Candido - Realidade e Realismo via Marcel Prosut

download Candido - Realidade e Realismo via Marcel Prosut

of 5

Transcript of Candido - Realidade e Realismo via Marcel Prosut

  • R E C O R T E S 1

    grecem como bronze ao sol vejo a digital abrir-se sobre um ta:' pete de filigranas de prata, de olhos e de cabeleiras.

    Moedas de ouro amarelo espalhadas sobre a gata, pilastras de mogno sustentando uma cpula de esmeraldas, buques de cetim5 branco e de finas varas de rubis rodeiam a rosa d'gua.

    Como um deus de enormes olhos azuis e formas de neve, o mar -e o cu atraem aos terraos de mrmore a multido das rosas for-1 tes e jovens.* ;

    Aqui, os tecidos, metais, jias se dispem em torno de elementos da natureza vegetal, que so apenas trs, mas funcionam de maneira decisiva, porque amarram cada segmento do poema e permitem a transfuso dos dois mundos , o natural e o factcio. So eles: a flor di-gital, a rosa d'gua, as rosas. O mar e o cu, estes foram metamorfo-seados em deus, enquanto os olhos e as cabeleiras so realidades ex-tradas do contexto, desempenhando papel ornamental de jia ou fi-bra. Reciprocamente, a flor brota de um tapete.

    A lei deste texto a inverso de funes, o que constitui u m para-doxo a seu modo, pois normal o conjunto dos elementos artificiais, que constroem um nexo prprio; anormal a apario espaada e estratgica dos elementos da paisagem. No m u n d o dos tecidos, jias, metais, a flor e a gua so desvios que criam o impacto potico. Em que mundo estamos, no fim das contas? Estamos no m u n d o com-plexo e ambguo, ao mesmo tempo real e inventado, onde Rimbaud institui o seu discurso, que simultaneamente referncia e no-refe-rncia. Nele, sentimos o real como presena poderosa, mas subver-tido pelo fulgor dos elementos artificiais. U m sentido desliza para outro e o leitor fica suspenso entre a impresso de que entende e no entende, capta e no capta, recebendo no obstante uma mensagem vlida, mesmo quando salpicada de ininteligvel do ponto de vista lgico.

    Nestes casos, podemos notar a fora de Rimbaud, cuja seduo for-mal vai de par com uma virulncia que subverte a ordem do mundo,

    * I Traduo de Ledo Ivo, com pequena modificao, data vnia.

    I .15 AS T R A N S F U S E S DE R I M B A U D

    mesmo quando parece apenas recri-lo. Isso no ocorre apenas nos lextos mais bvios sob este aspecto, cheios de stira e sarcasmo, de inconformismo e desespero, mas tambm noutros de aparente gratui-dade, que, no entanto, sugerem u m m u n d o de pernas para o ar devi-do reviso potica, geradora de vrias percepes possveis. Em I I . E U R S , a gua e as flores parecem da mesma essncia que a gata, o tecido, o ouro, o mogno, o rubi, cuja eventual natureza metafrica foi atenuada por uma transfuso que os faz funcionar como termos prprios, no figurados. Mas no tenho certeza se mesmo assim.

    22 I REALIDADE E REALISMO (VIA MARCEL PROUST) A busca da verdade na literatura (verdade convencional da fico)

    se norteia frequentemente pelo esforo de construir uma viso coe-rente e verossmil, que seja bastante geral para ir alm da particula-ridade e bastante concreta para no se descarnar em abstrao. Por isso, decisiva a maneira pela qual so tratados os elementos parti-culares, os pormenores que integram uma descrio ou uma narra-tiva, seja da vida interior, seja do quadro onde vivemos.

    Ora, este t ipo de enfoque tem uma das suas modalidades princi-pais no Realismo, que para alguns o nico e para outros u m dos muitos caminhos possveis. Se considerarmos Realismo as modalida-des modernas, que se definiram no sculo XIX e vieram at ns, ve-remos que elas tendem a uma fidelidade documentria que privile-gia a representao objetiva do momen to presente da narrativa. No entanto, mesmo dentro do Realismo, os textos de maior alcance pro-curam algo mais geral, que pode ser a razo oculta sob a aparncia dos fatos narrados ou das coisas descritas, e pode ser a lei destes fatos na sequncia do tempo. Isso leva a uma concluso paradoxal: que talvez a realidade se encontre mais em elementos que transcendem a aparncia dos fatos e coisas descritas do que neles mesmos. E o Re-alismo, estritamente concebido como representao mimtica do mundo, pode no ser o melhor condutor da realidade.

    O Realismo se baseia nalguns pressupostos, inclusive o tratamen-to privilegiado dos pormenores, pelo seu acmulo ou pela sua con-

  • RECORTES

    textualizao adequada. O que pretendo discutir alguma coisa a respeito, comeando por lembrar que a viso realista pressupe (1) a multiplicao do pormenor, (2) a sua especificao progressiva e (3) o registro de suas alteraes no tempo.

    O uso do pormenor tem uma funo referencial e uma funo es-trutural. A primeira consiste em reforar a aparncia de realidade (verossimilhana) e, portanto, dar credibilidade existncia do ob-jeto ficcional - como quando se descreve a verruga no nariz de um personagem ou as coisas que desfilam na sua mente. A segunda re-sulta do arranjo e qualificao dos elementos particulares que, no texto, garantem a formao do seu sentido especfico e a adequao recproca das partes (coerncia). No Realismo ambas esto correla-cionadas de maneira indissolvel, pois a eficincia de uma depende da eficincia da outra.

    Portanto, a especificao do pormenor um dos fatores que insti-tui o discurso ficcional, estabelecendo nexos sucessivos que vo an-corando a particularidade dos elementos na generalidade do signifi-cado, como se pode ver pela decomposio de um texto de Proust a partir da primeira palavra, vazia de sentido ficcional:

    O sol O sol/ iluminava O sol/ iluminava/ at meia altura O sol/ iluminava/ at meia altura/ u m renque de rvores O sol/ iluminava/ at meia altura/ u m renque de rvores/ que margeava a estrada de ferro.*

    Mas a viso realista s se completa graas ao registro das altera-es trazidas ao pormenor pelo tempo, que pode ir de algumas ho-ras at u m sculo - e ao introduzir a durao introduz a histria no cerne da representao da realidade. As coisas, os seres, as relaes existem na medida em que duram; por isso, muito da sua especifi-

    * I Mareei Proust, Em busca do tempo perdido, VII, O tempo redescoberto, trad. Lcia Miguel Pereira, Rio de Janeiro, Porto Alegre, So Paulo, Globo, 1956, p. 112.

    137 REALIDADE E REALISMO (VIA MARCEL PROUST)

    cao realista consiste em mostrar o efeito do tempo sobre os deta-lhes, mesmo porque a suprema especificao pode ser essa marca temporal. Como diz Auerbach:

    A imitao da realidade a imitao da experincia sensorial da vida na terra, uma de cujas caractersticas principais sem dvida possuir uma histria, mudar, desenvolver-se; seja qual for a liber-dade que se der arte da imitatio, o artista no tem o direito, na sua obra, de privar a realidade dessa caracterstica, que pertence sua prpria essncia. **

    O Realismo se liga, portanto, presena do pormenor, sua espe-cificao e mudana. Quando os trs formam uma combinao ade-quada, no importa que o registro seja do interior ou do exterior do homem; que o autor seja idealista ou materialista. O resultado uma viso construda que pode no ser realista no sentido das correntes literrias, mas real no sentido mais alto, como acontece na obra de Proust, que negava qualquer sentido realista chuva de pormenores formada pelo seu grande livro. Ele tinha uma teoria no realista da realidade, que acabava numa espcie de transrealismo, literaria-mente mais convincente do que o Realismo referencial, por permi-tir o curso livre da fantasia e, sobretudo, o uso transfigurador do pormenor, como se ele criasse uma realidade alm da que experi-mentamos. Atravs dos seus textos verifica-se que o enfoque literrio do mundo interior ou exterior ganha sentido quando a especificao do detalhe se integra numa generalizao que o trans-figura. O detalhe funciona ento como tecla que, ao lado das outras, permite modular a linha expressiva da representao ficcional.

    Alis, a obra de Proust delineia uma teoria que pressupe nesta o tratamento simultneo da estrutura e do processo, ou, nos termos da presente discusso, do pormenor integrado em configuraes ex-

    ** I Erich Auerbach, Mimesis. A representao da realidade na literatura ocidental, trad. George Bernard Sperber, So Paulo, Perspectiva, 1971, p. 163. (Fiz algumas modificaes na traduo deste trecho.)

  • R E C O R T E S 138

    pressivas, e sua alterao no tempo como lei do significado. Resulta u m paradoxo aparente, pois ele descreve a mudana incessante de seres, relaes e coisas no fluxo temporal, mas encontra o significa-do nas permanncias que essa mudana revela - o que vem definido n o citado volume final de Em busca do tempo perdido, carregado de teoria da arte e da literatura.

    Logo no comeo o narrador conta que, estando de visita ao castelo de uns amigos, leu por acaso u m trecho indito do famoso Dirio dos irmos Goncourt, que transcreve. Na verdade um pastiche admir-vel, uma fico de segundo grau dentro da fico, onde Edmond de Goncourt fala, como se fossem pessoas vivas, de certos personagens de Proust: o casal Verdurin e os frequentadores da sua casa.

    O pastiche surpreendente enquanto reproduo das peculiarida-des de estilo e da concepo de vida e arte de Edmond de Goncourt. Mas a sua finalidade estabelecer de modo irnico a opinio negati-va de Proust sobre o Realismo como escola, a propsito de sua moda-lidade extrema, o Naturalismo. Para tanto usa u m mtodo de grande eficincia: mostrar os personagens, que conhecemos desde o comeo da obra atravs da maneira proustiana, segundo a maneira prpria de Goncourt, como viso alternativa que podemos comparar com a outra. A comparao revela uma discordncia fundamental, que o narrador ressalta com falsa modstia cheia de subentendidos ir-nicos, mostrando-se estrategicamente mortificado por no ter sabi-do ver aquilo que o famoso naturalista vira.

    A diferena entre ambos que Goncourt (no pastiche, mas tam-bm na obra real) s enxerga detalhes exteriores, que lhe bastam co-m o fundamento da interpretao e como imagem do mundo . Ou seja: o seu olhar pra na superfcie. J o narrador enxerga, n u m nvel alm dos detalhes externos, uma "semiprofundidade" (como diz) ca-racterizada pela unificao, no a soma dos pormenores. Nesse nvel os detalhes deixam de ser parciais e isolados para exprimirem uma to-talidade, una e coerente, que serve de base verdadeira da interpretao. Ironicamente, o narrador lamenta que, ao contrrio de Goncourt , veja coisas que no prestam para a "observao" (a perspectiva docu-mentria realista). Mas logo abaixo a sua falsa modstia se desfaz,

    139 REALIDADE E REALISMO (VIA MARCEL PROUST)

    quando fica evidente que isto ocorre porque vai mais fundo, em bus-ca do que se poderia chamar uma viso.

    O n da diferena est em que o Goncourt do pastiche via em to-dos os pormenores u m momento determinado do Salo Verdurin, enquanto o narrador deseja procurar a sua identidade fundamental nos diferentes lugares e momentos em que funcionou. Nesse nvel que os detalhes desaparecem como registro documentrio para for-marem o alicerce de uma viso unificadora, obtida por meio do des-carte do acessrio, que ele compara ao trabalho do gemetra em busca do "substrato linear". A fim de obt-lo, vai "despojando os cor-pos das qualidades sensveis".

    (...) o que me causava um prazer especfico, era a descoberta dos pontos comuns a vrios seres. S ao vislumbr-los, meu esprito -at ento sonolento, mesmo sob^ aprente vivacidade das palavras cuja animao, na conversa, mascarava para outrem um completo torpor espiritual - lanava-se de sbito caa, mas o que nesses mo-mentos perseguia - por exemplo a identidade em diversos lugares e pocas diversas do Salo Verdurin - situava-se a certa profundidade, para alm da aparncia, em zona u m pouco mais recuada.*

    Esta posio explica por que Mareei Proust, considerado colecio-nador de mincias, negava ser um artista do detalhe e dizia o se-guinte em carta a seu amigo Louis de Robert:

    Voc fala da minha arte minuciosa do detalhe, do imperceptvel etc. O que realizo, ignoro, mas sei o que desejo realizar; ora, eu omito (salvo nas partes de que no gosto) todos os detalhes, todos os fatos, no me prendo seno ao que me parece (conforme u m sentido anlogo ao dos pombos-correios; um dia que estiver me sentindo menos mal eu explico isto melhor) revelar alguma lei geral. Ora, como isto nunca nos revelado pela inteligncia, como devemos pesc-lo de algum modo nas profundezas do nosso in-

    * I O tempo redescoberto, op. cit., p. 16.

  • R E C O R T E S 140

    consciente, com efeito imperceptvel, porque distante, difcil de perceber, mas de modo algum u m detalhe minucioso. Um pico entre as nuvens pode, no entanto, embora pequenino, ser mais alto que uma fbrica prxima. Por exemplo, voc pode achar im-perceptvel esse sabor de ch que a princpio no identifico e no qual encontro de novo os jardins de Combray. Mas no de m o d o algum um detalhe minuciosamente observado, uma teoria intei-ra da memria e do conhecimento.*

    Vemos ento que o pastiche de Goncourt serve para mostrar como a laboriosa descrio realista constri uma imagem colorida e ani-mada, mas no fundo no passa de u m acmulo de pormenores que valem pouco enquanto possibilidade de compreenso efetiva. Ela estende aos seres a mesma mirada externa com que se dirige aos objetos, apresentando-os como unidades autnomas de significado nico, que produzem uma simples aparncia de sentido. Comparan-do as impresses de Goucourt com o que j sabemos sobre os perso-nagens, vemos que tudo errado, lamentavelmente errado, por se basear no efeito imediato que eles causam, em funo de critrios to mascaradores quanto a predisposio favorvel do escritor devido lisonja que lhe dirigem etc. O olhar de tal escritor pra na superfcie e no discrimina em perspectiva, nem correlaciona as impresses com referncia a u m princpio integrador. Da cada pessoa ou obje-to adquirir um valor por assim dizer absoluto, que se esgota na des-crio ou no juzo. Ao contrrio, a arte do narrador (Proust) preten-de descrever de muitas maneiras, recomear de vrios ngulos, ver o objeto ou a pessoa de vrios modos, em vrios nveis, lugares e m o -mentos, s aceitando a impresso como ndice o u sinal. u m a viso dinmica e polidrica, contrapondo-se a outra, esttica e plana.

    Noutros trechos do livro citado fica bem claro, terica e pratica-mente, que a viso reveladora da realidade tende a uma sntese ba-seada na analogia entre os detalhes, desvendando o seu significado

    * I Louis de Robert, Comment Debuta Mareei Proust, nouvelle dition revue et aug-mente, Paris, Gallimard, 1969, pp. 60-1.

    141 REALIDADE E REALISMO (VIA MARCEL PROUST)

    unitrio. O detalhe em si no interessa. Interessa como estmulo pa-ra procurar a sua afinidade com outros, por meio da analogia. Da a importncia da metfora, mais que da descrio, porque ela mostra as analogias e vincula uma variedade de pormenores. A ligao des-tes em nvel fundo configura o significado real - rede oculta ina-cessvel topografia realista positiva, como a de Goncourt. Da a mencionada "certa profundidade".

    Mas a ligao entre objetos, lugares e pessoas no ocorre apenas n u m momento; ela se desdobra no tempo. Por isso, o narrador no est interessado na minuciosa descrio realista do Salo Verdurin como ele no dia em que o visitou ( maneira do pseudo-Goncourt) . E sim na dos seus vrios momentos, em diversas pocas, a fim de ir, alm da superfcie, at o nvel revelador, onde o particular se recom-pe na fisionomia geral de um modelo. Surge ento o paradoxo: ver as coisas no tempo v-las de modos diversos, em vrias etapas; por-tanto, atingir u m maior grau de generalidade, que define a perma-nncia (relativa) da estrutura sob o processo que a constitui. De tal forma que o caso singular ganha certa generalidade acima do tempo que o gerou e do qual emerge. Estrutura e processo, esttico e din-mico se unem na sntese de uma viso integrativa.

    H, portanto, vinculaes ocultas que ligam os pormenores e com-pem uma espcie de modelo permanente no meio da fuga do tem-po. Elas seriam a base do projeto de Proust, ao provarem que pos-svel a luta da arte contra a dissoluo operada por ele. O escritor pro-cura recuperar a poeira das recordaes porque a memria, permi-tindo remontar ao passado, mostra, meio contraditoriamente, que o que passa s ganha significado ao desvendar o que permanece; e este permite refluir sobre o pormenor transitrio, o particular relativo, para compreend-los. As vinculaes fazem aparecer o desenho do modelo, como os nmeros ligados pela ponta do lpis vo delinean-do uma figura nos livros infantis.

    Assim, o narrador encontra o baro de Charlus, j velho, e o con-funde primeiro com um ator, depois com um pintor que eram ho-mossexuais como ele. Compreende ento que a "revoluo do seu v-cio" o havia transformado ao ponto de atenuar as caractersticas in-

  • R E C O R T E S 142

    dividuais para deixar emergir o modelo geral do invertido. O baro, o pintor, o ator so manifestaes de u m padro, e descrever isolada-mente cada um em si deve levar a descobrir a realidade profunda.

    O sr. de Charlus afastara-se tanto quanto possvel de si mesmo, ou melhor, mascarara-se to completamente com o que no s a ele, mas a muitos invertidos pertencia, que pr imeira vista, an-dando assim atrs de zuavos em pleno bulevar, parecera-me outro que no o sr. de Charlus, que no u m grande senhor, que no um homem de imaginao e de esprito, outro cuja seme-lhana com o baro se cifrasse quele ar comum a todos, que agora, ao menos para quem no se detinha em examin-lo, intei-ramente o recobria.*

    Pelo mesmo motivo o sobrinho do baro, Saint-Loup, que era com-pletamente diverso, comea a apresentar analogias espirituais com ele ao se tornar tambm um invertido; e comea a parecer "um su-cessor", "numa outra gerao, n u m outro ramo" (op. cit., pp. 45-6). De modo a podermos concluir que (paradoxalmente) quando o personagem visto luz da sua categoria os traos da sua singulari-dade realam melhor, porque so referidos a uma lei que a rege.

    Assim, na relao dinmica entre o tempo e o modelo que os de-talhes adquirem o verdadeiro sentido. Mostrando o vnculo entre eles, a especificao, ao articular o discurso, tece a rede dos significa-dos, que est subjacente como o geral sob o particular e pode ou no ser atingida pelo olhar do escritor, conforme ele pare na superfcie (Goncourt) ou alcance a profundidade (narrador). Em tudo isso se destaca a dimenso temporal, deixando ver a permanncia do gne-ro sob a mudana das coisas, dos atos, das pessoas; e mostrando tam-bm que a narrativa ficcional capaz de focalizar simultaneamente a estrutura e o processo.

    * I O tempo redescoberto, op. cit., p. 48.

    1 4 3 OS B R A S I L E I R O S E A NOSSA AMRICA

    23 I OS BRASILEIROS E A NOSSA AMRICA curioso pensar de que maneira os dois grandes blocos lingusti-

    cos da Amrica Latina tm pensado um no outro e tm visto u m ao outro. Encarada com objetividade a situao de acentuada assime-tria, porque o bloco luso, isto , o Brasil, se preocupa mais com o bloco hispano do que o contrrio.

    Os motivos so muitos, a comear pela importncia diferente das duas metrpoles colonizadoras. A Espanha foi potncia europeia de-cisiva em certo momento, e sua cultura pesou na civilizao do Oci-dente. Portugal foi sempre u m pequeno estado marginal, voltado pa-ra o mar e o vasto mundo, sem presena pondervel nos centros da civilizao comum, sem nenhum Filipe II para assombrar a Europa, sem nenhum Cervantes para mudar os rumos da liferatura. Enquan-to a Espanha, com o Quixote e a picaresca, abria caminho para o ro-mance, isto , u m gnero inovador que serviria para exprimir o mo-derno, Portugal produzia Os lusadas, de Lus de Cames, n u m gne-ro, a epopeia, destinado a perder atuao rapidamente. Em conse-quncia de tudo isso e outras coisas que no cabe discutir agora, o es-panhol tende a supervalorizar a sua cultura e impor a sua lngua, en-quanto o portugus aprende docilmente as dos outros. Pensemos em ns, herdeiros deles: ainda hoje, se for, por exemplo, Bolvia, um brasileiro se esforar por falar portunhol, enquanto um boliviano no Brasil falar tranquilamente o seu b o m castelhano.

    Lngua de cultura, o espanhol se tornou neste sculo indispens-vel aos brasileiros, que conheceram boa parte da produo intelec-tual de que necessitavam atravs da mediao de editoras da Espa-nha, Argentina, Mxico, Chile, que nos traziam os textos dos filso-fos, economistas, socilogos, escritores. O ensino superior do Brasil dos anos de 1940 a 1960 teria sido praticamente impossvel sem essas tradues, de maneira que o espanhol existe para ns como lngua auxiliar, enquanto o portugus pouco serve neste sentido aos que vivem no bloco hispnico. Por isso, no Brasil h ensino de espanhol nas escolas secundrias e h cadeiras de Literatura Hispano-Ame-ricanas em universidades, nada havendo de semelhante em relao nossa lngua na Amrica de fala espanhola.