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Página67 CANTANDO A VÁRIAS VOZES NA ESCOLA: A PRESENÇA DAS AFRICANIDADES NA MÚSICA E NA DANÇA. Denise Andrade de Freitas Martins; Claudia Foganholi Alves. Apoio: CAPES Resumo: O presente artigo discute a possibilidade da abordagem da música e da dança africana como estratégia de reconhecimento e valorização da história e cultura africana na escola, com o objetivo de comunicar a possibilidade de abordar os aportes de africanidades na escola e a presença das artes como uma estratégia para a implementação das Leis Federais 10.369/2003 e Lei 11.769/2008. Dessa forma, apresentamos uma intervenção com música e dança africana em uma escola brasileira de educação básica, localizada no estado de Minas Gerais, com crianças entre nove e onze anos de idade, realizada em sete encontros com as seguintes atividades: conversas sobre a África, contação de história, construção de instrumentos, práticas de música e dança africana, aplicação de questionário e apresentação musical. De natureza qualitativa, os encontros foram registrados em diários de campo, posteriormente analisados com base nos referenciais metodológicos da Fenomenologia. Os resultados indicaram a presença da inseparabilidade da música e da dança africana e seu potencial de mobilização para o envolvimento das crianças. As atividades realizadas pelas/os participantes foram permeadas por um ambiente de colaboração, comunicação, lideranças, aprendizagens e cuidados pessoais. Conviver com crianças em práticas sociais que envolvem música e dança africana na escola pode ser uma forma de aproveitar significativamente o potencial formador da arte e favorecer o conhecimento e reconhecimento da cultura e história do povo africano, consequentemente da nossa formação intercultural, cujas contribuições devemos igualmente anunciar. Palavras-chave: Práticas sociais e processos educativos; Africanidades; música e dança. Introdução Ligada a variadas situações do cotidiano, a música e a dança estão presentes nos mais remotos registros da história da humanidade. No continente africano, a música frequentemente acompanha as dinâmicas da vida nas comunidades, relacionando-se à diversas atividades sociais como o nascimento de uma criança, a despedida de visitantes, a preparação da terra e a celebração da colheita. Nas culturas africanas, marcadas fortemente pela transmissão oral de conhecimentos e saberes, a música e a dança estão interligadas e são carregadas de

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CANTANDO A VÁRIAS VOZES NA ESCOLA: A PRESENÇA DAS

AFRICANIDADES NA MÚSICA E NA DANÇA.

Denise Andrade de Freitas Martins;

Claudia Foganholi Alves.

Apoio: CAPES

Resumo:

O presente artigo discute a possibilidade da abordagem da música e da dança africana

como estratégia de reconhecimento e valorização da história e cultura africana na

escola, com o objetivo de comunicar a possibilidade de abordar os aportes de

africanidades na escola e a presença das artes como uma estratégia para a

implementação das Leis Federais 10.369/2003 e Lei 11.769/2008. Dessa forma,

apresentamos uma intervenção com música e dança africana em uma escola brasileira

de educação básica, localizada no estado de Minas Gerais, com crianças entre nove e

onze anos de idade, realizada em sete encontros com as seguintes atividades: conversas

sobre a África, contação de história, construção de instrumentos, práticas de música e

dança africana, aplicação de questionário e apresentação musical. De natureza

qualitativa, os encontros foram registrados em diários de campo, posteriormente

analisados com base nos referenciais metodológicos da Fenomenologia. Os resultados

indicaram a presença da inseparabilidade da música e da dança africana e seu potencial

de mobilização para o envolvimento das crianças. As atividades realizadas pelas/os

participantes foram permeadas por um ambiente de colaboração, comunicação,

lideranças, aprendizagens e cuidados pessoais. Conviver com crianças em práticas

sociais que envolvem música e dança africana na escola pode ser uma forma de

aproveitar significativamente o potencial formador da arte e favorecer o conhecimento e

reconhecimento da cultura e história do povo africano, consequentemente da nossa

formação intercultural, cujas contribuições devemos igualmente anunciar.

Palavras-chave: Práticas sociais e processos educativos; Africanidades; música e

dança.

Introdução

Ligada a variadas situações do cotidiano, a música e a dança estão presentes nos

mais remotos registros da história da humanidade. No continente africano, a música

frequentemente acompanha as dinâmicas da vida nas comunidades, relacionando-se à

diversas atividades sociais como o nascimento de uma criança, a despedida de

visitantes, a preparação da terra e a celebração da colheita.

Nas culturas africanas, marcadas fortemente pela transmissão oral de

conhecimentos e saberes, a música e a dança estão interligadas e são carregadas de

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informações sobre o modo de viver dos grupos que dançam e entoam canções, com suas

histórias sobre suas relações com a natureza, o trabalho e os seus antepassados. A

música e a dança são ainda as linguagens usadas para o divertimento e fruição da

relação entre as pessoas e entre elas e seu tempo e espaço, agregando-as e/ou por vezes

indicando os aspectos que caracterizam a comunidade, contribuindo para o

reconhecimento do pertencimento ao grupo enquanto tocam, cantam, dançam ou

participam desse momento de fruição dos sons e movimentos gerados.

Ao falarmos das culturas africanas, os tambores são importantes representações

de sua musicalidade, no entanto a música no continente africano não é constituída

apenas de tambores, mas de muitos outros instrumentos, com rítmicas diversas, riqueza

de timbres e melodias das mais sofisticadas que nos são ocultadas pelo pensamento

eurocêntrico1 de valorização e hierarquização da sua própria cultura em detrimento da

dos outros povos.

Um exemplo da exuberância musical do continente africano é o canto realizado

a várias vozes, ou seja, cantado em alturas diferentes e ao mesmo tempo, presente

também na música de diversos outros povos desde tempos ancestrais até hoje. Existem

registros de que esse modo de cantar já era praticado entre os pigmeus do Gabão e nas

aldeias do Himalaia antes de se difundir na Europa. (WISNICK, 1989).

Embora praticada por muitos povos desde a antiguidade, essa forma de cantar a

várias vozes recebeu no ocidente europeu o nome de polifonia. O termo, que surge no

contexto da música religiosa católica, não apenas atribuiu um nome ao que já existia,

mas conferiu à igreja a condição de inventora dessa prática, da mesma maneira que o

pensamento eurocêntrico fez com tantos outros conhecimentos/invenções da

humanidade.

Nos anos 1000-1100 d. C. a palavra contraponto, do latim punctus versus

punctus, começou a ser usada no Ocidente para designar a música religiosa cantada a

várias vozes, pois até então se cantava a uma só voz, em latim, sem acompanhamento

instrumental e apenas os homens o faziam. Neste modo de cantar, as várias vozes se

sobrepunham a partir de uma voz base, que era o tenor. Cantar a várias vozes resultava

1Henrique Dussel (2007) chama de eurocêntrica a forma de compreender a realidade tomando como

centro histórico-geográfico as culturas europeias, sejam elas localizadas na própria Europa, sejam

transplantadas para outros países, tais como EUA, Austrália, África do Sul.

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em um tecido musical polifônico, ao contrário da monodia tão em voga na Europa nos

séculos anteriores. O advento da polifonia não era novidade nem mesmo no ocidente

europeu, pois já existia em alguns lugares da Europa antes de ser descrita como tal na

música litúrgica (GROUT; PALISCA, 1988).

Dessa forma, o termo contraponto nos sugere uma coerência com o pensamento

eurocêntrico, enquanto paradigma fundado em uma pretensa superioridade de sua visão

de mundo, coerente com a proposta de sobreposição de vozes, que implica na existência

de hierarquias, além disso, nos parece uma forma limitada de compreender a polifonia,

representando mais precisamente a polifonia na música da Europa ocidental.

Estas reflexões sobre os componentes ideológicos e paradigmáticos do

eurocentrismo nos fizeram abandonar uma ideia inicial de que a abordagem das

africanidades na escola pudesse ser representada metaforicamente pela polifonia,

sugerindo o canto a várias vozes nos componentes curriculares brasileiros e dessa

forma, propondo uma mudança no cenário onde apenas as vozes europeias e

estadunidenses ecoam. Nas escolas brasileiras, como consequência de nossa

colonização ainda nos dias de hoje os conteúdos europeus e estadunidenses representam

uma quase homogeneidade.

Nesse artigo sugerimos que a abordagem das africanidades na escola agregue

pontos de vistas diferentes, mas sem sobrepor vozes ou hierarquizar conhecimentos e

saberes, buscando consonâncias harmônicas. O objetivo desse artigo é o de comunicar a

possibilidade de abordar os aportes de africanidades na escola por meio da música e da

dança, como uma estratégia para a implementação da Lei 10.369/2003. Essa Lei

modifica a lei de diretrizes e bases para a educação nacional, tratando da

obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, posteriormente

complementada pela Lei nº. 11.465 de 2008 que inclui a obrigatoriedade do ensino da

história e cultura indígena (BRASIL, 2004; 2008).

Compreendemos as africanidades brasileiras como as expressões de culturas

de raízes africanas que estão diretamente vinculadas às visões de mundo próprias do

continente africano, e que, portanto, se constituem nos processos que geraram as

manifestações da cultura popular, não apenas no uso de gestos ou instrumentos

presentes na música e nas danças, mas também nos valores presentes na produção de

tais práticas (SILVA, 2009).

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Para isso buscamos descrever uma experiência com as africanidades na música e

na dança realizada em uma escola localizada no interior do estado de Minas Gerais, a

partir da fundamentação teórica proveniente do curso de Pós-graduação em Educação2

da Universidade Federal de São Carlos.

Dançando e cantando as africanidades na escola

A abordagem das Africanidades no ambiente escolar requer o reconhecimento

das possíveis diferenças entre as maneiras de ver o mundo e as relações humanas

próprias dos povos descendentes de africanos e as estabelecidas no projeto de sociedade

em que se insere a escola brasileira, que de acordo com Silva (2009, p.26), “estudar

Africanidades Brasileiras significa estudar um jeito de ver a vida, o mundo, o trabalho,

de conviver e lutar por sua dignidade, próprio dos descendentes de africanos”.

No entanto, é frequentemente difundida e naturalizada no ambiente escolar a

escassez de conteúdos que favoreçam o reconhecimento da diversidade étnica que

constitui a nossa sociedade. Em consequência disso, tornam-se escassas também as

oportunidades de abordagem das relações etnicorraciais e das possibilidades de

combater as perversas ideologias racistas e as práticas de discriminação reproduzidas

pela escola, tão veladas quanto se apresentam em diferentes setores da sociedade.

De acordo com Silva (2003, p.28) entre os princípios propostos por uma

pedagogia antirracista, que pode ser conduzida pela abordagem das africanidades na

escola, está o estudo das diferentes matrizes culturais que constituem a cultura brasileira

“que nos encontros e desencontros de umas com as outras se refizeram e hoje não são

mais gegê, nagô, bantu, portuguesa, japonesa, italiana, alemã, mas brasileira de origem

africana, européia, asiática”.

A esse respeito Ribeiro (2002, p.150) afirma que “Crianças brasileiras de todas

2As discussões e a literatura que permeiam este artigo foram parte constituinte da

disciplina intitulada Teoria da Educação: aportes de africanidades, ministrada pela

professora Dra. Maria Waldenez de Oliveira e pelo professor Dr. Luiz Gonçalves

Junior, com a participação da professora convidada Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e

Silva no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São

Carlos, no segundo semestre de 2011.

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as origens étnico-raciais têm o direito ao conhecimento da beleza, riqueza e dignidade

das culturas negro-africanas. Jovens e adultos têm o mesmo direito” e questiona: “Que

silêncio tão lamentável é esse, que torna invisível parte tão importante da construção

histórica e social do nosso povo, de nós mesmos?”.

Além de se apresentar como um meio de reconhecimento da identidade

brasileira, a música e a dança africana podem sugerir um ambiente de afirmação das

diferenças integrada a uma perspectiva de valorização da diversidade humana, onde ser

diferente é, sobretudo, um direito de ser do humano, pois, como afirma Santos (2005), é

preciso que tenhamos o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos

descaracteriza, e o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza.

No entanto, essa possibilidade só se realiza enquanto contextualizada, ou

seja, a presença da música e da dança na escola, por si não garante a problematização da

realidade em que se insere e não é capaz de sozinha trazer à tona as contribuições e

influências da cultura e história africana no Brasil. Para que isso ocorra é necessário que

educadoras e educadores se comprometam com a mudança de posturas e crenças

difundidas no sistema escolar que hierarquizem e desqualifiquem, sobretudo as culturas

de matrizes africanas.

Presente nas culturas, a hierarquização é uma forma de ideologia que

naturalizada nos dá sempre uma única resposta, produzida por alguém que tem

vantagens e privilégios buscando ser dominante para mantê-los. Hierarquizar é fazer

valer uma única voz, exaltando-a em detrimento das demais.

A partir do conceito de cultura proposto por Freire (1979), de que cultura é toda

criação humana, cuja produção é resultado da ação de mulheres e homens em sua

interação intencional com a natureza, compreendemos que a cultura pode ser

representada pelo nosso jeito de ser e viver, ou seja, nossos modos de falar, vestir,

brincar, cultivar a terra, se relacionar com as pessoas tanto quanto pelas nossas formas

de fazer música, cantar e dançar.

Bosi (2012) reconhece a existência e convivência de diferentes culturas, suas

intersecções, novas tecnologias e diferentes meios a seu acesso, considerando que são

muitas as interferências entre os modos de ser e de viver, costumes, hábitos, gostos,

crenças do povo brasileiro. Para o autor, não existe cultura no singular, mas

singularidades de culturas, consideradas as diferenças e particularidades de um povo.

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Nessa perspectiva, a proposta da música e dança africana na escola nos remete a

uma superação da ideologia dominante e eurocêntrica que nos impõe um padrão

historicamente monoculural. Um projeto educador emancipatório deve conduzir

mulheres e homens, a tomar consciência de si, do outro e da natureza, de modo a

transpor a posição de refém para a de sujeito da própria vida.

A corporeidade africana

Em uma visão de mundo africana o corpo não está dissociado nem em si mesmo,

nem em suas relações com a comunidade, ele está dentro do mundo. Altuna (1985,

citado por OLIVEIRA, 2004, p. 122) refere que nessa perspectiva de corporeidade, “o

indivíduo, a comunidade e o universo não vivem em justaposição, mas definem-se

como uma comunhão alimentada pelos incessantes intercâmbios da vida”.

Assim, apenas o coletivo é que pode atribuir significados para o “ser-no-mundo”

dos indivíduos que compõem a comunidade. Para o pensamento africano toda a vida é

interconectada e interdependente, em todos os seus aspectos, e toda a comunidade deve

viver em harmonia possibilitando a existência do outro (TEDLA, 1995).

O corpo, entendido no pensamento africano em sua capacidade de comunicar

suas experiências (OLIVEIRA, 2004) pode ser também o ponto de partida para

observamos as diferenças entre as visões de mundo africanas e as que se estabelecem no

sistema escolar brasileiro, sobretudo nos modos de relacionamento entre as pessoas. A

atitude de comunhão frente ao mundo e ao outro, se dá através da sensibilidade que

descobre o outro, na sua subjetividade, pela qual pode alcançar um elevado estágio de

consciência. O corpo é uma totalidade. O corpo se manifesta em gestos, posturas,

sentimentos, inteligência, expressando e comunicando sua presença.

Nas expressões da música e dança de matrizes africanas, corporeidade,

musicalidade, oralidade, circularidade e ancestralidade se manifestam conjuntamente

como saberes herdados das culturas africanas, fundamentais para a compreensão do

modo de ser e de viver dos povos africanos e afrodescendentes.

A música na África ultrapassa a ideia que temos no ocidente que é a de tocar um

instrumento, porque o corpo de quem toca ultrapassa o corpo do instrumento. A riqueza

da música e da dança africana está presente também na forma integrada de realizá-la, o

que difere do fazer musical ocidental. Ainda hoje no Brasil, música e dança são, muitas

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vezes, ensinadas e aprendidas de maneira dicotomizada, em processos onde gestos e

elementos musicais são geralmente abordados separadamente. Os procedimentos

metodológicos de ensino da música no ocidente, sobretudo nos conservatórios, além de

fragmentados são geralmente baseados na execução instrumental e na leitura musical.

Quando tratamos de estudos em aportes de africanidades não há espaço para a

presença de pensamentos dicotômicos como profano e sagrado, popular e erudito,

passado e presente, interior e exterior, vida e morte ou música e dança. Dessa forma, a

noção de corpo é a de um todo indivisível e não de um corpo biológico e fisiológico

sujeito à consciência, já que o corpo não é servo da consciência.

Para Merleau-Ponty (1994) corpo e consciência não são partes isoladas, não há

como atribuir determinada sabedoria à consciência ou ao corpo, pois ambos agem

conjuntamente, e, a consciência ocupa espaço na dimensão do comportamento do corpo

vivido e experimentado. Esse corpo do sujeito perceptivo é o corpo próprio ou corpo

fenomenológico, que é o corpo da experiência do corpo. A consciência é

originariamente “eu posso” e não “eu penso”.

O nosso corpo faz de si próprio o objeto que vai ao encontro das coisas, é

“habitado por uma potência de objetivação que trabalha na constituição dessas coisas,

tratando os dados sensíveis como representativos uns dos outros, animando e ordenando

estes mesmos dados, centrando-os numa pluralidade de coisas vividas e experimentadas

num núcleo inteligível” (MARTINS, 2000, p. 28).

Uma experiência de música e dança africana na escola

Entre uma série de atividades constantes do projeto de extensão universitária

“(Re) Cortando papéis, criando painéis” 3 desenvolvemos, com crianças entre nove e

onze anos de idade, vinte estudantes ao todo, sendo doze meninas e oito meninos, de

uma escola pública localizada na cidade de Ituiutaba/MG, uma intervenção com música

e dança africana, que constou de sete encontros. As atividades desenvolvidas foram

algumas perguntas empreendidas ao grupo; conversas sobre o continente africano –

povo, raça, cor, costumes, países e capitais; realização da música Taa-taa-te

3 O projeto “(Re) Cortando papéis, criando painéis” é uma atividade de extensão universitária criada na

cidade de Ituiutaba, Minas Gerais, no ano de 2007, envolvendo uma Universidade, uma escola de música

e uma escola de educação básica.

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(CARVALHO, 2010) e dança; contação de uma lenda africana intitulada O menino

grávido (CARREIRA, 2008); confecção de instrumentos musicais (agogô, caxixi, pau

de chuva e tambor) e execução destes e de xilofones e metalofones; criação de

desenhos; registro de imagens e sons (fotos e filmagens) e apresentação musical.

Metodologia

Os procedimentos metodológicos para a coleta e análise dos dados dessa

intervenção, após assinados os termos de consentimentos, com respectivos cognomes,

foram iniciados com a aplicação de perguntas idênticas no início e no final das

atividades. As perguntas se referiram aos dados pessoais das/os estudantes e à

solicitação das seguintes informações: 1) O que é África?; 2) Cite cinco ou mais países

africanos e suas respectivas capitais; 3) Comente três músicas que você gosta; 4) Cite

músicas africanas que conhece; 5) Cite esportes, jogos, brincadeiras que você mais

gosta; 6) Cite jogos africanos.

Todas as atividades foram rigorosamente descritas em diários de campo. Para

Bogdan e Biklen (1991, p. 151), as notas de campo são “o relato escrito daquilo que o

investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha e reflectindo sobre os

dados de um estudo qualitativo”. Já os critérios de análise constaram de: análise

ideográfica - levantamento e agrupamento das unidades de significados; análise

nomotética – interpretação e categorização dessas unidades; modalidade de pesquisa

que possibilita “acesso ao mundo-vida e ao pensar do sujeito” (MACHADO, 1994,

p.41), espreitando outras possibilidades de ver e de sentir o outro nas relações

vivenciadas, porque a experiência é percebida de modo consciente por aquele que a

executa, e não por outro qualquer (MARTINS; BICUDO, 2005).

Analisados os diários de campo e evidenciadas as unidades de significados,

emergiram seis categorias: Conhecimentos sobre África; Envolvimento nas atividades;

Música e movimento: O corpo na música africana; Espírito de comunicação,

colaboração e liderança; Cuidados com a aparência.

Da categoria “Conhecimentos sobre África”, os/as estudantes pouco conheciam

de África em relação a país/continente, países/capitais, jogos/brincadeiras, exceto

Quiko, que disse ser o futebol, o Kung Fu e a capoeira de origem africana, além de

cantar: “Zum, zum, zum, capoeira mata um, Zum, zum, zum, capoeira mata um!”

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(Diário II,4). Percebia-se a noção de uma África como lugar de pessoas pobres e

magras: “na África os meninos são bem magrinhos” (Diário V, 3); “na África as casas

são pobres” (Diário VI, 3). Ser negro era ser marrom bombom, moreninha. No último

encontro, na apresentação da canção Taa-taa-te para outros estudantes da mesma escola,

finalizada a „coda‟ e lançada a pergunta: “De qual continente é esta apresentação?”,

dentre “Europa, Ásia, África”, a plateia inteira gritou: “África!” (Diário VII, 9).

Do “Envolvimento nas atividades”, a prontidão e entrega foram constantes.

Logo perguntavam: “O quê que vamos fazê hoje?” (Diário VI, 2), e já se organizavam

em círculo. Cantando-tocando-dançando a canção africana do país de Gana, “Taa-taa-

te”, os/as estudantes participaram com entusiasmo, alegria, dedicação, vontade e

interesse. Aproximavam-se da roda musical, entoando a melodia, mexendo os pés num

ritmo diferente, dançando, tudo ao mesmo tempo. Tocavam caxixis, chocalhos e pau de

chuva, ajudavam-se uns aos outros, no ritmo, nas notas musicais, no tempo da música,

nas entradas musicais..., uns se faziam de maestros, outros instrumentistas, sem brigas e

mal entendidos, de “uma forma prazerosa, sem gasto de energia que não fosse outra

coisa senão a música” (Diário V, 2). Perguntados sobre a “experiência de falar e fazer

música da África”, responderam ser “bom, maravilhoso, legal” (Diário VI, 4). A letra da

canção (Diário III, 8) foi escrita na lousa por um dos estudantes, antes mesmo que a

professora/pesquisadora assim fizesse.

Sobre “Música e movimento: O corpo na música africana”, a inseparabilidade

música e dança foi uma constante. Cantar/tocar/dançar eram ações interligadas,

emaranhadas, em comunhão, em verdadeira interatividade. Uns aprendiam com os

outros, olhando-se e movimentando-se: “O Quiko olhou intensamente para os meus pés,

e entrava e saía da brincadeira, até conseguir cantar e fazer o ritmo ao mesmo tempo”;

“Uma das meninas, não teve a menor dificuldade, bem solta cantava e ritmava o corpo

todo, num „sacolejar‟ muito gostoso de ver”; “Escrevemos os nomes das notas no chão e

as crianças cantavam e colocavam as mãos e, em seguida, os pés, nas respectivas notas

musicais” (Diário III, 4,5,6).

Em relação ao “Espírito de comunicação, colaboração e liderança”, dois dos

estudantes, Quiko (negro) e Minotauro (branco de avó materna negra) tomaram a frente,

no processo de aprender a canção africana, a dança, os diferentes ritmos, a construção e

execução dos instrumentos, e, ainda, carregando livros, sacolas, aparelho de cd,

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instrumentos musicais, pesquisando, coletando e organizando os materiais para a

construção dos instrumentos (copos de iogurte e de Yakult, latas de cerveja e de

refrigerantes, caixa de papelão, tubos de papelão, sementes grandes, grãos de feijão),

organizando e coordenando a apresentação musical.

Dos “Cuidados com a aparência”, os/as estudantes se prepararam no dia da

apresentação (último encontro), usando roupas limpas, cabelos penteados e um dos

meninos, também negro, com a cabelo todo aparado e ao lhe perguntar se o corte de

cabelo era em função da apresentação, ele disse que sim (Diário VII, 1).

Considerações

Dada a experiência de aportes de africanidades com música e dança africana na

escola, analisadas as categorias, os arquivos fotográficos e audiovisuais, evidenciaram-

se as seguintes palavras-chave: inseparabilidade música e dança (dançar, cantar, tocar se

constituem em um só ato); ação em movimento (dançar, cantar, tocar implicando-se

mutuamente); circularidade (dançar, cantar, tocar como um continuum); solidariedade

(ajuda mútua, colaboração, força potente para novos aprendizados).

Para Carlos Kater (2004, p.47), ser capaz é estímulo potente, é a “chama interior”,

é o “brilho nos olhos”, um diferencial na educação. Práticas como essa, onde a música,

a dança são fortes componentes de agregação, humanizam as pessoas, constituem os

“grupos-sujeitos” de Costa (1997), onde cada um se prolonga no outro. É tanto o

“desenvolvimento da musicalidade e da formação musical quanto o aprimoramento

humano dos cidadãos pela música” (KATER, 2004, p.46).

Laços de boa convivência, amorosidade e encantamento se estabeleceram nessa

prática, humanizadora e potencialmente formadora. Na mobilidade das ações pode-se

sim, construir a solidariedade, onde o „diálogo‟ e o „ato de fé‟ mostram-se atitudes

necessárias àqueles que participam, envolvidos numa só ação, expressando-se.

(FREIRE, 2004).

Conviver e por isso participar com crianças em práticas sociais que envolvem

música e dança africana, mesmo que sejam no espaço da escola, pode ser uma forma de

aproveitar significativamente o potencial formador da arte. Os/as estudantes, envolvidos

nas atividades por gosto e vontade próprias, satisfeitos com o processo e produção,

orgulhosos de si mesmos, pareciam mostrar que algo aconteceu, a confirmação de um

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conceito em Africanidades, do povo africano, cuja história e contribuições não podemos

silenciar: A afirmação da vida.

Referências

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