilidades recreativas; ganhe de graa um(a) companheiro(a) leal e cabea fresca logo na chegada; use seu novo amigo(a) como um(a) incansvel servial de cama e mesa o(a) humanide replicante geneticamente fabricado(a) sob encomenda especialmente para atender s suas necessidades (Kolb2: 155). Como observa Slade, o lixo acumula-se nas ruas de LA, mas a propaganda garante que o capital propicia oportunidades admirveis (Slade: 14) no Alm-Mundo.20 Em seu permanente e espasmdico movimento de expanso, o capital sempre anuncia uma nova vida. No primeiro espasmo rumo colonizao do mundo, prometeu o Novo Mundo. Colonizado o mundo, o que resta em 2019 o Mundo nico, exaurido pelo capital. Desse modo, esgotadas e, sobretudo, desmistificadas as recorrentes promessas

    20 Deckard ctico aos incessantes anncios. Pois, afirma, estes seriam de todo dispensveis se o Alm-Mundo fosse de fato uma grande oportunidade (Kolb1: 144).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    19

    de uma vida terrena melhor, humanamente decente, o capital promete agora o paraso no Alm, literalmente. Sabemos que a sociedade de Blade Runner capitalista e que, ademais, dominada por corporaes cuja dimenso corresponde escala csmica de suas atividades. No entanto, preciso recordar que no filme apenas uma corporao vem caracterizada com algum detalhe, a Tyrrel, produtora de replicantes. Naturalmente, de todo trivial o emprego metafrico da Tyrrel Corporation: os replicantes so a representao figurada de uma forma da produo social em que objeto produz o sujeito e o sujeito aperfeioado. Porm, como pudemos mostrar na seo 2 acima, grande parte dos crticos de opinio que Blade Runner , antes de tudo, uma extrapolao lgica da sociedade contempornea. Se assim, ento a metfora no pode ser o artefato bsico empregado na construo do filme, e do qual tem que partir a interpretao. Em outras palavras, se o filme tenciona construir um futuro com base em tendncias reais que operam na sociedade capitalista, ento a imagem deste futuro no pode ser encarada como uma simples figurao de natureza metafrica, a partir da mercadoria produzida pela Tyrrel. Ilustra este ponto de vista a seguinte declarao do diretor R. Scott:

    [] o que acontece se nas prximas dcadas grandes monoplios tornam-se to poderosos quanto o governo? Eles entrariam em todos os tipos de indstrias eventualmente na gentica. Ento voc chega a um ponto no qual a gentica acaba desenvolvendo o primeiro man-made man. Acho que isso poderia ocorrer nos prximos 12 ou 15 anos. A partir da voc pode facilmente desembocar na criao de uma gerao de segunda classe para fazer coisas que eu e voc normalmente no faramos, ou que psicologicamente no poderamos suportar Voc pega um humanide e d uma mexida em seu crebro, pode manipul-lo em funo de algumas caractersticas psicolgicas desejadas, e ele estar pronto para viver bem feliz (Scott, apud Kerman: 20).

    Como sublinhado no incio deste trabalho, Scott errou por pouco na estimativa, pois a clonagem da ovelha deu-se 15 anos aps a entrevista e dela para a clonagem humana aparentemente no h obstculos tcnicos substantivos. Claro que da para a criao de uma gerao de segunda classe existe uma enorme distncia, mas, como pretendo indicar abaixo, at a preservao deste humano estiolado pode vir a ser dispensvel. Vale dizer, elaborando sobre as mesmas tendncias correntes utilizadas por Scott, possvel mostrar que a sua viso de futuro, apesar de terrificante, ainda assim otimista.

    Comrcio, lucro, business sempre importante recordar o slogan da Tyrrel , so more human than human. Espcie de verso radicalizada, ou melhor, franca e explcita, da idia corrente de que o mercado a forma definitiva da sociabilidade humana, inultrapassvel. De outro lado, o slogan apenas reafirma o que j se sabe: o capital no se subordina s necessidades dos sujeitos humanos. Possui a sua prpria lgica. A distino fundamental, no entanto, neste futuro do capital delineado no filme, consiste em que esta indiferena por princpio, terica, em relao ao humano parece estar em vias de se completar. Este o significado mais essencial do slogan. Pois se a companhia, provavelmente a exemplo de outras, produz meta-humanos, ento da lgica da infinita auto-expanso do capital parece resultar uma produo de meta-humanos em volume necessariamente crescente. O capital em sua totalidade produz e reproduz uma humanidade

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    20

    melhorada, de acordo com seus critrios. Substitui, neste movimento, a humanidade natural por uma humanidade de sua lavra. Por isso, o capital more human than human: produdo humano mas transcende esta condio, porque j realizou por completo a inverso entre sujeito e objeto teorizada por Marx.

    Se esta a lgica do objeto, parece evidente que o futuro distpico de Blade Runner, apesar de tudo, no fundo otimista. Pois o capital, aps ter promovido a desantropomorfizao de tudo, do processo de trabalho, da produo social, no teria razo para conservar a antropomorfizao do produto (ser humano) sob a forma de replicante. Novas formas de produto, mais funcionais, desantropomorfizadas, so a conseqncia necessria, desfecho do processo. O produto antropomorfizado sob a forma de replicante explica-se, num primeiro momento, pela fixao do capital com a forma, por um lado, e com a produo para consumo, por outro. Neste ltimo caso, a existncia deste produto da engenharia gentica, produto para consumo (sexo, trabalho domstico, etc.) pressupe existncia de demanda, ou seja, dos seres humanos. Eliminados estes, por redundantes para a acumulao de capital, desaparece a demanda. E no se justifica mais a forma humana do produto. No se deve imaginar que estas circunstncias escaparam da direo de Blade Runner, e se trata de mero enredo do autor do ensaio. Ao que tudo indica, o diretor R. Scott chegou a cogitar originariamente em expor o Dr. Tyrrel como replicante (Francavilla: 12). E uma pena que tenha deliberado o contrrio. No obstante, o fato de ter ventilado tal alternativa mostra, sem sombra de dvidas, as inmeras possibilidades que se desdobram da simples, mas acurada, apreenso da lgica do objeto. Pois, no contexto da fico, nada haveria de absurdo em representar o capital, ou um capital singular, dirigido (representado) por um replicante. Ou representar o capital corporativo num estgio em que dispensa literalmente a pessoa (humana) do capitalista. Em tal estgio, a separao entre propriedade e gesto do capital, sempre apresentada como democratizao do capital, teria tomado rumo diverso menos absurdo, alis. O objeto j produziria a inteligncia, encarnada sob qualquer forma, como sugerido acima, adequada a sua auto-gesto. Naturalmente, toda esta interpretao de Blade Runner fundamenta-se na idia de que a lgica do capital indiferente aos interesses humanos. E muitas vezes os contraria em absoluto. Defende-se aqui a idia de que isto o que explica o impacto do filme. Porm, nem todos se sentem confortveis com tal interpretao. Parecem achar inconcebvel que a produo social possa negligenciar a tal ponto o humano e, no limite, suprimi-lo. Geralmente tais crticas levantam dvidas quanto plausibilidade de certos aspectos do filme. Em um desses casos, diante da produo de replicantes, o crtico indaga se a parte mais apta e brilhante da populao terrestre, isto , humana, migrou para as colnias Alm-Mundo, permanecendo na Terra apenas a escria humana, e se este fato no deixou a economia abalada (Carper: 188). Sob estas e outras questes aparentemente lgicas, sob tal demanda de coerncia, entretanto, esconde-se uma total incompreenso dos crticos da natureza da realidade tematizada pela fico. A questo no se os mais aptos e brilhantes emigraram. Variedade de darwinismo social dissimulada sob a forma de anlise crtica, que sequer se pergunta o sentido de um sistema social que produz escria humana em escala crescente. O tema fundamental do filme, tanto em sua configurao geral como em

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    21

    inmeras passagens, em especial na ostensiva propaganda enaltecendo a vida Alm-Mundo, que a economia no funciona para proporcionar uma vida humana para os indivduos humanos, nem aqui na Terra nem Alm-Mundo. Por isso, se os mais aptos e brilhantes emigraram, certamente foram ludibriados. Muito menos cuida o filme de interrogar se a economia da terra est abalada, em crise, etc. O que mostra, com clareza gritante, que a economia retratada a nossa, e por isso a reconhecemos de pronto funciona desta forma, devastando e, ato contnuo, colonizando outros espaos. O decadente, poludo, devastado, capital j amortizado. Valor que migrou para outras regies. Valoriza-se de outra forma. esprito que migrou para outros corpos e abandona os antigos como velhas carcaas imprestveis. fuga de capital em escala csmica. capital fugindo do trabalho e, no limite, do humano. Por no compreender este mnimo, o crtico apega-se a detalhes suprfluos para acusar a fico de implausvel. Como se a fico tivesse que ser um modelo irretocvel do futuro. Nesta fixao por mincias, Carper menciona o prdio da Tyrrel, de 700 andares, para cuja construo, segundo ele, seria necessria uma revoluo social maior do que a ocorrida com a construo dos primeiros edifcios (ibid.). Deixando de lado o fato, polmico, alis, de se de fato houve uma revoluo social em conseqncia da construo dos primeiros edifcios, difcil saber o que pretende o crtico com estas questes de pormenor. Se ele no acha revoluo suficiente a colonizao do espao, a produo de humanides para tarefas especiais e outras nem tanto! , complica-se a tentativa de apresentar contra-argumentos. Se possvel para uma companhia como a Tyrrel monitorar da Terra a explorao de colnias extra-terrestres, qual a dificuldade em administrar um edifcio, mesmo que de 700 andares? Se a Tyrrel oferece aos emigrantes para Alm-Mundo um(a) servial de cama e mesa, que problema poderia existir em produzir qualquer espcie de robs, genticos ou mecnicos, para operar o prdio? Carper, alm do mais, insurge-se contra o excesso de espao ocupado por Tyrrel. E pergunta por que haveria ele de necessitar de tanto espao a ponto de no liberar nem um pouco para a oficina de Chow (oficina criognica responsvel pela manufatura dos olhos dos replicantes). Francamente, seria de se perguntar ao crtico por que o Mike Tysson necessita de uma casa com 6 cozinhas? (Se no me trai a memria). Numa espcie imaginada de golpe de misericrdia, e porque nem sequer suspeita que o filme sugere que o capital funciona ou poderia funcionar sem capitalista, Carper indaga se a corporao (Tyrrel) de fato existe. Dvida pondervel, segundo ele, porque os trs nicos empregados da Tyrrel mostrados no filme (o prprio Mr. Tyrrel, Sebastian e Chow) morrem. Se todo mundo morreu, conclui triunfante, de se imaginar se a prpria Tyrrel no desaparece como um deus cujos seguidores morreram (ibid.). Como se v, tarefa das mais complexas realizar um filme para um crtico to obtuso. Ningum ignora hoje que o capital tende a tornar o trabalho redundante. Muito alm da retrica vazia dos planos oficiais para garantir e expandir o emprego, a dura realidade emprica do desemprego, do subemprego, do emprego precarizado, trata de comprovar dramaticamente uma notcia terica das mais antigas para alguns, no obstante isso, antiquada. Se esta uma tendncia do capital no surpreende que no futuro de Blade Runner sua manifestao seja clamorosa. Nas

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    22

    sufocantes cenas de rua, a impresso de uma multido de indivduos excedentes, as ruas fervilham com orientais, hispnicos e punks (Kerman: 1). Sabemos por experincia prpria, brasileira, que o desemprego faz da populao uma populao de ambulantes. A camelotizao da populao e o termo impe-se, pois h que se designar no uma ou outra ocorrncia, mas um processo , compe, com a misria e a apatia, resultante de um sentimento de inutilidade introjetado,21 a manifestao exterior do desemprego. E para caracterizar tal estado de coisas, Blade Runner, outra vez valendo-se de admirvel economia de meios, no precisa de mais do que algumas rpidas cenas. Por isso, assim como a maioria dos espectadores, os crticos no podem fugir ao impacto da fora expressiva do filme neste particular. Para Kerman, o paradoxo mais impressionante a sensao de superpopulao nas ruas, apesar dos prdios abandonados insinuarem que no h dficit habitacional. E, embora tenha afirmado um pouco antes, como vimos, que a direo do filme no pretendera fazer um filme marxista, concede a Marx, ao menos, a originalidade de ter indicado a natureza irracional do capital:

    o conceito marxista de contradio refere-se exatamente a tais desenvolvimentos sociais irracionais. Na verdade, uma opinio bsica do marxismo que tais contradies so inevitveis no capitalismo. Prosperidade fundada no desemprego crescente e na subutilizao da capacidade produtiva. Em Blade Runner, a cidade repleta, porm subpovoada, no de todo improvvel, muito embora permanea paradoxal ao olhar humano ou estritamente lgico (Kerman: 17).

    Naturalmente, poder-se-ia acrescentar que, neste caso, o que no lgico no lgico mesmo. Muito menos humano, ao olhar humano. De todo modo, a interpretao de Kerman tem o mrito de indicar que Blade Runner apenas projeta a tendncia do capital a tornar suprfluo o trabalho e, consequentemente, as pessoas.22 E citar Marx neste caso compulsrio, mesmo quando dissimulado, de modo deliberado ou no, por um estilo casual de citao. Mais adiante se vai ver que a perspiccia da crtica naufraga ao transitar das matrias concretas propostas pelo filme para uma interpretao especulativo-generalizante de cunho moral. Ao que parece, resultado da j mencionada interdio a Marx. Apesar da clareza e simplicidade com que abordado no filme, o trabalho ou o seu possvel futuro sob o capital tem suscitado interpretaes que, a nosso ver, constituem verdadeiras fices sobre a fico. Ms fices, aduza-se. Nem mesmo David Harvey, famoso autor marxista, parece-me escapar desta tendncia. Para ele, em seu aspecto geral, a Los Angeles do filme exacerba os efeitos da terceiro-mundializao corrente da cidade: sistemas de organizao do trabalho semelhantes aos dos pases do Terceiro Mundo e prticas disseminadas de trabalho informal (Harvey: 311). Por si s, esta caracterizao j representaria um futuro nada promissor para o trabalho, uma vez que o capital prometeria nada menos do que a terceiro-mudializao dos seus

    21 Sobre os efeitos do desemprego sobre a auto-estima, ver (Forrester, 1997: 18 pp.). 22 Tantas vidas encurraladas, manietadas, torturadas, que se desfazem, tangentes a uma sociedade que se retrai. Entre esses despossudos e seus contemporneos, ergue-se uma espcie de vidraa cada vez menos transparente. E como so cada vez menos vistos so chamados de excludos. [] dessa maneira que se prepara uma sociedade de escravos, aos quais s a escravido conferiria um estatuto. Mas para que se entulhar de escravos, se o trabalho deles suprfluo? Ser til viver quando no se lucrativo ao lucro? (Forrester, 1996: 15).

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    23

    espaos mais exemplares. A isso se acrescentaria, naturalmente, a produo de replicantes, direta e imediatamente vinculada superfluidade do trabalho. No entanto, ao considerar os replicantes, em lugar de conceb-los como o que so, isto , mercadorias, produtos do capital, Harvey identifica-os, talvez induzido por sua forma humana, como trabalhadores. Sendo produtos, os replicantes obviamente s podem ser ou meio de consumo ou meio de produo. No primeiro caso, tal como explicitamente ventilado no filme, so usados como utilidades domsticas (bens de consumo durvel (?)) ou como objetos sexuais. No segundo, ainda de acordo com o filme, funcionam como instrumentos de trabalho. Neste caso, enquanto funcionam realizam trabalhos, j que possuem a forma humana. Porm, embora se diga que os animais de carga trabalham, nem por isso se transformam em trabalhadores nem so com estes identificados. Pelo contrrio, a expresso besta de carga acusa justamente a situao oposta, na qual a atividade reduz o indivduo humano a condies subumanas, animalescas.

    Harvey sabe, sem dvida, que os replicantes so produto do capital. Afirma que so projetados como ltimo tipo de fora de trabalho flexvel, altamente qualificada e de curto prazo, perfeito exemplo, agrega, trabalhador dotado de todas as qualidades de adaptao necessrias s condies da acumulao flexvel (Harvey: 310). Apesar disso, julga que os replicantes se revoltam contra o tipo de trabalho escravo que desempenham e contra a durao de sua vida. Mas, enquanto produtos do capital, no podem ser considerados escravos. Animais e mquinas no entram com o capital numa relao de escravido. A escravido, enquanto categoria, pressupe a subjugao do igual, de um ser humano por outro ser humano - de tal forma que sua humanidade negada.23 Nem mquinas nem animais so seres humanos constituindo notria exceo, por suposto, a humanidade do cachorro do Magri, impagvel ministro do inesquecvel presidente!

    Os replicantes poderiam ser considerados escravos somente admitindo-se a hiptese de que

    so seres humanos, tendo-se em conta, pelo que se depreende do filme, que no recebem salrios. Salrio um custo, mas nem todo custo salrio. Se no so trabalhadores assalariados, os replicantes so escravos ou equipamentos. A sua humanidade, no entanto, est longe de ser pacfica. Enquanto produtos, so produzidos, manufaturados, com determinadas finalidades. Porm, qual o propsito da humanidade manufaturar a humanidade, sobretudo quando, segundo consta e o filme cuida de mostrar de forma cristalina, h excesso de humanos no mundo? Portanto, parece que no a humanidade que manufatura o seu duplo. E se no h sentido na humanidade produzir seu duplo, mas este produzido, ento o filme subentende uma produo social cuja finalidade est perdida para o sujeito, justamente o tema central da anlise de Marx sobre a produo regida pelo capital. Os replicantes no so humanos, so produto do capital, mercadoria, constituem produo estranhada e, por isso, no tm que ter sua presumida humanidade, como querem alguns crticos, reconhecida. Se o sentido dos mais prosaicos produtos do capital est perdido para os sujeitos, como podem estes mesmos sujeitos, a humanidade, reconhecer a finalidade da produo de seu duplo?

    A forma humana dos replicantes responde por outras iluses da crtica. Iluses tambm presentes nas digresses oferecidas em resposta a questes polticas e morais presumidamente

    23 Slave a human being who is owned as property by, and is absolutely subject to the will of, another; [and] divested of all freedom and personal rights. Websters New World Dictionary, Third College Edition, 1994.

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    24

    suscitadas pelo filme. A declarao do diretor do filme de que as maiores corporaes poderiam usar a engenharia gentica para produzir cidados de segunda-classe para trabalhos arriscados no espao, trabalhos que os seres humanos seriam incapazes de suportar, pe de imediato, para uma crtica, questes polticas. Afinal, indaga, os replicantes so mquinas ou so escravos? Quais so as implicaes polticas e morais em criar pessoas que no tm liberdade? Questes que, de acordo com ele, concernem diretamente relao da tecnologia com a poltica e a moralidade na idade da engenharia gentica (Kerman: 23). A este tratamento abstrato da tecnologia segue-se, como seria de se esperar, o tratamento abstrato dos direitos humanos. Assim, como tm a figura humana, os replicantes lembram ao crtico de se perguntar se eles teriam direitos humanos. Se so escravos, por definio no os possuem. E a prpria Kerman responde: os replicantes, seres sensveis e conscientes, foram criados como escravos para livrar os homens de serem escravos. Mas, indaga-se, onde no filme est dito, mostrado, ou ao menos sugerido, que os replicantes foram criados para libertar os seres humanos? A empatia pelos replicantes prossegue: as colnias Alm-Mundo podem ser um paraso para os humanos, mas so claramente um campo de escravido para os replicantes (ibid.: 21-2). Em um filme no qual, de acordo com a prpria Kerman, uma enorme massa de humanos desvalidos literalmente excedente e, nesta condio, longe est de ter direitos, a crtica mobiliza-se pelos direitos humanos dos replicantes. Se em Blade Runner vive-se, nas palavras da crtica, na sociedade do controle total corporativo-estatal, faz algum sentido perguntar sobre os direitos humanos, de humanos ou de replicantes? Se o universo o espao infinito de acumulao do capital, se a propaganda arregimenta os incautos para emigrao alm-mundo, lcito concluir que as corporaes funcionam para propiciar o paraso extraterrestre para os humanos? De todo modo, essas incongruentes e supostamente humansticas inquietaes no constituem privilgio de Kerman. Muitos comentadores preocupam-se, com sincera gravidade, com o fato de os replicantes, quase-humanos, trabalharem como escravos (Mas, os equipamentos, no importa se produzidos geneticamente, so mesmo escravos? E as geladeiras? Escravizamos geladeiras e liquidificadores?) e serem programados para viverem apenas quatro anos. Para Francavilla, por exemplo, enquanto vida artificial os replicantes levantam srios problemas morais relativos aos direitos que tais seres deveriam possuir. No tm virtualmente direito vida, liberdade ou busca de felicidade. Tm menos direitos do que crianas e animais domsticos, e no tm ningum que os represente ou defenda seus direitos (Francavilla: 9-10). Mas, o que dizer sobre os problemas morais postos pela massa indiferenciada de corpos vagando sem rumo pelas ruas? Para se ter idia do grau de sandice dessas anlises crticas, bastaria perguntar por que estariam ento os humanos, concedendo-se que as hordas exibidas no filme conservam ainda algo de humano, preocupados com a competio representada pelos replicantes? J no teriam percebido os habitantes da Los Angeles do futuro, desta sociedade multi-racial, que os problemas do desemprego nada tm a ver com o afluxo de populaes adventcias? Ou ser que o crtico, inadvertidamente, transporta para o futuro o pavor atual que causam nos EUA os emigrantes latinos, asiticos, etc.? Por outro lado, se a tecnologia fugiu ao controle, como afirmado pelo prprio Francavilla, no significa isso que a produo de replicantes, produtos da tecnologia esta categoria abstrata empregada pelo crtico, praticando a usual hipstase da tecnologia sob os auspcios do capital , j no leva em conta os interesses humanos. Se assim, por que, ento, haveria de existir uma

  • TrabalhoNecessrio www.uff.br/trabalhonecessario; Ano 8, N 10/2010.

    25

    legislao para impedir a competio dos replicantes? (ibid.). Ademais, se estas circunstncias que denegam os sujeitos humanos constituem, na fico, mero desenvolvimento da economia regida pelo capital e de sua forma de existncia na esfera poltica, a democracia liberal, que sentido pode ter a observao de que aos replicantes sonegada a representao poltica (parlamentar)? Se no h mais direitos, como reclamar direitos para os replicantes? Enfim, caberia perguntar aos crticos to mobilizados em definir a natureza humana dos replicantes e seus direitos: e os humanos humanos que, aparentemente (e no somente no filme), no tm acesso sequer ao trabalho escravo dos replicantes? Por que no tocam a sensibilidade dos crticos? Por que, afinal, as questes morais so sempre levantadas sobre os direitos dos replicantes, enquanto o mundo de misria, de vazio, de caos, poluio, no qual os humanos humanos vivem suas abandonadas vidas merecem no mximo comentrios descritivos de assptico distanciamento? O aprofundamento da estratificao da sociedade seria outra questo poltica, de acordo com os crticos, aflorada pelo filme. Aparentemente, uma certa estratificao social parece ser considerada natural e necessria salutar, diramos para os crticos. E no futuro de Blade Runner esta justa medida intoleravelmente ultrapassada. E no se deve pensar que falta aos crticos sintonia com as questes do momento. Ao contrrio, o problema do aprofundamento da estratificao social est na ordem do dia. Aps dcadas de contra-revoluo conservadora, nutrida pela sistemtica e unssona difuso, por parte dos liberais-democratas, da idia de que no h alternativas,24 os mesmos liberais parecem alarmados com o aprofundamento da estratificao social nas ricas demo