Capitães da Areia [trecho]

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Leitura Publicado em 1937, o romance Capitães da Areia trata de um grupo de meninos pobres, moradores de rua, que perambulam pela cidade de Salvador e entregam-se a pequenos furtos para sobreviver. No trecho que você lerá, aparece a personagem Dora, uma menina órfã de 14 anos, que se juntou ao bando de Pedro Bala. Esse bando era chamado Capitães da Areia porque o cais era o lugar onde viviam. A menina Dora queria ser um dos meninos do bando, mas eles a viam como irmã e como namorada. Dora , irmã e noiva Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por calças que deram a Barandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo, estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com uma corda, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como um menino, um dos Capitães da Areia. No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer: Tu tá gozada... Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir. Não ta direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer. O assombro dele não teve limites: Tu não quer dizer... Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase. ... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas... Isso mesmo sua voz estava cheia de resolução. Tu endoidou... Não sei por quê. Tu não ta vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem. Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino. Pedro Bala procurou o que responder: Mas a gente veste calça, não é saia... Eu também e mostrava as calças. De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou: Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu? É igual. Te metem no Orfanato. Tu nem sabe o que é... Tem nada, não. Eu agora vou com vocês. Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado. Por isso ainda disse: Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um... Tu já viu uma mulher fazer o que homem faz? Tu não aguenta um empurrão... Posso fazer outras coisa. Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem que tivesse medo dos resultados. Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, nas lareiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se

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Leitura

Publicado em 1937, o romance Capitães da Areia trata de um grupo

de meninos pobres, moradores de rua, que perambulam pela cidade de

Salvador e entregam-se a pequenos furtos para sobreviver.

No trecho que você lerá, aparece a personagem Dora, uma menina

órfã de 14 anos, que se juntou ao bando de Pedro Bala. Esse bando era

chamado Capitães da Areia porque o cais era o lugar onde viviam. A

menina Dora queria ser um dos meninos do bando, mas eles a viam como

irmã e como namorada.

Dora, irmã e noiva

Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser

totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por calças que deram a

Barandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para

o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo, estavam grandes

para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com

uma corda, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não

fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como

um menino, um dos Capitães da Areia.

No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de

Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto

rir. Por fim conseguiu dizer:

— Tu tá gozada...

Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.

— Não ta direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu

tomo parte no que vocês fizer.

O assombro dele não teve limites:

— Tu não quer dizer...

Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.

—... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...

— Isso mesmo — sua voz estava cheia de resolução.

— Tu endoidou...

—Não sei por quê.

— Tu não ta vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra

menina. Isso é coisa pra homem.

— Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.

Pedro Bala procurou o que responder:

— Mas a gente veste calça, não é saia...

— Eu também — e mostrava as calças.

De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela

pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:

— Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?

— É igual.

— Te metem no Orfanato. Tu nem sabe o que é...

— Tem nada, não. Eu agora vou com vocês.

Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com

aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado. Por

isso ainda disse:

— Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...

— Tu já viu uma mulher fazer o que homem faz? Tu não aguenta

um empurrão...

— Posso fazer outras coisa.

Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem

que tivesse medo dos resultados.

Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já

não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos

becos, nas lareiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada.

Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e

Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se

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babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de “meu

irmão”. O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a

ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão

valente como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto:

— É valente como um homem...

Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de

carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele maternal que ela tinha para

os menores e para os mais tristes, Volta, Seca, Pirulito. Tampouco um olhar

fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a

ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ele lançava a

Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem

que dizia na porta de uma loja:

— Ladrão! Ladrão! Me furtaram...

Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava.

Professor ouve os elogios de João Grande, mas não sorri.

[...]

AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 76ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1993. pp.162-163.