Candomblé e o Tempo - Reginaldo Prandi

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    O CANDOMBL E O TEMPOConcepes de tempo, saber e autoridade da frica para as religies afro-brasileiras

    Reginaldo PrandiProfessor Titular de Sociologia

    Universidade de So Paulo

    [Texto em publicao no nmero 47 (outubro de 2001) da Revista Brasileira de Cincias Sociais RBCS ]

    I

    Diferentes sociedades e culturas tm concepes prprias do tempo, do transcurso da vida, dos fatosacontecidos e da histria. Em sociedades de cultura mtica, tambm chamadas sem-histria, que no conhecem aescrita, o tempo circular e se acredita que a vida uma eterna repetio do que j aconteceu num passado remotonarrado pelo mito. As religies afro-brasileiras, constitudas a partir de tradies africanas trazidas pelos escravos,cultivam at hoje uma noo de tempo que muito diferente do nosso tempo, o tempo do Ocidente e docapitalismo (Fabian, 1985). A noo de tempo, por se ligar noo de vida e morte e s concepes sobre o mundoem que vivemos e o outro mundo, essencial na constituio da religio.

    Muitos dos conceitos bsicos que do sustentao organizao da religio dos orixs em termos de

    autoridade religiosa e hierarquia sacerdotal dependem do conceito de experincia de vida, aprendizado e saber,intimamente decorrentes da noo de tempo ou a ela associados. Assim, muitos aspectos das religies afro-brasileiras podem ser melhor compreendidos quando se consideram as noes bsicas de origem africana que os fundamentam.Da mesma maneira se pode ampliar o conhecimento sobre valores e modos de agir observveis entre os seguidoresdessas religies quando consideramos a herana africana original em oposio a concepes ocidentais com que areligio africana teve e tem de se confrontar no Brasil, sobretudo nas situaes em que concepes de diferentesorigens culturais se opem e provocam ou propiciam mudanas naquilo que os prprios religiosos acreditam ser atradio afro-brasileira, seja ela doutrinria, seja ritual. As noes de tempo, saber, aprendizagem e autoridade, queso as bases do poder sacerdotal no candombl, de carter inicitico, podem ser lidas em uma mesma chave, capazde dar conta das contradies em que uma religio que parte constitutiva de uma cultura mtica, isto a-histrica,se envolve ao se reconstituir como religio numa sociedade de cultura predominantemente ocidental, na Amrica,

    onde tempo e saber tm outros significados.

    O candombl de que trata o presente texto a religio dos orixs formada na Bahia, no sculoXIX, a partir de tradies de povos iorubs, ou nags, com influncias de costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados

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    jejes, e residualmente por grupos africanos minoritrios. O candombl iorub, ou jeje-nag, como costuma ser

    designado, congregou, desde o incio, aspectos culturais originrios de diferentes cidades iorubanas, originando-seaqui diferentes ritos, ou naes de candombl, predominando em cada nao tradies da cidades ou regio queacabou lhe emprestando o nome: queto, ijex, ef (Silveira, 2000; Lima, 1984). Esse candombl baiano, que proliferou por todo o Brasil, tem sua contrapartida em Pernambuco, onde denominado xang, sendo a nao egbasua principal manifestao, e no Rio Grande do Sul, onde chamado batuque, com sua nao oi-ijex (Prandi,1991). Outra variante iorub, esta fortemente influenciada pela religio dos voduns daomeanos, o tambor-de-minanag do Maranho. Alm dos candombls iorubs, h os de origem banta, especialmente os denominadoscandombls angola e congo, e aqueles de origem marcadamente fom, como o jeje-mahim baiano e o jeje-daomeanodo tambor-de-mina maranhense.

    Foram principalmente os candombls baianos das naes queto (iorub) e angola (banto) que mais se propagaram pelo Brasil, podendo hoje ser encontrados em toda parte. O primeiro veio a se constituir numa espcie

    de modelo para o conjunto das religies dos orixs, e seus ritos, panteo e mitologia so hoje praticamente predominantes. O candombl angola, embora tenha adotado os orixs, que so divindades nags, e absorvido muitodas concepes e ritos de origem iorub, desempenhou papel fundamental na constituio da umbanda, no incio dosculoXX, no Rio de Janeiro e em So Paulo. Hoje, todas essas religies e naes congregam adeptos que seguemritos distintos, mas que se identificam, nos mais diversos pontos do Pas, como pertencentes a uma mesma populaoreligiosa, o chamado povo-de-santo, que compartilha crenas, prticas rituais e vises de mundo, que incluemconcepes da vida e da morte. Terreiros localizados nas mais diferentes regies e cidades interligam-se atravs deteias de linhagens, origens e influncias que remetem a ascendncias que convergem, na maioria dos casos, para aBahia, e que da apontam, no casos das naes iorubs, para antigas e, s vezes, lendrias, cidades hoje situadas na Nigria e no Benim.

    A idia que norteia o presente trabalho refazer inicialmente essa trajetria, religando a frica dos orixsaos terreiros de candombl de naes iorubs, que podem hoje ser encontrados na Bahia, no Rio de Janeiro, em SoPaulo, no Distrito Federal e outros estados, para, num segundo momento, procurar entender como e por qu asantigas heranas religiosas vo sofrendo mudanas e adaptaes no contexto das transformaes socio-culturais quemodelam o Brasil atual. Embora o texto presente esteja focado na observao do candombl iorub, para o qual podemos contar com uma etnografia que permite estabelecer comparaes entre o que se observou na frica e o quese observa no Brasil, fato que muitas das concluses podem ser, em maior ou menor grau, aproximadas para oconjunto das religies afro-brasileiras, quando no extravasadas para alm do universo estritamente religioso, emoutras dimenses da cultura popular brasileira.

    II

    Um novo adepto do candombl ou outra religio afro-brasileira tradicional que tenha nascido e sido criadofora dessa religio, na qual ele ingressa por escolha pessoal, no caso raro (Prandi, 2000a). Desde que o candomblse transformou numa religio aberta a todos, independentemente da origem racial, tnica, geogrfica ou de classe

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    social, grande parte dos seguidores, ou a maior parte em muitas regies do Brasil, de adeso recente, no tendo tido

    anteriormente, nem mesmo no mbito familiar, maior contato com valores e modos de agir caractersticos dessareligio. Na maioria dos casos, aderir a uma religio tambm significa mudar muitas concepes sobre o mundo, avida, a morte. O novo adepto do candombl, ao freqentar o terreiro, o templo, e participar das inmeras atividadescoletivas indispensveis ao culto, logo se depara com uma nova maneira de considerar o tempo. Ele ter que ser ressocializado para poder conviver com coisas que, nos primeiros contatos, lhe parecero estranhas edesconfortveis. Ele tem de aprender que tudo tem sua hora, mas que essa hora no simplesmente determinada pelorelgio e sim pelo cumprimento de determinadas tarefas, que podem ser completadas antes ou depois de outras,dependendo de certas ocorrncias, entre as quais algumas imprevisveis, o que pode adiantar ou atrasar toda a cadeiade atividades. Alis, esses termos atrasar e adiantar so estranhos situao que desejo considerar, pois nocandombl, como j disse, tudo tem seu tempo, e cada atividade se cumpre no tempo que for necessrio. aatividade que define o tempo e no o contrrio.

    As festas de candombl, quando so realizadas as celebraes pblicas de canto e dana, as chamadascerimnias de barraco, durante as quais os orixs se manifestam por meio do transe ritual, so precedidas de umasrie de ritos propiciatrios, que envolvem sacrifcio de animais, preparo das carnes para o posterior banquetecomunitrio, fazimento das comidas rituais que so oferecidas aos orixs que esto sendo celebrados, cuidado comos membros da comunidade que esto recolhidos na clausura para o cumprimento de obrigaes iniciticas, preparao da festa pblica e finalmente a realizao da festa propriamente dita, ou seja, o chamado toque. Preparar o toque inclui cuidar das roupas, algumas costuradas especialmente para aquele dia, que devem ser lavadas,engomadas e passadas a ferro ( sempre uma enormidade de roupas para engomar e passar!); pr em ordem osadereos, que devem ser limpos e polidos; preparar as comidas que sero servidas a todos os presentes e providenciar as bebidas; decorar o barraco, colhendo-se para isso as folhas e flores apropriadas etc. etc.

    Num terreiro de candombl, praticamente todos os membros da casa participam dos preparativos, sendo quemuitos desempenham tarefas especficas de seus postos sacerdotais. Todos comem no terreiro, ali se banham e sevestem. s vezes, dorme-se no terreiros noites seguidas, muitas mulheres fazendo-se acompanhar de filhos pequenos. uma enormidade de coisas a fazer e de gente as fazendo. H uma pauta a ser cumprida e horrios maisou menos previstos para cada atividade, como ao nascer do sol, depois do almoo, de tarde, quando o solesfriar, de tardinha, de noite. No costume fazer referncia e nem respeitar a hora marcada pelo relgio emuitos imprevistos podem acontecer. No terreiro, alis, comum tirar o relgio do pulso, pois no tem utilidade.Durante a matana, os orixs so consultados por meio do jogo oracular para se saber se esto satisfeitos com asoferendas, e podem pedir mais. De repente, ento, preciso parar tudo e sair para providenciar mais um cabrito, maisgalinhas, mais frutas, ou seja l o que for. Em qualquer dos momentos, orixs podem ser manifestar e ser precisocantar para eles, se no danar com eles. Os orixs em transe podem, inclusive, impor alteraes no ritual. Eles

    podem ficar muitas horas em terra enquanto todos os presentes lhes do ateno e tudo o mais espera. Durante otoque, a grande cerimnia pblica, a presena no prevista de orixs em transe implica alargamento do tempocerimonial, uma vez que eles devem tambm ser vestidos e devem danar. A chegada de dignitrios de outrosterreiros, com seus squitos, obriga a homenagens adicionais e outras seqncias de canto e dana. Embora haja um

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    roteiro mnimo, a festa no tem hora para acabar. No se sabe exatamente o que vai acontecer no minuto seguinte, o

    planejamento inviabilizado pela interveno dos deuses.Quando se vai ao terreiro, aconselhvel no marcar nenhum outro compromisso fora dali para o mesmo

    dia, pois no se sabe quando se pode ir embora, no se sabe quanto tempo vai durar a visita, a obrigao, a festa.Alis, candombl tambm no tem hora certa para comear. Comea quando tudo estiver pronto. Os convidados esimpatizantes vo chegando num horrio mais ou menos previsto, mas podem esperar horas sentados. Ento muitos preferem chegar bem tarde, o que pode acarretar novos atrasos. E no adianta reclamar, pois logo algum dir quecandombl no tem hora. Uma vez, depois de muita espera, perguntei a que horas iria o candombl realmentecomear. A resposta foi: Depois que mezinha (a me-de-santo) trocar de roupa. Enfim, o tempo ser sempredefinido pela concluso das tarefas consideradas necessrias no entender do grupo, a frmula: quando estiver pronto.

    Essa idia de que o tempo est sujeito ao acontecer dos eventos e ao sabor da realizao de tarefasnecessrias pode ser observada no cotidiano dos terreiros tambm fora das festas. Pesquisadores que esto seiniciando em trabalho de campo espantam-se muito com a falta de horrio das mes e pais-de-santo, tendo queesperar horas e horas, se no dias, para fazer uma entrevista que pensavam estar agendada para um horrio bemdeterminado. Clientes que vo ao terreiro para o jogo de bzios ou outros servios mgicos tambm podem se sentir incomodados pelo modo como o povo-de-santo usufrui do tempo.

    Em 1938, a antroploga americana Ruth Landes veio ao Brasil para estudar as relaes raciais entre ns e permaneceu vrios meses em pesquisa junto aos candombls de Salvador. muito interessante o relato de seu primeiro encontro com a jovem Me Menininha do Gantois, que dcadas depois viria a ser a mais famosa me-de-santo do Brasil. Marcada a visita, Menininha a recebeu e com ela comeou a conversar com muita simpatia. Chegouento uma filha-de-santo que cumprimentou a me com todas as reverncias, dizendo-lhe alguma coisa em voz

    baixa. Menininha pediu licena antroploga para se retirar um momento, dizendo-lhe que ficasse vontade e quevoltaria em seguida. A tarde se esvaiu, com muita movimentao na casa, muitas pessoas chegando e saindo, mas ame-de-santo no voltou sala. Com o dia j escuro, discretamente, Ruth Landes voltou para seu hotel. S temposdepois pde continuar sua conversa com a ialorix. Soube mais tarde a antroploga que a mulher que interrompera aentrevista trazia problemas e que a me fora cuidar dos rituais necessrios para resolver a aflio da filha (Landes,1967: 86-99). Comentando o episdio, Ruth Landes escreveu: Durante a minha permanncia na Bahia pasmava-mea liberdade que as mes tomavam com o tempo. Menininha no voltou sala aquele dia e como soube,subseqentemente, sempre se atrasava, sempre demorava. Era um privilgio da sua posio, aceito como naturalnuma terra de aristocracia e escravido. Que era o tempo? O tempo era o que se faz com ele e ela estava sempreocupada (Landes, 1967: 95). O que Landes atribuiu a privilgios numa terra de aristocracia e escravido era,entretanto, a expresso de uma concepo africana de tempo muito diferente daquela a que estamos habituados por

    fora de nossa cultura europia.

    Para o pensador africano John Mbiti, enquanto nas sociedades ocidentais o tempo pode ser concebido comoalgo a ser consumido, podendo ser vendido e comprado como se fosse mercadoria ou servio potenciais tempo

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    dinheiro , nas sociedades africanas tradicionais o tempo tem que ser criado ou produzido. Mbiti afirma que o

    homem africano no escravo do tempo, mas, em vez disso, ele faz tanto tempo quanto queira. Comenta que, por no conhecerem essa concepo, muitos estrangeiros ocidentais no raro julgam que os africanos esto sempreatrasados naquilo que fazem, enquanto outros dizem: Ah! Esses africanos ficam a sentados desperdiando seutempo na ociosidade (Mbiti, 1990: 19).

    III

    Antes da imposio do calendrio europeu, os iorubs, que so a fonte principal da matriz cultural docandombl brasileiro (Prandi, 2000b), organizavam o presente numa semana de quatro dias. O ano era demarcado pela repetio das estaes e eles no conheciam sua diviso em meses. A durao de cada perodo de tempo eramarcada por eventos experimentados e reconhecidos por toda a comunidade. Assim, um dia comeava com o nascer do sol, no importando se s cinco ou s sete horas, em nossa contagem ocidental, e terminava quando as pessoas serecolhiam para dormir (Mbiti, 1990: 19), o que podia ser s oito da noite ou meia-noite em nosso horrio. Essasvariaes, importantes para ns, com nosso relgio que controla nosso dia, no o eram para eles.

    Cada um dos quatro dias da semana iorub tradicional, chamadaoss , dedicado a uma divindade (OjAw, Oj Ogum, Oj Xang, Oj Obatal, respectivamente, dia do segredo ou de If, dia de Ogum etc.), regulandouma atividade essencial para a vida de todos os iorubs tradicionais: o mercado. O mercado ou feira funciona emcada aldeia e cidade num dos dias da semana, todas as semanas ou a cada duas, trs ou quatro semanas. At hoje, asmulheres vo vender seus produtos nos mercados de diferentes cidades, fazendo dessa atividade uma instituiofundamental para a sociabilidade iorub e a regulao do cotidiano. Os iorubs tradicionais reconheciam a existnciado ms lunar, mas lhe davam pouca importncia, sendo muito mais importantes as pocas de realizao das grandes

    festas religiosas, marcadas pelas estaes e fases agrcolas do ano, que eles chamavam deodum . O dia era divididono em horas, mas em perodos, que poderamos traduzir por expresses como de manh cedo, antes do sol a pino, com o sol na vertical, de tardinha etc. A noite era marcada pelo cantar do galo.

    A contagem dos dias e das semanas era praticada em funo de cada evento, de modo que a mulher eracapaz de controlar a durao de sua gestao, assim como o homem contava o desenrolar dos seus cultivos, mas semdatao (Ellis, 1974: 142-51). Os iorubs tradicionais consideravam duas grandes estaes, uma chuvosa e outraseca, separadas por uma estao de fortes ventos, de modo que cada ano podia durar alguns dias a mais ou a menos,dependendo do atraso ou adiantamento das estaes, mas isso no importava, uma vez que os dias no eramcontados. Os anos passavam como passavam as semanas e os dias, num fruir repetitivo, no se computandoaritmeticamente cada repetio.

    Nas cortes dos reis iorubs havia funcionrios encarregados de manter viva a memria dos reis, e eles eramtreinados para recitar os eventos importantes que marcaram o reinado de cada soberano, mas os episdios no eramdatados, fazendo com que a reconstruo recente da histria dos povos iorubs no comporte uma cronologia para os

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    tempos anteriores chegada dos europeus, vendo-se obrigada a operar com mitos e memrias lanados num passado

    sem datas (Johnson, 1921).Como o tempo cclico, fatos inesperados so recebidos com espanto. Assim, as ocorrncias cclicas da

    natureza por exemplo, as fases da lua e as estaes climticas so encaradas como acontecimentos normais davida, mas o que escapa do ritmo normal do tempo visto com preocupao e medo, como um eclipse, uma enchenteetc. O nascimento de gmeos, que contraria o desenlace normal da gestao, constitui tambm um fato excepcional.

    Os afro-descendentes assimilaram o calendrio e a contagem de tempo usados na sociedade brasileira, masmuitas reminiscncias da concepo africana podem ser encontradas no cotidiano dos candombls. A chegada de umnovoodum , ano novo, festejada com ritos oraculares para se saber qual orix o preside, pois cada ano v repetir-sea saga do orix que o comanda: ser um ano de guerra, se o orix for um guerreiro, como Ogum, de fartura, se oorix for um provedor, como Oxssi, ser de reconciliaes, se for de um orix da temperana, como Iemanj, eassim por diante. Ooss , a semana, constituiu-se num rito semanal de limpeza e troca das guas dos altares dosorixs. Cada dia da semana, agora a semana de sete dias, dedicado a um ou mais orixs, sendo cada dia propcio aeventos narrados pelos mitos daqueles orixs, por exemplo, a quarta-feira dia de justia porque dia de Xang. Asgrandes festas dos deuses africanos adaptaram-se ao calendrio festivo do catolicismo por fora do sincretismo que,at bem pouco tempo, era praticamente compulsrio, mas o que a festa do terreiro enfatiza o mito africano, doorix, e no o do santo catlico.

    Embora o candombl e outras religies de origem africana sejam de formao recente, aqui constitudassomente depois das primeiras dcadas do sculo XIX, as datas de fundao dos terreiros, assim como as que marcamos reinados de sucessivas mes e pais-de-santo no incio so desconhecidas. Seus nomes so bem lembrados e seusfeitos so cantados e festejados nas cerimnias que louvam os antigos fundadores o pad nos candombls maisvelhos , mas nada de datas. Esse passado brasileiro tambm j se fez mito.

    IV

    Nas palavras de Wole Soyinka, o pensamento tradicional opera no uma sucesso linear de tempo mas umarealidade cclica (Soyinka, 1995: 10). O tempo escalar, que se mede matematicamente, podendo ser somado,subtrado, dividido etc., no faz nenhum sentido para o pensamento africano tradicional. Para os ocidentais, o tempo uma varivel contnua, uma dimenso que tem realidade prpria, independente dos fatos, de tal modo que so osfatos que se justapem escala do tempo. o tempo da preciso, que objetiva o clculo, que viabiliza a projeo efundamenta a racionalidade tempo da cincia histrica e da modernidade. Nessa escala ocidental do tempo, osacontecimentos so enfileirados uns aps outros, em seqncias que permitem organiz-los como anteriores e

    posteriores, uns como causa e outros como conseqncia, construindo-se uma cadeia de correlaes e causaes queconhecemos como histria. Entre ns, o relgio e o calendrio permitem contar o tempo transcorrido entre doiseventos, sendo possvel, mesmo num passado distante, saber que fatos esto mais prximos entre si e quais mais sedistanciam. Um segmento de tempo pode ser comparado com outro, por exemplo, o tempo mdio da vida de um

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    homem. Assim, todos os fatos relevantes so datados, isto , descritos num calendrio seqencial escalonado em

    intervalos iguais (sculo, ano, ms, dia, hora). Esse tempo projetado para a frente, de modo que o que vai acontecer compe com o presente e com o j acontecido uma linha sem soluo de continuidade, estando o futuro determinado pelo que o precede, podendo assim ser controlado pela ao no presente.

    Para os africanos tradicionais, o tempo uma composio dos eventos que j aconteceram ou que esto paraacontecer imediatamente. a reunio daquilo que j experimentamos como realizado, sendo que o passado,imediato, est intimamente ligado ao presente, do qual parte, enquanto o futuro nada mais que a continuaodaquilo que j comeou a acontecer no presente, no fazendo nenhum sentido a idia do futuro como acontecimentoremoto desligado de nossa realidade imediata (Mbiti, 1990: 16-17). O futuro que se expressa na repetio cclica dosfatos da natureza, como as estaes, as colheitas vindouras, o envelhecer de cada um, repetio do que j seconheceu, viveu e experimentou, no futuro. No h sucesso de fatos encadeados no passado distante, nem projeo do futuro. A idia de histria como a conhecemos no Ocidente no existe; a idia de fazer planos para o

    futuro, de planejar os acontecimentos vindouros, completamente estapafrdia. Se o futuro aquilo que no foiexperimentado, ele no faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo o tempo vivido, o tempo acumulado, otempo acontecido. Mais que isso, o futuro o simples retorno do passado ao presente, logo, no existe.

    Para os iorubs e outros povos africanos, antes do contato com a cultura europia, os acontecimentos do passado esto vivos nos mitos, que falam de grandes acontecimentos, atos hericos, descobertas e toda sorte deeventos dos quais a vida presente seria a continuao. Ao contrrio da narrativa histrica, os mitos nem so datadosnem mostram coerncia entre si, no existindo nenhuma possibilidade de julgar se um mito mais verossmil,digamos, do que outro. Cada mito atende a uma necessidade de explicao tpica e justifica fatos e crenas quecompem a existncia de quem o cultiva, o que no impede de haver verses conflitantes quando os fatos einteresses a justificar so diferentes. O mito fala do passado remoto que explica a vida no presente. O tempo mtico

    apenas o passado distante, e fatos separados por um intervalo de tempo muito grande podem ser apresentados nosmitos como ocorrncias de uma mesma poca, concomitantes. Cada mito autnomo e os personagens de um podemaparecer em outro, com outras caractersticas e relaes, s vezes, contraditrias, sem que isso implique algum tipode questionamento da sua veracidade. Os mitos so narrativas parciais e sua reunio no propicia o desenho dequalquer totalidade. No existe um fio narrativo na mitologia, como aquele que norteia a construo da histria paraos ocidentais. O tempo do mito o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato contado pelo mitoe o tempo do narrador. No mundo mtico, os eventos no se ajustam a um tempo contnuo e linear. A mitologia dosorixs, que fala da criao do mundo e da ao dos deuses na vida cotidiana, bem o demonstra (Prandi, 2001).

    Esse passado remoto, de narrativa mtica, coletivo e fala do povo como um todo. Passado de gerao agerao, por meio da oralidade, ele que d o sentido geral da vida para todos e fornece a identidade grupal e osvalores e normas essenciais para a ao naquela sociedade, confundindo-se plenamente com a religio. O tempo

    cclico o tempo da natureza, o tempo reversvel, e tambm o tempo da memria, que no se perde, mas se repe. Otempo da histria, em contrapartida, o tempo irreversvel, um tempo que no se liga nem eternidade, nem aoeterno retorno (Prigogine, 1991: 59). O tempo do mito e o tempo da memria descrevem um mesmo movimento de

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    reposio: sai do presente, vai para o passado e volta ao presente no h futuro. A religio a ritualizao dessa

    memria, desse tempo cclico, ou seja, a representao no presente, atravs de smbolos e encenaes ritualizadas,desse passado que garante a identidade do grupo quem somos, de onde viemos, para onde vamos? o tempo datradio, da no-mudana, tempo da religio, a religio como fonte de identidade que reitera no cotidiano a memriaancestral. No candombl, emblematicamente, quando o filho-de-santo entra em transe e incorpora um orix,assumindo sua identidade representada pela dana caracterstica que lembra as aventuras mticas dessa divindade, o passado remoto, coletivo, que aflora no presente para se mostrar vivo, o transe ritual repetindo o passado no presente,numa representao em carne e osso da memria coletiva.

    V

    Como parte da vida que transcorre no presente, e numa dimenso diferente daquela do passado mtico,existe um passado prximo formado pelos eventos que compem a vivncia particular do indivduo e que depende desua memria pessoal. Os mortos, por exemplo, enquanto so lembrados pelos parentes vivos, fazem parte desse passado recente que se confunde com o presente e, assim, participam da experincia presente dos vivos enquantoestiverem vivos na lembrana dos vivos. Continuam a fazer parte da famlia, sendo por ela louvados e alimentados,at que um dia possam retornar reencarnados. Com a reencarnao tudo se repete, o ciclo se recompe. Assim comose repetem as estaes do ano, as fases da lua, os ciclos reprodutivos, o desenrolar das semeaduras s colheitas, avida do homem se repete na reencarnao: cclica a natureza, cclica a vida do homem, cclico o tempo.

    Para os iorubs tudo acontece em trs planos: o Ai , que este nosso mundo, o do tempo presente; oOrum ,que o outro mundo, a morada dos deuses orixs e dos antepassados, o mundo mtico do passado remoto; e o mundointermedirio dos que esto aguardando para renascer. Este mundo dos que vo nascer est prximo do mundo aqui-

    e-agora, o Ai, e representa o futuro imediato, atado ao presente pelo fato de que aquele que vai nascer de novocontinua vivo na memria de seus descendentes, participando de suas vidas e sendo por eles alimentados, at o dia deseu renascimento como um novo membro de sua prpria famlia. Para o homem, o mundo das realizaes, dafelicidade, da plenitude o mundo do presente, o Ai (Babatunde, 1992: 33). No h prmio nem punio no mundodos que vo nascer, nada ali acontece. Os homens e mulheres pagam por seus crimes em vida e so punidos pelasinstncias humanas. As punies impostas aos humanos pelos deuses e antepassados por causa de atos mausigualmente no os atingem aps a morte, mas se aplicam a toda coletividade qual o infrator pertence, e issotambm acontece no Ai. Trata-se de uma concepo tica focada na coletividade e no no indivduo (Mbon, 1991:102), no existindo a noo ocidental crist de salvao no outro mundo nem a de pecado. O outro mundo habitado pelos mortos temporrio, transitrio, voltado para o presente dos humanos. Nem a vida espiritual tem expresso nofuturo.

    preciso que o morto no tenha sido esquecido pelos seus familiares para poder nascer de novo, pois seulugar sempre na famlia. So duas as condies para se continuar vivo na memria, no presente. Primeiro, precisoter tido muitos filhos, pois um homem sem prole no tem quem cultive sua memria. Um homem sem prole no tem

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    uma grande famlia onde ele possa renascer. Para tanto necessrio ter muitas mulheres e poder sustent-las.

    Segundo, deve ter vivido muito, para que seus atos memorveis tenham sido testemunhados pelos filhos, netos e,quem sabe, bisnetos. Muitos nomes iorubs dados a uma nova criana referem-se quele de quem ela se acredita ser simplesmente o retorno, como Babatund, que quer dizer o pai est de volta; Iyab, a me retorna; Babatunji, o paiacordou de novo. A memria depende da convivncia, e graas a ela que se conhece, ama e respeita o outro. Alembrana um sentimento de venerao respeitosa e afetiva. Para renascer, ento, tem que se viver at uma idade provecta. Ai dos que morrem cedo, estes tero dificuldade para renascer. Quando se morre na tenra infncia pode-serenascer como outra criana gerada no tero da mesma me (Oduyoye, 1996: 113). Contudo, este no umnascimento festejado, pelo contrrio, temido, pois a criana renascida no tem compromisso com o presente, com afamlia, com o Ai, e pode perfeitamente querer morrer de novo cedo, sem viver, pelo simples e degenerado prazer de nascer por nascer. Essas criaturas, chamadasabicus , literalmente, nascido para morrer, s fazem sofrer as mes efrustrar os pais, que precisam desesperadamente de uma longa descendncia, pois os filhos que geram filhos so a

    garantia da eternidade celebrada no presente.Quando a memria do morto extravasa os limites de sua famlia particular e passa a ser louvada pela

    comunidade mais ampla da aldeia, da cidade, de uma grande linhagem que rene muitas famlias, quando estelembrana deixa de ser privativa de alguns indivduos para se incorporar na lembrana coletiva, o morto no precisamais renascer entre os vivos para garantir o ciclo de sua eternidade. Ele vai para oOrum , tornando-se, ento, umantepassado. Isso acontece com os grandes reis, heris, fundadores e lderes. DoOrum , o mundo mtico onde habitacom os deuses orixs, ele passa a atuar diretamente nos acontecimentos do Ai: vai interferir no presente, ajudando e punindo os humanos. O passado mtico um passado vivo, e seus habitantes o tempo todo agem e interferem no presente. Os antepassados, que os iorubs chamam deegunguns , no se recusam a vir ao Ai e conviver com oshumanos e o fazem atravs de seus sacerdotes nos grandes festivais de mscaras em que se cultua a memriaancestral coletiva daquela comunidade (Drewal, 1992, cap. 6).

    Quando, numa outra dimenso, o antepassado conquista o respeito de todo um povo, quando sua cidadeimpe seu culto a outras, quando ele se desprende da comunidade original e passa a fazer parte da memria de todauma sociedade, a reverncia por ele recebida se expande, sua influncia no Ai cresce, seu poder no mundo do presente se eterniza: ele , ento, um orix, um entre os deuses iorubs. Sua relao no mais com os parentes nemcom os membros da sua comunidade, mas com a humanidade. Ele pode at mesmo ser reverenciado em terras doalm-mar, onde se far atuante no presente de muitos outros povos, como ocorreu com a dispora iorub na Amrica por fora da escravido, com a fundao de novos cultos e religies, como o candombl, o tambor-de-mina, o xange o batuque, no Brasil, e a santeria, em Cuba. Ele parte do passado mtico e o passado mtico responde pelo presente. O passado mtico o que existe desde o comeo dos tempos, o que sempre foi, o que no datado.

    Os iorubs acreditam que o esprito do ser humano constitudo de diversas partes imateriais, sua alma no

    indivisvel como na concepo judaico-crist. H uma individualidade espiritual chamadaori que s existe no presente, isto , enquanto se vive no Ai. Ela responsvel pelas realizaes humanas, contm o destino de cada pessoa. Oori morre e destrudo juntamente com o corpo material. Outra parte constituda da memria cultuada

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    pela famlia do morto, oegum , que volta ao presente por meio da reencarnao, que mantm o morto no presente. E,

    como parte fundamental, talvez a mais importante, h o orix particular da pessoa, considerado o seu antepassadoremoto. O orix particular da pessoa uma nfima poro do orix geral cultuado por todos. o vnculo do ser humano com o divino, o eterno, o passado mtico. Com a morte do corpo, o orix pessoal retorna ao orix geral,quele que existe desde o princpio dos tempos. Oori representa o presente do ser humano; oegum , a sua capacidadede retornar sempre a esse presente, ou se eternizar noOrum como antepassadoegungum ; o orix pessoal, a ligaodo presente com o mito, com o passado remoto que age sobre o presente e do qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado reproduzido no presente pela infinidade de humanos, nos quais os orixs se perpetuam a cada nascimento, pois cada ser humano descende de um orix, fecha de novo o ciclo africano do tempo.

    A escravido destruiu as estruturas familiares dos africanos trazidos como escravos para a Amrica,submeteu-os a um ritmo de trabalhado compulsrio e alienado, imps novas crenas e um novo modo de vidacotidiana que pressupunha uma outra maneira de contar o tempo e de o conceber. Assim, quando a religio dos

    orixs foi reconstruda entre ns, muitos dos aspectos e conceitos da antiga cultura africana deixaram de fazer sentido e muitos desapareceram. Mas muito das velhas idias e noes se reproduziram na cultura religiosa dosterreiros de candombl e de outras religies dedicadas aos orixs iorubanos, voduns fons e inquices bantos, assimcomo muita coisa se conservou, em maior ou menor escala, em aspectos no religiosos da cultura popular deinfluncia africana.

    No Brasil dos dias de hoje, o candombl continua a cultuar a memria de seus mortos ilustres, invocados emdiferentes cerimnias e relembrados de gerao a gerao, mas no pde preservar a idia de que os mortos renascemna famlia carnal, pois a adeso ao candombl individual e a famlia-de-santo no corresponde necessariamente famlia biolgica. A idia do antepassadoegungum veio ocupar um lugar secundrio na religio, apenascomplementar na religio dos orixs, que na maioria dos terreiros de formao recente praticada sem essa

    referncia. Como a religio dos orixs congrega grupos minoritrios, cada um pertencente a um determinado terreiro,autnomo em relao aos demais, grupos formados por adeptos que fazem parte de uma sociedade mais ampla, cujacultura predominantemente ocidental e crist, o culto a antepassados coletivos que controlam a moralidade de umacidade inteira, digamos, como ocorria originalmente em terras africanas, no se viabilizou por razes evidentes. Omundo brasileiro fora dos muros do terreiro no territrio dos antepassados, como era na frica tradicional.

    A concepo iorub de reencarnao sofreu na Amrica a influncia da idia crmica de reencarnao doespiritismo kardecista religio de origem europia que prega a reencarnao como mecanismo de um sistema ticode premiao e punio dos atos praticados em vida e que permite ao esprito do morto aperfeioar-se atravs demuitas vidas (Prandi, 2000c). O kardecismo tem uma concepo de tempo repetitivo em espiral, que expressamudana, evoluo espiritual, aperfeioamento voltado para o futuro neste e no outro mundo, tudo muito diferente daviso africana.

    Alm da influncia kardecista, as concepes africanas da morte tambm foram se borrando no contato dareligio dos orixs com as noes prprias do catolicismo hegemnico, durante mais de um sculo de sincretismo. Orito funerrio doaxex (Prandi, 1999), celebrado para desligar o morto da vida presente, para que ele possa partir e

    [AN1] Comentrio:

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    depois voltar como outra pessoa, rito que representa a quebra de todos os vnculos do morto com o Ai, continua a

    ser praticado, mas tende hoje a ser realizado com mais freqncia nas exquias dos lderes mais expressivos doterreiro de candombl. Raramente se realiza quando o morto ocupa um lugar inferior na hierarquia religiosa.Justifica-se hoje mais pela etiqueta da corte do que pela concepo tradicional de reencarnao. No parece, contudo,que os seguidores do candombl e de outras religies afro-brasileiras tenham incorporado decisivamente nem anoo de carma do espiritismo nem a idia salvacionista crist de julgamento, prmio e punio aps a morte, de talmodo que o futuro que se descortina depois desta vida, segundo a concepo crist, continua a ser para os religiosos brasileiros afro-descendentes, pelo menos em certa medida, um tempo desprovido de sentido: depois da morte, o quese esperaria, assim, voltar para este mundo, para o presente do Ai.

    VI

    Para os iorubs o tempo cclico, tudo o que acontece repetio, nada novidade. Aquilo que nosacontece hoje e que est prestes a acontecer no futuro imediato j foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos prprios orixs. O orculo iorubano, praticado pelos babalas, que so os sacerdotes de If ouOrunmil, o deus da adivinhao, baseia-se no conhecimento de um grande repertrio de mitos que falam de todasorte de fatos acontecidos no passado remoto e que voltam a acontecer, envolvendo personagens do presente. sempre o passado que lana luz sobre o presente e o futuro imediato.

    Conhecer o passado deter as frmulas de controle dos acontecimentos da vida dos viventes. Esse passadomtico, que se refaz a cada instante no presente, narrado pelosodus do orculo de If. Cadaodu um conjunto demitos, cabendo ao babala descobrir qual deles conta a histria que est acontecendo ou que vai acontecer na vida presente do consulente que o procura em busca de soluo para suas aflies. Quando o adivinho identifica o mito

    que se relaciona com o presente do consulente, e o faz usando seus apetrechos mgicos de adivinhao, fica sabendoquais procedimentos rituais como sacrifcios, recolhimento e purificaes devem ser usados para sanar os malesque afligem o cliente. A frmula receitada a mesma aplicada no passado, quando foi usada com sucesso, conformenarra o mito. Nada novo, tudo se refaz. Tambm atribuio do babala identificar, no nascimento de uma criana,a reencarnao de um ente querido. No se pode dar nome a uma criana sem antes saber de onde ela vem, pois umnascimento no uma tbula rasa. um retorno. O babala ao mesmo tempo o guardio do passado e o decifrador do presente. Ele usa o passado para a decifrao do presente. Seu demorado e penoso treinamento o obriga aaprender de cor milhares de versos, os poemas de If, que narram o passado mtico de seu povo, seus deuses e seusheris (Prandi, 1996, cap. 3).

    No h mais babalas no Brasil, mas os pais e mes-de-santo operam as antigas tcnicas oraculares. Noaprendem os poemas de If, atribuio dos antigos babalas, mas sua magia ainda consiste em descobrir oodu querege cada situao presente, como meio de desvendar no presente as mesmas causas dos acontecimentos no passado.E san-las, com o mesmo receiturio.

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    VII

    concepo africana de tempo no candombl e em outras denominaes religiosas de origem negro-africana esto intimamente associadas as idias de aprendizado, saber e competncia. Para os africanos tradicionais,o conhecimento humano entendido, sobretudo, como resultado do transcorrer inexorvel da vida, do fruir dotempo, do construir da biografia. Sabe-se mais por que se velho, porque se viveu o tempo necessrio daaprendizagem. A aprendizagem no uma esfera isolada da vida, como a nossa escola, mas um processo que serealiza a partir de dentro, participativamente. Aprende-se medida que se faz, que se vive. Com o passar do tempo,os mais velhos vo acumulando um conhecimento a que o jovem s ter acesso quando tiver passado pelas mesmasexperincias. Mesmo quando se trata de conhecimento especializado, o aprendizado por imitao e repetio. Asdiferentes confrarias profissionais, especialmente as de carter mgico e religioso, dividem as responsabilidades deacordo com a senioridade de seus membros e estabelecem ritos de passagem que marcam a superao de uma etapade aprendizado para ingresso em outra, que, certamente, implica o acesso a novos conhecimentos, segredos oumistrios da confraria. A importncia dos ritos de passagem foi enfaticamente preservada nas religies afro- brasileiras; ritos que so sua marca mais notvel. Na carreira inicitica, cada etapa corresponde, evidentemente, aocompromisso de novas obrigaes e ao alcance de novos privilgios. A passagem de uma etapa para outra no determinada pelo tempo escalar, nem poderia, mas por aquilo que realmente o iniciado capaz de fazer. Mais umavez, o que conta a experincia. Ser mais velho saber certo, fazer mais e melhor. Muitas das diferentes atribuies profissionais, talvez as mais importantes, so herdadas, passadas de pai para filho, de me para filha, numa clarareafirmao de que a vida repetio.

    Os iorubs s conheceram a escrita com a chegada dos europeus. Assim, todo o conhecimento tradicional baseia-se na oralidade. Mitos, frmulas rituais, louvaes, genealogias, provrbios, receitas medicinais,

    encantamentos, classificaes botnicas e zoolgicas, tudo memorizado. Tudo se aprende por repetio, e a figurado mestre acompanha por muito tempo a vida dos aprendizes. Os velhos so os depositrios da cultura viva do povoe a convivncia com eles a nica maneira de aprender o que eles sabem. Os velhos so os sbios e a vidacomunitria depende decisivamente de seu saber, de seus mistrios. O ancio detm o segredo da tradio. Sua palavra sagrada, pois a nica fonte de verdade.

    Essa forma de conceber o aprendizado e o saber entra em crise nos candombls quando seus membros, jescolarizados, passam a se valer das frmulas escritas que, pouco a pouco, vo surgindo disponveis nos livros e emoutras publicaes. Mais que isso, os seguidores das religies dos orixs, voduns e inquices so, hoje em dia, provenientes das mais diferentes origens e classes sociais e todos eles, ou sua grande maioria, conhecem aexperincia efetiva de se aprender na escola. Esta orientada para a efetivao do aprendizado rpido, racional eimpessoal, o saber premido pelo tempo de calendrio. A escola, mecanismo de transmisso de todo o saber considerado importante pela sociedade, uma instituio para jovens. Em nossa sociedade, na juventude que sedomina o conhecimento e espera-se que os jovens saibam mais do que os velhos. De fato, um jovem de vinte anos,hoje, pode saber mais do que seus pais e muito mais do que seus avs, porque aprende na escola, onde o

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    conhecimento avana rapidamente. O saber est fora de casa, fora da famlia. E o conhecimento nunca definitivo,

    pois est em permanente expanso e constante reformulao, devendo cada um atualizar-se, tomar cincia das novasdescobertas que surgem sem cessar.

    Em nossa sociedade, a velhice concebida como a idade da estagnao, do atraso, da aposentadoria, quesignifica etmologicamente recolhimento aos aposentos e conseqente abandono da vida produtiva e pblica. O jovemno aprende mais convivendo com os mais velhos, aprende com a leitura e as instituies da palavra escrita, e no h professor sem livro. O conhecimento atravs da escrita, cujo acesso se amplia com a aquisio de livros, com asconsultas s bibliotecas, e agora com a chamada navegao na internet, no tem limites, e muito menos segredo.Tudo est ao alcance dos olhos e nem preciso esperar. Etapas do aprendizado podem ser queimadas, nada podedeter a vontade de saber.

    Essa nova maneira de conceber o aprendizado, a idade e o tempo interfere muito nas noes de autoridadereligiosa, hierarquia e poder religioso, dando lugar a contradies e conflitos no interior do candombl, questionandoa legitimidade do poder dos mais velhos, provocando mudanas no processo de iniciao sacerdotal.

    VIII

    Ainda hoje nos candombls do Brasil procura-se ensinar que a experincia a chave do conhecimento, quetudo se aprende fazendo, vendo, participando. Cada coisa no seu devido tempo. Assim, o conhecimento do velho oconhecimento legtimo, ao qual se chega ao longo de toda uma vida. Roger Bastide, que estudou o candombl nadcada de 1950, escreveu que so os sacerdotes que tm a noo do valor do tempo; o tempo que amadurece oconhecimento das coisas; o ocidental tudo quer saber desde o primeiro instante, eis por que, no fundo, nadacompreende (Bastide, 1978: 12).

    Toda a hierarquia religiosa montada sobre o tempo de aprendizagem inicitica, numa lgica segundo aqual quem mais velho viveu mais e, por conseguinte, sabe mais. Mas para o jovem de mentalidade ocidental, otempo urge, o tempo deve ser vencido. A palavra escrita o meio de acesso ao saber e a oralidade no faz maisnenhum sentido. S faz sentido quando se acredita que a frmula aprendida pela via da oralidade a nica capaz dese mostrar eficaz, mas isso uma imposio religiosa defendida apenas pelos amantes da tradio, seja l o que isso possa significar. Numa sociedade como a nossa, em que a cincia j desmascarou o segredo, difcil acreditar quetudo tem o seu tempo, e que preciso esperar a hora certa, pois a vida diria e a luta pela sobrevivncia seencarregam de mostrar o contrrio. Em nossa cultura, premiado quem chega primeiro.

    Os membros de um candombl so classificados basicamente em duas grandes categorias de idadeinicitica: osias , aqueles iniciados h pouco tempo e que formam o grupo jnior, e osebmis , os iniciados h bastante tempo e que assim so capazes de realizar, com autonomia, atividades rituais mais complexas, o gruposnior. A palavraebmi , do iorubegbomi , significa exatamente meu mais velho, e era assim que na antiga famlia polignica iorub as esposas mais velhas se tratavam. Ia , nessa famlia tradicional, era a denominao dada s

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    esposas mais novas. No candombl, enquanto osebmis conquistam certa autonomia em relao autoridade

    suprema da me ou do pai-de-santo e so encarregados de tarefas rituais importantes, de prestgio dentro do grupo,com privilgios e honras especiais, asias (ou osias , pois h muito a palavraia perdeu no candombl a conotaode esposa), os jovens iniciados, enfim, s fazem obedecer, usando smbolos e cultivando gestos e posturas quedenotam a sua inferioridade hierrquica. Lembrando que a estrutura organizacional do candombl uma reproduosimblica da estrutura tradicional da famlia iorub, de resto perdida no Brasil, evidencia-se a importncia daexperincia acumulada na constituio dos grupos de autoridade. Osebmis so os que sabem, porque so maisvelhos, viveram mais, acumularam maior experincia. Sua autoridade dada pelo tempo acumulado, que pressupesaber maior.

    Como o candombl religio e em nossa sociedade a religio uma das esferas autnomas da cultura (oque faz da religio dos orixs na Amrica algo bem diferente do que foi na frica), a noo de tempo acumulado nombito religioso entre ns tende a ser, e cada vez mais, descolada do tempo que marca o transcurso da vida. Pode-

    se ingressar no candombl, por livre escolha, em qualquer momento da vida, em qualquer idade. Assim, a idade biolgica da pessoa no a mesma da idade inicitica, de modo que um jovem iniciado h muito tempo pode ser oebmi de umia que se iniciou depois de maduro. O tempo de iniciao transformou-se no tempo que realmenteconta. Evidentemente, nos primrdios do candombl, a passagem de uma sacerdotisa jnior para a categoria snior era o resultado natural do saber religioso acumulado durante o tempo necessrio, durasse quanto durasse. Oreconhecimento por parte do grupo de sua capacidade e competncia na realizao de atribuies rituais complexasera resultado natural do fazer dessas atribuies, combinado com a dedicao religiosa expressa por meio desucessivas obrigaes rituais a que se submetia a devota. Cuidar de seu orix pessoal, oferecendo-lhe os necessriossacrifcios peridicos, e trabalhar com autonomia em benefcio do grupo eram as condies que indicavammaturidade, competncia nos ritos, capacidade de liderana, saber e autoridade.

    Numa determinada poca da consolidao do candombl, foi necessria a criao de rito de passagemespecfico que tornasse pblico o reconhecimento da condio de senioridade, rito hoje conhecido pelo nome dedec , a partir do qual aia assume a posio deebmi , de mais velho. Agora fazendo parte de uma sociedade em queo tempo que conta o tempo do calendrio, dotado em nossa cultura de objetividade inquestionvel, o candomblacabou por mensurar em anos o tempo de aprendizagem doia . Depois de se submeter ao grande rito de passagemque o inclui no candombl como sacerdote jnior, a chamada feitura de orix, oia pode, depois de anos deaprendizado, e tendo cumprido os ritos intermedirios, ascender ao grau deebmi , conquistando assim suasenioridade. Como snior poder receber incumbncias de mando, assumir tarefas de prestgio e iniciar novosadeptos, podendo, se quiser, abrir seu prprio terreiro. Em algum momento no meio do curso do sculo XX eningum sabe dizer como foi nem de onde veio a iniciativa , a lei-do-santo, espcie de cdigo consensual noescrito que regula os costumes e a vida religiosa nos terreiros, em permanente constituio, fixou em sete o nmero

    mnimo de anos necessrios ao recebimento do grau de senioridade, o tempo dodec , tempo de autoridade. Odec o coroamento de uma seqncia de obrigaes que inclui, depois da feitura, a obrigao de um ano, a de trs anos efinalmente a de sete anos, tudo definido numa escala de tempo ocidental. Evidentemente, atrasos eventuais emqualquer etapa arrastam para adiante o perodo total.

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    O tempo de iniciao, agora computado em termos de anos, meses e dias, e em certos casos horas, impe-se

    como chave do ordenamento hierrquico no grupo, instituindo-se o que os antroplogos chamam de peking order , aordem das bicadas, uma disposio hierrquica que pode ser observada nos galinheiros. Ali, uma galinha,certamente a mais forte, a lder inconteste, bica todas as demais e no bicada por nenhuma; uma segunda bicada pela primeira e bica as outras; uma terceira bicada por essas duas e bica as demais, e assim por diante, at a ltimagalinha, que bicada por todas e no bica nenhuma. Esse esquema, muito caracterstico de sociedades deestruturao social mais simples e de associaes iniciticas, rigorosamente observado nos candombls. Pode ser apreciado na ordem em que as filhas-de-santo se colocam na roda das danas, na ordem dos pedidos de bno quem beija a mo de quem e em quase todos os momentos em que a etiqueta do terreiro imprime a marca dotempo.

    Um lema da chamada lei-do-santo muito cultivado afirma que o mais velho sabe mais e que sua verdade incontestvel. Saber poder, proximidade maior com os deuses e seus mistrios, sabedoria no trato das coisas deax , a fora mstica que move o mundo, manipulada pelos ritos. Por isso, o mais novo prostra-se diante do maisvelho e lhe pede a bno, no lhe dirige a palavra se no for perguntado, pede licena Ag ebmi , licena meumais velho para falar na sua presena, oferece-lhe sua comida antes de comear a comer Ajeum , vamos comer,servido? , abaixa a cabea quando dele se aproxima, curva-se sua passagem, inclina-se e o cumprimenta juntandoas mos Mojub , salve! quando se canta para o orix a que este mais velho devotado. Tudo isso acontece numaordem na qual cada um conhece bem o seu posto, ou pelo menos deveria conhecer.

    Contudo, no mundo em que vivem, os jovens aprendem que idade no sinnimo de sabedoria. Nocandombl, experimentam que nem sempre os mais velhos em iniciao sabem mais. O jovem aprende no terreiro,mas pode ampliar seus conhecimentos religiosos por meio de outras fontes, sendo que a leitura pode ser uma portaaberta que o leva a um universo de informao sobre as coisas da religio do qual o mais velho nem suspeita. O

    jovem perde a confiana no mais velho, contesta sua sabedoria, rompe sua lealdade para com aqueles que o iniciarame pode abandonar o grupo procura de outros lderes que lhe paream mais apropriados, mudando de ax, como sediz, mudando de terreiro, de famlia-de-santo, de filiao religiosa. Muitos que se iniciam hoje no candombl tmuma aspirao ocupacional muito clara: desejam ser pais e mes-de-santo, buscando nessa religio, como acontecenas outras, um meio de vida e uma oportunidade de ascenso social. Para esses, quanto mais cedo for alcanada asenioridade, melhor, no raro burlando a contagem dos sete anos.

    A busca do conhecimento transforma-se, ento, numa luta contra o tempo, invertendo completamente suanoo original, quebrando a idia de que o tempo a soma das experincias de vida. O terreiro passa a ser vistocomo uma escola ocidental, que estipula prazos e, ao final deles, outorga ttulos e diplomas que atribuem direitos nomercado profissional. O lugar do tempo africano, o tempo do mito, tomado pelo tempo do relgio.

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    IX

    Velhos iniciados contam que nos idos e saudosos tempos do candombl antigo o recolhimento clausura,onde se processa a iniciao, no tinha durao pr-determinada. O filho-de-santo ficava recolhido no terreiro otempo necessrio sua aprendizagem de sacerdote e realizao de todas as atividades que os ritos de uma feitura deorix envolvem. Podia ficar meses, muitos meses, isolado do mundo, totalmente mergulhado na sua iniciao. Issoficou para trs. Hoje, cada iniciao, que se faz num perodo que no soma os dias de um ms, tem de ser cuidadosamente planejada, de modo a encaixar os dias de recolhimento do filho-de-santo nas suas frias de trabalhoou nos momentos vagos deixados pelos compromissos da vida secular. O tempo da iniciao passa a ser regulado pelo tempo do mercado de trabalho. O tempo africano do terreiro vencido pelo tempo da sociedade capitalista.

    Nesta nossa sociedade do tempo irreversvel, cada vez mais as imagens e referncias do tempo circular vose perdendo: o relgio analgico, com seus ponteiros sempre dando a volta para retornarem ao ponto zero, sosubstitudos pelo relgio digital; os supermercados 24 horas e outros negcios essenciais ao consumo na vidacotidiana no fecham para descanso; os canais de televiso ficam no ar noite e d ia; trabalha-se em qualquer perodo;a internet mantm ininterrupto o acesso aos arquivos de informao dos computadores ligados na rede mundial; at oamor se faz a qualquer hora nos motis full-time ; a eletricidade h muito acabou com a escurido e fez da noite, dia;a engenharia dos transgnicos nos faz sonhar com uma natureza transformada a cada colheita. Se at na natureza otempo cclico vai perdendo importncia, que dir na vida do terreiro.

    Os velhos do candombl falam do passado como um tempo perdido, que j no se repete, vencido por um presente em que impera a pressa, o gosto pela novidade, a falta de respeito para com as caras tradies e, sobretudo,o descaso para com os mais velhos. Dizem que o candombl hoje vive de comrcio, pura exibio, reclamam queuns querem ser mais que os outros, falam que os que mal saram das fraldas, que no sabem nada, j empinam a

    cabea para os antigos, lamentam que os velhosbabs e as velhasis no tem mais voz em nada, asseveram queos jovens o que querem sugar os seus mais velhos e depois chutar seu traseiro e buscar outro lugar onde podemmandar vontade. Falam com saudade daquele mundo ideal que ficou para trs e gostam sempre de frisar que nomeu tempo no era assim, repetindo que hoje ningum mais tem humildade, querendo saber mais do que osantigos, essas crianas presunosas, esses jovens cheios de vento. Seu discurso triste revela certamente muito denostalgia da juventude, mas tambm o testemunho verdadeiro de perdas efetivas.

    O presente agora se descortina como ruptura, descontinuidade. O passado no explica mais, nem secompleta no presente. Os mitos vo sendo esquecidos, osodus simplificados, os deuses ganham ares maiscondizentes com a modernidade. Os jovens acusam os mais velhos de levarem para o tmulo segredos iniciticos queno transmitem para ningum, enfraquecendo os mistrios da religio e sua fora, oax , mas de fato no seimportam muito com isso. Acreditam menos na existncia dos segredos do que os mais velhos diziam acreditar.Aprenderam que a tradio e pode ser construda a cada instante, pois a lei-do-santo, que ordena as tradies docandombl, no tem mais do que um sculo de vida, nem uma nica verso, e est sempre mudando. E levam adiantesua religio, pensando no futuro.

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  • 8/9/2019 Candombl e o Tempo - Reginaldo Prandi

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    X

    Para o Ocidente, o futuro a grande incgnita a ser decifrada, controlada, um tempo a ser planejado paramelhor ser usufrudo. A esperana sempre se deposita num tempo vindouro para o qual so pensadas as grandesrealizaes que devem ser introduzidas em prol da felicidade humana. Investe-se no futuro. Olha-se para o passado procurando os erros cometidos e que devem ser evitados no presente para garantir um futuro melhor. A histriaensina como agir com sabedoria e responsabilidade em face do devir. Um emblemtico mote de Karl Marx diz quena histria nada se repete, a no ser como farsa. Para o africano tradicional o contrrio: a repetio o almejado, ocerto, o inquestionvel. O novo, o inesperado, o que no vem do passado, o falso, o perigoso, o indesejvel.

    O candombl dos dias de hoje est posto entre esses dois conceitos opostos de tempo. Um e outro remetema concepes diversas de aprendizado, saber e autoridade. Levam a noes divergentes sobre a vida e a morte, areencarnao e a divinizao. Nesse embate, a religio muda, adapta-se, encontra novas frmulas e adota novaslinguagens. Os orixs ganham novos territrios, conquistam adeptos nas mais diferentes classes sociais, origensraciais e regies deste e outros pases. O que a realidade social das religies no Brasil tem mostrado que a religiodos orixs cresce e prospera (Pierucci e Prandi, 1996). Sobretudo se transforma, cada vez mais brasileira, cada vezmenos africana. Mesmo o movimento de africanizao, que procura desfazer o sincretismo com o catolicismo erecuperar muitos elementos africanos de carter doutrinrio ou ritualstico perdidos na dispora, no pode fazer areligio dos orixs no Brasil retornar a conceitos que j se mostraram incompatveis com os da civilizaocontempornea. O tempo africano perde sua grandeza, vai se apagando. Permanece, contudo, nas pequenas coisas,fragmentado, manifestando-se mais como ordenador de um modo peculiar de organizar o cotidiano caracterstico deuma religio que se mostra extica, extravagante e enigmtica.

    E pouco a pouco o povo-de-santo acerta seus relgios. Sabe que o candombl deixou de ser uma religioexclusiva dos descendentes de escravos africanos uma pequena frica fora da sociedade, o terreiro comosucedneo da perdida cidade africana, como ainda o encontrou Roger Bastide quase meio sculo atrs (Bastide,1971: 517-518) para se tornar uma religio para todos, disposta a competir com os demais credos do pas no largo eaberto mercado religioso. Uma instituio dos tempos atuais em um processo de mudana que reformula a tradio eelege novas referncias, para o bem e para o mal. O tempo tempo de mudar.

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    Primeira edio: 1976.

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    Conferncia apresentada no evento Tempo Inoculado, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em31 de janeiro de 2001. O autor a Marcello Dantas, curador do evento, pelo entusiasmo, e a Teresinha Bernardo, pelas

    sugestes amigas e competentes.

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    Nome do arquivo: Candombl e o Tempo - Reginaldo PrandiDiretrio: C:\Users\nilton\DocumentsModelo: C:\Users\nilton\AppData\Roaming\Microsoft\Modelos\Normal.dotmTtulo: Tempo genitor: Tempo, saber e autoridade nas religies afro-

    brasileirasAssunto:Autor: Reginaldo PrandiPalavras-chave:Comentrios:Data de criao: 15/09/2003 11:31:00 Nmero de alteraes: 2ltima gravao: 15/09/2003 11:31:00Salvo por: Luana AlmeidaTempo total de edio: 2 Minutosltima impresso: 07/08/2010 18:25:00Como a ltima impresso

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