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Fábio Francisco Feltrin de Souza CANÇÕES DE UM FIM DE SÉCULO: História, música e comportamento na década encontrada (1978-1991) Universidade Federal de Santa Catarina

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Fábio Francisco Feltrin de Souza

CANÇÕES DE UM FIM DE SÉCULO: História, música e comportamento na década encontrada

(1978-1991)

Universidade Federal de Santa Catarina

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

CANÇÕES DE UM FIM DE SÉCULO: História, música e comportamento na década encontrada

(1978 – 1991)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial e último para a obtenção do grau de Mestre em História, sob a orientação da Professora Doutora Ana Lice Brancher.

Fábio Francisco Feltrin de Souza

Florianópolis 2005

Agradecimentos

Escrever uma dissertação é um ato bastante solitário. Fui ler os agradecimentos

da minha monografia é pude ver que estava mais próximos dos meus amigos e colegas nos

últimos momentos na velha e saudosa Faed do que agora. Todos tomaram seus rumos,

estão trilhando seus caminhos e isso é o importante. Mesmo assim preciso agradecer, dizer

um muito obrigado a algumas pessoas que de alguma forma estiveram comigo nesses 19

meses. Contudo, antes de lembrar dessas pessoas preciso agradecer a Prefeitura Municipal

de Florianópolis e a Prefeitura Municipal de Biguaçu que pagaram e pagam meu salário de

professor de história. Isso porque não fui agraciado por nenhum tipo de bolsa. Escrevi essa

dissertação trabalhando 60 horas semanais e acumulando uma incrível bagagem de vida.

Obrigado aos meus alunos de 10 a 70 anos, aos professores e diretores que comigo tentaram

construir uma educação de qualidade nesse país. Hoje percebe que não trocaria essa

experiência por nenhuma bolsa.

As bandas New Order, Joy Divison, The Smiths e Legião Urbana que fazem parte

da minha construção e me fizeram companhia na hora da escrita.

Vários beijos e abraços a minha querida Ana, orientadora, amiga, parceira e

confidente. Nossa amizade é o melhor dos resultados desse mestrado... Muito Obrigado

mesmo!

Nádia e Émerson que sempre se mostraram grandes amigos e entusiastas desse

trabalho. Vocês são muito especiais. Espero tomar mais cervejas e jantar mais vezes na

casa de vocês ano que vêm!

Ao meu doce e irritado amor agradeço pelo companheirismo, pela paciência, pela

dedicação, pelos conselhos e principalmente por sempre estar ao meu lado em tudo. Te

amo muito, nunca esqueça disso!

Aos meus amigos e irmãos tão distantes Douglas, Diego e principalmente o Felipe

que com seu senso de organização me ajudou no dia da inscrição do mestrado. Um abraço!

Aos irmãos de corrente dou um sarava e um enorme agradecimento por me

ajudaram a me tornar uma pessoa melhor. Um abraço terno e todo especial ao Vô Chico

por tudo que fez e me ajudou a fazer...

Aos amigos Duda, Luisa, Marcelo, Carol, Thiago e Micheli agradeço pelas

palavras reconfortantes e pelo entusiasmo com que sempre receberam meus trabalho.

Vocês sem dúvida são responsáveis por ele também.

Não podia deixar de encerrar esse momento de lembrança das pessoas que

estiveram comigo sem antes lembrar dos meus irmãos, companheiros, parceiros e acima de

tudo amigos verdadeiros e sinceros Júlia, Assis, Jéferson, Sara, Dani e Pivatto. Obrigado

por fazerem parte de mim. Será que estamos conseguindo?

Um brinde ao sonho, à luta, ao novo, de novo!

Resumo

A presente dissertação de mestrado visa a análise e a compreensão das canções do

rock brasileiro produzido nos anos de 1980, percebendo os sintomas dessa década. Em sua

abordagem é possível perceber como a geração de jovens vinculada ao rock está captando

as novas práticas de estar-no-mundo e externalizando seus sentimentos mais diversos

através da música. Durante os anos 1980 é possível notar que jovens urbanos, dos extratos

mediano e populares, agrupam-se em tribos, geralmente inspirados por algum ritmo

musical. Com isso criando uma outra forma de atuação política. Dividida em três

capítulos, a dissertação propõe uma reflexão historiográfica sobre o surgimento das bandas,

suas idéias, comportamentos, elaboração do espaço público e vinculação de pertencimento.

Palavras Chaves: Rock, Anos de 1980, Fim de século

Abstract

This work have a objective of to analyse the songs of brasilian rock music maked

in years of 1980, realized the indication of the decade. In the approach is possible to realize

how the generation of youngs, concted with the rock, is making news costons and speeking

your feels through of the music. In the decade og 1980 is possible to see that urban young,

of work class and midle class, join yourself in tribs, usually inspirade in a musical ritm.

Then the bands criated a nwe form of politic atuation. This text is separeted in 3 capters

and suggest a historiografic reflexion about the begining of the bands, your thoughs,

conduct, construction of the public space and elaboration of identifies.

Key words: Rock, Years of 1980, End of century

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Deu Prá Ti, Anos 701

FESTA CONFIRMADA PARA DIA 5 DE NOVEMBRO Nossa festa O Tempo Não Pára está confirmada para o dia 05 de novembro, sábado, às 22 horas, na Cervejaria Biergarten. No mesmo clima de nossas Festas Anos 80, a original, O Tempo Não Pára resgata músicas dançantes da boa época e reúne amigos de outros e destes tempos. Para esta festa, teremos a parceria da Tribo dos Anjos, equipe que participa da Gincana Cidade de Blumenau e quer colaborar para fazer desta nova festa do Clube Anos 80, mais uma festa de sucesso. ATENÇÃO: os ingressos estarão nas mãos da galera de sempre e também dos integrantes da Tribo dos Anjos, ao preço antecipado de R$ 10,00. Eles estarão à venda a partir desta segunda-feira, dia 10. Serão limitados, como sempre, e na portaria (na hora da festa) serão disponibilizados apenas 100, a um preço maior2.

Festas, tendo os anos de 1980 como tema, lotam casas noturnas em Porto Alegre,

Curitiba, Rio de Janeiro, Florianópolis, Belo Horizonte, Recife e também em Blumenau.

Recentemente, encontros musicais tendo a música dessa década como tema tornaram-se

bastante freqüentes, gostar de música dos anos de 1980 parece ter virado moda. Há cerca

de três anos, ainda na graduação, quando comecei a pensar em pesquisar o rock dos anos de

1980, minha intenção era defender a tese de que a década tinha criado referências

importantes e significativas e que a designação “década perdida” era uma rancorosa e

anacrônica falácia. Por isso escrevi meu Trabalho de Conclusão de Curso sobre a banda

Legião Urbana, no esforço intelectual de interpretar as referências percebidas nos anos de

1980, a partir de uma das bandas mais significativas do período, pelo menos na minha

visão. Meu projeto de pesquisa no mestrado foi todo estruturado nessa lógica, contudo

1 “Deu pra ti” é uma giria muito própria de Porto Alegre, que significa “chega”, “basta”. Essa gíria acabou virando nome de um longa metragem gaúcho dirigido por giba Assis Brasil e Nelson Nodotti. Esse filme inaugurou o faça-você-mesmo (lema punk que analisarei no primeiro capítulo) no cinema. Era um jeito fácil, rápido, barato e ágil de se fazer cinema. In: Gulherme. Quem Tem Um Sonho Não Dança: Cultura Jovem Brasileira no Anos 80. São Paulo: Record, 2004, p. 172. 2 www.clubeanos80.com.br

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ampliando a dimensão das bandas, buscando o fenômeno da explosão do rock na década de

1980 em todo território nacional. Entretanto, nesse espaço de tempo parece ter ocorrido

uma “descoberta” da década. De década perdida passou a “boa época”. Edições especiais

de revistas, da Super Interessante e a da Cult, lançamentos de livros contando histórias da

década, como os de Guilherme Bryan e Ricardo Alexandre (citados no trabalho), shows

especiais na MTV e no Multishow (canais de música) são exemplos dessa descoberta, desse

encontro. No Rio de Janeiro, em 2004, foi reeditada a exposição de artes plásticas Como

Vai Você Geração 80? com o nome de Onde Está Você Geração 80?. Uma espécie de

releitura das obras que surpreenderam o público 20 anos antes. Em 1984, a exposição

reuniu na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 123 jovens artistas

vindos dos mais diferentes pontos do país. Foi um marco das artes plásticas brasileiras3.

Mais tarde os jovens artistas seriam conhecidos como Geração 80. Outra exposição, dessa

vez em São Paulo, foi realizada em 1985 com um número maior ainda de artistas4. Uma

questão marcante daquelas obras foi a mistura entre elementos da cultura popular e erudita,

que passam a ser citados à exaustão nos trabalhos. Objetos do cotidiano são valorizados e

ganham força equivalente a signos da história da arte. Uma renda do nordeste poderia ser

tão importante quanto a imagem de uma pintura clássica. Não havia a necessidade de

mostrar engajamento político, nem a obra ser portadora de algum secreto conceito de

liberdade; não havia patrulha ideológica5. Cinema, música e artes plásticas parecem ter

dito juntos: deu prá ti, anos 70. Trouxeram novas referências, portavam signos do

alvorecer de novas sensibilidades, de uma outra relação com o mundo, como será mostrado

a partir da análise das canções do rock nacional.

3 www.revistamuseu.com.br. 4 Idem. 5 BRYAN, op. cit., p. 237.

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Figura 1: Obra de Sergio Romagnolo - Fusca de ponta cabeça, 2003

Plástico modelado, 180 x 160 x 400 cm. In: www.revistamuseu.com.br

As canções de punk e principalmente do rock nos fornecem um interessante

instrumental para perceber, analisar e discutir sintomas de uma década em que as antigas

certezas revolucionárias são estremecidas. Houve um desencanto com as utopias

salvacionistas, outrora promotoras do paraíso terrestre. Nessa década é perceptível o fim

do milagre econômico que deixando os filhos da classe média sem perspectivas e o fim da

ditadura militar em 1984. Há também um certo desencanto com a vida e ao mesmo tempo

um pavoroso medo da morte, medo do futuro, por conta do advento da AIDS e da

iminência de um conflito nuclear entre EUA e URSS. Assim, as canções do chamado rock

brasileiro podem desvendar toda uma atmosfera de fim de século formada na década de

1980. Década de limites temporais um pouco alargados. Identifico seu início em 1978

com o aprofundamento do processo de abertura política no Brasil e o início da penetração

do punk nas grandes cidades. Seu fim é acompanhado do fim do século XX, que para

Hobsbawm se dá em 1991 com o fim da União Soviética e o desmantelamento do bloco

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socialista. Parece coerente, porque o mundo que desmoronou na década de 1980 foi

formado pelo impacto da revolução Russa de 1917 e de alguma forma marcou as gerações

no século XX. Habituamo-nos a pensar a economia industrial em termos antagônicos,

fechados e bem definidos. De um lado estavam os que defendiam a economia de mercado,

o capitalismo. De forma diametralmente oposta estava os militantes do socialismo

organizados em Partidos Comunistas e trotskistas pelo mundo. Mais que isso, durante os

anos de 1980 uma atmosfera catastrófica, de decomposição e crise pairou sobre o ar6. Foi o

fim de uma Era. O historiador inglês, contudo, desenha ares exclusivamente tenebrosos e

funestos; percebe um abismo. Em muitos países da América Latina a década de 1980 é o

momento da saída das ditaduras militares e a conquista da democracia. O Brasil é um

exemplo disso. Uma grande sensação de otimismo e euforia tomou conta das pessoas.

Essas duas perspectivas são percebidas nas letras e na sonoridade das canções.

O exercício de uma reflexão intelectual proposto neste trabalho está

comprometido com a ação dos seres humanos no enfrentamento das difíceis realidades,

frente às quais são colocados em determinados contextos históricos. A disciplina da

História passou e está passando por um grande debate teórico. Nossa disciplina, como

exercício de rememoração ou explicação do passado, acreditava poder prever tempos

futuros. Seja pela repetição do ocorrido, seja pela projeção de um desenvolvimento

desejado e possível. Havia uma vontade de segurança em relação ao devir, advindo do

progresso seguro da sociedade. No entanto, as incertezas quanto ao futuro também

surpreenderam nossas perspectivas teóricas. Principalmente a partir da década de 1980 o

véu da dúvida impossibilitou que nossas construções de passados possíveis projetassem

6 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O Breve Século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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futuros determinados7. Percebemos que a História não progredia de forma frontal, mas por

desvios, fendas, caminhos tortuosos impossíveis de serem previstos. E dentro de um

determinado tempo histórico, a década de 1980, por exemplo, podem existir várias

temporalidades, inúmeras maneiras de perceber o tempo vivido. Não cabe, pois, mergulhar

nas vestes do romântico anseio de ter o mundo cuidadosamente em minhas mãos. Vagueio

com minhas fontes pelas trilhas abertas nessas fendas, nessas rachaduras. Houve muitas

décadas de 1980 convivendo paralelamente e por vezes interpenetrando-se. Por isso é

cabível a afirmação de que existem inúmeras possibilidades de análise e interpretação.

Estou propondo apenas uma, que é pela análise das canções, da musicalidade.

Somente a partir do início dos anos de 1990 é que a historiografia debruçou-se de

forma mais sistemática sobre as relações entre história e música8. Contudo essas análises

restringem-se ao samba das primeiras década do século XX, bem como a MPB produzida

durante o regime militar. Há muito que investigar, debater e interpretar, principalmente

quando falamos em década de 1980. As canções, sejam elas dos mais variados estilos,

constituem um importante artefato, junto com outras fontes (como jornais, revistas,

cartazes, encartes, depoimentos), para “revelar zonas obscuras das histórias do cotidiano

dos segmentos subalternos”, 9 por isso não podemos correr o risco de tratar um determinado

estilo musical com maior ou menor valor. Não há mais espaço para tais preconceitos

oriundo de equivocados juízos de valor. Até porque a canção de caráter popular deve ser

encarada como uma rica fonte para desvendar e compreender situações e desvendar a

7 GUARINELLO, Norberto Luiz. História Científica, História Contemporânea e História Cotidiana. In: Revista Brasileira de História. no 48, vol. 24. São Paulo, 2005. 8 NAPOLITANO. Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p.8. 9 Id.

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história de setores ou categorias pouco lembrados pela historiografia10. Tanto é que em

2002 foi lançado o livro “Eu Não Sou Cachorro Não: Musica Popular Cafona e Ditadura

Militar”11. Na obra, que apresenta uma exaustiva pesquisa, o autor defende a tese de que

músicos conhecidos como cafonas, Odair José, Waldik Soriano, Nelson Ned, Benito di

Paula e tantos outros citados, são tão importantes do ponto de vista historiográfico quanto

Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. O autor escreve que entre 1968 e 1973

estes artistas sempre apareciam na lista das mais altas vendagens do mercado fonográfico e

simplesmente nunca haviam sido estudados. Assim como em minha pesquisa, na obra

citada não há crítica musical. Todas as canções são consideradas documentos perpassados

por uma historicidade.

Uma discussão inicial que gostaria de apresentar é que não se pode partir do

pressuposto de que existiu um movimento artístico-ideológico coeso nos anos de 1980,

quando falamos em rock. O próprio termo rock é muito abrangente e acaba por totalizar

várias manifestações musicais sob o mesmo signo. Embora esmiuçar as fraturas da

uniformização trazida pelo rótulo do rock não seja um dos objetivos dessa dissertação, é

importante deixar claro que as bandas pesquisadas formaram um campo musical, uma cena

musical nos anos de 1980, pois vários estilos, várias práticas musicais passaram a coexistir

dentro do espectro convencionalmente chamado de rock ´n ´roll12. Há em torno desse

10 MORAES, José Geraldo Vinci. História e Música: Canção Popular e Conhecimento Histórico. In: Revista Brasileira de História. v. 20, n º 39, São Paulo, 2000. 11 ARAÚJO, Paulo César. Eu Não Sou Cachorro Não: Música Popular Cafona e Regime Militar. São Paulo: Record, 2002. 12 É um estilo musical surgido nos anos de 1950, no pós-guerra, nos EUA. Derivado do Blues e do Jaz, nasce como um som dançante geralmente vinculado às questões juvenis. Pedras rolantes, sua tradução, traz a idéia de movimento, de novo a todo instante. Mesmo com quase 60 anos, acompanha a sociedade, sugere discussões e pode nos conduzir a interpretações.

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campo musical uma forte afirmação de geração13, de uma geração, definindo espaços de

atuação ao mesmo tempo em que nega o passado:

Existia uma geração anterior a nossa que achava que aquilo era coisa de garotos alienados e despreparados. Na realidade estávamos mostrando a voz que era a da nossa geração, sem ter receio de demonstrar alegria de viver sem nos desculparmos ou inferiorizarmos14.

A emergência dessa cena roqueira em terras brasileiras, fortemente influenciada

pelo punk15 e pelo rock inglês, a afirmação de uma geração nascida sob signos comuns de

identificação, justamente no momento da Abertura Política é a discussão proposta no

primeiro capítulo. Mais ainda, percebo o período da abertura como uma verdadeira

abertura para o Brasil em vários segmentos, inclusive a música, entendendo a distensão

como vazão para uma multiplicidade ímpar de manifestações culturais. Nesse capítulo

também investigo como se dá a abertura para o mercado, pois há uma reorganização do

mercado fonográfico da década de 1980. Até essa década não existia um segmento de

mercado organizado para o público jovem16.

13 Geração é a partilha de um sentimento comum, de uma semelhança na forma com a qual se relaciona com o mundo, com os grupos, com as pessoas, não ficando restrito à faixa etária. Uma época não gera apenas um tipo uma geração. Assim como podemos dizer que houve várias décadas de 1980, houve várias geração e a que estou estudando é que criou laços de identificação com as práticas inseridas pelo rock. Sempre que o conceito aparecer no trabalho estará se referindo ao grupo de jovens das camadas medianas e populares que estabeleceram uma identificação com todo o jogo de símbolos trazidos pelo rock e suas variações a partir do punk. Em nenhum momento estarei tratando a categoria juventude como una e homogênea, mesmo porque a sociologia desde a década de 1970 fala em juventudes, no plural, justamente para dar conta das fraturas visíveis, da heterogeneidade, dos vários grupos juvenis existentes. Cf., ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis: Punks e Darks no Espetáculo Urbano. São Paulo: Scritta, 1994 14 Entrevista de Hamilton Vaz Pereira. In: BRYAN. Op. cit., p. 27 15 Sem uma tradução muito literal e ela começa a ser usada no início do século XX como um adjetivo pejorativo. “Lixo”, “o que vem do lixo” ou mesmo “prostituta’ são algumas traduções possíveis. Por isso o nome punk para designar uma geração de jovens sem perspectivas e desamparadas pela sociedade e pelo Estado. 16 Embora utilize o termo juventude nesta dissertação, ele é problemático em si, uma vez que homogeneíza e reduz uma gama muito ampla de experiências, costumes, formas de agir, éticas e identidades. Mesmo que se diferenciasse a classe social, que se falasse em uma juventude de classe média urbana (foco do trabalho), identificada com as questões do rock, continuaria muito amplo. É mais correto falarmos em juventudes. Não bastam mais alguns signos estéticos identificadores para definir juventude, nem mais classificá-la etariamente. Isso porque os usos e costumes entendidos como algo “jovem” acabam por cair no gosto de outros grupos etários, fora do espectro normalmente aceito por juventude. In: ABRAMO, op. cit.

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Ao estabelecer a canção como fonte prioritária, o historiador deve ter vários

cuidados, pois a música é uma manifestação de crenças, de identidades; ela é universal

quanto à sua existência e importância, seja qual for a sociedade. Ao mesmo tempo é

singular e de difícil tradução, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio

cultural17. É preciso fazer uma inserção da música no contexto em que ela foi produzida,

pois o historiador corre o risco de ter uma interpretação parcial de suas fontes. A música de

caráter popular tem um significado que é comunicado de forma intensa a seus

consumidores. Nelas há uma forte inter-relação entre a letra, a música e a condição sócio-

emocional entre autor-produtor e público-fã-consumidor. A significação da canção não é

organizada exclusivamente pela letra da canção. Isso se dá também pela musicalidade,

pelos acordes, instrumentos e voz. Dá-se pela forma como o intérprete pronuncia os versos

e as palavras18. Com em qualquer trabalho acadêmico, há a necessidade de limitar os

olhares a um determinado foco, não permitindo que o céu seja o limite. Dentro disso,

ressalto que não estou trabalhando com o problema da recepção do rock, da forma como

este estilo musical foi apropriado-consumido na sociedade brasileira. Minhas preocupações

giram em torno do contexto em que as bandas de rock surgiram, do motivo para o

aparecimento de uma grande quantidade de bandas e principalmente analiso o que as

canções estão expressando, estão sugerindo.

No segundo capítulo procuro fazer uma discussão do caráter de morte que existiu

na última década do século XX. É possível perceber através das canções a morte das

antigas referências presentes no século passado. Além da falência das ideologias, considero

a morte de uma perspectiva de futuro entendido pelas ideologias modernas como

17 PINTO, Tiago de Oliveira. Som e Música: Questões de Uma Antropologia Sonora. Revista de Antropologia, vol. 44, n o 1. São Paulo, 2001. 18 NAPOLITANO, op. cit., p. 35

17

perfeitamente determinado ou ainda como o tempo da salvação terrena. Encerro o capítulo

analisando a AIDS como metáfora desse momento de morte, que também trouxe as

condições necessárias para emergência de novas sociabilidades e novas práticas políticas.

No terceiro capítulo da dissertação exploro o mergulho no presente experimentado

pela geração identificada pelo rock. É possível perceber na análise das letras cruzada com a

leitura de jornais, revistas, bibliografia pertinente e depoimentos, a visão de um Brasil

absurdo e contraditório, incorporando os impasses nacionais no campo da cultura e da

política, considerados historicamente insuperáveis. Essa investida no presente possibilitou

a construção de novas formas de sociabilidade, baseada na identificação de elementos

comuns partilhadas por determinados jovens em grupo.

Todo historiador em grande medida parece nutrir uma paixão muita vezes velada

ou até mesmo pública por seu objeto de pesquisa. Além das motivações intelectuais que

também nos guiam, os interesses pessoais estão presentes. Quando esse objeto é a música

“essa relação torna-se deliciosamente perigosa e se multiplica por mil” 19. Ela gera raivas,

encantamentos, juízos de valor e precisamos estar sempre vigilantes tanto no solitário

momento da escrita, quanto na leitura de uma obra cujo objeto é música.

19 NAPOLITANO, op. cit., p.10.

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Primeiro Capítulo

Se Liga Que Isso Aqui é Rock ´n´ Roll

Nisso está incluindo o lento olhar em volta, a busca de seres afins, daqueles que se sua força se estendessem a mão para a obra da destruição. A partir de então todos meus escritos são anzóis: quem sabe eu entenda de pesca mais do que muitos?...Se nada mordeu, não foi minha culpa. Faltaram os peixes...20

Abertura para o rock

A idéia que movimentou tudo foi o faça-você-mesmo e era difícil fazer você mesmo, tocar música erudita, porque o rock estava muito nesse pé. Então foi uma mudança muito forte, longe de tudo, criando seu universo lá dentro. Tudo foi acontecendo justamente quando o Brasil se redemocratizava e isso teve função fundamental também, porque víamos as coisas que aconteciam.21

O rock ouvido na década de 1980 aqui no Brasil é tributário do movimento punk

inglês que explodiu em 1977 com o lema do-it-yourself (faça-você-mesmo). Mesmo as

bandas brasileiras que não possuíam qualquer vinculação orgânica com a estética ou a

sonoridade punk, herdaram essa tradição, essa possibilidade de criação sem preocupações

estéticas rigorosas. O fato é que esse lema, essa prática, deu condições a jovens sem

qualquer intimidade com instrumentos musicais, a condição de com uma guitarra, um baixo

e bateria expressar seus sentimentos, opiniões, dores, angústias e reivindicações.

Possivelmente essa seja uma das explicações para o surgimento de centenas de bandas em

20 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: Como Alguém se Torna o Que É. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 21 Entrevista de Dado Vila-Lobos, guitarrista da banda de Brasília Legião Urbana. In: BRYAN, Guilherme. Quem Tem um Sonho Não Dança: Cultura Jovem Brasileira nos Anos 80. São Paulo: Record, 2004, p. 132.

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torno do rock nos anos de 1980 no Brasil. As analisadas nesta pesquisa foram as que

conseguiram um certo destaque regional e nacional ou conseguiram gravar um LP. Há

ainda outras que não passaram de uma canção num dos chamados paus-de-sebo22 ou de um

sonho adolescente de ter uma banda de rock.

Não pretendo entrar no debate em torno da correta origem do punk, se foi nas ruas

de Nova Iorque ou nos Pubs da Inglaterra. O que é há de concreto é que o rock feito no

Brasil, a cena constituída aqui na década de 1980 foi absolutamente catalisada, influenciada

pela cena inglesa. Tanto é que a multiplicidade de estilos após o punk teve sua

correspondência em terras tropicais. Em 1977 a Inglaterra já demonstrava a falência do

modelo social-democrata implementado pelo Partido Trabalhista e os conservadores

ganhavam fôlego, o que se comprovará dois anos mais tarde com a eleição de Margaret

Thatcher. Seu regime oprimiu economicamente ainda mais o operariado britânico que

àquela altura já contava com grandes perdas, fechamento de fábricas e o fim de direitos

sociais. A cena pop estava tomada pelo virtuosismo e grandiosidade do chamado rock

progressivo. Bandas inglesas como Pink Floyd, Yes, Gênesis e Rick Wakeman produziam

álbuns herméticos, conceituais, com grandes solos de guitarra que poderiam durar até 10

minutos23. Seus shows contavam com toneladas de equipamentos, precisavam de mega-

estruturas. O rock tornara-se quase erudito, clássico, como afirma Dado Vila-Lobos na

entrevista citada, e aos poucos perdia a vinculação direta com o público massivo, pois os

processos de identificação24 ficavam cada vez mais nublados por conta de toda essa

22 Na primeira metade da década de 1980 era muito raro uma banda ser lançada no mercado direto com um LP. Ou as bandas gravavam compactos, um disco com duas canções, ou tinha uma canção inserida junto com a de outras bandas. Uma espécie de coletânea das bandas novas. Isso era o pau-de-sebo. 23 ESSINGER, Silvio. Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 45. 24 Atribui-se a cada pessoa ou a cada grupo características e aspirações igualmente determinadas, supostamente fundadas num substrato estável ou invariante. Cria-se uma realidade uniforme e homogêneo. O conceito de identidade acaba por totalizar, engessar e estagnar aquilo que designa. Não reconhece as

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estrutura desconectada da realidade da maioria dos jovens ingleses e também brasileiros.

Mesmo porque era muito complicado do ponto de vista técnico um adolescente comum

querer montar uma banda de rock nos padrões que estavam colocados. Estava aberto um

espaço, um vácuo entre a música pop e a condição dos jovens operários ingleses cada vez

mais empobrecidos e sem qualquer perspectiva de futuro25. O rock perdia um pouco de sua

força um canal de expressão da juventude.

Paralelamente a isso começava a surgir uma cena chamada de pré-punk com

bandas sem a pretensão artística do progressivo26 e propondo vários experimentos com a

sonoridade, buscando uma estética sonora mais simples. Entretanto, a vinculação do

single27 Anarchy in the UK mudaria a forma de se fazer música, de se fazer rock e seria o

grande impulsionador da nova cena roqueira na Inglaterra e em boa parte do mundo

capitalista ocidental, trazendo os sintomas de novas formas de entender, pensar e viver o

mundo, como mostrarei nos próximos dois capítulos.

I am a antichrist I am a antichrist Don´t know what I want but I know where I´ll get it I wanna destroy the passer by ´Cos I wanna be anarchy28

fraturas, as várias interpelações sofridas pelos sujeitos. Opto pelo conceito de identificação, pois este possibilita o reconhecimento de uma heterogeneidade e os processos de articulação, um jogo, uma trama de encontros e desencontros com vários elementos de um campo social. A identificação não é excludente. Cf., HALL, Stuart. Quem Precisa de Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a Perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103 – 133. 25 Revista Bizz. São Paulo, maio de 1987. 26 Como se convencionou chamar o seguimento do rock que buscava um aprimoramento, um refinamento na técnica de cantar, compor, tocar, produzir álbuns e se apresentar. 27 Era, e é muito comum, as bandas inglesas lançarem canções avulsas antes de álbum completo. Trata-se de uma estratégia mercadológica adotada pela indústria fonográfica. Esse era também um artifício utilizado no Brasil durante os anos de 1980, mas que foi abortado por volta do ano de 1989. In: Revista Bizz. São Paulo, abril de 1995. 28 ESSINGER, op. cit., p. 44. Neste trabalho, todas as letras de canções em inglês terão uma tradução livre feita por mim: Eu sou um anticristo / eu sou um anarquista / não sei o que quero, mas sei onde vou conseguir / eu quero destruir os passantes / porque eu quero ser um anarquista.

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Numa estrofe os Sex Pistols conclamam o terror político, religioso e social no

qual os jovens da classe trabalhadora inglesa estavam inseridos. No restante da canção há o

ataque à maior revista especializada em rock naquela época a New Musical Express e cita o

Movimento pela Libertação de Angola. Mesmo sem a devida divulgação dada pela

gravadora EMI, o compacto foi reproduzido exaustivamente pelas rádios e rapidamente

esgotado das lojas29. Contudo, é com a canção God save the Queem que a banda rompe

com todas as fronteiras da música pop e o punk passa a ser uma incomoda realidade no

Reino Unido:

God save the Queen – and the fascist regime I made a you a maron – a potential H bomb God save the Queen – she´s not a human being There is no future – in England´s dream God save the Queen – turists are money Our figure head – is not what she seens God save history – save the mad parade Lord have mercy – all crimes are paid When there´s no future how can there be sin? We are the flowers in the dustbin We are the position of the machine We are the romance behind the screen God save the queen – we mean it man Whe love our queen – god save.30

Esta canção definitivamente proclamava o no future, ou seja, a impossibilidade da

existência de sonhos para uma juventude marginalizada e empobrecida. Os versos eram

repetidos em tom de desespero pelo vocalista Jonh Lydon31. Essa canção passou a ser um

manifesto de uma geração totalmente à margem da lógica burguesa de um país capitalista

29 Idem. 30 ESSINGER, op. cit., p. 48. Deus salve a Rainha – e o regime fascista / ele o tornou um imbecil – bomba H em potencial / deus salve a rainha – ela não é um ser humano / e não há futuro – nos sonhos da Inglaterra / deus salve a rainha – turistas são dinheiro / nossa figura principal – não é o que parece ser / Deus salve a História – salve a parada louca / o senhor tenha piedade – todos os crimes são pagos / quando não há futuro, como pode haver pecado? / nós somos as flores na lata de lixo / nós somos o veneno na máquina / nós somos o romance atrás da tela / deus salve a rainha – é serio / nós amamos nossa Rainha – Deus salve. 31 Filho de trabalhadores desempregados na Inglaterra. Quando Sex Pistols acabaram, ele formou o Public Image Ldt, uma banda do cenário pós-punk.

22

desenvolvido; mostrou aos jovens que qualquer pessoa poderia formar uma banda e se

espessar, mais que isso, o Sex Pistols reinventaram o rock.

Figura 2: A banda britânica Sex Pistols. Foto retirada da obra Punk: a anarquia planetária e a cena

brasileira de Silvio Essinger.

O punk, essa vertente do rock, passou a ter sua importância dilatada, pois acabou

por se configurar como um importante mecanismo de expressão dos adolescentes da classe

trabalhadora inglesa. As letras envolvidas numa atmosfera sonora suja, barulhenta e cinza

(como uma fábrica abandonada ou uma rua do subúrbio de Londres, Manchester, Dublin ou

Liverpool) contavam histórias sobre trabalho, casa, estilo de vida, sexo, frustrações, medos,

a idade e o desprezo pelo modo de vida burguês32. Nisso parece ficar evidente que o

sentido da obra musical de forma alguma tem um efeito natural, algo como uma geração

32 FRITH, Simon. Music for Pleasure. New York: Routledge, 1988, p. 173.

23

espontânea, mas sim, é resultado de convenções socioculturais que estão em pleno

movimento33.

Nesse momento é possível perceber os sintomas de um fenômeno que se

propagaria para o resto do mundo ocidental capitalista com grandes repercussões nas

décadas seguintes: uma cultura musical alternativa. Selos fonográficos independentes,

fanzines34, lojas especializadas em um estilo de rock, pubs e casa de shows com propostas

undergraud e anti-mainstream. Semelhante ao que aconteceu no Brasil demorou um certo

tempo para as grandes gravadoras perceberem as novas bandas como um potencial de

venda, como investimento mercadológico capaz de trazer lucros. Isso se deve ao fato dos

agentes primeiro sentir o pulso do público, procuram entender os gostos e tendências da

audiência para só assim investirem pesadas cifras35. Antes de a indústria estabelecida ser

convencida do potencial das bandas emergentes como The Clash e The Jam36, havia a

Chiswick e a Stiff Records37. Os dois selos tinham a proposta de gravar tudo que fosse

novo, da forma mais rápida possível, nas condições possíveis e com os menores gastos.

Totalmente dentro da lógica do no future e da rapidez muito próprios dos anos de 1980.

Era o faça-você-mesmo invadindo a gravação das bandas. Foi dentro dessa proposta quase

amadora que a Stiff Records conseguiu lançar o álbum inaugural do punk, o New Rose, do

Damned38. Ainda em 1977 a gravadora lançaria o primeiro LP dos Buzzcocks, de

33 NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 32. 34 Uma espécie de jornal onde os grupos de punks e outros estilos mais próximos colocavam gravuras, letras de música, depoimentos, datas de shows e outras formas de expressão. 35 NAPOLITANO, op. cit., p. 35. 36 Duas das principais bandas punks inglesas que surgiram logo após o aparecimento do Sex Pistols. Composta por jovens da classe trabalhadora, seu som já não é tão sujo e pesado, mas mantém letras duras, politizadas e de forte crítica à sociedade inglesa. 37 Revista Bizz. São Paulo, maio de 1987. 38 Uma banda de Londres, também dentro do espectro do punk.

24

Manchester39. A criação de selos independentes se espalhou por todo o Reino Unido,

permitindo que qualquer banda gravasse suas canções na sua própria cidade, sem ter que se

deslocar aos grandes centros. Isso abriu caminho para que se criasse também uma estrutura

paralela de distribuição, divulgação e venda dos novos artistas. As bandas multiplicavam-

se de forma exponencial da Inglaterra. Em Londres a loja Rough Trade transformou-se

num centro de referência ao vender os discos de todas as bandas punks do país. Mais tarde

a loja virou um selo que ficara conhecido internacionalmente com o lançamento da banda

The Smiths40, de Manchester.

1979 é o ano do pós-punk na Inglaterra. Além das principais bandas punks terem

sucumbido ao meinstream comercial, ou seja, terem virado mercadorias, uma série de

estilos estéticos e musicais surgiram a parir do punk41. A diversidade parece ter sido a

marca das bandas depois de 1979. Uma multiplicidade de bandas sem par na história da

música pop pode ser vista nas ruas, bares e ouvidas nas rádios inglesas. A chamada new

wave, com roupas mais coloridas, em tom néon com estampas geométricas, brincos de

cores berrantes e paletós e sobretudos extravagantes passou a ter grande destaque42. Os

integrantes das bandas usavam o cabelo de cortes geométricos e geralmente coloridos. O

som era mais leve e dançante, preservando a simplicidade sonora e a composição básica

dos instrumentos musicais, mas já misturado a batidas eletrônicas e teclados em primeiro

plano. Bandas como Duran Duran, Depeche Mode, Culture Club, Human league, Boy

39 ESSINGER, op. cit., p. 61. 40 Talvez esta seja a banda mais conhecida e popular da cena roqueira que se criou na Inglaterra depois do punk. Eles possuíam letras poéticas recheadas de lirismo e um som mais melódico embalado pela voz melancólica de seu líder e letrista Morrissey. A banda acabou em 1988 por desavenças entre seus integrantes. Seu LP de maior destaque em termos mercadológicos foi o Queen is Dead, de 1986. 41 FRITH, op. cit., p. 173. 42 Revista Bizz. São Paulo, janeiro de 1988.

25

George, Talking Heads e B-52´s, nos EUA, são alguns exemplos de bandas identificadas

com esse estilo.

Figura 3: A banda Talking Heads. In: Revista Bizz, janeiro de 1987.

Figura 4: A banda B-52´s na capa da Revista Bizz de junho de 1990.

26

Havia também um lado diametralmente oposto iniciado pela banda Joy Division,

que foi uma espécie de ponte entre o punk e o rock inglês dos anos de 1980. Explorando os

lado mais obscuro das questões humanas, a banda lançou dois discos sombrios, o Unknown

Pleasures, de 1979 e Closer, de 198043. Na canção Atmophere Ian Curtis canta em tom

baixo (grave) toda a melancolia e a quase tristeza de sua geração. Parece faltar forças ao

vocalista para chegar até o final da canção. As sombras tornam-se mais densas com a

batida seca da bateria ao fundo, sobreposta por um teclado espaçado44. O som dessa banda

parece sempre estar encoberto por um forte nevoeiro em noite escura:

Walk in silence, Don't walk away, in silence. See the danger, Always danger, Endless talking, Life rebuilding, Don't walk away. Walk in silence, Don't turn away, in silence. Your confusion, My illusion, Worn like a mask of self-hate, Confronts and then dies. Don't walk away. People like you find it easy, Naked to see, Walking on air. Hunting by the rivers, Through the streets, Every corner abandoned too soon, Set down with due care. Don't walk away in silence, Don't walk away.45

43 ESSINGER, op. cit., p. 70. 44 FRITH, op. cit., 190. 45 Joy Division. Atmosphere. In: Closer. EMI, 1980. Caminhe em silêncio / Não se vá, em silêncio/ Veja o perigo, / [ é ] sempre perigoso / A conversa não acaba, a vida se reconstrói... / Não se vá... / Caminhe, em silêncio / Não se vire, em silêncio, / Sua confusão, minha ilusão. / Destruindo-se em uma mascara e ódio-próprio. / Confrontando-se e morrendo... / Não se vá... / Pessoas como você, encontram isso fácil, / Despido

27

Em 18 de maio de 1980, quando o Joy Division se preparava para sua turnê

americana, Ian Curtis se enforcou em sua casa depois de assistir ao filme Stroszeck, de

Werner Herzog, e ouvir o LP The Idiot, de Iggy Pop. Curtis deixou poesias densas,

estranhas, que cantaram a desilusão humana, os fantasmas interiores, os medos, cantaram as

sombras, o desespero de estar vivo sem qualquer sentido aparente. Após sua morte o

guitarrista Bernad Summer, o baixista Peter Hook e o baterista Stephen Morris montaram,

junto com a tecladista Gilian Gilbert, uma outra banda, o New Order, uma das mais

emblemáticas bandas dos anos e 1980 que misturava rock e batidas eletrônicas. Foi a

banda que deu origem ao technopop inglês46. O obscurantismo do Joy Division inspirou

uma grande quantidade de bandas como a gótica Siouxsie & The Banshees, da vocalista

Siouxsie Sioux.

Figura 5: A cantora Siouxsie Sioux. In: Revista Bizz, janeiro de 1987.

para ver, andando no ar / Caçando pelos rios, através das ruas, em todo canto / Abandonado tão cedo / Colocado para baixo com o devido carinho / Não se vá, em silêncio / Não se vá... 46 Revista Bizz. São Paulo, maio de 1987.

28

Outros grupos como The Cure, The Cult, Killing Joke, Bauhaus, Sister of Mercy e

Alien Sex Friend praticavam um som fortemente psicodélico, identificado com o medo, a

escuridão e temas fantásticos. Eles ficaram conhecidos como góticos, mas no Brasil seus

seguidores acabaram por receber o a designação de dark, não só pelo som nebuloso, como

também pelas vestimentas sempre negras. Traziam nas letras o sofrimento com tédio e o

vazio que os oprimia, pois eles também se proclamavam uma geração sem futuro. Tinham

uma forte vinculação com o mundo urbano47, recheado de guerras, repressão e escuridão.

Usavam calças jeans ou de brim preto, curtas e justas, tênis de cano alto, camisetas pretas

rasgadas de braceletes herdados do punk.

Figura 6: Robert Smith, vocalista do The Cure. In: Revista Bizz, janeiro de 1987.

O já citado The Smiths e o grupo de Liverpool Echo and The Bannymen também

receberam influencia da banda de Ian Curtis. Fizeram um som mais melódico, com letras

47 A vinculação do rock com o mundo urbano será explorada no terceiro capítulo.

29

poéticas que tratavam de amores, adolescência, bombas, rua, desemprego, escola, solidão,

suicídio, dúvidas e vergonha. Na canção abaixo, Morrissey, vocalista do The Smiths, canta

em tom melancólico o desemprego, o sub-emprego, a embriaguez e situação do jovem de

um subúrbio qualquer de um grande centro inglês:

I was happy in the haze of a drunken hour but heaven knows I'm miserable now I was looking for a job, and then I found a job ... and heaven knows I'm miserable now In my life Why do I give valuable time To people who don't care if I live or die? Two lovers entwined pass me by And heaven knows I'm miserable now I was looking for a job, and then I found a job And heaven knows I'm miserable now In my life Oh, why do I give valuable time To people who don't care if I live or die? What she asked of me at the end of the day Caligula would have blushed "You've been in the house too long" - she said And I (naturally) fled In my life Why do I smile At people who I'd much rather kick in the eye? I was happy in the haze of a drunken hour but heaven knows I'm miserable now "You've been in the house too long" - she said And I (naturally) fled In my life Why do I give valuable time To people who don't care if I live or die?48

48 The Smiths. Heaven Knows I'm Miserable Now. In: The Best II, WEA, 1999. Essa canção é de 1984 e foi lançada em forma de single. Eu estava feliz durante a embriaguez / mas os céus sabem que estou miserável agora / Estava procurando um emprego, daí eu encontrei um emprego / ... e os céus sabem que estou miserável agora / Na minha vida / por que eu dou tempo valioso / para pessoas que não se importam se eu vivo ou morro? / Dois amantes de braços dados passam por mim / e os céus sabem que estou miserável agora / Estava procurando um emprego, daí eu encontrei um emprego / e os céus sabem que estou miserável agora / Na minha vida / oh, por que eu dou tempo valioso / para pessoas que não se importam se eu vivo ou morro? / O que ela me perguntou ao final do dia / Calígula teria se envergonhado / "Você está nesta casa já há muito

30

Numa extensa reportagem da revista Time intitulada The Tribes of Britain (as

tribos da Grã-Betanha), os punks aparecem como apenas uma das várias tribos urbanas

existentes na Inglaterra no início dos anos de 1980. Essas organizações tribais49 eram

compostas por jovens da classe trabalhadora inglesa sem muitas expectativas e marcados

pelas altas taxas de desemprego. O punk havia se multifacetado em vários estilos50, em

várias tendências e se espalhado rapidamente pela Europa, América e também Oriente

Médio e Ásia, sendo sempre reinventado a cada nova banda, misturando-se às

particularidades de onde aterrissava. Já em 1978 houve registros de punk em Cingapura.

Em 1982, em plena guerra do Líbano, havia festivais de rock, punk e new wave na capital

Beirute. Na Europa o punk rock e o rock pós-punk tiveram grande aceitação e penetração.

Países como Finlândia, França, Alemanha, Bélgica, Portugal, Espanha, Itália, Polônia e até

a União Soviética (onde foram taxados de manifestação da cultura burguesa) foi possível

observar uma grande presença e a formação de uma cena musical naqueles estilos.51 Toda

essa efervescência musical também chegou a América do Sul. No Chile, Argentina e Brasil

a música pop foi totalmente transformada pelo punk e pelas vertentes e estilos desdobrados,

constituindo cenários52 bastante significativos.

O punk penetrou no Brasil de maneira gradativa entre 1979 e 1982, na medida em

que na Inglaterra e outros países o cenário pop também se modificava. Era o momento da tempo" - ela disse / e eu (naturalmente) fugi / Na minha vida / por que eu sorrio / para pessoas que eu preferiria chutar no olho? / Eu estava feliz durante a embriaguez / mas os céus sabem que estou miserável agora / "Você está nesta casa já há muito tempo" - ela disse / e eu (naturalmente) fugi / Na minha vida / por que eu dou tempo valioso / para pessoas que não se importam se eu vivo ou morro? 49 As tribos urbanas serão discutidas no terceiro capítulo dessa dissertação. 50 FRITH, op. cit., p. 175. 51 ESSINGER, op. cit., p. 73. 52 A cena musical é um espaço cultural no qual uma série de práticas musicais coexistem, interagem umas com as outras dentro de “uma variedade de processos de diferenciação, de acordo com a ampla variedade de trajetórias e influências”. Esse é um conceito bastante usado para dar conta das diferentes vertentes musicais que coexistem no mesmo espaço temporal. Por isso falamos em uma cena roqueira no Brasil na década de 1980, para dar conta da multiplicidade de estilos em torno do rock que se desdobraram após o fenômeno punk. In: Napolitano, op. cit., p.31.

31

abertura política, da redemocratização após o regime militar. A política econômica que

possibilitou o chamado milagre econômico dava sinais de esgotamento e arremessou o

Brasil numa das piores crises econômicas de sua história53, agravada em grande medida

pelo desenfreado crescimento urbano dado nas décadas de 1970 e 198054. As grandes

cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Porto

Alegre ficaram inchadas. Não havia empregos, serviços de saúde e educação eficazes,

condições de moradia nem tampouco uma assistência estatal minimamente atuante, os

sintomas desses acontecimentos são observáveis nas análises das canções e nas falas ao

longo da dissertação. O punk obteve reverberação na juventude operária de Belo

Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Já em Porto Alegre, Curitiba e Brasília foram as

camadas medianas da sociedade que construíram laços de identificação, mesmo porque a

classe média ficou achatada, em processo de empobrecimento e sem perspectivas, pelo

menos até 1986 com o efêmero Plano Cruzado. Junto com o punk, chegam também as

outras tendências musicais e estilísticas surgidas na Inglaterra no final da década de 1970 e

início dos anos de 1980. Mesmo sendo de origem britânica, as variantes do rock quando

chegaram ao Brasil sofreram processos de mistura, hibridações, mesclas, quebras. Muitas

bandas do rock brasileiro começaram suas carreiras fazendo covers das bandas Inglesas. A

paulista Ira!55 tocava The Clash nos bares no ano de 1979. Seu som foi muito inspirado

53 O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil foi de - 4,4% em 1981, 0,7% em 1982 e de - 3,4% em 1983. In: www.ibge.gov.br. 54 Na década de 1970 dezessete milhões de pessoas trocaram o campo pelos grandes centros urbanos. Em 1980 foram mais dez milhões. In: www.ibge.gov.br. 55 Banda de rock paulista bastante influenciada pelo punk. Em 1980, Edgard, letrista e guitarrista, foi convocado para servir o exército, e foi lá que ele compôs a canção Núcleo Base, que por sua vez também viraria um grande hit do Ira! Um ano depois, Nasi chamaria o amigo Edgard para tocar num show na PUC e ali surgiria o Ira, ainda sem exclamação, e com nome inspirado no Exército Republicano Irlandês. Completavam a formação o baterista Fabio Scatone, e o baixista Adilson. O principal algum da banda durante os anos de 1980 foi Vivendo e não Aprendendo, de 1986. In: www.uol.com.br/ira

32

pelas bandas punks. Em Brasília os integrantes da banda Legião Urbana56 e Capital

Inicial57 tinham mesma prática. Mesmo com uma sonoridade e uma estética de origem

inglesa as temáticas das canções estavam vinculadas à condição dessa geração que se

identificou com o rock. Isso é possível perceber na canção Garoto Podre, da banda punk

Garotos Podres58. A canção é suja, barulhenta, berrada e tocada com apenas dois acordes.

Similar a qualquer outra, mas a letra sugere o abismo que existe entre as classes sociais no

Brasil. Os dois mundos existentes numa mesma cidade, separados apenas por um muro,

que pode ser simbólico ou mesmo o de uma mansão.

Os que moram Do outro lado do muro Nunca vão saber O que se passa no subúrbio Eles te consideram Um plebeu repugnante Eles te chamam De garoto podre Garoto podre Garoto podre Se está desempregado Te chamam de vagabundo Se fizer greve, te chama de subversivo Te chamam de subversivo Mas se arrumar emprego Não lhe dão dignidade Apesar do sujo macacão E do rosto suado, e do rosto suado

56 Talvez a mais importante banda do rock nacional. Composta por Renato Russo, letrista e voz, Marcelo bonfá, baterista, Dado Vila-Lobos, guitarrista e Renato Rocha, no baixo (este participou apenas dos três primeiros LP). Todas eram filhos de altos funcionários públicos de Brasília. Seus álbuns mais significativos foram Dois, de 1986 e As Quatro Estações,de 1989. Ambos passaram da marca de 1 milhão de cópias vendidas. Com a morte de Renato Russo, por conta das implicações advindas da AIDS a banda acabou em 1996. In: www.legiao.com.br. 57 Também formada por filhos de altos funcionários públicos. Tanto Capital Inicial, quanto Legião surgiram de uma banda chamada de Aborto Elétrico, que era explorada no terceiro capítulo. O Capital é formado por Dinho Outro-Preto, pelos irmãos Fê e Flávio Lemos e Loro Jones. Seu álbum de maior destaque foi Independência de 1987. In: www.uol.com.br/capitalinicial. 58 Banda de punk paulista formada somente por jovens oriundos do subúrbio da capital. Teve todas as faixas do seu LP, Pior que Antes, censuradas.

33

Garoto podre Garoto podre Não há nenhum Deus Que nos perdoe Não temos destino para nós não há futuro, para nós não há futuro Vivendo acossados Pelos batalhões Proletários escravizados Destinos abordados, destinos abordados.59

Esse fenômeno musical parece ter desterritorializado-se, produzindo processos

simbólicos de constante produção de gêneros musicais impuros. Não mais é possível

defender uma cultura tradicional autêntica, autogerada por grupos populares como

pensavam alguns estudiosos da música60. Os bens culturais sempre estiveram em processos

de misturas e em tempos de globalização essa tendência fica mais intensa, os enraizamentos

são estremecidos. Nos anos de 1980 esse termo, globalização, ou mundialização, começou

a ser usado de forma mais sistemática para designar a intensificação dos processos de

relações internacionais, que geraram hiper-espaços, no qual as distâncias medidas em

59 Garotos Podres. Garoto Podre. In: Pior Que Antes. Continental, 1988.

60 José Ramos Tinhorão é um desses nomes. Ele ocupa um lugar destacado na historiografia da música brasileira, não só pela grande quantidade de livros escritos, como por sua radical defesa das proclamadas raízes brasileiras. Tinhorão ganhou destaque ao se pautar por um projeto historiográfico que buscava delimitar as marcas de origem da música brasileira, num momento em que a Bossa Nova apontava mais para uma ruptura, ainda que buscando inspiração no "morro" (como ocorreu na sua vertente nacionalista, com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou em Orlando Silva e nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto). “A idéia básica, quase um leit-motif que perpassa toda a obra de Tinhorão, está em definir um tipo de nacionalismo com base num pensamento folclorista que enfatiza a ligação direta entre ´autenticidade´ cultural e base social (grupos de negros e pobres). Sob essa ótica, há uma preocupação em separar o que é popular e o que é folclórico: a música folclórica seria aquela de autor desconhecido, transmitida oralmente de geração em geração; a música popular, ao contrário, seria a composta por autores conhecidos e divulgada por meios gráficos, cujo lugar social são as cidades industrializadas. Enquanto as criações populares se mantiveram organicamente ligadas ao universo ´folclórico´, tal como é definido por Tinhorão, a música brasileira manteve um núcleo de autenticidade, sendo efetivamente ´popular e brasileira´. Na medida em que as canções passaram a ser direcionadas para o rádio, a partir dos anos 30, e, nos anos 60, para a TV, ela foi dissociando-se da sua base social ´originária´. Nesta linha de argumentação, a Bossa Nova representava o momento máximo da ruptura com as origens, logo, com a autenticidade”. Ao escrever sobre rock Tinhorão não poupa adjetivos tais como “alienado”, “colonizado” e “imposição do capitalismo”. In: NAPOLITANO, Marcos. Desde de que o Samba é Samba: A Questão das Origens no Debate Historiográfico Sobre a Música Popular Brasileira. In: Revista Brasileira de História. 2000, vol.20, no.39, p.167-189.

34

metros perdem a referência e dão lugar a uma fluidez, onde os bens culturais de territórios

supostamente demarcados entrecruzam-se, misturam-se, interpelam-se61. A globalização é

uma conseqüência direta das interligações dos mundos. Essas redes conectivas, antes

bastante sutis, passaram a ter forte visibilidade a partir da década de 1980.62 O rock

misturou-se a outros estilos aqui no Brasil. As temáticas contidas nas canções também

estavam misturas, mescladas ao cotidiano dos jovens. Isso é possível presenciar na

seguinte fala:

A gente podia experimentar tudo, não tinha preconceito. A banda que eu tava misturava punk inglês com música gauchesca. A gente brincava mesmo, não tava nem ai. Se hoje os caras misturam música eletrônica com bossa nova e todo mundo acha bacana é porque a nossa geração fez o que fez. A gente possibilitou isso. A música depois de nós nunca mais foi a mesma.63

As misturas musicais no Brasil possuem outras complicações: as diferenças

regionais. Mesmo pertencente à mesma cena musical, as bandas gaúchas tinham as suas

especificidades, assim como as cariocas, as mineiras e assim por diante. E isso não quer

dizer que havia uma unidade entre as bandas de cada estado. Mediante isso se pode supor

que o rock é um bem cultural despatriado, desterritorializado, que se adequou às

particularidades de cada região onde se enraizou, como modo de expressão64. Essas

hibridações que ocorreram na década de 1980 e que hoje são muito fortes e presentes na

música brasileira nos levam a concluir que hoje todas as culturas são culturas de fronteiras,

61 AUGÉ, Marc. Não Lugares: Introdução a Uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994, p. 90. 62 MARTINO, Luiz C. Globalização e Cultura de Massa. In: PRADO, José Luiz Aidar, SOVIK, Liv (org´s). Lugar Global e Lugar Nenhum: Ensaios Sobre Democracia e Globalização. São Paulo: Hacker Editores, 2001, p. 74. 63 Entrevista cedida por Marco Antônio Araújo, 39 anos, a Fábio Feltrin, em 22 de janeiro de 2005. Ele é ex integrante de uma banda de garagem em Pelotas /RS nos anos de 1980. Hoje é funcionário público federal. 64 Edgar Morin afirma que o rock é uma linguagem universal da juventude em sociedade que ele designa como históricas, ou seja, que possuem a categoria juventude, adolescência em sua sociedade. In: MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX: O Espírito do Tempo (Necrose). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 151.

35

ou seja, as artes se desenvolvem umas das outras. Há um intercâmbio constante. Assim as

culturas perdem a vinculação exclusiva com seus territórios65. Isso era bastante perceptível

nos anos de 1980, porque o transito de informações entre as cidades brasileiras e outros

lugares do mundo acentuaram-se velozmente naquela época. Na canção Lugar Nenhum da

banda paulista Titãs66, a condição de viver na fronteira fica bastante evidente:

Não sou brasileiro Não sou estrangeiro Não sou brasileiro Não sou estrangeiro Eu não sou de nenhum lugar Sou de lugar nenhum Sou de lugar nenhum Não sou de São Paulo Não sou japonês Eu não sou carioca Não sou português Eu não sou de Brasília Não sou do Brasil Nenhuma pátria me pariu Eu não tô nem aí Eu não tô nem aqui Eu não tô nem aí.67

Se entre 1979 e 1982 o punk e rock penetravam sorrateiramente nos circuitos mais

underground do país começando a chamar a atenção de uma parcela da juventude, é a partir

de 1982 para 1983 que ganham força. Nesse período da redemocratização a indústria

fonográfica estava passando por uma crise bastante série, não parecia haver nenhum

movimento musical muito forte. A grande popularidade da MPB, principalmente na

segunda metade dos anos de 1970 perde força no início da década de 1980. Mesmo

65 Cf. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 1997. 66 Banda de São Paulo composta por 8 integrantes: Arnaldo Antunes, Tony Belloto, Marcelo Fromer, Paulo Miklos, Branco Mello, Charles Gavin, Nando Reis, Sérgio Brito. Começaram com uma proposta estética e sonora mais próxima da descontração da new wave, misturada com elementos da Jovem Guarda. A partir do disco Televisão, de 1985, as letras começam a ficar mais elaboras e o som mais pesado. Seu principal LP foi Cabeça Dinossauro, de 1986. Arnaldo Antunes deixou a banda ainda na década de 1980. In: DAPIEVE, Arthur. BRock: O Rock Brasileiro os Anos 80. São Paulo, 2000. 67 Titãs. Lugar Nenhum. In: Cabeça Dinossauro. WEA, 1986.

36

mantendo o status de música popular culta, prestigiada entre consumidores de alto padrão

socioeconômico, a MPB deu lugar ao rock no gosto da juventude de classe média,

segmento da população consumidora que movimentou o mercado nos anos de 198068. O

fato que cantores como Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Gosta e Milton Nascimento aos

poucos foram perdendo os vínculos com segmentos mais populares e com a nova geração.

Os processos de identificação foram quebrados com uma parcela da juventude que estava

interessada em dizer outras coisas. O punk e o rock foram esse canal de expressão. Em

1982, o vocalista e líder da banda punk paulista Inocentes, Clemente69, lança na edição de

agosto da revista Gallery Around o “Manifesto punk: fora o mofo da MPB! Fora a idéia de

falsa liberdade!”:

Nós os punks, estamos movimentando a periferia – que foi traída pelo estrelismo dos astros da MPB. Movimentando a periferia, mas não como Sandra Sá, que agora faz sucesso com uma canção racista e com outra que apenas convida o pessoal para dançar: ou, na verdade, convida para alienação. Nos nossos shows de punk rock, todos dançam; dançam a dança da guerra, um hino de ódio e de revolta da classe menos privilegiada. (...) Nós os punks somos uma nova face da musica popular brasileira, com nossa música não damos a ninguém uma falsa idéia de liberdade. Relatamos a verdade sem disfarces, não queremos enganar ninguém. Procuramos algo que a MPB não tem mais e que ficou perdido nos antigos festivais da Record. Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira. Estamos aqui para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer a Amélia uma mulher qualquer.70

Neste manifesto fica evidente a desvinculação dos temas, posturas e ideais

trazidos pela MPB com uma parcela da juventude, com uma nova geração que procurava

sua identidade. A radicalidade das palavras, o tom iconoclasta e o irônico encerramento do

texto, em que conhecidas canções são desprezadas, demonstram o desejo, a vontade de

68 NAPOLITANO, op. cit., p. 31. 69 Clemente foi um dos primeiros punk de São Paulo e um dos principais articuladores e divulgadores do punk no Brasil. 70 Revista Gallery Around. São Paulo, agosto de 1982.

37

construir novos mecanismo de expressão da realidade brasileira. A música também tem por

função responder a questões de pertencimento, ou seja, ela pode definir o lugar de um

grupo ou classe na sociedade. Dessa forma quando alguém se identifica com um

determinado tipo de música, com um determinado tipo de artista, automaticamente exclui o

que não gosta, o que não se identifica. Isso é possível perceber no seguinte depoimento:

Não que eu odiava o Chico e o tal do Caetano, é que eles não me diziam nada. Simplesmente ouvir eles era a mesma coisa que ouvir música de ninar (risos). Meus pais gostavam deles. Só que pra mim era uma coisa tipo...sei lá, alegoria sabe? Daí quando eu ouvi a canção Inútil do Ultraje eu falei pra galera, ‘putz, é isso’. Era tudo que a gente queria falar. Depois veio Legião, Titãs, Biquíni e virou febre, só se falava deles, só se ouvia eles e todo mundo queria ser eles (risos). E o que eles diziam era muito revolucionário, pelo menos pra gente. 71

O rock daquela época parece ter preenchido uma lacuna na música brasileira.

Uma geração que fora criança durante a ditadura militar e que chegara a adolescência

promoveu um processo de esquecimento e negação do passado, quase um trauma de

origem. Com uma música simples e rudimentar, o punk e principalmente o rock após 1982

trouxeram uma liberdade para qualquer garoto ou garota se expressar, dizer o que sente e

pensa:

Lembro que quando a gente começou não tinha a idéia de tocar profissionalmente e gravar disco. Era tudo muito distante. Eu achava que todo mundo tinha compor, por que para mim era se expressar. Compunha várias músicas para o Kid Abelha com dois três acordes e não achava que eram piores por causa disso. A gente tinha urgência em dizer as coisas que não eram ditas pela MPB.72

Embora com a censura ainda vigente, essa foi a primeira geração em quase duas

décadas que não precisou de subterfúgios para dizer o que pensava. A efervescência do

momento político brasileiro possibilitou que aqueles jovens falassem sobre qualquer 71 Entrevista cedida em 7 de setembro de 2005 por Simone Pinheiro, 36 anos. Ela morou em Belo Horizonte de 1979 até 1988. Hoje reside em Florianópolis. 72 Entrevista cedida por Leoni. In: BRYAN, Guilherme. Quem Tem Um Sonho Não Dança: cultura Jovem Brasileira nos Anos 80. São Paulo: Record, 2004, p. 122. Leoni é carioca. Era cantor, mas teve uma participação efetiva na composição de canções para várias bandas.

38

assunto, principalmente o que não era falado pela MPB. Isso abriu um leque de variedades.

O novo cenário musical formado na década de 1980 praticava um som que rompia com os

valores burgueses, com a ordem, com o planejado, o bom gosto e a harmonia. Destrói a

sobriedade das formas. Ele é barulho, fúria, dissonância. Navegou pelos canais

subterrâneo da cultura de massa. Transformou-se na trilha sonora da abertura. Os berros,

as guitarras, as baterias, a roupas inusitadas impulsionaram a distensão política percebida

na primeira metade dos anos de 1980. O faça-você-mesmo espalhou o rock pelo Brasil.

Qualquer jovem podia ter uma banda:

Todo mundo queria ter uma banda e quase todo mundo tinha. A gente até comprava os instrumentos em coletivo. Tipo 6 bandas usavam os mesmo instrumentos, sabe? (risos) Era fácil ter uma banda. Você escrevia o que queria dizer e berrava no microfone e os caras batiam nos instrumentos. (risos) Tinha também os que cantavam bem e eram fera. O legal, o divertido e que tu fazia o que tava afim, sem preconceito. Tudo era permitido. E a gente só ouvia rock cara, direto.73

A revista Bizz74, a primeira revista de jornalismo profissional dedicada

exclusivamente ao rock, recebia nos primeiros meses em torno de 500 fitas K7, número que

triplicou a partir de 198675. Eram grupos amadores que gravavam suas canções e

enviavam ao principal veículo de comunicação rock, na tentativa de conseguirem um

contrato com uma gravadora ou a vinculação de uma das canções num dos paus-de-sebo. A

mesma revista tem uma parte destinada a cartas e recados, onde os jovens divulgam suas

bandas, escreviam para trocar correspondência e informações sobre rock e ainda divulgam

seus fãs-clubes. Analisando essa seção da revista é possível concluir que o rock, inspirado

pela facilidade do faça-você-mesmo, chegou a boa parte do território brasileiro. Em Porto

Velho, Rondônia, havia um fã-clube de uma banda bastante undergraoud, a Finis 73 Entrevista cedida por Carlos Alberto Souza, 40 anos, em 2 de maio de 2005. Ele morou e mora em Porto Alegre. Hoje é dono de um Sebo de discos. 74 O contexto do surgimento dessa revista, em 1985, será explora na última parte desse capítulo. 75 Revista Bizz. São Paulo, janeiro de 1987.

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Afrecae76. Em Mossoró, Rio Grande do Norte a banda carioca Kid Abelha77 também tinha

fãs organizados78. Havia também uma grande quantidade de fãs-clubes de bandas

internacionais, principalmente inglesas. A vontade de ter uma banda, virar um artista de

rock, tocar suas canções foi bem captada pela banda paulista Ultraje A Rigor79 na canção

Mim Quer Tocar:

Mim quer tocar Mim gosta ganhar dinheiro Me want to play Me love to get the money Mim é brasileiro Mim gosta banana Mas mim também quer votar Mim também quer ser bacana Mim quer tocar Mim gosta ganhar dinheiro Me want to play Me love to get the money Mim gosta tanto tocar Mim é batuqueiro

76 Essa banda será analisada no terceiro capitulo junto com a formação das bandas de Brasília, mas é importante dizer que 1984, influenciados pelo punk rock, três rapazes - Neto (no baixo), Ronaldo (bateria) e José Flores (guitarra) - resolveram se juntar para formar uma banda. Batizaram-se Finis Africae. Logo depois se juntou a eles o vocalista Rodrigo. Em setembro do mesmo ano participaram da coletânea: Rumores, com as composições Ética e Van Gogh, que foram veiculadas por várias FMs alternativas do Planalto, do Rio de Janeiro, Porto Alegre e de São Paulo. Em 1985, saiu Rodrigo e entrou Eduardo, que além de cantar escrevia letras densas, sombrias e de forte reflexão sobre a existência humana. Em 1986, lançaram um mini-lp com seis faixas, entre elas Armadilha e Máquinas do Prazer. O impacto foi tanto que este se tornou o único LP independente a integrar a programação das grandes FMs do Rio e de São Paulo. O nome Finis Afrecae retoma uma língua quase morta, sugere mistério e desperta a curiosidade; além de fazer uma clara alusão ao continente famoso por ser a raiz rítmica de quase toda a percussão moderna. E as referências não param aí, pois Finis Africæ também era o nome dado ao local mais secreto do acervo da biblioteca da abadia beneditina onde se desenvolve a trama de O Nome da Rosa, best-seller de Umberto Eco. In: Revista Ele & Ela. São Paulo, setembro de 1987. 77 No inicio seu nome era Kid Abelha e os Abóboras Selvagens. Formada pelos cariocas Bruno, George Israel e a vocalista Paula Toller. Seu som e suas letras são mais descontraídos e dançantes. Talvez seja a banda cm um apelo mais pop daquele cenário. 78 Revista Bizz. São Paulo, novembro de 1987. 79 O Ultraje a rigor foi formado no final de 1980, inicialmente como uma banda de covers, principalmente Beatles, rock dos anos 60, punk e new wave. Depois de algumas formações provisórias, Roger, Leonardo, Sílvio e Edgard começaram a se apresentar em festas e barzinhos. Em 1982, ainda sem um nome fixo, decidiram por Ultraje a Rigor, já que nunca eram muito fiéis às versões originais dos covers que faziam, freqüentemente avacalhados ou distorcidos. O nome Ultraje a rigor foi escolhido meio por acaso. Edgar acabou indo para o Ira! Maurício Rodrigues assumiu o baixo da banda. In: DAPIEVE. op.cit., p. 106.

40

Mas mim precisa ganhar Mim gosta ganhar dinheiro Mim quer tocar Mim gosta ganhar dinheiro Me want to play Me love to get the money80

Essa canção chegou ao mercado em forma de compacto em 1983, e incorporada

ao primeiro álbum da banda em 1985. O Ultraje a Rigor sempre foi marcado pela

irreverência e pelo tom bem humorado e irônico de suas letras. O uso indevido do pronome

relativo para conjugar o os verbos, que é enfatizado pelo vocalista quando canta “mim quer

tocar”, pode nos conduzir a uma análise de que não era preciso grandes conhecimentos em

música para fazer uma banda, para cantar uma canção. Cantar era o que realmente

interessava, não importando como. Esse compacto vendou 120 mil cópias81. Um número

bastante significativo para o mercado naquela época.

Contudo todo esse movimento, toda essa novidade, esse jogo de possibilidades

colocadas na distensão, na abertura política, pelo punk e pelo rock não foi bem visto pela

crítica e pelos artistas estabelecidos da MPB. Severas críticas foram feitas ao rock:

Quando surgiu o pessoal do rock teve muito vodu, as pessoas dizendo que era uma coisa menor, de garoto rebelde sem causa, burro. Eu tenho muito orgulho de fazer parte de uma geração que tem Arnaldo Antunes, Lobão, onde tem Renato Russo. Só que a gente não tem o compromisso de fazer um movimento como foi a Bossa Nova, como foi a Tropicália.82

Ou como disse Renato Russo ao Correio Brasiliense:

(...) eles falam muito mal do rock, principalmente o Fagner, que fala mal. Eu gostaria até de não comprar briga, mas eu gostaria de deixar uma coisa bem clara: o Fagner fala que o pessoal da geração dele tem mais cultura. Agora eu coloco justamente esta questão que o Jornal do Brasil falou: não é o Renato Russo que está falando, eu estou simplesmente repetindo uma coisa que eu achei um achado genial. O Fagner disse que

80 Ultraje a Rigor. Mim Quer Tocar. In: Nós Vamos Invadir sua Praia. Warner, 1985. 81 www.ultraje.com.br. 82 Entrevista de Cazuza a revista Isto É de 1o de abril de 1987.

41

o pessoal da geração dele tem mais cultura, mas pelo menos da nossa geração ninguém roubou poesia da Cecília Meireles para colocar em música sem pagar direito autoral. Então a gente tem a nossa cultura mas não faz esse tipo de coisas.83

É perceptível nas falas de Cazuza84 e Renato Russo a marca geracional, ou seja, o

sentimento de pertencimento a uma geração identificada com um tipo de estilo,

comportamento e música e por isso a exclusão de tudo que é anterior, do antigo. Além

disso, o debate em torno do surgimento do rock da abertura para o enraizamento desse

estilo musical no Brasil estava posto e ficou mais áspero na medida que novas bandas

surgiam e tomavam espaços, canalizavam sentimento, conduziam discussões políticas e se

tornava a trilha sonora da Abertura política e a luta pela redemocratização. A banda Ira

entrou no debate com irônica e barulhenta canção Nasci em 62:

Eu não vi Kennedy morrer Eu não conheci Martin Luther King Eu não tenho muito para dizer... ? Nasci em 62, nasci em 62 Eu não conheci os políticos Mas conheci a mentira Li tudo nos livros Aprendi na escola Eu não vi Kennedy morrer Eu não conheci Martin Luther King Eu não tenho muito para dizer... ? Nasci em 62, nasci em 62 Eu posso morrer hoje Meu dinheiro nada vale Eu não quero segurança Eu não vi Kennedy morrer Eu não conheci Martin Luther King Eu não tenho muito para dizer... ? Nasci em 62, nasci em 62.85

83 Entrevista cedida por Renato Russo ao jornal Correio Brasiliense de 17 de novembro de 1985. 84 Cazuza era o vocalista da banda carioca Barão Vermelho. Ao lado de Renato Russo, foram os dois maiores expoentes do rock. Em 1986 ele saiu da banda para ter uma carreira solo, que duraria até 1990, quando morreu de AIDS. In: DAPIEVE, op. cit., p. 67. 85 Ira! Nasci em 62. In: Mudança de Comportamento. Warner, 1986.

42

Essa canção é um manifesto irônico de uma geração que fora acusada de alienada

e desprovida de condições culturais de expressar alguma coisa, ou tampouco de ter

vinculações políticas com seu país. Isso mostra que a década de 1980 foi por muitas vezes

amaldiçoada. Em muitas análises houve a predominância da acusação, o julgamento, a

penalidade e esse fardo foi atribuído à geração nascida sob o espectro nefasto do

autoritarismo, a chamada Geração Coca-Cola – a geração do rock brasileiro - que estaria

tolhida da capacidade de formular pressupostos críticos, ou elaborar mecanismos

imaginativos e utópicos como alternativa criativa à ordem estabelecida. Essa geração,

portanto, estaria condicionada ao individualismo, à indiferença quanto às questões de cunho

político ou de atuação e transformação do espaço público. Estaria estagnada, parada, um

rio de águas calmas. Nada realmente proveitoso poderia ser feito nos anos 1980 – uma

década perdida culturalmente. Restaria um escapismo hedonista e privatizador;

promovendo, portanto, a diluição de todos os valores revolucionários conquistados ao

longo dos anos 1960.

Os 60 foram os anos da invenção, da criação original. É por isso, por exemplo, que dizer vanguarda dos 70 ou 80, soa mal: vanguarda é 60. Ou então dos 20, que foi outro momento de invenção. Os valores tradicionais são contestados e a liberdade espontânea conquista seu espaço. (...) Os anos 80 são os anos da diluição, em soluções cada vez mais rarefeitas. O gesto libertário perdeu seu sentido; a busca acabou; o caminho está fechado. As instituições, velhas ou novas, mostram-se fortalecidas. Voltamos ao que havia antes de 60, só que pior. O egocentrismo é absoluto; a liberdade desapareceu no horizonte. (...) O Conformismo é normal; a moda é ser careta. O indivíduo desapareceu; nascem os robôs. A vitória do sistema só não é total porque sua natureza é ilusória86.

É perceptível no texto citado que se atribui aos jovens daquela época o desafio de

questionar e transformar a ordem vigente, da modificação e do choque com os valores

socialmente aceitos. Em contrapartida, a juventude da década de 1980 é coberta de toda a 86 MACIEL, Luiz Carlos. Os anos 60. Porto Alegre: L&PM, 1987.

43

culpa pela diluição do triunfo, pelo retorno piorado, pelo passo retrógrado e conservador,

pela banalização ou pelo esgotamento do espontâneo. As críticas feitas nos anos de 1980

ao rock tentaram conceder um caráter alienado às práticas de tal tempo, tendo como pano

de fundo a investigação da capacidade de contestação, de alteração, de subversão dos

valores da sociedade. Parece muito claro que há uma fixação num “valor ideal” de atitude

juvenil, num paradigma. E esse valor tem seus pés fincados nos anos de 1960, na conduta,

no formato, na atitude contestadora daquela juventude87. Por conta disso, análises

comparativas entre as gerações sempre acabam seguindo o mesmo caminho resvalante.

Um lamento perplexo, como o citado, evidencia bem essa forma de análise que traduz a

desilusão de uma geração que perdeu as rédeas da contestação e da renovação cultural.88

(...) as gerações anteriores além de estarem totalmente desiludidas, jogam toda essa desilusão em cima dos jovens. Um cara como Ferreira Gullar dizer que a gente é uma geração sem caráter, é de perder a confiança. O Baden Powell também falou isso. E eram pessoas que eu respeitava. Então em quem é possível confiar? Em Caetano Veloso, mas ele está fora disso. (...)89

Homogeneizar o comportamento juvenil tendo como base reflexiva os anos de

1960 é desconsiderar o contexto histórico específico em que novos padrões estéticos

aparecem. Isso impossibilita a correta leitura dos modos de atuação de determinados

grupos. O choque de gerações, contudo, parece ser normal em sociedade históricas, as que

possuem a categoria juventude90. Isso ficou evidente no Brasil, principalmente pelo

importante papel que MPB desempenhou na resistência ao regime militar, mas que perdeu

87 ABRAMO, Helena wendel. Cenas Juvenis: Punks e Darks no Espetáculo Urbano. São Saulo: Scritta, 1994. 88 VARGAS, Christian, Anjos Decaídos: Uma Arqueologia do imaginário pós-utópico nas canções da Legião Urbana. Brasília: Paralelo 15, 1999. In: COSTA, Cléria Botelho da e MACHADO, Maria Salete Kern (orgs). Imaginário e História, p. 185. 89 Entrevista de Reato Russo ao jornal O Estado. Florianópolis, 17 de julho de 1987. 90 MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX: O Espírito de Tempo (Necrose). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p. 137.

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prestígio no período da redemocratização, justamente porque esteve ligada a um período

histórico bastante datado91. A banda de Brasília Plebe Rude92 parece dar um recado aos

jovens que gostavam de rock. A canção Não Tema, de 1983, sugere o descompromisso, a

liberdade, a não preocupação com possíveis críticas, julgamentos. Talvez seja a resposta,

bem dentro do espírito dos anos de 1980, da banda a esse embate entre gerações:

Não tema! Não! Não! Não tema! Não! Não! Não tenha medo de se divertir Não tenha medo de falar e sorrir Não tenha medo de pular e dançar Não tenha medo de se apaixonar Não tema! Não! Não! Não tema! Não! Não! (...)93

A Nova República do Rock

O Regime Militar acabou efetivamente em 15 de janeiro de 1985 com a eleição de

Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, formado por deputados federais. Começava a

chamada Nova República. No mesmo dia 15 estava acontecendo o festival de rock, Rock in

Rio no Rio de Janeiro. A primeira banda brasileira a entrar no palco foi a Kid Abelha,

anunciada da seguinte forma: “este é o primeiro show da democracia brasileira”. Mas o

momento mais significativo foi durante o evento, no show da banda carioca Barão

Vermelho. No meio da apresentação, o vocalista Cazuza se enrola na bandeira brasileira e

faz um entusiasmado discurso sobre o nascimento da Nova República, logo em seguida

91 ABRAMO, op. cit., p. 84. 92 Formada Gutje, Philippe Sebra, Jarder Bilaphra e André X, todos adolescente de Brasília. Tiveram apenas um EP e um LP em 1985 e 1987, respectivamente. Ficaram mais restritos aos circuitos undergraud, mas chegaram a tocar em rádios comerciais nos anos de 1980. In: DAPIEVE, op. cit., 135. 93 Plebe Rude. Não Tema! In: Nunca Fomos Tão Brasileiros. EMI, 1987.

45

começa a cantar a otimista canção Pro dia Nascer Feliz, que ganhou a estrofe “pro Brasil

nascer feliz”:

Foi um momento importante até para a história do rock no Brasil. Foi muito marcante porque a campanha pelas eleições diretas era um show, na verdade, político. No momento em que aquilo foi abortado, de qualquer jeito, o Tancredo ainda era a voz da mediação, do diálogo, ou seja, sabíamos que, dali em diante, as coisas melhorariam. Não gostaria de ser pretensioso, mas lembro, mas lembro de claramente falar: ´Cazuza, vamos aproveitar Pro dia Nascer Feliz hoje para dedicar ao Brasil. Esse é um momento que a gente ta feliz pra cacete´. E aí na hora ele mandou aquilo. Foi muito bonito.94

Era a confirmação de que o rock transformara-se na trilha sonora daquele

momento político. O rock alia crítica e divertimento, numa potência tal que envolve o

público numa vivência coletiva na qual se reconhece como pertencendo a algo e percebe

seus pares nesse processo. As possibilidades que esse estilo musical engendrou na década

de 1980 se refere também, em parte, ao otimismo, à festa, à intensidade do que acontecia no

Brasil. Os jovens podiam pular, gritar, festejar. O rock, entretanto, também pode expressar

as insatisfações, as raivas e os desencantos com a política brasileira. Foi o que aconteceu

com a emblemática canção Inútil da banda Ultraje A Rigor.

A gente não sabemos escolher presidente A gente não sabemos tomar conta da gente A gente não sabemos nem escovar os dente Tem gringo pensando que nóis é indigente Inútil A gente somos inútil

A gente faz carro e não sabe guiar A gente faz trilho e não tem trem prá botar A gente faz filho e não consegue criar A gente pede grana e não consegue pagar

A gente faz música e não consegue gravar A gente escreve livro e não consegue publicar A gente escreve peça e não consegue encenar

94 Entrevista cedida por Roberto Frejat. In: BRYAN, op. cit., p. 206.

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A gente joga bola e não consegue ganhar.95 A canção é um bem humorado, direto e virulento protesto contra a ditadura militar

e contra a impossibilidade dos brasileiros escolherem seu presidente. Lançada num

compacto em 1983 essa canção apresenta uma batida da bateria que se torna mais intensa

quando Roger, o vocalista, canta o refrão e berra a palavra “inútil”. Embora os noticiários

colocassem Coração de Estudante, de Milton Nascimento como hino da campanha pelas

eleições diretas, foi Inútil que teve maior reverberação entre as pessoas:

A tv tocava ‘Coração de Estudante’, do Milton, mas na prática era ‘Inútil’, bastava andar nas ruas, ir nos comícios. Só Inútil incomodava, porque ia no fundo da ferida. Temos a mania de colocar a culpa nos políticos, mas Inútil dizia que a coisa dependia do povo.96

Essa canção parece ter de fato incomodado. Tanto é que o porta-voz do presidente

Figueiredo, em resposta a um comício em Curitiba, em que Inútil foi tocada e seu refrão

repetido várias vezes, declarou que: “as manifestações populares só servem para

desestabilizar a sucessão”. Em resposta o deputado do PMDB97, Ulisses Guimarães, um

dos principais líderes da campanha, enviou o disco que continha a canção para o

funcionário do governo98. Ulisses ainda usaria essa canção mais uma vez. O país parou em

25 de abril de 1984. Nesse dia seria votada no plenário da Câmara dos deputados a emenda

constitucional que propunha a eleição direta para presidente da República, a chamada

Emenda Dante de Oliveira, nome do deputado que a propôs. Milhares de pessoas tomaram

as ruas da capital federal, porém a expectativa havia virado frustração. Em resposta a uma

95 Ultraje a Rigor. Inútil. In: Nós Vamos Invadir Sua Praia. Warner, 1985. 96 Entrevista cedida por Roger, vocalista da banda Ultraje a Rigor. In: ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta: O Rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo: DBA, 2002, p. 165. 97 Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Até a reforma partidária, que acabou com o bi-partidarismo, era o partido que oficialmente fazia oposição aos militares. 98 ALEXANDRE, op. cit., p. 165.

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articulação do PDS99, que esvaziou a votação e impossibilitou a aprovação da emenda,

Ulisses Guimarães leu a letra de Inútil na tribuna da Câmara.

Abertura Para o Mercado

Esse pessoal novo vem apenas ocupar um espaço. Isto não representa uma mudança na filosofia as gravadoras em relação a outros ritmos. Apenas estamos atendendo um público carente, era uma área que estava vaga.100

O rock dos anos de 1980 redimensionou o mercado fonográfico brasileiro. Com o

surgimento das bandas, abriu-se um espaço para a criação de um circuito de bares, casas de

shows, gravadoras profissionais e independentes e lojas especializas. Além disso, todo um

aparato de divulgação dos produtos, como revistas de rock, vídeo-clipes e rádios foram

também criados. Nessa década houve uma ampliação de todos os elementos do mercado

fonográfico. Se historicizarmos essa ampliação vamos encontrar três momentos bastante

marcados. O primeiro vai de 1979, quando o punk começa a chegar no Brasil, até 1982

com a criação de várias bandas e o aparecimento no Circo Voador101 da banda Blitz102. É

o momento, já comentado anteriormente, em que a MPB perde popularidade, mas mantém

seu espaço junto às gravadoras, e o rock começa a surgir como alternativa para a juventude.

O segundo momento vai de 1982 até 1985, quando várias bandas são criadas e suas canções

gravadas de maneira muito artesanal e colocadas no mercado. O terceiro momento vai de

99 Partido Democrático Social, antigo ARENA, era o partido oficial do Governo Militar. 100 Entrevista cedida pelo produtor musical Mariozinho para a revista Som Três, setembro de 1982. 101 O Circo Voador, montado numa estrutura de lonas de circo na Lapa, Rio de Janeiro, foi um dos principais espaços para divulgação do rock nacional. Muitas bandas que mais a tarde obteriam um certo reconhecimento da grande mídia e teria boas vendagem de seus álbuns começaram de forma amadora em apresentações do Circo. Entre 1983 e 1986 mais de 258 bandas diferentes, de vários lugares do país, se apresentaram no Circo Voador. O circo transformou-se num território do rock, num ponto de encontro da juventude carioca identificada com o rock. In: BRAYAN, op. cit., p. 76. 102 Primeira banda a lançar um álbum e a fazer sucesso nos anos de 1980. Totalmente influenciada pela new wave, tinha roupas coloridas, canções dançantes e bem-humoras. Além disso, misturavam teatro em seus shows. Seu vocalista era Evandro Mesquita era ator, diretor e cantor. In: DAPIEVE: op. cit., p. 59.

48

1986 até mais ou menos 1990, é o momento em que o rock deixa de ser novidade e uma

dúvida comercial para se tornar algo estabelecido. Com vendagens altas e todo um circuito

nacional estruturado em torno do rock, é criada em 1990 a Music Television, a MTV103.

É na primeira metade da década de 1980 que os grandes estúdios, como Sony,

Warner, EMI, RCA e PolyGram chegam ao Brasil. Contudo o rock ainda não tinha

chegado a esses estúdios, de forma profissional, e não dispunham de um aparato de

divulgação consistente. No segundo momento, a importância e o tamanho do rock no

mercado crescia a margem da grande indústria fonográfica:

A visão das companhias era sempre de superestrutura, que girava em torno do Rio de Janeiro. As gravadoras em nenhum outro momento iam até os mercados em busca dos talentos. O mundo que passava na industria de disco nessa época era radicalmente diferente aquilo que eu vivia.104

A construção de uma esfera musical não é uma correia mecânica passando pelos

mecanismos e instituições de difusão musical. As possibilidades de estímulo para a criação

e para a escuta formam uma complexa estrutura, com diversas partes interagindo entre si.

O surgimento dessa estrutura paralela ao mainstream musical ocorreu em Porto Alegre,

Brasília, Recife, Belém, Curitiba e Porto Alegre e nas cidades do interior, mas as bandas de

São Paulo e principalmente Rio de Janeiro chegam primeiro à grande mídia, pois é nessas

cidades que se encontravam a estrutura pronta. Porém tudo era ainda muito amador. Como

já escrevi, raramente as bandas gravam álbuns em seus lançamentos. Elas eram lançadas

com um single, um compacto ou nos paus-de-sebo, não cobravam nada para gravar e os

103 A MTV é um canal de televisão totalmente voltado para o público jovem. Toca clipes de bandas nacionais e internacionais, faz shows, programas segmentados, entrevistas, mostra tendências musicais, bastidores dos artistas e todo mais ligado à musica. 104 Entrevista cedida por João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão. In: BRAYAN, op. cit., p.42.

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discos eram produzidos de forma bastante rudimentar, em 8 canais105. Isso era muito barato

para as gravadoras que tinha de conviver com a produção de discos milionários, dos nomes

já consagrados, e com a queda na vendagem nos primeiros anos da década de 1980106.

Outra forma de divulgar as bandas foram as rádios especializadas em rock. Eram

geralmente emissoras independentes que surgiram como demanda de uma parcela da

juventude que queria ouvir e saber mais informações sobre o mundo do rock. Foi o caso da

Fluminense FM do Rio de Janeiro, da Ipanema FM em Porto Alegre, da 87 FM de Ribeirão

Preto e a 89 FM de São Paulo. Talvez as rádios tenham sido o primeiro e principal

instrumento de difusão das novas bandas. Elas se transformaram num canalizador dos

surgimentos das bandas.

Só se ouvia a Fluminense. Todo dia era possível conhecer uma banda nova, porque havia uma velocidade de você gravar, mandar, ele gostarem e botarem no ar.107

Em 1983 a Fluminense FM, mesmo com uma estrutura amadora, já a era a terceira

em audiência no Rio de Janeiro. A Ipanema FM também esteve entre as primeiras na

audiência das FMs, chegando a estar em primeiro várias vezes. Isso mostra a vazão que as

rádios deram ao rock, bem como a importância que ele começava a ter. Havia ainda a

revista Som Três, que não era específica de rock e a Roll que possuía uma estrutura muito

amadora108. As bandas iniciantes gravam uma fita e as enviavam para as rádios e para as

revistas. A indústria do entretenimento começava a perceber na juventude um potencial

105 Hoje em dia um CD é gravado com alta qualidade técnica em até 64 canais e podem levar até 6 meses. Naquela época bastava ligar os instrumentos na mesa de som e no máximo duas semanas estava tudo pronto. 106 Muitas obras chegavam a custa até 1 milhão de dólares, o que tornava-se incompatível com o mercado e a crise econômica vivida pelo pais. Em 1980 foram vendidos 40,5 milhões de LP, singles e fitas k7 no ano seguinte houve uma redução de 7 milhões nesse número, em 1984 havia checado a 38 milhões. In: ALEXANDRE, op. cit., p. 129. 107 Etrevsita cedida por Hebert Vianna. In: ALEXANDRE, op. cit., p. 113. 108 BRYAN, op. cit

50

mercadológico até então pouco explorado109. Começaram a aparecer programas de

televisão como Perdidos na Noite, da Record, Armação ilimitada, Clipe Clipe e Geração 80

da Rede Globo.

O rock começava a se tornar, ainda que de forma paralela um bem de consumo em

massa. Esses meios de divulgação massivos contribuíram para a superação da

fragmentação. Na medida em que eles informam e divulgam experiências comuns e bens

de culturais do interesse do segmento ao qual estão vinculados, estabelecem redes de

comunicação e torna possível apreender o sentido social, coletivo, do que acontece na

cidade ou mesmo no país. Em suma, é possível afirmar que o rádio, as revistas e a

televisão, ao relacionar componentes emergentes num dado contexto social, uma cultura

rock, por exemplo, e difundi-los maciçamente, coordena a forma de se acessar as

informações110.

No terceiro momento, o rock se torna definitivamente uma rentável mercadoria,

apresentando toda uma rede de consumo e recepção estabelecidos. Foi uma organização da

cultura jovem e a percepção que era uma fatia de mercado com um grande potencial de

consumo. Isso desembocou nos dois eventos rock chamados de Rock in Rio, um em 1985

e o outro em 1991, na criação da revista Bizz, com grande tiragem mensal e uma estrutura

profissional de jornalismo, e a já mencionada criação da MTV brasileira. Nessa parte da

década as bandas, já mais estruturadas, com contratos que garantiam a distribuição, gravam

seus álbuns completos. Muitas canções que eram lançadas avulsas são compiladas num só

trabalho depois de 1985 e 1986. Bandas como Ultrage a Rigor, Paralamas do Sucesso,

109 NAPOLITANO, op. cit., p. 75. 110 Cf. CANCLINI. op. cit.

51

Plebe Rude, Ira!, Hojerizah111, Zero112, e Engenheiros do Hawaii113 são exemplos desse

momento. Tanto é que a grande maioria dos discos citados neste trabalho são de depois de

1985, por conta dessa característica do mercado e pela impossibilidade de se ter acesso aos

compactos lançados na primeira metade da década.

Figura 7: Visão lateral do Rock in Rio retirada da Revista Super Interessante edição especial

sobre rock, 2005.

111 A banda carioca era formada por Flávio Murrah, Marcelo Larrosa, Álvaro Albuquerque e Tony Platão. A banda possui um rock mais cadenciado e melódico. Tive no seu disco homônimo de 1986 um certo reconhecimento e difusão nas rádios especializadas em rock. In www.cliquemusic.com.br/artistas. 112 ZERØ surgiu no começo de 1983, quando o vocalista Guilherme Isnard (ex. Voluntários da Pátria) se reuniu aos arquitetos Beto Birger (baixo); Claudio Souza (bateria), Gilles Eduardo (sax); Fabio Golfetti e Nelson Coelho (guitarras). Devido às divergências musicais essa formação durou apenas dois anos e rendeu além do compacto (Heróis/100% Paixão). Em 1985 Guilherme reestruturou a banda com Eduardo Amarante (ex. Agentss e Azul 29) na guitarra; Ricky Villas-Boas (ex. Joe) no baixo; Freddy Haiat (ex. Degradée) nos teclados e Athos Costa (ex. Tan-Ta n Club) na bateria. O mini Lp "Passos no Escuro", vendeu quase 180 mil cópias. Em 1987 lançaram o LP Carne Humana. Nessa fase, abriram os shows da mega estrela Tina Turner no estádio do Pacaembu e no Maracanã, para um público de 200 mil pessoas. In: www.clicmusic.com.br/artistas. 113 Banda gaúcha formada em 1985 durante uma greve na faculdade de arquitetura. Os Engenheiros do Hawaii começaram com Humberto Gessinger (guitarra), Carlos Maltz (bateria), Marcelo Pitz (baixo). Em 1987 o baixista Pitz sai da banda, então Humberto Gessinger larga as guitarras e assume o baixo. Logo após entra o músico gaúcho Augusto Licks. In: www.clicmusic.com.br/artistas.

52

Outro impulso para Indústria e para o rock, que se tornava a principal fonte de

renda para as gravadoras, foi o Plano Cruzado, de 1986. Com a inflação de 235,5%, em

1985, controlada (por conta do plano), o corte dos zeros na antiga moeda, o Cruzeiro, a

implementação do chamado gatilho salarial, que reajustava automaticamente os salários

cada vez que a inflação chegasse a 20%, aumentaram fortemente o poder de compra dos

brasileiros da classe média e dos setores mais populares114. Até o final de 1986 o mercado

havia se expandido 43% em relação ao ano anterior115. O LP ao vivo da banda RPM116

havia esgotado em todas as lojas do país, ainda que a gravadora tivesse usado sua fábrica na

Argentina para dar conta da demanda. Nesse ano as vendagens das bandas passavam

facilmente de 200 mil cópias117. A euforia econômica, entretanto, foi efêmera. No final de

1987 a inflação chegou a 365,99%. Mesmo assim o rock havia se consolidado, criado toda

uma estrutura de criação, produção, distribuição e recepção no Brasil.

114 FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1994, p. 523. 115 ALEXANDRE, op. cit., p;282. 116 Grupo do rock surgido em 1985, foi um dos mais populares do país nos anos de 1986 e 1987. Com influências do pop-rock inglês (o vocalista Paulo Ricardo morou em Londres por dois anos na primeira metade da década de 1980), a primeira faixa de sucesso foi "Louras Geladas", incluída no LP "Revoluções por Minuto", expressão que deu origem ao nome da banda. Em 1986, com o lançamento de "RPM ao Vivo" que vendeu 2,4 milhões de cópias, o maior fenômeno fonográfico da década. Emplacaram quase todas as músicas do disco, entre elas "Revoluções por Minuto", "Rádio Pirata", "A Cruz e a Espada". O disco seguinte, "Quatro Coiotes", foi o último antes da banda se desfazer. In: www.clicmusic.com.br/artistas. 117 Bandas como Ira!, Legião Urbana, Capital Inicial, Ultraje a Rigor superaram essa marca. In: Revista Bizz. São Paulo, dezembro de 1986.

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Segundo Capítulo Diálogos Com a Morte, Encontros Com o Novo

As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão inumeráveis quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que se denominava caminho não passa de vacilação.118

Ideologia, eu quero uma pra viver119

Quem não tem rede embaixo não vai tentar um triplo mortal. O movimento das esquerdas nos anos 60 não deu em nada. Agora tem que tentar um novo caminho sem ter nenhuma saída: o povo está sem educação, sem alimentação e a estrutura política esta totalmente sem base ética, então fica muito difícil. Não tem modelo nem referencial, nem mentores que indiquem o caminho.120

Uma parte das pessoas, a partir da década de 1980, experimentou ares até então

estranhos para quem vivia por estas terras ao sul do Equador: a perda do clássico sentido de

militância política e atuação-ação na esfera pública em vistas a formulação de uma perfeita

sociedade no provir. Nesse fragmento de entrevista, Renato Russo parece dar uma idéia do

que pensavam e sentiam os jovens identificados com o rock da última década do breve

século XX, pelo menos no que se refere à ação política em sua maior amplitude. Para

buscar esses nexos e inter-relações entre a produção e a expressão de sentimentos, desejos,

decepções, as canções apresentam-se como mecanismo que atua no "processo" de

118 Texto de Franz Kafka. In: KONDER, Leonardo. Kafka: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. 119 Verso do refrão da canção Ideologia de Cazuza que será analisada neste capítulo. 120 Entrevista de Renato Russo, vocalista da banda Legião Urbana, ao Jornal O Estado. Florianópolis, 17 Julho 1987.

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significância social, capaz de gerar estruturas que vão além dos seus aspectos meramente

sonoros.121

Não só em nível internacional, como também no Brasil, é possível identificar a

crise dos paradigmas universalizantes e totalizantes. Pode-se entender crise como o

esfumaçamento da consciência que uma sociedade, ou um grupo, tem de si, trazendo

consigo a perda da autoconfiança122. É também o momento em que as bases de novas

sociabilidades e estruturas sociais emergem. Sendo assim, crise talvez seja um bom

adjetivo para os anos de 1980, acompanhado pelas palavras incerteza, medo e esperança.

A fala do vocalista da banda Legião Urbana sugere o descrédito com as práticas

outrora corriqueiras e a necessidade de se construir novas possibilidades, novas estratégias,

encontros com o novo que conduzam homens e mulheres sedentos de redenção, à dias

melhores. Não havia, contudo, modelos ou ícones simbolicamente capazes de costurar os

sujeitos dispersos pelo tecido social. Partido políticos, sindicados, grêmios, já não mais

seduziam àquela parte da juventude identificada com o rock. Uma aparente paralisia

recortada por um soturno enredo de falta de perspectiva parecia rondar as mentes

oitentistas. As investidas de enterrar a ditadura militar, o Estado Terrorista implementado

em 1968, fundamentado em pressupostos utópicos e vanguardistas fracassaram123. As

energias utópicas causaram decepções, o grande projeto desapareceu.

Numa das mais significativas canções de toda essa geração, cantada numa

melancólica alternância de cansaço e sonho por Cazuza, já publicamente abalado pelo

121 PINTO, Thiago de Oliveira. Som e Música: Questão de uma Antropologia Sonora. In: Revista de Antropologia. n.o , vol. 44, São Paulo, 2001. 122 MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. Porto Alegre: Arte e Ofícios, 1995, p.152. 123 MORICONI, Ítalo. O Pós-utópico: A Crítica do Futuro e da Razão Imanente. In: Tempo Brasileiro, no 84, janeiro – março, 1986, p.69.

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vírus-morte124, Ideologia é o perfeito resumo da negação, da morte dos antigos ideais

usualmente atribuídos aos jovens, como também a desejosa vontade de “tentar um novo

caminho”125:

Meu partido é um coração partido e as ilusões estão todas perdidas os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito ah! Eu nem acredito e aquele garoto que ia mudar o mundo mudar o mundo freqüenta agora as festas do grand moundel meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder, Ideologia, eu quero uma pra viver.126

A capa desse LP deixa esse sintoma mais evidente. São apresentados vários

ícones que correspondem ideologias aparentemente superadas ou já sem tanta reverberação

na sociedade:

124 Embora a relação entre o vírus HIV e a década de 1980 tenha um lugar de destaque nesse capítulo, cabe lembrar que o cantor Cazuza morreu em 1990 vitimado pela síndrome. Sua doença ficou conhecia publicamente, até porque foi ele a primeira figura “pública” brasileira a admitir portar o vírus. Além disso, é visível na obra do cantor uma intensificação da densidade das canções, principalmente em suas letras. Cantava-as como se a vida cessasse a qualquer instante. Renato Russo também padecerá da mesma enfermidade seis anos depois. 125 Referência à entrevista de Renato Russo citada acima. 126 Cazuza. Ideologia. In: Ideologia, PolyGram, 1988.

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Figura 8: Capa do disco Ideologia de 1988.

A Utopia (com u maiúsculo) sempre foi a construção imaginária de um espaço

ideal compartilhado por todos, de uma mesma teia de significâncias sociais, com bases

fincadas na igualdade e na irmandade. Projeto este de potência totalizadora de uma

coletividade em vista a projeção de uma radiosa alvorada. Utopia é, portanto, um não-lugar

exercido em terreno público127. É exatamente esse não-lugar, ou esse lugar nenhum,

preconizado pelos baluartes e sentinelas, pela patrulha ideológica de esquerda que o rock

daquele momento está negando, ao mesmo tempo em que está buscando um caminho sem

as saídas já conhecidas e que “não deram em nada”. Estão cantando as desilusões e os

sonhos de uma geração. O rock passou a ser uma forma de expressão desse momento

histórico de falência de um modo de estar-no-mundo e a emergência de outras formas de

atuação-ação.

127 Cf. AUGÉ, op. cit., p. 88.

57

Foi durante a década de 1980 que um dos principais ícones do socialismo, a

China, dava sinais de perda, anunciava o poente de uma revolução que se proclamava

cultural. Antes do colapso do socialismo realmente existente, experiências que tiveram

certo êxito passaram a sobreviver abandonando a idéia original de uma economia única,

centralmente controlada e estatalmente planejada, operando sem mercado128. A China abria

seus mercados e ao lado de bandeiras vermelhas, reinavam símbolos do capitalismo

internacional e imperialista, Mc´Donald e Coca-Cola. A canção Revoluções Por Minuto,

da RPM, com teclados e sintetizadores herdados do tecnopop inglês, batida rápida da

bateria e guitarras em tom alto seguindo a voz do vocalista Paulo Ricardo, acompanhou de

perto essas transformações. É justamente nesse momento da canção, a última estrofe, que a

tonalidade da voz mostra mais indignação:

Agora a China bebe coca-cola Aqui na esquina cheiram cola Biodegradante Aromatizante tem.129

O sentido da palavra socialismo foi se degradando durante a década. Essa

realidade havia ficado silenciada, submersa, reprimida durante os anos de chumbo. Em

parte, pelas políticas adotadas no governo militar, optando pela “aliança técnicoburocrática-

capitalista”130 controladora de toda e qualquer informação a ser vinculada pelos meios de

comunicação massivos; em parte por setores da oposição cujo propósito era a derrubada da

ditadura, articulada à construção de uma nova ordem global sustentada pela utopia

comunista, taxando de alienada qualquer manifestação para além dessas fronteiras.

128 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX – 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p 481. 129 RPM. Revoluções Por Minuto. In: Rádio Pirata Ao Vivo. Sony Music, 1986. 130 Esse termo refere-se a uma forma de gerência do Estado brasileiro, atrelado a uma burocracia especializada. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Os limites da “abertura” e a sociedade civil. In: FLEISCHER, David. Da Distensão à Abertura: as eleições de 1982. Brasília: Editora UNB, 1988, p.12.

58

Provavelmente a canção Problemas dos Replicantes131, uma banda de punk rock de Porto

Alegre, berrada pela voz rouca de seu vocalista e tocada com apenas dois acordes, uma

guitarra aberta e uma frenética bateria, não seria muito aceita. Trata-se de um escracho, um

irônico manifesto contra aqueles que se achavam capazes de significativas mudanças a

partir das velhas e mofadas estratégias. Wander Wildener “cantava” que

Resolver os problemas do mundo É coisa de vagabundo Resolver os problemas do mundo É coisa de vagabundo Eu sei que tem problemas Na América do Sul Eu sei que tem problemas Na Europa e na Ásia Eu sei que tem problemas Na África e na Oceania Eu sei que tem problemas No Rio Grande do Sul Mas resolver os problemas do mundo É coisa de vagabundo132

A canção ainda faz referência a uma característica interessante dos músicos

engajados e de boa parte dos jovens militantes de esquerda. Apenas os filhos da classe

média intelectualizada disponibilizavam de tempo e condições para estar nas manifestações

resolvendo os “problemas do mundo”. Contudo, o reconhecimento da existência desses

problemas fortalece o desejo do novo, a vontade de encontrar novos caminhos. É possível

perceber uma certa noção de negociação, que toma o lugar, que assalta a velha idéia de

negação do outro. Nas canções e entrevistas analisadas há uma temporalidade que torna

possível conceber a articulação de elementos antagônicos, ou mesmo contraditórios. Em

131 Banda de punk rock surgida em Porto Alegre, em 1983. Uma de suas primeiras atividades foi o estabelecimento de um selo próprio, Vórtex. Participaram da coletânea gaúcha “Rock Garagem” (Acit) com a faixa “Princípio do Nada”. Os Replicantes eram compostos por Wander Wildner (vocais), Claudio Heinz (guitarra) Heron Heinz (baixo) e Carlos Gerbase (bateria). O primeiro LP, “O Futuro É Vórtex”, foi editado em 1986 pela BMG Ariola. A seguir, lançaram pela mesma gravadora os LPs “Histórias de Sexo e Violência” (1987). O vocalista Wander deixou o grupo em 1990. In: www.replicantes.com.br. 132 Os Replicantes. Problemas. In: O Futuro é Vórtex, RCA, 1986.

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praticamente todas as canções ronda uma atmosfera de otimismo e melancolia, negação de

velhas saídas, morte do futuro e descrédito com a política, juntamente com sonhos,

encontros, desejos do novo. São criadas zonas híbridas, de destruição das polaridades. Nos

anos de 1980 há uma idéia clara de fronteira temporal, sem territórios definidos, com

exércitos se cruzando, uma zona indefinida, nublada133. A banda paulista Zero também

percebe esse momento de construir alternativas que possibilitem a transformação das

condições do mundo, chama a pessoas para luta, contudo esbarram na falta de referenciais

que as conduzam. Mesmo com a recusa do socialismo ainda era preciso buscar o

florescimento de uma sociedade melhor. Há essa mistura turva característica:

Ei você aí Quando é que vai resolver Tá pensando o quê? Não tem mais tempo de esperar

Ei você aí Arregaça a manga e vem lutar Que o seu planeta conta com você O seu planeta conta com você Tem gente afim de se mexer Talvez mais de um milhão Não sabem como começar Que tal cuidar do próprio chão Do próprio chão134

As canções podem polemizam com os acontecimentos políticos, como nas Diretas

Já, na eleição de Tancredo, no Plano Cruzado, na Guerra Fria, com a crise nuclear. Assim

dialogam com a sociedade, num jogo de ecos, dentro ou fora de um mesmo campo musical,

e atingem o plano político propriamente dito. A leitura feita por Ulisses Guimarães no

Congresso Nacional da já citada canção Inútil, é um forte exemplo disso. As canções

133 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003, p. 51. 134 Zero. Seu Planeta. In: Carne Humana. EMI, 1987.

60

conversam sobre questões sociais como desemprego, inflação, mundo urbano, AIDS,

família, adolescência num determinado contexto histórico135.

A última edição da revista Isto É de 1979, num balanço sobre a década de 1970,

diferentemente da revista Veja que acabava por silenciar sobre muitos aspectos, está

justamente analisando os novos desafios postos à nova década, que desponta num misto de

euforia com a abertura política em um ceticismo mal disfarçado com a realidade

circundante. Uma das reportagens especiais está devidamente intitulada de O recomeço do

sonho, pois “as pessoas ainda querem mudar o mundo, mas à maneira dos novos

tempos”136. A década de 1980 pode ser vista como tempo de recomeços, inclusive para o

Brasil. Isso porque desde o final da década de 1970 os brasileiros investem em cotidianas

iniciativas - em pequenas utopias intersticiais - que possibilitem o recomeço do país, o

reencontro com a dignidade após os anos do flagelo fardado. O silêncio da mordaça

explode em gritos descontentes que ecoam pelas ruas das cidades brasileiras. No final dos

anos 70 o movimento sindical se reorganiza e promove greves e manifestações ao longo do

Brasil, muitas vezes chegando ao embate com a polícia e lançando aos quatro ventos as

mazelas de seu cotidiano. O coração desse movimento é o ABC paulista, onde milhares de

trabalhadores reúnem-se em assembléias nos pátios das fábricas, embora como é possível

perceber nas duas citadas revistas, Porto Alegre, Belo Horizonte e outras cidades

acompanha o ritmo. Seu reaparecimento marcou de maneira fundamental a lenta

redemocratização do país, pois acabou “sacudindo o processo de abertura política”.137

135 Cf. MAHEIRE, Kátia. Música Popular Estilo Estético e Identidade Coletiva. In: Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Política. Vol.2 – n º 3 – janeiro/junho, 2002. 136 Revista Isto É. São Paulo, 19 de dezembro 1979. 137 Idem.

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A mesma revista, um mês antes, destaca que os negros também voltam a

organizar-se em manifestações públicas, acentuando o caráter político de suas

reivindicações, de sua luta. Promovendo ações mais teatralizadas com sonorização

característica, capoeira, vestimentas típicas, enfatizando aspectos geradores de identidade,

buscam recuperar “a consciência negra na História brasileira e recolocá-la em seu devido

lugar, ou seja, transformá-la numa ferramenta de oposição à consciência branca, racista, do

colonizador europeu.”138

Além de sindicalistas e negros, grupos feministas, homossexuais e de moradores

de bairro139 passam a organizar-se em movimentos, no início da década de 1980. Tal

característica vem acompanhada das mudanças já analisadas do processo de abertura

política, proporcionando a entrada em cena de novos personagens, novos atores sociais e aí

se insere a geração rock, aqui analisada. Fortalecendo, portanto, a estrutura da sociedade

civil que conquista outros espaços de atuação política e cultural, reformulando o espaço

público.

Todas as manifestações eram acompanhadas de muito perto, às vezes perto até

demais, pela polícia. A abertura lenta e gradual pressupunha abrandamentos da já

desgastada política militar de Estado. A revogação gradual dos Atos Institucionais, a

liberação de músicas e peças de teatro anteriormente proibidas, diminuindo a amplitude da

censura, que só acabara de fato com a Constituição de 1988140, são exemplos desse lento

processo.

138 Revista Isto É. São Paulo. 28 novembro 1979. 139 NASCIMENTO, Elimar Pinheiro e BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Brasil Urbano: Cenário de Ordem e Desordem. Rio de Janeiro: Notrya, 1993, p.9. 140 Canções como Faroeste Caboclo, de 1987 (Legião Urbana); Proteção, 1985 (Ultraje a Rigor); bichos Escrotos (Titãs) entre outras tiveram sua execução pública proibida.

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O próprio movimento estudantil parecia retomar seu lugar de destaque como foco

de mobilização, oposição e resistência nas manifestações de 1978. Com a conquista da

anistia aos exilados políticos, várias lideranças do espectro da esquerda retornaram ao país,

juntamente com ex-dirigentes estudantis do meio universitário prontos para a luta com os

pés no presente e olhos no passado. A universidade, entretanto, deixa, naquele momento,

de ser o principal mecanismo de oposição, perde a capacidade geradora de referência contra

a ordem dominante, uma vez que não consegue mais ser um espaço irradiador de idéias

alternativas141. Logo depois da reestruturação da União Nacional dos Estudantes, nos anos

finais da década de 1970, a entidade entra em crise no início dos 1980.

Nessa década é identificada uma influência das atividades de diversão das classes

populares nas vivências dos estudantes universitários - tradicionalmente envolvidos em

lutas políticas. Muitos estudantes se sentiram seduzidos, atraídos pelas movimentações que

já vinham ocorrendo nos setores juvenis das classes populares, “que estavam usando o

tempo e os elementos de diversão para abrir espaços significativos de vivência e para

elaborar e expressar as inquietações relativas à sua condição” 142:

A crise do espaço universitário como significativo para a elaboração das referências culturais, o enfraquecimento da noção de cultura alternativa como modo de contraposição ao sistema e a emergência de uma intensa vivência, por parte dos jovens das camadas populares, no campo do lazer ligado à indústria cultural é uma marca dos jovens daquela geração.143

As canções do rock, dentro de todo o campo musical-simbólico existente no

momento, era um importante canal de expressão daquela geração, articulando, assim, elos

entre os ouvintes-receptores que de alguma forma possuíam laços de identificação com as

bandas, bem como com o que estava sendo dito. Isso está diretamente vinculado não só ao

141 ABRAMO. Cenas Juvenis: Darks e Punks no Espetáculo Urbano. São Paulo: Scritta, 1994, p. 76. 142 Idem, p.82. 143Ibidem.

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deslocamento do peso para outros movimentos sociais, que foram construídos a partir da

necessidade de responder aos questionamentos que o movimento estudantil e a produção

intelectual deixou de oferecer, como também à dificuldade das lideranças em se adaptarem

à nova conjuntura. Permaneciam fixados às práticas de outrora e em mitos do passado, em

“heróis que morreram de overdose”. Dessa forma, alguns jovens procuraram outros

espaços. Fora dos muros da universidade e do movimento estudantil, promoveram um

novo recomeço com a roupagem do tempo. Atividades como o cinema, a música, o vídeo e

as artes plásticas, não necessariamente vinculados à universidade, são outros mecanismos

de expressão dos sentimentos diversos. Isso pode ser percebido com as bandas Divergência

Socialista e Replicantes. Seus integrantes eram universitários, classe média baixa, que

abandonaram seus cursos de graduação. Os integrantes da primeira banda eram integrantes

do movimento estudantil na USP, ajudaram a fundar o Partido dos Trabalhadores, mas logo

sem seguida desvinculam-se totalmente dessas práticas. As letras que falavam em

socialismo e luta, deram lugar a melancólicos acordes de desilusão144. Já os integrantes da

segunda fundaram a Casa do Cinema em Porto Alegre, onde produziam curtas e longas

metragens.

Essa crítica, contudo, não era mais fixada num projeto político teleológico, ela

parte do cotidiano, tem seu futuro presentificado constantemente. É nesse jogo de ecos que

as bandas de rock estão inseridas. A Legião Urbana reafirma essa falta de modelos, de

referencial, a incerteza diária. Canta o descrédito com relação às certezas explicativas e

inquestionáveis de um recente passado, ironiza os marcos da modernidade e seus cavaleiros

iluminados que apontavam para o doce amanhã; sem, contudo, terem posturas vinculadas à

direita ou a correntes consertadoras politicamente: 144 BRAYAN. op. cit., p. 176.

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Estou cansado de ouvir falar em Freud, Jung, Engels, Marx Intrigas intelectuais Rolando em mesa de bar.145

Ou ainda, de maneira igualmente direta, despreza os conflitos políticos

ideológicos que sempre marcaram as disputas. Coloca-os, esquerda e direita, como dois

lados de um mesmo LP, salientando o flagelo vivido diariamente pelos brasileiros, ainda

mais em tempos de grave crise econômica, achatando a classe média e não dando condições

de sobrevivência aos mais pobres:

Menos guerra, mais pão, Vocês de direita, vocês de esquerda São todos babacas Velhos demais Vivendo intrigas de tempos atrás.146

A negação, o descrédito ou esquecimento provocativo e intencional dos marcos

do passado, a forma direta de dizer o que pensa são observáveis nas duas últimas canções

citadas. isso está intimamente ligado ao fato de

os anos 80 serem a primeira geração que não tinha o compromisso com as ideologias, você não tinha uma bandeira pra levantar como as duas gerações anteriores tiveram, eles tinham uma causa pra lutar! A gente não tinha! Eu peguei um resquício da ditadura.147

Mais que isso, as bandas não precisaram usar de subterfúgios lingüísticos para

driblar as sentinelas da censura. Mesmo porque uma prática como essa não se enquadraria

com a atitude rock dos anos de 1980; sempre lembrando, um rock herdeiro da tradição

punk, uma cena musical forjada a partir dessa experiência inglesa de rebeldia do operariado

juvenil. A banda brasiliense Plebe Rude canta a não necessidade de ser “irônico” ou

145 Legião Urbana Conexão Amazônica. In: Que país é este?. EMI, 1987. 146 Letra encontrada no caderno onde Renato Russo escrevia as canções para o Aborto Elétrico. In: Revista Showbizz. São Paulo, maio de 1998. 147 Entrevista cedida por Luiz André Alzer, 36 anos, em 21 de março de 2005. Ele é jornalista e mora no Rio de Janeiro.

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“cínico” e ainda lembra o movimento das “esquerdas que não deram em nada” e a sua

contradição ao mudar de lado. Acentuam a ausência de bandeiras a serem levantadas, o

não comprometimento ideológico que tão caro fora às gerações passadas. O vermelho

socialista parecia estar de luto.

Muitas coisas poderia fazer Muitas coisas poderia dizer Não estou tentando ser irônico Não estou tentando ser cínico Há vermelho que viram pretos Há esquerdo que viram direito Há pessoas tentando dizer o que devo fazer (...) Por traz destas letras não há sentido algum Entre estas linhas não há mensagem alguma.148

Isso traz ambigüidades na vivência cotidiana. Ao mesmo tempo em que houve

ampla possibilidade de criar sem a existência da mordaça na boca, reprimindo os passos,

pode-se perceber um grande desconforto por não mais ter referências, por não mais estar

pautado em nenhuma luta com um telos em vista. Essa geração não parecia mais acreditar

no absoluto, tampouco se deixavam levar por falsas promessas, por el dorados perdidos.

Estavam sós. De alguma forma soltos e entregues aos horrores e às fúrias daquele mundo

em transformação. Essa ambigüidade, essa constante oscilação é percebida, lida e

apropriada. Com sua dura voz e uma batida seca de guitarra, baixo e bateria em alto

volume, a canção Abalado de Lobão reafirma essa estranha condição vivida à época.

Revela o mal-estar de viver na fronteira, uma certa esquizofrenia social:

Tô na rua e perco o passo E passo a passo chego a ver Como eu não vi... passar o seu sorriso Fico nessa mesma, nessa, nessa Nessa lomba Nessa solidão A loucura é tão clara

148 Plebe Rude. Nada. In: Nunca Fomos Tão Brasileiros. EMI, 1987.

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Como o escuro da lucidez E ser claro a essa altura É o mesmo que riscar um fósforo Pela segunda vez Não acho nada Acho ninguém Meu companheiro é o espelho ... E eu,queria tanto ser feliz... e sentir Não acho nada, não acho ninguém Não acho nada, acho ninguém Não acho nada, não acho ninguém Não, não acho nada, não acho ninguém A loucura é tão clara Quanto o escuro da lucidez Meu coração dispara e seu sorriso Ilumina alguma esquina Como um talvez Não acho nada...149

Esse mal-estar, esse abalo também é decorrente da conjugação dos

desenvolvimentos urbanos, técnicos, burocráticos, industriais e capitalistas de nossa

civilização. Essa condição de fronteira está também presente nesta canção da banda

Hojerizah.

Aonde quer que eu vá Agora Vejo nada ao meu redor Piso em flores desse jardim Veja, isso já não faz mais sentido Veja, isso fere meus olhos Veja, isso me faz morrer150

Pairava sob os céus tropicais, e porque não dizer de todo o globo, um

desencantamento com o mundo conhecido. Esse desencantar com o mundo é um processo

percebido ao longo dos tempos modernos. Não se realizando por completo, ele se

desenvolve, retira-se, diversifica-se e tem sua estrada aberta. “Não termina nunca e

envolve a filosofia, as ciências e a arte, tanto quanto o modo de ser, pensar, sentir, agir,

149 Lobão. Abalado. In: O Rock Errou. RCA, 1986. 150 Hojerizah. Tempo que Passa. In: Hojerizah. RCA, 1987.

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imaginar, fabular, se expressar”151. Traduz-se em formas de sociabilidade e em todas as

relações estabelecidas entre os sujeitos. Cabe reconhecer as manifestações desse

desencantamento, sempre acompanhado de seu oposto. Um processo de desencantamento

do mundo tem sempre sido de reencantamento com o mundo152. Esse jogo de desencanto-

reencanto é cantado pelas bandas de rock daquele momento. Ao mesmo tempo em que

denunciam e expressam seu repúdio às formas de militância e poderes constituídos. Como

da indignada Toda Forma de Poder que sugere um esquecimento-repúdio do passado, pois

os discursos da direita e da esquerda não mais possuíam reverberações na sociedade:

Eu presto atenção no que eles dizem Mas eles não dizem nada Fidel e Pinochet tiram sarro De você que não faz nada E eu começo achar normal Quando um boçal atira bombas na embaixada Se tudo passa, Talvez você passe por aqui E me faça, esquecer tudo que eu fiz Toda forma de poder É uma forma de morrer por nada. (...)153

A mesma banda, Engenheiros do Havaii, de Porto Alegre, numa doce e calma

canção tocada e cantada em tons harmônicos, com todos os instrumentos equilibrados, de

maneira quase infantil revela a falência dos antigos sonhos, a falta de “modelos” e

“referencial a ser seguido”; reafirma, contudo, a necessidade de sonhos a serem sonhados

com as possibilidades do contexto histórico presente nos anos de 1980. Afirma que aquele

momento na verdade foi de revelação, encontro com a verdade, com a “luz”, tida como

não-verdade.

151 IANNI, Octávio. Enigmas da Modernidade-Mundo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000, p.264. 152 Idem. 153 Engenheiros Do Hawaii. Toda Forma de Poder. In: A revolta dos Dândis. RCA, 1987.

68

Um dia me disseram Que as nuvens não eram de algodão Um dia me disseram Que os ventos às vezes erram a direção E tudo ficou tão claro Um intervalo na escuridão (...) Somos quem podemos ser Sonhos que podemos ter.154

Ou ainda na otimista Sol, da Hojerizah, que apresenta imagens iluminadas, porém

não determinadas, do que estaria por vir e encerra a canção ironizando sua própria condição

de estar-no-mundo, sua própria condição de falta de referências, apontando e tentando

construir saídas.

(...) Mil clarões estão por vir Mil promessas vi partir Mil clarões estão por vir Será um deus o sol? (...) Do velho sabor O vil pescador mergulhou no seu leito Passe por mim Passe por trás Corres pra mim Tarde demais Atravessei-te limbo E atravessei-te rindo155

Essa parece ser uma análise das posturas quanto ao político tradicional da geração

coca-cola, dos burgueses sem religião sobre os processos de manifestação musical. Quando

se localiza os sujeitos dentro de um determinado cenário cultural e político, a música pode

estar apontando discussões interessantes a respeito das mudanças das estruturas sociais,

pois “com ela, as insatisfações ganham a cumplicidade dos artistas e de outros fãs, e, ela

154 Engenheiros do Havaii. Sonhos Que Podemos Ter. In: A Revolta dos Dândis. RCA, 1987. 155 Hojerizah. Sol. In: Hojerizah. RCA, 1987.

69

pode passar a se um fenômeno perturbador da ordem vigente.”156 As canções possibilitam,

através de shows, rádios, programas de televisão, clips, a partilha coletiva de sentimentos,

sensações, posturas e comportamentos. Dessa forma são expressões políticas por

excelência, sejam quais forem suas qualidades estéticas, sua carga pop ou estilo.

Guardando consigo o aguardado futuro que se perdeu no nevoeiro de uma cinza

manhã, “um punhado de sonhos esquecidos sobre a mesa de alguma cidade estrangeira,

vários anéis, as calças vermelhas e um velho casaco de general”157 podiam ser vistos. As

guitarras haviam voltado. Junto, um opressivo e repetitivo ritmo sujo e alegre, soturno e

colorido, tristonho e múltiplo, do céu e do inferno, sem passado e sem futuro. As guitarras

estridentes, os baixos em primeiro plano, as batidas secas das baterias, sintetizadores,

berros cansados, berros sonhadores se faziam ouvir em bares, casas noturnas, shows, rádios

e encerravam o velho século XX. Em busca de uma ideologia para viverem, sepultaram o

amanhã.

O Futuro é Vórtex158

“O Brasil é o país do futuro”: expressão ao máximo esgotada e martelada durante

o regime militar. Um país promissor, um país cuja idade de ouro é no futuro e não no

passado. Esse otimismo futurista, constantemente retocado com tons em verde amarelo,

vê-se a imagem de um povo ordeiro, feliz, trabalhador, divertido, conformado, pacífico,

156 MAHEIRE, Kátia. op. cit., p.43. 157 CAVALCANTI, Berenice; STARLING, Heloisa; EISEMBERG, José (orgs). Decantando a República: Inventário Histórico e Político da canção popular Moderna Brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p.17. 158 Nome de um LP da banda Replicantes. Vórtex parece ser algo ligado a ficção científica, ou ainda pode ser um sinônimo de indeterminação.

70

fruto de uma mestiçagem racial sadia e sem seqüelas159. Vemos a imagem de um povo que

sofre, mas que nunca baixa a cabeça; está sempre pronto para o próximo desafio. Cultivou-

se a idéia de um país em constante construção, rumo ao futuro radioso, perfeito, de

encantos mil. Sentimento este profundamente explorado durante os anos de chumbo,

principalmente com o vertiginoso crescimento econômico durante os anos de 1970 e com a

propaganda “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

Os grupos identificados com o punk e o rock na década de 1980 traziam outra

perspectiva, outra relação com o tempo: a de falência do futuro racionalmente determinado.

Isso ocorreu justamente num momento que foi marcado pela decomposição, incerteza e

crise160 em escala mundial. Por isso as canções da cena roqueira tupiniquim mostram-se

um documento carregado de historicidade, na medida em que o rock é resultado da

mediação das experiências históricas subjetivas, articuladas com as estruturas objetivas das

esferas sociais, políticas e econômicas. Com essas canções é possível constatar que ao

longo da década, um estranho sentimento ia tomando conta das pessoas, um sentimento de

melancolia típico do fin-de-siècle: “a década chega ao fim (...) com um olhar para a

escuridão. O colapso de uma parte do mundo revelou o mal-estar do resto”.161 Os vários

grupos do rock nacional estão inseridos nessa teia de significâncias sociais e trazem

camadas de sentido de um mundo em profundas transformações no fim do século passado.

Essa característica, esse olhar para escuridão estão presente na soturna e nublada Estação

no Inferno que a cada elevação de tom de seu vocalista, uma guitarra rasga a melodia

enfatizando o mal-estar pelo incerto:

159 CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2000, p. 75. 160 HOBSBAWM, op. cit., p.15. 161 HOBSBAWN, op.cit., p. 20.

71

Luz e velas nos castiçais Iluminam tempos atrás O passado é uma prisão Seu retrato acusação Outro inverno gela em meu coração Nesse inferno é sempre a mesma estação Vento frio vem me chamar Me arrepio só de pensar No futuro, escuro e só (...) No silêncio escuto a voz São demônios ou somos nós? Sem juízo, sem salvação Exorcizo sua aparição162

Nessa canção o futuro aparece como indeterminado, obscuro, incerto. As

imagens de terror, medo e frio se repetem e são também percebidas em sua cálida

sonoridade. No lugar da eterna primavera e do paraíso terrestre, uma parte dos jovens

brasileiros, e de outras partes do mundo, “cantam” o inverno e o inferno de todos os dias

reduzindo o amanhã, outrora radioso, a escuridão. Nos dois primeiros versos é possível

identificar que os marcos explicativos conhecidos, que o evento da teoria não

conseguiam explicar aquilo que a geração rock estava enfrentando, seus referenciais

estavam no passado. O socialismo e o liberalismo carregaram uma imensa esperança,

esperança naquela época morta e que não poderia ser ressuscitada na integra. Os

fundamentos dessas narrativas eram inadequados para compreender o mundo, o homem

e a sociedade. O RPM compôs uma outra canção, que no lugar da esperança no novo

século, de uma alvorada encantada, anuncia o temor de sua geração com a aproximação

da virada do século. Alvorada Voraz enterra de vez o futuro, expõe medos, temores, a

banalidade da vida, a insegurança reinante nos grandes centros. A segunda e a terceira

162 RPM. Estação no Inferno. In: Radio Pirata ao Vivo. Sony Music, 1986.

72

estrofes são cantadas quase sem respirar pelo vocalista, dando a sensação de

sufocamento, de absurdo e tensão. Essa canção anunciava o fim do século XX:

Na virada do século Alvorada voraz Nos aguardam exércitos Que nos guardam da paz (que paz?) A face do mal Um grito de horror Um fato normal Um êxtase de dor E medo de tudo Medo da vida Assim engatilhada Fardas e força Forjam as armações Farsa e jogos Armas de fogo Um corte exposto Em seu rosto, amor e eu Nesse mundo assim Vendo esse filme passar Assistindo ao fim vendo meu tempo passar Apocalipticamente Como num clip de ação Um clic seco, um revólver Aponta em meu coração163

Alvorada Voraz é bastante sintomática no que se refere às incertezas que

pairavam sobre o globo. Incertezas na política, na economia; incertezas quanto aos

projetos de sociedade. Tudo isso misturado a um sentimento de estagnação e de pavor

com o porvir, de total mergulho no presente por conta do desmoronamento do futuro. A

crise não dizia respeito somente aos pilares da civilização moderna, mas também às

estruturas históricas das relações humanas que nossa sociedade herdou de um passado

163 RPM. Alvorada Voraz. In: Rádio Pirata ao Vivo. Sony Music, 1986.

73

industrial e capitalista. A década de 1980 não viu a crise de um sistema de governo, mas

de todos os existentes164.

O século XX dava sinais de que estava morrendo e com ele o futuro padecia na

indeterminação. Qualquer canção ou artefato cultural está perpassado pelo jogo de ecos

com o grupo ou classe com a qual possui laços de identificação. Os grupos de jovens da

década de 1980 compartilhavam o sentimento de estranheza, dúvida, medo e dificuldade

quanto ao tempo vivido:

Tem que ter muita vontade para estar vivendo nesse fim de século, nesse fim de monetarismo. Acordar segunda-feira e dizer: ´Pô, estou em 87, mas o disco do Iron Maden é demais’. O barco está afundando para um fundo longe dos nossos pés.165

Com esse esfumaçar do amanhã outrora repleto de encantos, os projetos

utópicos têm seus pilares igualmente estremecidos, rachados e porque não dizer

destruídos. O sonho na aurora racionalmente determinada, que tanto o liberalismo,

quanto o socialismo pregavam, perdeu o sentido, alterando por completo a forma como

se pensava o mundo, bem como o próprio estar-no-mundo. Causando assim

estranhamento e necessidade de se apegar a algo, mas a sensação era do “barco

afundando”:

À medida que a década de 1980 passava para a de 1990, foi ficando evidente que a crise mundial não era geral apenas no sentido econômico, mas também político, social e moral. O colapso dos regimes comunistas entre Istria e Vladvostok não apenas produziu uma enorme zona de incerteza política, instabilidade, caos e guerra civil, como também destruiu o sistema internacional que dera estabilidade às relações internacionais durante cerca de quarenta anos. Além disso, esse colapso revelou a precariedade dos sistemas políticos internos apoiados essencialmente em tal estabilidade. As tensões das economias em dificuldade minaram os sistemas políticos das democracias liberais.166

164 HOBSBAWM, op. cit., p. 22. 165 Entrevista de Humberto Gessinguer na Revista Bizz de novembro de 1987. 166 HOBSBAWM, op. cit., p. 20.

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O indivíduo deixou de ser senhor de si mesmo como no Iluminismo ou nos outros

projetos de humanidade como o socialismo, no qual os trabalhadores seriam os grandes

agentes de sua salvação. O social, racional, mecânico pensado como tal deixou de estar em

primeiro plano. Isso, contudo, não pressupõe um escapismo hedonista ou um mergulho

niilista no abismo do nada. Os anos de 1980 foram anos de uma cortês ambivalência, uma

fluída contradição entre morte e vontade de vida. O reencantamento do mundo acompanha

a emergência de uma vontade, de um estar-junto alternativo. E ainda que ele não seja

consciente, claro e distinto, de si mesmo, está presente e é perceptível no turbilhão de

transformações da década. A vida social “não mais repousa na razão triunfante, ela nada

mais tem a ver com uma atitude contratual, não mais está voltada para o porvir”167. Pode-

se, entretanto, desvendar essa vida social nas atitudes ligadas ao emocional, no sentimento

partilhado e nas paixões pagãs. Todos valores dionisíacos, de destruição da ordem.

Dionísio é o deus da desordem, mas também da fecundidade, da renascença, do recomeço,

do novo.

Essa sensação de desorientação e insegurança abriu significativas fendas,

rachaduras e rearrumações tectônicas no Brasil e na esfera internacional da política e das

manifestações culturais. Isso é bastante evidente na canção Dança Tonta do Biquíni

Cavadão168. A sucessão de imagens de tormento, instabilidade e espanto nessa “era de

167 MAFFESOLI, op. cit., p.19. 168Em 1983, Bruno, Álvaro e Miguel, colegas de terceiro ano do Colégio São Vicente de Paulo, decidiram tocar, junto com mais alguns amigos num sarau. Bruno passou apenas a cantar, Miguel assumiu o teclado e Álvaro foi novamente chamado para o grupo, desta vez tocando bateria, ao invés de violão. Após alguns meses juntos, fizeram a canção Tédio, gravaram numa fita demo junto com outras canções. A demo foi enviada para a Rádio Fluminense FM. O sucesso da demo os levou à gravadora Polygram para gravar um compacto no começo de 1985. Após isso o guitarrista Carlos Coelho se integrou à banda. In: www.cliquemusic.com.br/artistas.

75

incerteza” se repetem nesta estrofe, mas também abrem passagem para o despertar da

beleza, de novas estratégias de alteração do mundo conhecido:

E por mais que eu fique tonto, o mundo insiste em balançar Por dar corda nos meus sonhos, mas pude acordar Por um momento te amei tanto Momento de tormento Por enquanto espanto e achar Um ponto de beleza nessa era de incerteza.169

O tempo não é mais o do futuro. O longínquo futuro como lugar de sublime e

determinada felicidade, ruiu. O Paraíso santificado, o sonho no perfeito amanhã viraram

frustração e “agora tem que tentar um novo caminho sem nenhuma saída.” A morte do

futuro é a morte de uma noção de futuro que preconizava uma estrada imaginativa que

conduziria a humanidade à salvação terrena. Isso revelou a desestabilização do mito que o

mundo de até então construiu sobre si mesmo; de que seria capaz de criar um movimento,

uma trajetória com suas próprias orientações normativas. A base dessa idéia estaria no

progresso, no movimento linear, no futuro170. O nevoeiro global que cercava as cidades

naquele fim de século despertou o fechamento da trajetória do progresso inexorável,

impedindo que uma origem singular qualquer ou um final unitário forneçam um sentido aos

eventos circundantes a nós171.

Nos anos de 1980 o aviso de “cuidado” representado pela temática ecológica vem

permeado de um grande pessimismo, um tamanho descrédito com a ciência e o progresso

como libertadores da humanidade. Discursos ecológicos pipocam pelo globo. No ano de 169 Biquíni Cavadão. Dança Tonta. In: A Era da Incerteza. PolyGram, 1987. 170 A canções analisadas parecem estar em concordância com que o filósofo Baudrillard escreveu: “a ordem humana, emancipada de Deus e de seu fim, se torna móvel e instável, ela tomba sob o golpe da entropia, da degradação final da energia e da morte. O problema do fim se torna crucial e insolúvel. Não haverá mais o fim. Entramos numa espécie de indeterminação radical, pois não somente o fim, a finalidade transcendente se perde, como também o fim se volta contra ele mesmo, ele se perde em convulsão, ele desequilibra mesmo as causas e o desenvolvimento”. BAUDRILLARD, Jean. Vida Eterna e Imortalidade. In: MORIN, Edgar. A Decadência do futuro e a construção do presente. Florianópolis: UFSC, 1993, p. 37. 171 PETERS, Michel. Pós-Estruturalismo e Filosofia da Diferença: Uma Introdução. Belo Horizonte: Autentica, 2000.

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1985, início da chamada Nova República no Brasil, começa-se a discutir a necessidade de

uma Constituinte. A nova constituição deveria refletir os novos anseios da população

brasileira, suas novas preocupações. A política ambiental, uma nova preocupação, deveria

estar presente nos debates da constituinte, por uma necessidade de regulamentação da

sobrevivência:

A Constituinte é necessária em um momento em que a crise institucional de um país – o direito vigente e as instituições dele vigentes - não estão mais adequadas à realidade. No Brasil, hoje, ninguém mais tem dúvidas quanto à necessidade da constituinte. E dentre os assuntos que ela discutirá, está a questão da política ambiental. Do seu resultado, sem exageros, pode-se dizer que está dependendo a própria sobrevivência da espécie animal – o homem incluindo, o legado às futuras gerações que o desenvolvimento econômico louco e desordenado tratou de colocar em xeque-mate.172

A marcha do progresso teve seu tempo e perdeu-se na fumaça das chaminés

elevadas das fábricas. Toda crença providencial no progresso e na salvação terrena fora

abandonado. O “anjo da história” de fato vê acumular sob seus pés os escombros advindos

desse progresso. Nos escombros há também a própria noção de progresso, de ciência, de

Verdade, de mãos dadas com a sombra da moral. Estaria o futuro nos escombros?

O progresso não é automaticamente assegurado por nenhuma lei histórica. O devir não é necessariamente desenvolvimento. O futuro chama-se ora avante incerteza. Já tínhamos perdido os princípios que nos enraizavam no passado; perdemos a partir de agora as certezas que nos teleguiavam em direção ao futuro.173

O progresso científico e suas promessas de melhora da humanidade e de

socialização do bem-estar foram questionados de maneira mais significativa na década de

1980. É possível verificar em filmes futuristas, como Blade Runner – O Caçador de

Andróides, ou em várias canções do rock e do punk o descrédito com a ciência,

172 Jornal Zero Hora. Porto Alegre, 09de junho de 1985. 173 MORIN, Edgar. BOCCHI, Gianluca. CERUTI, Mauro. Problemas do Fim do Século. Lisboa: Editorial Notícias, 1990, p. 11.

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principalmente com as questões envolvendo a energia nuclear. No filme o mundo é

representado como sendo um lugar asfixiante, caótico, poluído, um lugar abençoado com

uma constante chuva ácida. Desenha a vertigem esquizofrênica de nossas cidades

contemporâneas e alerta para os perigos em que a humanidade incorre caso continue

seduzida pelos fantasmas do progresso. Uma nova relação com a tecnologia era proposta

no filme de assombroso futuro. Na Los Angeles de 2019, ano em que se passa o filme, o

sol somente é visto acima das densas nuvens de poluentes. Aos homens e mulheres

comuns, a sombra, a penumbra, é o destino diário. A trama central do filme é a

perseguição feita por um detetive, Deckard, a quatro andróides, construídos perfeitamente

iguais aos humanos, que vieram fugidos a Terra em busca de mais tempo de vida, além dos

quatro anos para os quais foram programados. A temática dos replicantes, como eram

chamados, é bastante significativa, pois essas cópias de seres humanos não têm passado e

seu futuro é pré-determinado174. O nome do personagem central é uma nítida alusão ao

filósofo Descartes. Com isso o autor do filme sugere a superação do paradigma cartesiano

calcado na certeza mecânica do funcionamento do universo, pois o detetive, caçador de

replicantes e certo de sua condição humana, se descobre um andróide. Assim como a

certeza no progresso e na ciência, suas convicções viram pó.

O planeta estava em perigo. A crise do progresso afetou a humanidade inteira,

causou rachaduras por toda parte, quebrou as articulações175. No ano de 1986 houve um

grande acidente nuclear na ex-republica soviética da Ucrânia. Chernobyl; em russo, é uma

palavra tragicamente emblemática, pois significa absinto, uma substância extremamente

amarga. Não fosse esse o nome da cidade, não seria visto como coincidência com que está

174 SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Blade Runner – O caçador de andróides. In: LABAKI, Amir (org). O Cinema nos Anos 80. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 50. 175 Morin, op. cit., p. 31.

78

no Apocalipse 8:11, ao dizer que uma estrela chamada absinto “cairá sobre um terço dos

rios e sobre as fontes de água e muitos homens morrerão por causa das águas porque foram

feitas amargas”176. Ironias fúnebres à parte, a explosão em Chernobyl foi 500 vezes mais

forte que a bomba de Hiroxima e causou um choque na opinião pública internacional,

trouxe pavor. A Europa despertou como se estivesse em um pesadelo. Itália, Alemanha,

Suécia, Finlândia, Suíça, Holanda e Espanha deram marcha ré em seus programas nucleares

e fecharam usinas. Para eles, o risco de um acidente igual era insuportável. Mas havia

usinas precárias nos antigos países socialistas que ainda ameaçavam toda a vizinhança

européia e mundial. A canção Chernobil dos Replicantes começa com uma sirene de alerta

tocando e alguém chamando por um nome russo, provavelmente estilizado. Além disso,

traz a discussão da energia nuclear para o Brasil e os milionários acordos para a construção

de outra usina em Angra dos Reis177. Os vocais são berros indignados e estão mais baixos

que os instrumentos, dando a impressão de que ninguém estava ouvindo sua voz, ou o sinal

da explosão.

- Kovalsky?Kovalsky? - Ã?ã?ã? Chernobyl não foi suficiente? Será preciso um acidente em Angra? Fazer acordos com a Argentina? Gastar milhões em mais usinas? Eu não quero acordo nuclear Eu não quero acidente nuclear Eu não quero o lixo nuclear Eu não quero a bomba nuclear Alguns setores que se dizem militares Já defendem a bomba atômica Tão explorando a Serra do cachimbo E acabando com a Amazônica

176 www.energiatomica.hpg.ig.br 177 A canção Angra dos Reis da Legião Urbana também menciona a usina nuclear brasileira.

79

Velhos fascistas só querem o poder Velhos fascista só querem governar Velhos fascistas só gastam nosso dinheiro Velhos fascistas vão nos matar178

O vulto da usina de Chernobyl domina o horizonte da cidade, onde não restou um

habitante. Lá, energia nuclear é sinônimo de morte. Depois da explosão do reator número

4, na madrugada fatídica de 26 de abril de 1986, a radiação varreu tudo. A cidade foi

abandonada e o acidente inutilizou uma área equivalente a um Portugal e meio, 140.000

quilômetros quadrados, por centenas de anos.

De acordo com dados do governo estadunidense de fins da década de 1980,

encontravam-se armazenados (apenas nos Estados Unidos), em tanques especiais de aço,

entre 300 e 400 milhões de litros de resíduos radioativos. O ecologista brasileiro Júlio José

Chiavenato afirma que "1% desse lixo atômico é mais poderoso do que todas as emissões

liberadas pelas bombas atômicas detonadas até hoje”179. Todo esse lixo atômico precisa ser

guardado por pelo menos mil anos, e os tanques precisam ser substituídos a cada vinte anos

por razões de segurança. De acordo ainda com o ecologista, qualquer animal vivo hoje na

Terra tem traços de estrôncio-90 nos ossos, um composto resultante dos processos de

industrialização nuclear.180

A questão nuclear era um assunto em pauta durante a última metade da década.

Despertava discussões, alimentava medos, gerava incertezas. O temor maior, contudo, era

o iminente conflito nuclear entre as duas potências mundiais da época, EUA e URSS, que

poderia acabar com o mundo ao toque de um botão. Era Guerra Fria. Isso guardava

sombras ainda maiores e causava incertezas quando o futuro do planeta. A sensação era de

178 Replicantes. Chernobil. In: O Futuro é Vórtex. RCA, 1987. 179 www.educar.usp.br 180 Idem.

80

que a qualquer momento uma catástrofe poderia acontecer, o instante seguinte poderia não

chegar. Por isso o atual debate em torno direitos humanos está ligado à conservação da

espécie e não mais às qualidades e virtudes do homem como no humanismo iluminista181.

O futuro havia virado vórtex.

Ele demora um ano rodando o sistema solar Ele demora um ano, mas volta pro mesmo lugar Pra onde vai o mundo? Pra onde vai o mundo? Pra onde ele vai? Pra onde ele vai? Aonde vai o mundo, vai todo mundo Pra onde vai o mundo, daqui a um segundo? Pra onde vai o mundo? Pra onde vai o mundo? Pra onde é que ele vai? Pra onde é que ele vai? Será que vai estourar? Será que vai poluir? Até não poder respirar Até não podermos existir Enquanto o terceiro mundo Espera o juízo final Eu quero uma vaga no ônibus Pra corrida espacial Pra onde vai o mundo? Pra onde vai o mundo? Pra onde é que ele vai? Pra onde é que ele vai?182

As incertezas quanto ao futuro da humanidade alimentavam o imaginário e

tornavam o lema punk ainda mais presente. O No Future ganhou ares renovados frente ao

medo de um possível conflito nuclear. “Pra onde vai o mundo daqui a um segundo?” está

dialogando com esse sentido de radical indeterminação do amanhã. Estabelece conexões

entre os acontecimentos políticos mundiais, com o sentimento de parte das pessoas, criando

um campo de recepção musical a partir de laços de identificação com o conjunto de

referências trazidas com as canções. “As ameaças de ataque nuclear, as bombas de

181 BAUDRILLARD, Jean. op.cit., p. 41. 182 Replicantes. Verdadeira Corrida Espacial. In: O Futuro é Vórtex. RCA, 1987.

81

nêutrons”183 são passadas para a canção Boy do Subterrâneo e cantadas num tom de pavor

quase histérico mediante a possibilidade, dada como real, de se viver num abrigo nuclear.

Mesmo com a imagem do novo, de uma possível esperança trazida pelo nascimento de

filhos com uma amada, é logo desfeita com a afirmação de que os filhos serão mutantes.

Eu era um rato do esgoto cloacal Eu era um verme pensava que era o tal Não tenho culpa isso até que é bem normal Não via luz, só tinha luz no mapa astral A minha casa era um canto no porão Meu futuro era viver na escuridão E o meu destino era morrer na contramão Mas na virada da esquina eu encontrei Uma menina toda linda que eu falei Como uma cobra ela mordeu meu coração E o veneno envenenou a escuridão Nossos filhos serão mutantes Eu queria tudo como era antes O sol nunca mais vai brilhar Aqui dentro do abrigo nuclear184

Não só as bandas punks duvidavam do futuro. Mesmo Léo Jaime, sem nenhuma

ligação orgânica com o movimento punk, desconfiava da viabilidade do futuro em tempo de

Guerra Fria:

Alguém fabrica as bombas e os decretos Depois consegue dormir Eu mostro os dentes, mais um tolo enfezado Revoltas pra colorir

Lágrimas de gelo no chão ao pe da porta Quem não sonhou em sumir E alguém me chama chorando do outro lado Um fim pra tudo é o preço de existir De existir De existir Desistir

Sem futuro Sem futuro185

183 Verso da canção Fátima escrita em 1978 para a banda Aborto Elétrico e gravada pelo Capital Inicial em 1986. 184 Replicantes. Boy do Subterrâneo. In: O Futuro é Vórtex. RCA, 1987.

82

Não era possível estabelecer padrões que moldariam o futuro, há apenas a

possibilidade de apontar os problemas daí surgidos, mesmo porque eles emergem dos

escombros de um período que chegava ao fim. Os anos após 1978, no Brasil, revelam um

mundo que perdeu as referências e resvalou para instabilidade e crise. Contudo, na Europa

e Estados Unidos, 1973 é o marco. O que parece muito coerente já que em 1976 surge em

Londres e Nova Iorque, como já foi escrito, o punk. Manifestação oriunda da classe

operária que questionava todos os valores postos e coloca o problema da morte do futuro

em pauta. No Brasil isso não faz muito sentido. Estávamos em plena ditadura. Somente

em 1978, com a abertura posta de fato em prática, com o abrandamento da censura, a volta

dos presos políticos é se pode ter uma maior circulação de idéias; observando-se, assim, o

início da penetração do punk nas grandes cidades. Depois ele foi sendo reapropriado, lido,

relido e multifacetou-se em várias vertentes até se criar o que se chama de cena musical, a

partir de 1982. Há que se ter um certo cuidado nesse tipo de análise, pois ao mesmo em

tempo que as canções trazem os sintomas dessa crise em nível mundial, elas também

podem revelar toda a euforia e otimismo com o processo de abertura aqui no Brasil.

As imagens de decomposição, insegurança, incerteza, pavor, medo, morte, como

as dessa última canção referida, não pressupõem uma tendência apocalíptica da sociedade.

Embora olhar o horizonte às vezes fosse um exercício incômodo, os anos de 1980 também

foram um tempo em que despontou encontros com o novo. Criou-se novas possibilidades,

pode-se inventar, experimentar. Havia a expressão de um querer viver latente e

exacerbado, mesmo nas canções mais catastróficas, que se revoltavam contra todas

imposições mortíferas. Isso fica claro na canção Bravo Mundo Novo da banda Plebe Rude.

185 Léo Jaime. Sem Futuro. In: Vida Difícil. Polygram, 1986.

83

Nesta estrofe convive a ambivalência, como já referi, entre morte e vida. Ao mesmo tempo

em que olhar o horizonte, vislumbrar o futuro parecia algo impossível, acreditava-se,

sonhava-se que um novo mundo estava nascendo, só não havia a certeza de como ele se

desenharia:

Se eu lhe dissesse: olhe além do horizonte Será que você olharia? Bravo mundo está nascendo Pelo visto vai te surpreender um dia Conselho ou sermão Não aprendemos a lição Do que com insistência ou não Nos protegemos e lutamos Contra o que? (...)186

A recusa de um fim exterior, o reconhecimento da incoerência social que circunda

as práticas cotidianas pode resultar num grande impulso consecutivo à concentração da vida

em si mesmo, o que de forma alguma é reconhecido como um escapismo hedonista e

descomprometido. Essa vontade de vida transforma-se numa potência afirmativa,

acentuando e intensificando a riqueza de um presente que se esgota em si mesmo,

encontrando nesse esgotamento a garantia de sua própria recondução e continuidade. É

nesse sentido que a velha esperança da apocalíptica batalha final entre o bem e o mal sai de

cena e dá lugar a uma corajosa luta inicial. Sem armas conhecidas, em território neutro e

sem inimigos definidos. E ainda, essa luta inicial deve restaurar uma concepção, uma visão

de mundo articulada a uma ética que desenvolva elos comuns de sobrevivência e

sociabilidade187 e encaminhe a humanidade, ou melhor, os fragmentos de humanidade, a

um necessário mundo melhor.

186 Plebe Rude. Bravo Mundo Novo. In: Nunca Fomos Tão Brasileiros. EMI-Odeon, 1987. 187 MORIN, Edgar. O Pensamento Socialista em Ruínas: O Que Se Pode Esperar? In: MORIN, Edgar. op.cit., p.35.

84

O pensamento ocidental parece ser pautado no mito judaico-cristão da salvação e

do alcance do Éden no pós-morte. As narrativas legitimadoras existentes prometiam a

salvação num fim anunciado, no paraíso terrestre. Esse paraíso, contudo, não veio. A

morte não trouxe a salvação ou a redenção tão anunciadas, trouxe sim o significado da

tragédia da existência, uma alvorada sem sol, tenebrosa, voraz. A partir das canções, é

possível perceber que os anos de 1980 revelaram uma vontade-de-vida no pós-morte que se

constrói, reconstrói e se ramifica na vivência diária. Revela uma existência em si, um

simples estar-vivo, descomprometido em “resolver os problemas do mundo”, sem bandeiras

a serem levantadas, mas portador de uma virulenta crítica ao mundo, ao tempo, às

hipocrisias da sociedade. O século XX morria prematuramente. Morria pelas mãos e vozes

de uma parcela da juventude que fora criança durante a Ditadura Militar e que sem

compromissos com o amanhã, até porque ele poderia não chegar, existiu de maneira

exagerada. Apenas queriam e precisavam estar vivos. A canção Infinita Highway da banda

Engenheiros do Hawaii, numa clara alusão à vida como estrada infinita a ser seguida e

enfrentada traz consigo todos esses conjuntos de referências sociais:

Estamos sós e nenhum de nós sabe exatamente onde vai parar Mas não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir Não queremos ter o que não temos... nós só queremos viver Sem motivos, nem objetivos, estamos vivos e isso é tudo É sobretudo a lei da Infinita Highway (...) Não queremos lembrar o que esquecemos Nós só queremos viver Não queremos aprender o que sabemos Não queremos nem saber Sem motivos, nem objetivos Estamos vivos e é só Só obedecemos a lei da Infinita Highway (...) Estamos sós e nenhum de nós sabe onde quer chegar Estamos vivos, sem motivos Que motivos temos pra estar? (...)

85

Eu vejo o horizonte trêmulo, eu tenho os olhos úmidos Eu posso estar completamente enganado Eu posso estar correndo pro lado errado Mas a dúvida é o preço da pureza E é inútil ter certeza.188

Essa canção poderia ser encarada como um manifesto dessa geração. Carrega um

grande conjunto explicito de referências partilhadas naquele fim de século. Versos como

“sem motivos, nem objetivos / Estamos vivos e é só” ou “estamos sós e nenhum de nós

sabe onde quer chegar” canta a ausência de bandeiras e referências de uma parte da

juventude brasileira. Sugere um estar-vivo, um querer-viver sem finalidades externas ou

lugares mitológicos a serem alcançados. De forma consciente ou não o fato é que as letras,

a sonoridade e forma como se cantava as canções do rock nacional dos anos de 1980

demonstram uma condição de incerteza, já que “é inútil ter certeza”, e mostram um tempo

em que a humanidade se encontrava numa fronteira temporal, num entre-lugares que

somente daqui a alguns anos poderem delinear com mais clareza o que nasceu com o fim da

década de 1980. “Em toda fronteira tem arames rígidos e arames caídos”189. Quem

enfrentou a última década do século XX enfrentou os arames da descrença com o amanhã, a

impossibilidade da Utopia nos moldes modernos, abandonou a patrulha ideológica. Mas

pode também derrubar muitas cercas com violentos acordes, pintura no rosto, pincel ou

câmera na mão. Nublou o limite, apagou as luzes – acendeu outras – e passou a pisar em

terreno estranho.

188 Engenheiros do Havwaii. Infinita Highway. In: Longe Demais das Capitais. RCA, 1986. 189 BHABAH, Homi K. op.cit., p. 349.

86

AIDS e a Alegoria da Morte

O fim de algumas Eras, o término de determinados períodos da História parecem

vir acompanhados por doenças de morte inexorável. A morte física acompanha a morte

simbólica. Se a Idade Média foi sepultada pela terrível Peste Negra, o século XX padeceu

sob o pavor causado pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Nos anos de 1980, a

AIDS foi encarada, vista e sentida pela sociedade como uma peste que arruinaria a

humanidade190. Uma doença de anunciada morte, de fatal inevitabilidade. Embora eu

reconheça um início para a década de 1980 em 1978, é em 1980 que ocorre um fato

absolutamente simbólico: a morte de John Lennon. Toda uma geração que acreditou no

sonho, no futuro, na possibilidade de se fazer a revolução mundial, preconizada em 1968

simbolicamente morreu naquele dia 26 de abril. A década começa com morte e segue

dialogando com ela, contudo, na perspectiva de uma vida após a morte, em outras palavras,

no surgimento do novo, de um novo tempo, de novas perspectivas.

Na década de 1980, mesmo tendo nascido sob o rótulo conservador de “câncer

gay”, a AIDS191 deu origem a fobias e temores, atormentou todos os segmentos sociais com

sua possibilidade irrevogável da morte trágica. As doenças metaforizadas, como a AIDS,

podem atormentar a imaginação coletiva, levando a uma morte sofrida ou imaginada como

tal. Ela é também muitas vezes encarada como uma doença social na medida em que há um

processo de vergonha na publicização dessa doença e de culpabilidade por ter contraído o

vírus responsável pela síndrome. Um dos meus entrevistados deixa transparecer todo o

190 SONTAG, Susan. AIDS e Suas Metáforas. São Paulo: CIA das Letras, 1989, p. 79. 191 A primeira vez que se ouviu falar da doença foi em 1981 quando cinco homens homossexuais morreram de uma “estranha infecção”. Mas o vírus HIV só foi isolado em 1983 pelo francês Luc Montagnier. In: ALEXANDRE, op. cit., p.299.

87

medo, todo o trauma gerado pela doença. Tanto é que ele nem fala o nome AIDS, prece

evitar a lembrança. Lembrança que gera dor, angústia, medo, perda e dúvida. O silêncio

parece abrandar a companhia indesejável:

Vários amigos meus morrerem disso (pausa) não gosto nem de falar muito, porque se eu tô vivo e não peguei isso foi por um simples acaso. Eles morreram sem nem saber ao certo do que tavam morrendo. Essa coisa parece que matou mesmo que ficou vivo. E quando vi o Cazuza daquele jeito fiquei até com medo de trepar. Bá ....muda de assunto...192

A AIDS leva as pessoas a serem condenadas doentes antes de adoecerem, de

apresentarem os sintomas da síndrome. A morte social precede a morte física193. Nas

entrevistas feitas por especialista na epidemia, a AIDS aparece ainda associada ao medo, à

morte certa, à doença sem cura “que acaba com a vida da pessoa”194. Portanto, o medo

continua mobilizando o velho fatalismo ou a negação. Para uma parcela significativa dos

jovens, especialmente o grupo mais vulnerável (à violência, ao desemprego, à pobreza), a

Aids é apenas mais um risco195.

Mesmo depois do vírus ter sido isolado e a doença identificada, pairava a dúvida

global a respeito de sua origem, causa, conseqüência e possíveis curas. Essa insegurança é

manifesta e pode ser percebida também em algumas canções do rock nacional. AIDS do

cantor Léo Jaime é a primeira manifestação musical a respeito da Síndrome. Essa canção

foge ao estilo do cantor e é cantada e tocada de maneira absolutamente obscura, pesada,

passando uma impressão de angústia e medo:

É a última moda que chegou de Nova York E deve ser bom como tudo o que vem do norte A sua mãe vai gostar O seu pai vai achar moderno

192 Entrevista cedida a Fábio Feltrin por Marco Antônio Araújo em 22 de janeiro de 2005. 193 Idem. 194 PAIVA, Vera; PERES, Camila; BLESSA, Cely. Jovens e Adolescentes em Tempos de AIDS: Reflexões Sobre Uma Década de Prevenção. In: Revista de Psicologia da USP, vol.13, no.1, 2002. 195 Idem.

88

É mais quente que o inferno Essa onda é de morte

New wave, patins, lennon and tennis nike Walk man, big mac, fender strato caster Vai pegar, vai pintar até na novela das 8 E você vai copiar, vai copiar, vai copiar

Aids, não tente colocar band-aids196

Tanto a letra da canção quanto a entoação dada pelo cantor, ambas em

cumplicidade, manifestam de maneira absolutamente irônica a perplexidade, insegurança e

desinformação sobre a AIDS; sobre as reais conseqüências dessa nova tragédia que se

anunciava. A ironia, estampada nessa canção, é uma típica característica dos discursos do

final do século XX, principalmente na mídia197. Ela está inserida num processo de

intersubjetividade, ocorrendo a partir de um interesse particular de interpretação de um

enunciado tido como irônico. A ironia envolve um jogo de palavras portadores de dúbia

significância, articulado a um contexto sócio-histórico relacionado. Assim, o entendimento

do discurso irônico está relacionado a uma comunidade discursiva, em outras palavras,

dentro de um determinado grupo ou segmento social que partilha um conjunto de

referências comuns. Léo Jaime coloca a AIDS como uma exportação imperialista dos

Estados Unidos, como uma moda, pronta para ser consumida como todas as outras.

Compara consumismo à doença, importação de uma moda à morte.

Com o transcorrer da década, a emergência de novos casos e a instauração da

doença como uma epidemia, a AIDS estabeleceu-se como metáfora, alegoria, como

sinônimo de morte. O trauma social talvez tenha sido maior pelo fato de a emergência de

uma nova epidemia catastrófica ter sido negada pelos manuais científicos. A ciência havia

assegurado que tais calamidades pertenciam ao passado; trazendo, portanto, tranqüilidade e 196 Léo Jaime. AIDS. In: Phoda C. Polygram, 1984. 197 HUTCHEON, Linda. Irony´s Edge: The Theory and Polítcs of Irony. New York: Routledge, 1995, p.2.

89

estabilidade para o caminhar humano em direção ao futuro. A consciência do futuro é um

hábito mental observável noo século XX. Hábito esse cuja capacidade de avaliar o modo

pelo qual as coisas evoluem é um produto inevitável da nossa compreensão dos processos

sociais e científicos198. Toda essa estabilidade foi abalada e porque não dizer destruída a

partir da década de 1980. Como já escrevi, toda uma noção de futuro, de que a ciência

seria promotora do bem-estar e as certezas foram destruídas e a AIDS, como morte física,

surge como alegoria para a morte desses pressupostos modernos. Ela foi a última voz desse

diálogo envolvendo morte nos anos de 1980.

Estabelecer uma relação entre AIDS, anos de 1980, e rock nacional é

forçosamente fazer referência a Cazuza. Além de ter sido a primeira figura pública a

assumir ser portador do vírus causador da síndrome, a sociedade brasileira assistiu atônita

ao avanço da doença e as trágicas conseqüências ao corpo do artista. Seu visível

definhamento, sua “agonia em praça pública”, como publicou, de forma absolutamente

sensacionalista, a revista Veja em 26 de abril de 1989199, só fez aumentar o pavor da AIDS,

não só pela inevitabilidade da morte, como também por sua desumanização, por sua

desfiguração no real sentido desse termo.

O já citado LP Ideologia, de 1988, foi composto por Cazuza sob o impacto da

descoberta de ser portador do vírus HIV200. As letras e a forma com que o artista as

interpreta deixam claro essa vinculação. Na canção que leva o mesmo nome do álbum há

198 SONTAG, op. cit., p.105. 199 A revista traz Cazuza na capa praticamente sem cabelo, com a pele já marrom em decorrência do AZT (Azidotimidina, droga utilizada por pacientes portadores do vírus causador da Síndrome) e estampando uma magreza cadavérica. Ele era colocado como morte antes de morrer. Essa matéria gerou repúdio e indignação por parte da família e amigos de Cazuza. Tanto é que um grupo de artistas escreveu um manifesto condenando a forma como a revista Veja tratou a notícia. 200 Uma parte das letras foi escrita durante sua internação no New England Medical Center, em Boston, EUA, em 1987. In: SA, Jussara Bittencurt. Cazuza: O Tempo Não Pára. Florianópolis [Dissertação de mestrado em Letras], 2000, p.65.

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as referências de um tempo histórico que se encerrava, assim como se encerrava a vida de

Cazuza.

(...) Meu prazer Agora é risco de vida Meu sex and drive Não tem nenhum rock and roll Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais saber quem eu sou Ah! Saber quem eu sou. (...)201

Cazuza iguala prazer ao risco de vida, numa nítida alusão ao sexo202. Ele canta

esses dois versos, enfatizando a palavra prazer que acaba se perdendo com uma pronúncia

mais solta quando então ele denuncia no que havia se tornando sua busca. Os versos de

Ideologia desfilam uma sucessão de desilusões, fechamento de caminhos e mortes que são

cantadas em tom melancólico. Desfilam o encerramento, a morte de todas as ideologias até

então conhecidas, inclusive a do amor livre, pregada pelas gerações passadas. Essa prática,

essa bandeira perdera o sentido com a emergência da AIDS. O amor livre poderia

ocasionar a morte, por isso, como outras ideologias modernas, morreu. Contudo as canção

do rock nacional, e de Cazuza, que melhor consegue um diálogo com o tempo e partilha de

elementos possíveis de interpretar o impacto da AIDS nos anos de 1980 é Boas Novas, do

disco Ideologia. Os arranjos da canção composta por versos rápidos e uma pulsante

melodia em perfeita cumplicidade com a interpretação de Cazuza transmitem, também em

tom de ironia, as “boas novas” ao mundo. Como se fora um profeta, o artista proclama o

novo, uma nova abertura. Cazuza anuncia o começo do nada. As boas novas é a macabra

morte trazida pela AIDS.

201 Cazuza. Ideologia. In: Ideologia. Polygram, 1988. 202 Como é sabido, o vírus da AIDS é passada pelo sangue contaminado ou pelo contato sexual com uma pessoa infectada sem a devida proteção.

91

Poetas e loucos aos poucos Cantores do porvir E mágicos das frases Endiabradas sem mel Trago boas novas Bobagens no papel Balões incendiados Coisas que caem do céu Sem mais nem porquê Queria um dia no mundo Poder mostrar o meu Talento pra loucura Procurar longe do peito Eu sempre fui perfeito Pra fazer discursos longos Fazer discursos longos Sobre o que não fazer O que é que eu vou fazer? Senhoras e Senhores, Eu trago boas novas Eu vi a cara da morte E ela estava viva, viva Eu vi a cara da morte Ela estava viva-viva. Direi milhares de metáforas rimadas E farei Das tripas, coração Do medo, minha oração Pra não sei que deus, “H” Da boa partida Na hora da partida A tiros de vamos pra vida Então vamos pra vida.203

A canção anuncia o fim aos seus receptores / ouvintes / consumidores, em alta

voz, num mesmo acorde, permanecendo no mesmo tom, pelo menos até o verso “sem mais

nem porquê”. O ritmo acelerado da canção parece expressar um desejo de não haver

demora nem sofrimento com a morte. Há, contudo, alterações na voz e no ritmo da canção,

trazendo a contradição e o conflito da vontade de vida, com a morte inevitável. No citado

203 Cazuza. Boas Novas. In: Ideologia. Polygram, 1988.

92

verso, “sem mais nem porque”, a voz se alonga num “iê, iê, iê”, reforçando uma aparente

despreocupação com a condenação à morte se compararmos com o verso “Eu vi a cara da

morte / E ela estava viva, viva”.204 O adjetivo “viva” desse último verso também traz

contradições, pois ao mesmo tempo em que é gritado / cantado num ato de desespero frente

a incômoda companhia da AIDS, também é um desejo de vida, de continuar a vida, de

viver que é reforçado no último verso da canção: “Então vamos pra vida”. Cazuza encerra a

canção com um chamamento para vida e de maneira emblemática encerra seu anúncio

cantando com a palavra “vida”. A AIDS ironicamente aparece como paixão, como

potência de vida. Por ser uma doença biológica e social ela dá uma noção de finitude ao ser

humano causando pavores de toda ordem. Isso potencializa o desejo de vida, que passa a

ser experimentada de maneira mais intensa205.

Figura 9: Cazuza no seu último show. In: Revista Super Interessante. Ed. Especial, 2005.

204 SA, op.cit., p. 69. 205 Idem.

93

Embora a letra seja de Lobão, foi na voz de Cazuza que a canção Vida louca, vida

ficou conhecida e ganhou uma identidade, um sentido206. Ela parece resumir perfeitamente

a maneira como os jovens perceberam a passagem do tempo nos anos de 1980. Essa

década parece ter passado com a velocidade de um clip de rock´n´roll, porém com a

intensidade de uma avalanche. A falta de referências no passado e no futuro fez com que

um segmento da juventude brasileira encontrasse no presente seu único tempo conhecido,

enfatizando a agoridade da existência. Isso provocou uma vivência intensa, constante e

exagerada das experiências, pois era preciso viver tudo ao mesmo tempo, antes que o dia

não mais amanhecesse, no caso de Cazuza antes que a AIDS o levasse. A parte do refrão,

vida louca, vida / vida breve é falada por Cazuza, na tentativa de afirmação veemente do

sentido da letra.

(...) Perde logo a noção do perigo Todos os sentidos Você passa mal Vida louca vida Vida breve Já que eu tudo posso, te levar Quero que você me leve Vida louca vida Vida imensa Ninguém vai nos perdoar (...)207

“O tempo não pára”, já dissera Cazuza em outra canção. A AIDS é uma doença

do tempo cuja caminhada, assim como a caminhada da década de 1980, é para a morte. O

futuro é morte: no future. O sangue, emanante corpóreo de vida, na medida que irriga e

percorre as veias, leva e espalha o vírus causador da mortífera síndrome. Por portar a

inevitabilidade o vírus HIV tornou-se sinônimo de morte, alegoria de um tempo que se

206 www.uol.com.br/lobao. 207 Lobão. Vida Louca Vida. In: Vida Bandida. Polygram, 1987.

94

encerrava. Metáfora para o fim das velhas certezas, das ideologias e projetos de sociedade

que padeceram frente à falta de reverberação e potência de identificação na sociedade.

Contudo, de forma alguma a década de 1980 foi o grande portal para a cristalização do

pensamento único e conservador, para o niilismo, para o fim da história ou para outras

previsões apocalípticas. Não houve abismo. Nessa década surgiram novas manifestações,

novas relações sociais, formas de organização social, formas de ler, sentir e expressar o

mundo. Toda fronteira, ainda que esfumaçada, é o lugar onde o velho e o novo se

encontram, onde há o fim e início de alguma coisa.

95

Terceiro Capítulo

Vivendo o Presente, Pisando em Escombros

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio,

mas um tempo saturado de “agoras”208.

Até quando esperar?209

Nos anos 80, a meninada começou a falar o que interessava realmente a ela de modos mais direto. De amores desgraçados, da rua, sem ter que falar da política de cercamento, de ‘vamos tomar o poder’! Pra fazer o que com ele?210

A salvação terrena prometida pela militância comunista virou escombro. O futuro

parece ter virado fumaça, nuvem, bruma. Não era mais possível projetar anseios e sonhos

no amanhã. Dessa forma as temáticas das canções não poderiam mais ser a busca por uma

sociedade perfeita ou a tomada do poder pelas massas libertadas das garras da alienação; a

linearidade judaico-cristã da história fora rompida. A própria sonoridade do rock traz essa

inviabilidade da espera da doce alvorada. O rock é rápido, é a música do instante. Ele

oferece a possibilidade de uma relação intensa, forte, viva e até dramática entre o ouvinte-

receptor, o grupo, o tempo e o mundo circundante211. Essa relação só é possível por conta

de uma sonoridade intensa de timbre hiperbolizado que rompe com as elementares

208 BENJAMIN, Valter. Obras Escolhidas II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. 209 Título de uma canção da Plebe Rude que será analisada neste capítulo. In: O Concreto Já Rachou. EMI, 1984. 210 Entrevista cedida por Eziquiel Neves, produtor musical nos anos de 1980 que foi o responsável pela descoberta de Cazuza e do Barão Vermelho. In: BRYAN, op. cit., p. 78. 211 FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 393.

96

cadências tonais de base212, em outras palavras, a harmonia é rasgada pela sonoridade da

voz e da guitarra e golpeada pelos decibéis da bateria. Voz e instrumentos misturam-se

devolvendo à música seu caráter ritualístico, tribal, de celebração. Neste caso, de

celebração do instante, do momento, do agora, da vida.

A temporalidade presentista, na qual as bandas estão inseridas, acaba por conduzir

a temática das letras para o cotidiano, para a trama de relações sociais do indivíduo consigo

mesmo, com seu grupo e o mundo. Essas relações do tempo vivido são apreendidas e

externalizadas pelas canções e por todo um conjunto de símbolos e práticas forjadores de

identificação. As letras sugerem um aprisionamento no presente, tendo em vista a negação

dos marcos e elementos significantes do passado e a impossibilidade de se alcançar o

futuro. Isso está expresso na canção Inocências da banda carioca Biquíni Cavadão:

Trago em mim recordações Que não sei se são troféus ou fardos Pois estão somente estampadas na memória Mas quem vai saber? São só as velhas coisas ditas e sabidas Por todos e por ninguém Lembranças perdidas sem sentido Mas juntas pra mim parecem música Nessa estrada já fui pra todo lado Tive quase tudo e por ser quase tive nada Rodando na ciranda que separa o joio do trigo Eu vou dançando, Vou lembrando do primeiro prazer de estar vivo Inocências da primeira vida Na ciranda da primária vida Eu trago em mim momentos Que não se dizer se são fortes ou fracos Dúvidas que dançam soltas na ciranda Mesmo que eu hesite em ir pra dança No fim são só velhas coisas

212 WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido:Uma Outra História das Músicas. Companhia das Letras. 2a

ed. São Paulo: 2004. p. 216.

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Ditas e vividas Por todos e por ninguém Lembranças perdidas sem sentido Mas juntas pra mim parecem música Nessa estrada já fui pra todo lado Tive quase tudo E ao longo da ciranda

Das inocências sou lembranças Sou lembranças da primeira vida.213

Há nos versos “Eu trago em mim recordações / Que não sei se são troféus ou

fardos”, a dúvida quanto a real valoração daquilo que acabou, que se extinguiu. Isso é

reforçado nos versos “Isso são velhas coisas ditas e sabidas / Por todos e por ninguém” em

que há a imagem do velho, do que já passou e possuía certa reverberação na sociedade, mas

que perdeu o sentido no fim do século XX. Vários foram os caminhos, várias foram as

possibilidades, sonhos e projetos. “Nessa estrada já fui pra todo o lado”, mas os antigos

caminhos conhecidos agora levam a lugar nenhum. Mais longe de ter um final trágico, o

intérprete da canção chama a todos, despretensiosamente, para dançar e lembrar do “prazer

de estar vivo”, ou seja, buscar o novo, o recomeço que partiria da banalidade do cotidiano,

da experiência do agora.

Não é meu objetivo nesse trabalho analisar as capas dos discos, contudo não

poderia deixar de mencionar a enigmática capa do LP A Era da Incerteza do Biquíni

Cavadão. Uma capa simples. Duas fotos, o nome da banda e o título do disco. Seria uma

capa comum não fosse o fato de cinco jovens estarem olhando o horizonte. Mas estariam

eles olhando a alvorada ou o poente do sol? A Era da Incerteza é o fim do antigo ou início

de algo novo? São perguntas sem resposta se nos ativermos à luminosidade estampada na

capa.

213 Biquíni Cavadão. Inocências. In: A Era das Incertezas. Polygram, 1986.

98

Figura 10: Capa do LP A Era da Incerteza da banda Biquíni Cavadão.

Essa dubiedade está também nas canções, mas talvez seja justamente aí que resida

esse complicado jogo de referências que estava posto no fim do século XX. A fronteira

estava colocada. O novo e o velho confundiam-se. Nesse caso, as bandas do rock nacional

trouxeram toda uma rede de significâncias centradas nas suas experiências mais próximas.

Essas experiências que desfilam pelas canções remetem à condição de parte da juventude

urbana das camadas médias em um mundo não muito amistoso. O conflito com os pais,

com a lógica da linearidade da vida burguesa; os momentos de ruptura, a fragilidade

juvenil, a transitoriedade; os momentos em grupo; o constante embate com a ordem, a

hipocrisia do mundo e as várias dúvidas geradoras de dor são cantadas pelas bandas de uma

maneira geral. Herbert Vianna, vocalista dos Paralamas do Sucesso, em uma entrevista

falou sobre a relação das bandas com a juventude de classe média urbana:

No Brasil se faz rock desde os anos 50, mas nunca foi uma coisa assim adaptada à realidade do jovem brasileiro médio. Sou suspeito pra falar,

99

mas acho que nossa geração está produzindo a manifestação mais original do rock no Brasil.214

Sem entrar no debate sobre a originalidade do rock produzido nessa década, pois

Herbert está falando do seu espaço social, de fato as canções parecem estar “adaptadas à

realidade”, pois são jovens falando de suas experiências que de alguma forma são

partilhadas por uma boa parte das pessoas da mesma faixa etária naquele momento. Por

isso é possível afirmar que o crescimento da importância das bandas do rock nacional dos

anos 1980 indica que as canções assumiram um papel de expressão das experiências e

sentimentos de toda uma geração identificada com o rock.

Essa acentuação das temáticas cotidianas em hipótese alguma é um retraimento

narcísico ou uma rabiscada frivolidade individualista. É na verdade um recentramento em

algo próximo - do domínio da localidade - uma maneira de viver no presente e

coletivamente a angústia de um tempo. Angústia esta não só de um momento histórico em

que as antigas certezas estão destruídas, como também de um período da vida – a juventude

– em que revoltas, medos e dores de toda ordem estão em pleno convívio diário. As bandas

são originárias e fonte de expressão dos fenômenos constituintes da prática política do

cotidiano. Essa noção mais ampla de política, desvinculando-se das bases reflexivas

tradicionais, está inscrita numa outra lógica. Renato Russo afirma essa maneira distinta de

politização:

O artista não deve se envolver em política partidária. Faço uma política diferente: falo de coisas que interferem na minha vida. Em outra época, talvez, não estivesse falando “que país é este?”. Para mim vai ser muito fácil fazer uma música sobre alguém que perdeu o emprego porque estou vendo isso, tenho muitos amigos nessa situação. São coisas que me tocam emocionalmente.215

214 Jornal Zero Hora. Porto Alegre, 15 junho de 1986. 215 Jornal O Estado. Florianópolis, 17 de julho de 1988.

100

Essa entrevista é bastante significativa, pois faz referência à saturação do político

entendido como um projeto longínquo e aparado numa lógica racional, abrindo espaço para

a recuperação da importância das relações cotidianas de “proxemia”216. Uma outra idéia de

política passa a ser praticada. O que estava vislumbrado no futuro, o que era esperado no

devir da sociedade perfeita torna-se visível, palpável. O rock possui uma especial

habilidade de criar sentimento em comum fazendo uma mediação entre a conjuntura de um

determinado momento com as emoções vividas no âmbito privado.217

Essa transfiguração do político remete-se ao doméstico, a uma cultura do

sentimento que passa a ser uma forma de expressão. A canção Até quando esperar?, da

banda de brasiliense Plebe Rude, é uma manifestação sonora e poética do que era visto em

qualquer cidade brasileira. A vergonhosa distribuição de renda, crianças de rua, trabalho

infantil, pobreza povoam o cotidiano dos brasileiros. Mas o ponto principal da canção é

uma dura e seca crítica ao valor moral da caridade, tão disseminado na sociedade ocidental-

cristã:

Não é nossa culpa nascemos com a tensão Mas isso não é desculpa pela má distribuição Com tanta riqueza por aí onde é que está? Cadê sua fração? Até quando esperar e cadê a esmola que nós demos? Sem perceber que aquele abençoado Poderia ter sido você Com tanta riqueza por aí onde é que está?

216 Maffesoli afirma que com a destruição das ideologias modernas e da perda do sentido clássico de militância poítica as novas tribos, o novo ideal comunitário é alimentado pelas realções de vizinhaça, de proximidade. In: MAFESSOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Editora Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1995, p. 46. 217 “The politics of rock music abided in its particular ability to enchaining repressed energies and to create a feeling of community. Rock music, its vigorous rhythm, its vital and breathless beats, somehow penetrates into the pores eve if, folollwing the pessimistic trends of eighties, the lyrics a negative view of the contemporary chaos”. In: MADEIRA, Angélica. Rythm and Irreverence: Note about the rock music movement in Brasilia. In: Popular Music and Society. Vol 15, no 4. Bowling Grenn State University Popular Press, 1991, p.36.

101

Cadê sua fração? Até quando esperar, até me ajoelhar Esperando a ajuda de deus Posso vigiar seu carro, te pedir trocados? Engraxar seus sapatos? Sei Não é nossa culpa nascemos já com a tensão Até quando esperar, até me ajoelhar?218

As coisas que “tocam emocionalmente” e que interferem na vida são sintomas do

surgimento de uma densa solidariedade orgânica. A música exerce um papel fundamental

nessa lógica. Ela cria uma emoção e uma vivência em comum, condensando o sentimento

comunitário e fortificando a existência coletiva. Várias são as canções semelhantes a essa

da Plebe Rude em que as mazelas cotidianas são cantadas. Dessa forma a lamentação pela

suposta explosão do espaço público, a ênfase no individualismo privatizador e a perda do

sentido cívico é um grave erro. Isso porque há todo um conjunto que podemos chamar de

micropolítica, que existe nas rachaduras, nas brechas do existir e que está em constante

oposição à macropolítica dos grandes conjuntos e narrativas. É na constituição dessas

fronteiras que acaba por se construir o novo, o inesperado, onde as possibilidades de

movimento rompem com as tecnologias disciplinares e civilizadoras.219

O mergulho do presente

A destruição do passado, ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculavam as

experiências pessoais de parcela da juventude às das gerações anteriores, esse mergulho no

presente, é um fenômeno do final do século XX220. A parcela da juventude identificada

com os elementos trazidos pelo rock, a partir do final da década de 1980, parecem viver

218 Plebe Rude. Até Quando Esperar? In: O Concreto Já Rachou. EMI, 1984. 219 DELEUZE, Giles. Conversações. 34 Literatura: Rio de Janeiro, 1996, p. 61. 220 HOBSBAWN, op. cit., p.13.

102

numa espécie de presente continuum, ou numa constante presentificação do futuro em suas

experiências, sem manterem relação orgânica com o passado221. Isso possibilitou a

construção de novas sociabilidades e, assim, a chance do recomeço, inclusive para o Brasil.

Na política também havia recomeços. O Brasil passava pelo longo processo de abertura e

redemocratização após anos sob a égide de um regime militar.

Reconhecer a possibilidade do recomeço, almejar o percurso de novos caminhos

parece inundar a investida com odores otimistas. A experiência do presente experimenta o

explosivo das possibilidades da agoridade, depara-se com o fantástico e com o horror de

todos os dias, propiciando a necessidade de encontrar uma saída, de elaborar um novo

projeto, ainda que efêmero. É como andar sem mapa numa desconhecida, caótica e

barulhenta metrópole. Muitos perderam a dimensão do fim. Uma saída torna-se urgente,

contudo ela não está nem no passado, nem pronta no futuro: “Os momentos felizes não

estão escondidos nem no passado, nem no futuro,”222. Não só Marina cantou o presente

como o único tempo vivido, como também a banda paulista Ira! que na canção Flores em

Você, cujos arranjos são feitos com violinos, canta o desejo de viver, de experimentar o

presente. É uma canção que traz explícito o ideal do recomeço a partir do agora:

De todo o meu passado Trago más recordações Quero viver meu presente E lembrar tudo depois Nessa vida passageira Eu sou eu você é você (...)223

Em uma entrevista, Renato Russo falou que não lhe interessavam os fins ou os

meios224, eram os começos suas grandes preocupações. Nas canções que analisei e em

221 Idem. 222 Marina Lima. À Francesa. In: Próxima Parada. PolyGram, 1989. 223 Ira! Flores em Você. In: Vivendo e Não Aprendendo. Warner, 1986.

103

tantas outras que ficaram de fora é possível reconhecer a tentativa de desenvolver condutas

de preservação pessoal ou grupal, viver a intensidade do possível a todo instante; celebrar a

vida. O investimento é no presente; é vivenciar os sabores proporcionados pela experiência

cotidiana, do doméstico, pois o futuro, como já escrevi, é reduzido à indeterminação,

radical indeterminação onde a concretude clara e distinta do cientificismo transforma-se em

efêmeras metáforas vagando em nuvens. Isso conduz as pessoas a uma espécie de vertigem

esquizofrênica, esse conviver com inúmeras situações no mesmo espaço de tempo. Isso

está claro na canção Eu Era Um Lobisomem Juvenil da Legião Urbana. Nela o futuro passa

a ser presentificado:

Tudo acontece ao mesmo tempo Nem eu mesmo sei direito O que está acontecendo E daí, de hoje em diante Todo dia vai ser o dia mais importante.225

São tantas as informações, situações, barulhos, imagens, preocupações, dúvidas

assolando as pessoas. Contudo, no último verso o autor da canção aponta a existência de

possibilidades. Esse caminho é saborear o agora, o instante o presente e vivê-lo da maneira

mais intensa possível, pois a única certeza concreta ainda existente era a de estar vivo. Na

canção AA UU a banda paulista Titãs também aborda a temática da grande quantidade de

situações em que se está imerso e o quanto isso pode causar angústia e desconforto.

Denuncia mecanismos de controle aos quais os trabalhadores estão subjugados dentro da

lógica capitalista. Nela, a duplicidade letra-voz parece muito bem construída, juntamente

com uma sonoridade ácida rasgada pela guitarra na introdução. Todo esse conjunto dá à

224 Revista Bizz. São Paulo, abril de 1987. 225 Legião Urbana. Eu era um Lobisomem Juvenil. In: As Quatro Estações. EMI-Odeon, 1989.

104

canção uma identidade quase tribal enfatizada pelos berros “aa uu” e pela forma quase

gritada como o intérprete a canta.

AA UU AA UU AA UU AA UU Estou ficando louco de tanto pensar Estou ficando rouco de tanto gritar AA UU AA UU AA UU AA UU Eu como, eu durmo, eu durmo, eu como Eu como, eu durmo, eu durmo, eu como Está na hora de acordar Está na hora de deitar Está na hora de almoçar Está na hora de jantar AA UU AA UU AA UU AA UU Estou ficando cego de tanto enxergar Estou ficando surdo de tanto escutar AA UU AA UU AA UU AA UU Não como, não durmo, não durmo, não como Não como, não durmo, não durmo, não como Está na hora de acordar Está na hora de deitar Está na hora de almoçar Está na hora de jantar226

O historiador que pretende trabalhar com um artefato artístico-cultural precisa

explorar as camadas de sentido explícitas ou obtusas dentro de uma determinada obra, a

canção no meu caso, porque assim perceberá os sintomas do que está acontecendo na

sociedade, no que ela está se tornando227, com a classe ou grupo com o qual possui laços de

identificação. Dentro disso, é possível afirmar que o rock vai muito além de uma mera

resistência. Ele cria atitudes, inventa, utiliza-se de subterfúgios para expressar-se e

226 Titãs. AA UU. In: Cabeça Dinossauro. WEA, 1986. 227 NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p.32.

105

expressar um sentimento de mundo228. Essas maneiras de fazer constituem as táticas

necessárias que as pessoas dispõem para reapropriarem o espaço, reorganizá-lo e reajustá-

lo. É todo um esforço, uma disposição de criação, por isso essas táticas ou maneiras de

fazer estão ligadas a artefatos culturais.

A última estrofe da canção, após o primitivo grito “aa uu”, têm os dois primeiros

versos iniciados pela palavra “não”. Esse “não” é enfaticamente pronunciado pelo

intérprete que junta letra e voz para expressar a negação da vigilância e da ordenação

esquemática planejada para o cotidiano. É importante desvendar a astúcia presente nas

ações, elas driblam a eterna engenharia homogeneizante do modo de vida; construindo,

portanto, uma maneira peculiar de existir, um cuidado de si229; ou pelo menos parece ser

uma tentativa a partir da música, do rock.

O rock se traduz numa linguagem ágil, carregada de significações coletivas,

provocando experiências emocionais intensas, vividas por cada ouvinte-consumidor no

singular230. Música sempre causa algum tipo de reação e ao reagir de forma afetiva a um

determinado estilo musical, o sujeito estabelece laços conectivos com os artistas e com

228 Quando Deleuze afirma que a subjetivação é a produção dos modos de existência ou estilos de vida ele está definindo a ética foucautiana. Para Foucault a ética totalmente distinta da moral. A ética é entendida pelo filósofo como técnicas de subjetivação ou procedimentos (tecnologias de si), o cuidado de si. O homem é arremessado num mundo alheio à sua vontade e o fenômeno da abertura advém das circunstâncias deste mundo, ou seja, ele existe no sentido preciso de ser fora de si. Como modo existencial, o ser-no-mundo jamais é simplesmente dado, mas sim constitui um modo próprio do ser-aí. A experiência do ser-no-mundo pressupõe o mundo como um habitar tranqüilizante e seguro. Baseado em Heidegger, Foucault também adota o sentido de habitar para sua ética. Por isso podemos dizer que a ética é uma estética existencial. Dessa forma há uma diferença entre resistir e criar atitudes. Quem resiste responde a alguma coisa. Sua ação é reativa e tem seu sentido naquilo que gerou. Criação supõe o completamente novo, o que tem sentido essencialmente positivo. As pessoas criam formas de estar nesse mundo. Criam uma arte de existir. Cf. DELEUZE, Gillis. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. 229 MAFFESOLI, Michel. A Conquista do Presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p.14. 230 MAHEIRIE, op.cit., p.42.

106

outros fãs daquelas canções, permitindo a criação de comunidades afetivas. O rock da

década de 1980 parece ter intensificado essa relação231:

O cara estava voltando da escola, se sentindo um merda, solitário, aí ouve a música e diz: ´pô, esse aí sou eu, não estou sozinho no mundo´. E, de repente, estávamos dizendo o que todo mundo queria dizer.232

Nesse fragmento de entrevista podemos localizar o sujeito num determinado

contexto cultual e também político, além de perceber como o rock pode apontar discussões,

indica um estado de coisas, traz sintomas percebidos 1980. É com as canções, e todo o

conjunto estético dos grupos, que as insatisfações, medos, angústias, experiências e

vontades ganham a cumplicidade dos artistas e dos outros fãs, podendo transformar um

determinado estilo num fenômeno de massivo. O rock, e suas variantes estilísticas, é um

indutor de identificação na medida que ele potencializa agrupamentos, sensibilidade

comuns e promove um estar-junto despretensioso, definindo o espaço da juventude na

sociedade. Um estar-junto voltado para o instante, para o agora da existência na partilha

dos momentos de prazer233. A música de qualquer estilo ou sonoridade pode traduzir-se

numa linguagem afetiva e atua como mediadora entre as construções coletivas e os

processos de identificação transitórios, sempre estabelecendo nexos, vinculações com o

contexto social no qual a canção está inserida.

Rock music developed one element of a complex cultural context. Whitin this context, at given time, its playing styles and stylistic forms acquire a specific significance, unport malanings and values which allow it the functon as a medium for experience of everyday life. Rock music is a reflection of reality nor mere entertainment.234

231 Contudo este não é um trabalho de recepção musical, não faz parte das minhas preocupações a forma como o rock foi apropriado e recebido pelos ouvintes-consumidores. 232 Entrevista cedida por Leoni, ex integrante da banda Kid Abelha e os Abóboras Selvagens que depois em carreira solo acabou escrevendo canções para várias bandas. In: Bryan Guilherme, op. cit., p. 126. 233 MAHEIRIE, op.cit., p.44. 234 WICKE, Peter. Rock Music: Culture, Aesthetics, Sociology. Cambridge University Press, 1995, p.73.

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Embora ele não seja mero entretenimento, ele também é entretenimento, é

diversão. O rock é coletividade, é agrupamento, seja num show, seja numa festa. É a união

entre crítica e divertimento, como já foi escrito no primeiro capítulo, justamente pela íntima

relação que o rock estabelece com o cotidiano. Experimentar a vivência cotidiana é

depositar toda a importância num presente caótico a ser vivido numa intensidade tamanha

que transcenda as projeções mentais de um radioso amanhã235. O agora deve ser usufruído

ao máximo; consumido em excesso; esgotado rapidamente, pois se reconhece a

precariedade não só da situação, mas também das próprias relações. Dessa forma, a festa, o

show, o divertimento ganha um caráter absolutamente significativo, pois condensa toda

uma energia social de viver como se fosse o último dia. Numa festa, num show, o jovem

prende-se por completo no presente e de forma absoluta se desprende do passado e do

futuro. O presente passa a ser eternizado. Na canção Diversão, dos Titãs, essa

característica é bastante evidente:

A vida até parece uma festa Em certas horas isso é o que nos resta Não se esquece o preço que ela cobra Em certas horas isso é o que nos sobra Ficar frágil feito uma criança Só por medo ou insegurança Ficar bem ou mal acompanhado Não importa se der tudo errado Às vezes qualquer um faz qualquer coisa Por sexo, drogas e diversão Tudo isso às vezes só aumenta A angústia e a insatisfação (...)236

Os dois primeiros versos enfatizam essa perspectiva. Num mundo sem certezas

resta apenas vivê-lo. O rock traz uma potência de vida, uma vontade de estar vivo. O rock

235 MAFFESOLI, op. cit., p. 25. 236 Titãs. Diversão. In: Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. Warner, 1987.

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“é uma espécie de estar vivo, um sentimento que os jovens do mundo inteiro têm.”237 Essa

canção é permeada de contradições, algo típico dessa presentificação do mundo e da

intensidade das experiências. Ao mesmo tempo em que a diversão causa prazer, ela traz a

insegurança, ou mesmo potencializa a angústia que o divertimento poderia abrandar.

Viver ao máximo cada minuto como se fosse o último é experimentar de maneira exagerada

os sabores muitas vezes amargos que encontramos. Cazuza, na canção Exagerado, parece

cantar a intensidade que deve haver em qualquer relação que se estabeleça com o outro ou

com o mundo. E ele mostra que o envolvimento com situações corriqueiras e banais na

verdade é a construção de um interesse na imediatidade da existência.

(...) Paixão cruel, desenfreada Te trago mil rosas roubadas Pra desculpar minhas mentiras Minhas mancadas Exagerado Jogado aos teus pés Eu sou mesmo exagerado Adoro um amor inventado Eu nunca mais vou respirar Se você não me notar Eu posso até morrer de fome Se você não me amar Por você eu largo tudo Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais Pra mim é tudo ou nunca mais. (...) 238

Cazuza canta o exagero, a carga de intensidade com que os anos de 1980 foram

vividos. Isso fica evidente não só nas situações que aparecem na canção como também na

forma exagerada, berrada e sem qualquer preocupação com afinação que o cantor

237 Entrevista de Philippe Sebrae, integrante da banda brasiliense Plebe Rude, a revisa Bizz de novembro de 1987. 238 Cazuza. Exagerado. In: Maior Abandonado. Polygram, 1987.

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pronuncia a palavra “exagerado”. Essas camadas de sentido revelam um desejo de

vivenciar todas as situações possíveis, pois o amanhã pode não vir. A temporalidade

partilhada por parte dos jovens da década de 1980 é diversa da conhecida até então. Ela

não tem mais horror ao passado, pois ele é negado a todo instante; não é a da incansável

busca de um futuro messiânico, pois este deus deixou de ser cultuado. O tempo é o do

presente, da finitude da vida, por isso tudo é muito rápido, nervoso, angustiante,

contraditório, intenso e exagerado. A canção Tempo Perdido da Legião Urbana é puro

fluxo da vida diária, algo abundante, típico da juventude, e que não deve ser desperdiçado.

É uma fuga para o aqui e o agora:

Todos os dias quando acordo, Não tenho mais o tempo que passou Mas temos muito tempo: Temos todo o tempo do mundo Todos os dias antes de dormir Lembro e esqueço como foi o dia: “Sempre em frente, Não temos tempo a perder.” (...)239

Tempo Perdido é uma das canções do repertório pós-punk da Legião Urbana, uma

sonoridade que lembra a da banda inglesa Joy Division240. O baixo, a guitarra, a bateria e a

interpretação cantada em um tom quase fúnebre, hiperbolizado pela voz baixa (grave) de

Renato Russo concedem à canção um ar cinza por conta da inevitabilidade da passagem do

tempo. Contudo ela também é otimista, na medida em que aponta uma direção, um

caminho, uma solução. É a consciência de que houve um deslocamento fundamental na

percepção de tempo. Se o presente é o único tempo realmente apreensível, é necessário

estar nele por completo.

239 Legião Urbana. Tempo Perdido. In: Dois. EMI-Odeon, 1986. 240 Banda inglesa analisada no primeiro capítulo.

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O presente também em certa medida é gerador de raivas múltiplas, tristezas e

melancolia. Mirar os olhos na realidade circundante é ver as injustiças, maldades,

violências e a futilidade das imagens consumistas. O Brasil teve suas contradições sociais

radicalmente alargadas na década de 1980. Em 1983 o país recorreu a empréstimos junto

ao FMI e a inflação no ano seguinte foi a 223% e de 235,5% em 1985241. Inegavelmente a

década de 1980 não foi um sopro de encantos no campo econômico. De maneira alguma se

pode adjetivá-la como um tempo de progressos mil. Foi o momento do agravamento das

distâncias entre países desenvolvidos e periféricos. Com as crises econômicas, as camadas

populares empobreceram ainda mais e a classe média ficou achatada, sofrendo duros cortes

em seu orçamento doméstico. Ao apagar das luzes acinzentadas da ditadura, sucessivas

crises econômicas povoaram o cotidiano do brasileiro. Depois do milagre242, o enterro do

santo. O funeral foi tão longo, a crise se tornou tão grave que em 1982 e 1983 ondas de

saques assolaram São Paulo e outras cidades. Centenas de desempregados saíram das filas

e saqueiam supermercados e lojas.243 A capa da revista Veja em 1 de janeiro de 1983 é toda

na cor preta e com a palavra “nada” estampada. A capa sugere ao leitor que não havia nada

o que se esperar para o novo ano. A experiência passada havia sido trágica para brasileiros

das classes populares e medianadas.

O caos econômico e social no início da década colocou os indicadores sociais

brasileiros abaixo dos principais países latino-americanos244. Mesmo o pequeno surto de

241 FAUSTO, op. cit., p.502. 242 O Brasil, entre 1967 e 1979, viveu um período de altas taxas de crescimento que o levaram a posição de oitava economia do mundo. No entanto esse modelo de crescimento mostrou sua fragilidade com as sucessivas crises verificáveis na década de 1980. A divida externa brasileira também deu um salto. Em 1978 era de 43,5 bilhões de dólares e em 1984 já era de 91 bilhões.Cf. FAUSTO, op.cit. 243 Revista Veja. Novembro de 1983. 244 No número proporcional de alunos matriculados no ensino regular o Brasil estava mais próximo do Paraguai do que de México, Chile e Bolívia. O Brasil tinha a taxa analfabetismo, mortalidade infantil e

111

crescimento econômico do Plano Cruzado, já comentando, não foi suficiente para melhorar

a condição de vida do povo brasileiro, tampouco reduzir as gritantes e históricas mazelas

vividas pelos trabalhadores.

Tanto o texto impresso no encarte, quanto a capa do disco homônimo da banda

Hojerizah comportam toda essa agonia, angústia e melancolia provocados pelo mergulho

no presente.

Ojeriza deriva de ojo, olho em espanhol isso nos informa acerca da natureza propriamente visual dessa aversão, visão que repugna, imagens de pavor, realidade atroz que como navalha corta o olho. Esse é o lado mais nítido da música da Hojerizah, sua margem crítica de hoje seu desprezo pelas imagens – clichês. No entanto por trás dessa negação agressiva em relação à atualidade ruge uma primeira certeza que aponta para o futuro. (...)245

Figura 11: capa do LP homônimo da banda Hojerizah.

esperança de vida menor do que do Uruguai, Chile, Argentina, México e Paraguai. In: FAUSTO, op.cit., p.550. 245 Texto editado no encarte do disco homônimo da Hojerizah. RCA, 1986.

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Na análise das canções percebo que bandas transformaram esses sentimentos

típicos do fim do século XX em desejoso espírito de mudança, em protesto, em

manifestação. Musicaram indignações, medos; usaram a linguagem da emoção para narrar

suas mais diretas experiências; ampliaram os horizontes do protesto; transfiguraram a

política. Talvez essa capa seja a mais perfeita representação da década de 1980. Os olhos

arregalados não acreditam no que vêem. O presente rasga os olhos como a navalha.

Na canção Armadilha da banda brasiliense Finis Africae viver no presente é

também pisar em escombros, é horrorizar-se. Essa banda está muito próxima de uma

postura dark, uma variação do punk, porém sem agressividade. Voz, letras e sonoridade

muito bem harmonizados buscam um tom melancólico e cinza para expressar seu mundo.

Andando entre cacos me sinto em pedaços E até hoje não sei dizer se está tudo acabado Mas não troquei minha boca fechada pelas suas palavras vazias Você me fez envelhecer, um ano a cada dia Você me fez cair outra vez, na minha armadilha.246

A Droga do Presente

Se as relações entre história e canção, ou entre história e estilos musicais são

pouco exploradas pela historiografia, o uso de narcóticos, o lugar para a droga nessas

análises é mais ainda invisível. Quando comentada é mais no sentido de reafirmar o mito

romântico do sexo, drogas e rock´n´roll. Como já escrevi, há um vasto campo de

possibilidades nas abordagens em torno do rock. A potência social da droga precisa ser

analisada sem preconceitos. Os anos de 1980 foram exagerados quanto ao uso de drogas.

Embora a maconha tenha feito parte do cotidiano daqueles jovens, a cocaína, por conta dos

seus efeitos estimulantes, foi a droga mais consumida da década de 1980.

246 Finis Africae. Armadilha. In: Finis Aficae (mini-LP). Sebo do Disco, 1986.

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A geração dos anos 60, da Bossa Nova, da MPB, era a geração dos bebuns; foi a década do álcool. O pessoal dos anos 70 é maconheiro crônico. Pelo clima da ditadura, aquela opressão toda, a maconha e o ácido eram usados para escapar – se não dava pra viajar pra fora, viajava pra dentro. Quando a ditadura começou a afrouxar, houve um grande desbunde sexual; era o tempo do mandrix e da cocaína, com o bebum incluído ali. A cocaína estava associada a onipotência.247

A cocaína possibilita uma intensa vivência no agora, uma onipotência tamanha

que permite ao usuário fazer qualquer atividade sem a preocupação com o depois. A

pessoa sob o efeito da droga vive num presente continuum, numa completa negação do

depois. Até porque esse depois é de conseqüência desastrosas, deixando a pessoa

assustada, angustiada, ansiosa e numa densa tristeza. A cocaína é a hipérbole da experiência

presentista. Existem inúmeras canções de grupos como Legião Urbana, Violeta de Outono,

Finis Afrecae, Lobão, Ira!, Capital inicial, Titãs e principalmente o RPM, que teve seus

integrantes quase mortos por overdose, que fazem alguma alusão ao uso da cocaína248.

Essa última banda, que gravou apenas dois discos, experimentou o maior sucesso da década

Contudo sua carreira literalmente virou pó. Em várias entrevistas seus integrantes admitem

o intenso uso da droga para, entre outras coisas, “eternizar aquele momento que a gente

sabia que nunca mais ia se repetir”249. Com o sugestivo título de Algum Vício a banda

Zero compara as seqüelas da cocaína com a de um amor sofrido:

Já é quase de manhã Meus olhos não querem fechar Meu corpo está dormindo E quem me vê pode até pensar Que alguma droga Me deixou assim (...)250

247 Entrevista de Nelson Motta, produtor musical. In: ALEXANDRE, Ricardo, op.cit., p.304. 248 ALEXANDRE, Ricardo. op. cit., p. 304. 249 Idem, p. 302. 250 Zero. Algum Vício. In: Carne Humana. EMI-Odeon, 1987.

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No LP Cabeça Dinossauro, da banda Titãs, de 1986, foi composto com uma seca e

virulenta critica verbal, literária e sonora a toda forma de disciplinarização e dominação

social vivenciadas. Temas como Igreja, política institucional, capitalismo, leis e polícia

estão presentes. Além de um amadurecimento sonoro do grupo, já percebido no seu último

trabalho, Televisão de 1985, Cabeça Dinossauro foi construído sob o impacto da prisão de

três dos seus integrantes por posse de heroína e cocaína. O disco é um grande manifesto

contra a repressão e os dispositivos de controle social, uma denuncia contra os

procedimentos técnicos usados pelas instituições na tentativa de promover a disciplina e a

vigilância constantes dos espaços de sociabilidade251. Arnaldo Antunes, um dos titãs

presos, falou que foi o disco em que mais houve uma preocupação em falar das

instituições252. Esse LP, assim como todo o rock praticado nos anos de 1980, joga com os

mecanismos de controle e disciplina, estabelecendo redes sutis, e às vezes nem tanto, de

estratégias de contrapartida, recriando um mundo ao seu modo, em oposição ao

estabelecido e violentador. O cantor Lobão, que também foi preso por conta das drogas,

expressou sua indignação com as sentinelas do ordenado, na canção Canos Silenciosos.

Movimento na esquina Todo mundo entra Todo mundo sai Sexo, drogas, rock'n'roll, adrenalina Diversões eletrônicas Num poderoso hi-fi E a noite tá no sangue de hoje Deixa a noite rolar Canos silenciosos Nervosa calmaria Quando todo mundo pensava Que ia se divertir pra cá É bem aí que o pânico todo se inicia Correria na esquina Ninguém mais entra

251 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. 9a ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. 252 DAPIEVE, op.cit., p.98.

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Ninguém mais sai Homens, fardas, cassetetes, camburões Abusando da lei com suas poderosas credenciais.253

A canção sugere uma noite de despretensioso divertimento, regada a muitas drogas

e álcool, como podemos interpretar na com os versos “movimento na esquina / ninguém

entra / ninguém saí” e no verso “nervosa calmaria”, até a chegada dos policiais, percebida

nas últimas estrofes da canção.

A banda Violeta de Outono254, uma banda do cenário undergraud, compôs a

canção Dia Eterno. Um sugestivo nome para apontar os efeitos que a cocaína trazia para

seus usuários. É uma canção sombria, nervosa, que transmite uma sensação de intensidade

e ao mesmo tempo de intimismo:

Silêncio em mim Espelhos planos Saídas falsas, vôo, solidão Só esperando Vagando em seu olhar Tudo é deserto, estranho lugar Você sabe que não temos tempo Dia eterno, noite escura adentro Na escuridão Relembrado planos Quem se erguerá com o fogo nas mãos? Adormecido Eu o vi chegando Na madrugada o sol vai brilhar (...)255

253 Lobão. Canos Silenciosos. In: Rock Errou. RCA, 1986. 254 Banda de rock psicodélico formada em 1984 em São Paulo, começou a ser conhecida no circuito underground no ano seguinte, quando gravou uma fita demo com as músicas "Outono", "Dia Eterno", "Declínio de Maio" e "Reflexos da Noite". A fita passou a ser executada nas rádios alternativas do Rio e São Paulo e a banda fez shows em pequenas casas noturnas. Em 1986 gravaram um EP de três faixas pelo selo Wop Bop Discos, e no ano seguinte assinaram com a RCA (hoje BMG), que lançou o primeiro LP da banda, "Violeta de Outono". Depois de um pacote denominado "The Early Ears", que juntava uma fita cassete, um EP e um libreto, o segundo álbum surgiu em 1989. A banda era composta por Fábio Golfetri (vocal e guitarra), Ângelo Pastorello (baixo) e Cláudio Souza (bateria). In: www.clicmusic/artistas/violetadeoutono. 255 Violeta de Outono. Dia Eterno. In: Violeta de Outono. Plug, 1987.

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Essa canção sugere o desejo de capturar o mundo, de viver tudo intensamente, de

eternizar a experiência imediata antes que ela escape pelas mãos. Isso parece ficar claro no

refrão “você sabe que não temos tempo / dia eterno, noite escura a dentro”. A cocaína fez

parte do cotidiano não só dos integrantes das bandas, como também de muitos que se

identificavam com os elementos culturais trazidos pelo rock do fim do século XX.

A coisa da liberdade era tão forte que eu usei tudo quanto foi tipo de droga, usei mesmo, todo mundo usava. Usar cocaína era a mesma coisa que, sei lá, tomar água. A gente cheirava pra cacete. Queria ficar acordado experimentar tudo, ouvir tudo, falar sobre tudo, era a coisa de agarrar o mundo.256

Esses jovens experimentaram viver toda a intensidade de um tempo em que o

otimismo era vizinho da mais profunda melancolia. Experimentaram o horror e aversão das

imagens que se sucedem em qualquer esquina, mas também quiseram eternizar os bons

momentos, a vivência em grupo. A cocaína parece ter sido a droga do presente, a droga

que potencializou essas experiências nos anos de 1980. Toda essa arquitetura do mergulho

no presente, esse incômodo e inevitável pisar em escombros, teve um cenário muito

próprio: a cidade, o mundo urbano.

Crônicas Urbanas

Se há uma coisa que identifique nossa música, trata-se de uma temática urbana. As canções falam sobre videogame, multidão, drogas, prédios, violência, cinza. Era o que a gente via.257

O rock é uma música da rua, da praça, do asfalto, do cinza, dos apartamentos. O

rock dos anos de 1980 tem essa marca muito mais forte, pois é herdeiro do punk. Por isso

as canções de grande parte dos grupos são como crônicas urbanas, como manifestos

256 Entrevista cedida em 22 de janeiro de 2005. Marco Antônio Araújo, 39 anos ex-integrante de uma banda de garagem em Pelotas /RS. Hoje é funcionário público federal. 257 Entrevista de Alex Antunes da banda punk Inocentes no caderno Folha Ilustrada do jornal Folha de São Paulo em 11 de agosto de 1984.

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concentrados nas canções e nos estilos muito particulares que foram desenvolvidos. È

possível perceber vários sintomas do viver na cidade. Os ruídos das ruas, o barulho das

buzinas, a lógica capitalista em que os trabalhadores são sujeitados, as contradições sociais,

as favelas, os mendigos, as crianças de rua, os bares, os vizinhos, as violências, o

videogame, o colégio são transformados em música. A banda dark Arte no Escuro com um

som cheio de climas, vocais sussurrados, baixos melódicos e guitarras intimistas compôs a

canção Boró. Um atônito, perplexo e indignado olhar sobre o mundo urbano. Um alerta,

uma denuncia ou um simplesmente uma necessidade de expressar o que se vê:

Alegria ilusão corpos pelas ruas pedras na mão podres crianças bocas com fome todas elas amam todas elas chamam todas elas clamam todas elas gritam todas elas amam todas elas amam todas elas chamam automóveis clamam bicicletas chamam caminhões choram contra-mão no escuro no futuro todas elas amam todas elas chamam todas elas clamam todas elas dançam todas elas amam todas elas chamam alegria ilusão corpos pelas ruas pedras na mão podres crianças bocas com fome todas elas amam todas elas chamam todas elas clamam todas elas gritam

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todas elas amam todas elas amam todas elas chamam alegria258

A cidade pode ser um importante mecanismo de interpretação do final do século

XX, bem como do afloramento das novas sensibilidades. Na cidade se difundem estilos de

vida, visões de mundo. Ela é palco para desterritorializações, descontinuidades e também

encontros. Interpretando as práticas urbanas dos anos de 1980 pode-se entender melhor

esse tempo, assim como perceber os sintomas das novas sociabilidades emergidas na última

década do século XX. Um exemplo dessa emergência diz respeito aos agrupamentos

juvenis, origem social das bandas de rock daquela época. Renato Russo lembra que

(...) o máximo que você pode fazer é se interiorizar, buscar algo mais tribal, de sobrevivência mesmo, tanto ao nível psíquico-emocional como intelectual, informativo, social, político, sexual, tudo. ”259

O vocalista da Legião Urbana está ressaltando uma das tendências mais marcantes

visualizadas nas ruas e praças durante a década de 1980. Um número cada vez maior de

tribos urbanas surgem e passam a atuar na esfera pública. O estilo dos grupos compostos

por jovens urbanos não deve ser visto como um fenômeno consumista, do descompromisso

com questões públicas ou acontecimentos sociais. Sua formação envolve questões relativas

a uma intenção de elaboração do espaço público e de intervir nos acontecimentos. Embora

o individualismo seja o cerne argumentativo da reflexão contemporânea, ele parece menor

para uma tentativa de explicação mais refinada desse fenômeno histórico, social e

antropológico. O problema do individualismo está geralmente permeado por uma

argumentação convencional e catastrófica, sobre o fim dos ideais coletivos outrora

258 Arte no escuro. Boro. In: Arte no Escuro. EMI, 1987. 259 Jornal O Estado. Florianópolis, 17 julho de 1987.

119

cultivados, sobre o fim do espaço público260. Mas afirmação do individualismo como a

única explicação de um ethos mascara ou degrada as novas formas de elaboração social,

reduz a discussão e ainda obscurece expressões bastante visíveis ou subterraneamente

postas.

A deflagração desse fenômeno tribal remonta ao aparecimento do punk, em 1976,

com os Sex Pistols, como já foi escrito no primeiro capítulo. O punk aparece como uma

música ágil e autêntica, ligada às experiências dos jovens no cotidiano das ruas. No Brasil

o punk foi muito significativo, mas sua herança para o rock foi mais perceptível ainda, pois

mesmo distante do punk, muitas bandas preservaram as inovações trazidas pelo som inglês.

O rock brasileiro, punk ou pós-punk, possui poucos acordes e letras que contam a

experiência do jovem médio urbano no espaço público, sua relação efetiva com a cidade, e

privado (medos, angústias, desilusões, incertezas). Dessa forma, torna-se mais acessível,

mais direta, produzindo letras sedutoras e respondendo às perguntas de parcela dos jovens

de classe média dos grandes centros urbanos e também de camadas mais pulares dos

subúrbios. Essa característica traz em seu corpo a significação política latente. O Ira!,

banda do pós-punk paulista, tem uma forte relação com a rua. Além de sua sonoridade

apresentar um tom sujo, seco, urbano, a letra da canção Nas Ruas de alguma forma codifica

o espectro semântico em que as ruas, a cidade está imersa. Há uma circulação de valores,

cheiros, desigualdades, angústias que constituem toda uma noção de prática e vivência no

mundo urbano.

Nas ruas é que me sinto bem Nas ruas é que me sinto bem Ponho o meu capote e está tudo bem e está tudo bem

260 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo na sociedade de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p.14.

120

Vejo pessoas não tão bem vestidas Podiam estar melhor! Vejo pessoas desmioladas, viraram a massa devorada por alguém sem princípios e muito esperto Nas ruas é que me sinto bem Nas ruas é que me sinto bem Ponho o meu capote e está tudo bem E está tudo bem Vejo pessoas não tão bem vestidas Podiam estar melhor! Vejo pessoas desmioladas, viraram a massa devorada por alguém sem princípios e muito esperto Muitos vêem no homem um cifrão Esqueceram o bater do coração Muitos vêem no homem cifrão Nas ruas é que me sinto bem Nas ruas é que me sinto bem Ponho o meu capote e está tudo bem e está tudo bem Vejo pessoas não tão bem vestidas Podiam estar melhor!261

A cidade serve de substrato à sociabilidade, justamente por ser causa e

concretização de encontros. Encontros com os pares, consigo ou mesmo com a própria

cidade. Essa canção lembra o encontro de uma pessoa com sua cidade, qualquer cidade.

Lembra um flâneur262 perambulando pelas ruas, calçadas e becos. A rua é a casa do

flâneur, ele faz parte do cenário urbano, está incorporado à acinzentada paisagem. O

andarilho da cidade descreve e constrói uma longa caracterização do que aparece aos seus

olhos. Os jovens daquela época transformam suas experiências reais, suas inquietações e

discordâncias em canções carregadas de simbologias sonoras e literárias do caótico mundo

urbano. Diferente do século XIX, a flanerie do final do XX não era exclusivamente

praticada na solidão ou por pessoas solitárias. Ela acontecia em grupo, pois havia a

261 Ira! Nas Ruas. In: Mudanças de Comportamento. Warner, 1985. 262 Conceito utilizado por Walter Benjamin ao analisar a obra de Charles Baudelaire. Cf. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

121

necessidade da partilha, da troca. Isso porque o fenômeno grupal, muito ligado aos estilos

de rock, é condensado pelo sentimento vivido em comum. São criados laços de

solidariedade a partir de pontos comuns, com isso são forjadas estratégias de sobrevivência

e mecanismos geradores de identidade grupal. Diferente de uma função social exercida por

um indivíduo num grupo contratual, na tribo ele passa a desempenhar um papel

intimamente relacionado com a identidade ali forjada:

É Sex Pistols daqui, Sex Pistols dali... Até que pintou um dia que eu estava na Taberna e veio descendo um punk, um Sid Vicious loiro – era o André Pretórius. Cheguei nele e a primeira coisa que falei foi: ‘você gosta de Sex Pistols?’ E ele: ‘Sex Pistols! Yeah! Jóia’. E começamos a trocar informações. Isso já devia ser 1978. Então, bem, ‘vamos montar uma banda?’ “Vamos’’. Aí formamos o Aborto Elétrico – ele tocava guitarra e eu baixo.263

A aparição dessas tribos liga-se ao surgimento de figuras míticas. Tipos sociais

que permitem a elaboração de uma estética comum, servindo como uma espécie de

receptáculo à expressão do “nós”. Os Sex Pistols e toda simbologia punk de “cuspir o lixo

de volta,”264 de alguma forma são essa figura mítica deflagradora de identidade e

catalisadora da sociabilidade coletiva, e a partir disso são criados estilos, atitudes, modos de

se vestir e falar. No Brasil as bandas de rock como Legião Urbana, Titãs, Camisa de

Vênus, Plebe Rude, Nenhum de Nós, Replicantes e tantas outras acabam assumindo esse

papel de indutores também. Essas figuras míticas, ou heróis, não são mais modelos para

uma sociedade manter suas recordações e memórias dos acontecimentos-chaves; não são

mais selos identificadores de um passado comum ou um referencial para transformação do

mundo, são elos sociais de agrupamento pelo mero estar-junto solidário. Um usufruir dos

bens e das possibilidades do mundo. O estar-junto está muito próximo da noção de cuidado

263 Revista Bizz, São Paulo abril de 1989. 264 Legião Urbana, Geração Coca-Cola. In: Legião Urbana, EMI-Odeon, 1984.

122

de si, mesmo porque sair pela cidade, muitas vezes sem rumo, em busca do desconhecido

incorre em perigos mil. Por isso essa é uma flanerie coletiva.

Para essas bandas de rock o ritual exprime uma força aglutinadora, pois há uma

multiplicidade de gestos rotineiros e cotidianos que acabam por lembrar à comunidade a

sua condição de grupo, de corpo, de existência conjunta. O íntimo contato com a música,

com o rock em especial, acentua de maneira profunda os elos. A explosão do rock

brasileiro nos anos 80, parece muito vinculada a esse tribalismo, pois a música enquanto

um ritual acabou por agregar jovens dispersos. Ela cria e recria a sociabilidade tribal, a

estética comunitária, tão necessária à sobrevivência do próprio grupo e conseqüentemente

do indivíduo. As tribos dos anos de 1980 constituem microsociedades com redes de

sociabilidade próprias, onde o indivíduo encontra abrigo. O ritual também é perceptível

quando se freqüenta o mesmo lugar, que pode ser uma esquina, uma praça, um local na rua,

uma bar, estabelecem-se laços sentimentais de acordo com a localidade. Reunir-se sempre

no mesmo espaço, em hora combinada para tocar músicas, trocar informações, usar drogas,

fazer acessórios da mesma forma fortalece a sociabilidade. Esse lugar é um espaço público

que comunga de uma funcionalidade agregada de inegável carga simbólica para o grupo265.

Buscando lidar com o novo cenário dos anos de 1980, alguns jovens dividem um

estilo próprio, com espaços específicos de atuação, elegendo seus mecanismos para escapar

do tédio266. A canção que colocou a banda Biquíni Cavadão nas rádios e na televisão foi

Tédio. Com arranjos repetitivos para dar a noção de monotonia e cantada praticamente sem

variação vocal, junta texto e voz é a expressão da falta de alternativas de lazer para os

jovens:

265 MAFFESOLI, op. cit., p. 34. 266 ABRAMO, op. cit., p.83.

123

Sabe esses dias em que

Horas dizem nada?

E você nem troca o pijama

Preferia estar na cama

O dia, monotonia tomou conta de mim

É o tédio cotando meus programas

Esperando meu fim

Sentando no meu quarto

O tempo voa

Lá fora a vida passa

E eu aqui à toa

Já tentei de tudo

Mas não tenho remédio

Pra livrar-me deste tédio

Tédio

(...)267

A partir das canções é possível perceber uma reinvenção e uma ressignificação do

espaço público urbano, um reencantamento do mundo a partir das novas práticas sociais.

As bandas de rock, quase sempre formadas por amigos ou vizinhos, desenham novos traços

nas práticas urbanas e definem estratégias de atuação política em seu sentido mais amplo.

Mesmo em cidades pequenas foi possível perceber a penetração dessa manifestação

cultural, impulsionada não só pelos meios de comunicação de massa, como também pelo

trânsito de pessoas que circularam pelos grandes centros e também fora do país.

Eu tinha uns 13 anos, mas eu lembro de ver meu irmão e a turma dele andando todo de preto, com rosto maquiado em Carazinho, uma cidade pequena e do interior, imagina só!? Eles tinham um monte de discos e revista.268

267 Biquíni Cavadão. Tédio. In: Cidades em Torrentes. Polygram, 1986. 268 Entrevista concedida por Eduardo Silva, 27 anos, a Fábio Feltrin em julho de 2004. Atualmente mora em Florianópolis e é mestre em História.

124

Contudo Brasília merece um destaque especial, uma análise paralela. Em 1987 a

capital federal tinha mais de 320 bandas de rock registradas na Associação Brasiliense de

Músicos (ABM)269. Um número bastante expressivo para uma cidade de proporções

medianas como Brasília.

A particularidade de Brasília no início da década

Inaugurada em 1960, Brasília foi planejada e construída para ser o centro político e

administrativo do país. Uma metrópole marcada pela artificialidade e cravada no planalto

central brasileiro. Sua peculiar geografia urbana, com quadras e superquadras separadas

por grandes avenidas e por trechos de cerrado, abriga toda sorte de pessoas ligadas ao

poder270. Parlamentares, diplomatas, funcionários públicos, jornalistas, professores,

médicos, profissionais liberais, bancários, comerciantes fazem parte da paisagem

brasiliense. Tal paisagem é completada com a periferia da cidade, habitada eminentemente

pelas famílias dos operários esquecidas após a materialização do projeto na nova capital

federal. Brasília também ganhou uma universidade: a UnB. Em seu campus foram

levantados quatro blocos de prédios residenciais para os professores. Toda essa área,

possuidora de uma privilegiada vista para o Lago Norte, ficou conhecida como Colina271.

Ela é razoavelmente isolada do resto da cidade, uma espécie de oásis democrático em

tempos de sufocante militarismo estatal.

A Colina foi palco da primeira aparição punk de Brasília. Em 1978 a cidade

estava tomada pela onda da discothèque, com os olhos vidrados em Dancing Days e

269 BRYAN, op. cit. 270 ESSINGER, op. cit., p.137. 271 Idem.

125

embalada pelos primeiros acordes da Abertura Política. Era diferente, inusitado, ousado ser

punk naquela época no Brasil. Era algo marginal e extremamente transgressor. As

lembranças quase quiméricas daquele tempo, das origens do movimento punk e das bandas

de Brasília, são de alguma forma idealizadas por Renato Russo e revelam um momento no

qual a criação de um estilo de vida, da estetização da existência transformam-se em repúdio

ao estabelecido:

A gente fazia roupa punk (...) Andava rasgado...tinha que inventar tudo, porque não existia ainda. A gente fazia até buttons naquela época, porque não tinha onde comprar. Fui até preso por usar roupa punk.272

Os primeiros punks do pedaço273 foram Flávio e Felipe (Fê) Lemos,274 que

voltaram da Inglaterra com os pais trazendo na mala a revolução punk275. Esse fluxo, esse

movimento de pessoas que foram para Europa, mais especificadamente a Inglaterra, e

voltaram para Brasil trazendo novidades foi um dos grandes responsáveis pela

disseminação do movimento punk e das estéticas pós-punks, até porque naquela época não

havia uma impressa especializada em música jovem. Aos poucos a Colina era tomada por

jovens – todos amigos, que a transformaram em ponto de encontro dos poucos e fiéis

praticantes do punk da capital nacional276. Era um lugar de sociabilidade, de proteção, de

circulação de informações. Os garotos, todos adolescentes entre 16 e 20 anos, trocavam

entre si os raros lançamentos fonográficos vinculados ao punk. A Colina passou a ser um

espaço demarcado, um ponto de referência para o grupo, todos jovens saindo da escola e

ingressando na universidade, pertencentes a uma trama quase secreta e formadora de

272 Revista General, São Paulo (não informa o mês ou o ano provavelmente de 1992). 273 É um termo utilizado nas experiências cotidianas de determinados grupos sociais que ganhou uso antropológico com os estudos de Magnani. In: MAGNANI, José Guilherme. Quando o Campo é a Cidade: Fazendo Antropologia na Metrópole. MAGNANI, José Guilherme e TORRES, Lillian de Lucca. Na Metrópole: Textos de Antropologia Urbana. São Paulo: EDUSP, 1996. 274 Ex-baterista do Aborto Elétrico e atual integrante da banda Capital Inicial. 275 Revista Showbizz. São Paulo, maio de 1998. 276 Revista Showbizz. São Paulo, janeiro de 2000.

126

elementos de identificação277. Brasília era um caldeirão de pessoas completamente

diferentes vindas das mais variadas partes do mundo para morar numa cidade totalmente

planejada e normatizada. Isso possibilita vários tipos de contatos, circulação de

informações e rompimentos de fronteiras. As fronteiras caminham junto com seus

portadores, esfumaçam-se no contado diário.

Os habitantes da Colina, todos vizinhos agrupando-se a partir do gosto pelo punk,

começaram a espetar alfinetes de segurança nas bochechas e andar com roupas rasgadas,

buttons, casacos do exército e pulseiras cheias de tachinhas278. Toda a construção do estilo

passa por questões ideológicas. As roupas devem fazer algum sentido, devem ser uma

marca do grupo e da personalidade do indivíduo nele inserido. A identidade está muito

vinculada a uma estetização da vida. Essa estética do reconhecimento é um elo permanente

e assegurador da existência e proteção dos membros de uma determinada tribo, ou grupo de

amigos. Além de conviverem no mesmo espaço, aqueles jovens partilhavam sentimentos –

sonhos, dúvidas, expectativas – circunscritos e encontrados nas inúmeras experiências

sociais presentes no grupo279. Fê Lemos narra um pouco dessas vivências:

A gente andava junto, se vestia igual e ia curtir um som todas as noites, tocando violão em volta da fogueira. Fumávamos um baseado, tomávamos vinho e cheirávamos benzina.280

Esses jovens são atraídos pela possibilidade de compartilhar sons, danças,

experiências. Afirmam-se em rituais de sobrevivência muitas vezes transgressores do que

as autoridades entendem por lei ou sistema de controle. A música é um importante ritual

grupal, fomentador da potência de sociabilidade. 277 MAGNANI, op. cit., p.32. 278 ESSINGER, op. cit., p.139. 279 Sobre a partilha de sentimento em comum dentro de um determinado agrupamento, cf. MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O Declínio do Individualismo na Sociedade de Massa. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p.27. 280 Entrevista de Fê Lemos. In: ESSINGER, op. cit., p. 139.

127

O período da adolescência é marcado pelo experimentar de novas possibilidades,

pelo infiltrar-se em sociabilidades antes estranhas. Esse período é lembrado pela promoção

de práticas anteriormente proibidas e por isso sedutoras281. A geografia urbana de Brasília

possibilita, quase induz, a formação de tribos, de grupos de jovens em torno dos mesmos

gostos e partilha de canais de identificação. Em tempos juvenis estamos a todo momento

engendrando situações novas, linhas de fuga e promovendo desterritorialização, geralmente

do campo familiar, e reterritorializações282 em grupos formados a partir de interesses

comuns e afetos múltiplos. Essa relação política,

(...) se elabora em agenciamentos que não são nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiram antes grupos minoritários ou oprimidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas (...) por acompanhar-se, em suas origens como em sua empreitada, por uma ruptura com as instituições centrais.283

A ação de jovens na tribo é política. Nela é possível vislumbrar mecanismos de

inversão e práticas de sobrevivência, pois se configuram como fontes de resistência,

intercalando-se com táticas e subterfúgios criativos. Dessa forma acaba-se por improvisar

o cotidiano que está em constante processo de reinvenção284. A maioria das tribos e grupos

de jovens dos anos 80 remetem-se à localidade, à proxemia. Em Brasília isso é mais forte,

por conta dessa divisão espacial em grandes quadras. Como no sentido mais simples desse

termo, essas redes de amizade têm a única finalidade de reunir-se sem objetivos

racionalmente estabelecidos, sem um projeto específico e linear. Marcadas pelo afeto,

como um dos elementos aglutinadores, tais tribos podem ser denominadas como

281 ABRAMO, op. cit., p. 34. 282 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. 283 Idem, p. 30. 284 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 41.

128

comunidades emocionais, servindo de escape e alternativa ao inóspito, tedioso e muitas

vezes surpreendente mundo urbano.

Brasília, para aqueles jovens, era uma cidade monótona. O tédio das longas tardes

na capital nacional era esquecido na companhia dos amigos, na criação de um mundo muito

particular. Renato Russo lembra como sua turma burlava a mesmice da cidade:

Ficávamos o tempo todo falando dos pais, da namorada, tentando conseguir alguma coisa pra fazer. Depois de ficar tardes e tardes ouvindo e falando sobre música, o passo natural era montar uma banda.285

Ainda em fins de 1978, movidos pelo do-it-yourself, lema do movimento anarco-

punk que pregava a autonomia do indivíduo, a turma da Colina decide montar uma banda

de rock. André Pretórius286 e Fê Lemos haviam combinado de montar uma banda com

André Muller, que ainda estava na Inglaterra. Renato Russo, porém, antecipou os fatos e

convidou Fê e Pretórius para formar com ele uma banda. Renato era o baixista, Fê o

baterista e Pretórius assumiria a guitarra.

A formação de bandas e a criação de um estilo que traduza uma atitude aparecia

como uma saída para o anseio de atuação e expressão num momento em que tudo parecia

sem perspectiva:

A gente tava na Colina sentado no chão, pensando qual seria o nome da banda. Eu tava com um negócio de elétrico na cabeça e alguém falou em tijolo elétrico. Aí o André Pretórius falou: ‘não, Aborto Elétrico. 287

Nascia em 1978 a primeira banda de punk rock de Brasília. O Aborto Elétrico foi

mãe de todas as centenas de outras bandas que desfilaram pela cidade. Foi o estopim para

dinamite que sacudiu o cenário musical da capital inventada e que depois conquistaria

285 Revista Bizz. São Paulo, abril de 1989. 286 Era filho de um diplomata da África do Sul. Logo após a formação da Banda, André teve de apresentar-se ao Exército de seu país. Tempos depois, aquele punk de olhos azuis e quase dois metros de altura morreu de overdose nos Estados Unidos. 287 Excerto de uma entrevista de Fê Lemos. In: Revista Showbizz. São Paulo, maio de 1998.

129

outros jovens urbanos pelo país afora, servindo de consolo, resposta ou mera companhia.

Foram muitas as bandas que surgiram em Brasília. Além das bandas Capital Inicial e

Legião Urbana que se originaram do Aborto, Plebe Rude, Finis Afrecae, Arte no Escuro,

Paralamas do Sucesso tiveram expressão nacional na década de 1980, algumas

sobreviveram até hoje.

Os ensaios e shows do Aborto Elétrico tinham sempre grande repercussão no

cenário underground da cidade. Os primeiros ensaios ocorreram em 1979 no apartamento

de Fê Lemos. Depois de um ano ensaiando e aprendendo a tocar, o Aborto faz seu primeiro

show, no Bar Só Cana. Depois que Pretórius volta para África, Flávio assume o baixo.

Outros shows seriam realizados na Unb, em festivais under e bares punks e darks da

cidade:

Um ensaio do Aborto Elétrico era um acontecimento, porque naquela época as coisas eram muito difíceis. Mas a partir de um determinado momento tudo começou a se cristalizar, porque de repente a turma cresceu. Tinha o pessoal das outras bandas, tinha as meninas que ajudavam a colar cartazes, a fazer buttons. Tinha uns amigos nossos que construíam guitarras, porque ninguém tinha dinheiro pra comprar. Mesmo a gente sendo de família de classe média alta, era muito, muito caro. Não tinha esse mercado do rock.288

O Aborto também tornou-se conhecido através de uma das formas mais notórias

de expressão dos jovens urbanos de qualquer classe social: a pichação. Renato Russo, Fê,

Flávio Lemos e um outro punk desconhecido pintaram a cidade com a inscrição AE –

Aborto Elétrico – sendo que o A era o famoso símbolo do Anarquismo e o E uma letra

latina289. Isso ia atraindo outros jovens, todos de classe média, identificados com a

estética, com o som, identificados com o que a banda estava dizendo. Em fins de 1980 o

que fora apenas uma brincadeira de alguns poucos amigos, transformou-se em algo maior e

288 Revista General, op. cit. 289 ESSINGER, op. cit., p.143.

130

o Aborto passou a fazer apresentações por toda Brasília. Em 1983 a Colina passara a servir

de ponto de encontro para inúmeras bandas do punk rock brasiliense e outros estilos290. A

existência desses microgrupos pontua, dentro de uma espacialidade definida, uma estética

específica garantida pela rede de comunicação existente nesses grupos.

Figura 12: Um show do Aborto Elétrico. Revista Showbizz, janeiro de 2000.

Esses grupos, essas comunidades emocionais estão dizendo o que sentem, estão

lendo as situações vivenciadas na cidade. Através do comportamento, da estética, da

musicalidade e também das letras é possível interpretar mais que a fissura com o

establishment do mass media, com a grandiosidade do rock progressivo ou com a

“flautinha hippie”291. Estavam questionando o paradigma da modernidade, pois criaram

uma outra forma de racionalidade, atuaram no espaço público de maneira distinta,

290 Idem. 291 Ibidem.

131

construíram outras práticas sociais, firmaram-se em outra temporalidade – conquistaram o

presente292 .

Brasília foi construída para ser a sede do poder; surgiu desse projeto progressista,

de um desejo de modernidade para o Brasil. Um sonho metálico e recheado de concreto,

muito concreto para todos os lados. Todo seu normatizante planejamento urbano faz da

cidade uma materialização da tentativa dos governantes de formar associações coletivas e

hábitos sociais baseados no ordenamento social. Brasília foi a tentativa de impulsionar a

sociedade brasileira para um futuro moderno293:

Brasília acabou cristalizando (...) um paradigma da modernidade particularmente importante: a idéia de que os governantes nacionais podem mudar a sociedade e manobrar o social através do imaginário de um futuro alternativo294.

Contudo, o sonho modernista de salvação humana através da construção de

cidades inseridas na lógica racional-iluminista,295 capazes de alterar hábitos, submergiu.

Brasília foi construída com a utopia de eliminar as diferenças sociais, aproximando,

fisicamente, pessoas de várias classes sociais296. Foi nas sombras da asa297 desse sonho que

surgiu a revolta de inúmeras bandas de Brasília. De maneira geral, a formação desse

cenário musical na capital federal ao mesmo tempo em que fazia parte da sua paisagem

urbana criou outras práticas urbanas que contestaram, se opuseram à lógica racional-

moderna que a criou. A banda Plebe Rude, filha da capital federal, compôs uma canção

chamada Brasília em que percebe a tentativa salvadora da construção da cidade:

Capital da esperança

292 MAFFESOLI, op. cit., p.200. 293 HULSTON, James. A Cidade Modernista: Uma Crítica de Brasília e sua Utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.5. 294 HULSTON, op.cit., p.3. 295 Idem, p.69. 296 Idem. 297 O Plano Piloto de Brasília é o desenho de um avião.

132

Asas e eixos do Brasil Longe do mar, da poluição Mas um fim que ninguém previu (Brasília), Brasília Brasília tem centros comerciais Muitos porteiros e pessoas normais (Muitos porteiros e pessoas normais) As luzes iluminam os carros só passam A morte traz vida e as baratas se arrastam (A utopia na mente de alguns...) Os prédios se habitam, as máquinas param As árvores enfeitam e a polícia controla (utopia na mente de alguns...) Os prédios se habitam, as máquinas param As árvores enfeitam e a polícia controla (utopia na mente de alguns...) Oh...O concreto já rachou! Brasília Brasília tem luz, Brasília tem carros (Carros pretos nos colégios) Brasília tem mortes, tem até baratas (e tráfego linear) Brasília tem prédios, Brasília tem máquinas (Servidores Públicos ali) Árvores nos eixos, a polícia montada (polindo chapas oficiais) (...)298

Essa canção é uma crônica urbana, uma leitura muito singular da cidade

planejada. Além de carregar os marcos significantes de sua geração como a ausência de

utopias, expresso no verso “a utopia na mente de alguns...” e pela ironia com que trata a

polícia, também mostra Brasília como uma cidade comum, com as mazelas comuns às

outras cidades com o agravante de ser o centro do poder político. Essa canção poderia ser o

tema do sonho frustrado da cidade perfeita. Não há espaço para Passargadas na década de

1980.

298 Plebe Rude. Brasília. In: O Concreto Já Rachou. EMI, 1986.

133

Figura 13: A banda Plebe Rude em frente a um prédio público em Brasília. Foto retirada da obra

Punk: a anarquia planetária e a cena brasileira de Silvio Essinger.

Com num sintoma da rapidez da década, m 1981 o Aborto Elétrico torna-se

passado. O fim da pioneira banda de punk rock brasiliense deu-se, dentre outros motivos,

principalmente por uma profunda divergência entre Renato Russo e Fê Lemos acerca da

música Química299. Fê havia achado a letra horrível. Na verdade Química, gravada

primeiramente pelos Paralamas do Sucesso - também oriundo da Turma da Colina –

tornou-se um hino de todo jovem de classe média que tem problemas com a instituição

escolar ou vê-se preso à rede burguesa de linearidade da vida moderna. A canção é tocada

em batida rápida e cantada quase aos berros. Essa sonoridade só é rompida no último verso

que é falado em tom absolutamente raivoso:

Estou trancado em casa e não posso sair Papai já disse, tenho que passar Nem música eu posso mais ouvir E assim não posso nem me concentrar

299 ESSINGER, op. cit., p.147.

134

Não saco nada de física Literatura ou gramática Só gosto sim de Educação Sexual E eu odeio Química Não posso mais me divertir O tempo inteiro tenho que estudar Fico só pensando se vou conseguir Passar na porra do vestibular (...) Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão Ter filhos na escola, férias Europa, conta bancária, comprar feijão Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão Você tem que passar no vestibular.300

Essa canção define bem os espaços do mundo juvenil e do adulto. Percebe-se um

antagonismo entre eles. O adolescente parece ter medo de ser adulto, de ser submetido a

uma lógica de vida sempre igual, recheada de responsabilidades mil, chata e muitas vezes

causando patologias.

O Aborto nunca teve seu repertório gravado. As principais canções do grupo

foram divididas entre o Capital Inicial301 e a Legião Urbana302, outras ficaram aprisionadas

num caderno onde Renato Russo escrevia as letras e que só veio ao conhecimento do

público na edição da Showbizz de maio de 1998. Há ainda aquelas canções que somente

existem na memória dos adolescentes do início dos anos 1980 que vagavam pelas quadras

da capital nacional.

* * *

300 Legião Urbana. Química. In: Que País é Este?. EMI-Odeon, 1987. 301 Fê e Flávio Lemos (ex-Aborto) juntaram-se com Loro e Dinho Ouro-Preto para formar o Capital Inicial. 302 Renato convidou Marcelo Bonfá e criou a Legião que mais tarde teria Dado Villa-Lobos na guitarra e Renato Rocha do baixo. Porém este último saiu da banda em 1988.

135

A grande cidade parece ser uma síntese do conjunto da sociedade303. Muito do

que é a sociedade, seja ela nacional, seja ela mundial, decanta-se nas cidades. A canção

Música Urbana 2 é a versão poética e musical dos sons e imagens mais corriqueiras de uma

metrópole em qualquer parte do mundo. Tais sons e imagens desfilam pelas grandes

avenidas encobertas por aquela cinza neblina visível sobre os prédios no final das tardes. A

sonoridade ácida dos versos mesclada ao apelo grave da voz de Renato Russo, embalada

pela batida de um Blues, tornam a canção ainda mais nublada e melancólica, dura como o

concreto. É como se imaginar no topo de um prédio em pleno centro de uma grande cidade

olhando, lendo e ouvindo a música urbana que a todo momento toca em nossos ouvidos:

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana, Nas ruas os mendigos com esparadrapos podres Cantam música urbana, Motocicletas querendo atenção às três da manhã É só música urbana Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto Parece música urbana E a matilha de crianças sujas no meio da rua – Música urbana E nos pontos ônibus, estão todos ali: música urbana Os uniformes Os cartazes Os cinemas E os lares Nas favelas Coberturas Quase todos os lugares E mais uma criança nasceu. Não há mentiras nem verdades aqui Só há música urbana.304

303 IANNI, Octávio. Enigmas da Modernidade-Mundo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000, p. 123. 304 Legião Urbana. Música Urbana 2. In: Dois. EMI, 1986.

136

Basta uma caminhada pelos grandes centros urbanos e logo se entra em contato

com uma imensa diversidade de paisagens, comportamentos, hábitos, crenças, sons,

cheiros, valores. Somada a isso, a leitura das desigualdades sociais, a violência, a poluição

– a visual, sonora ou do ar – passando pela criminalidade e pelas conhecidas e gritantes

contradições urbanas constitui o chamado ethos urbano305. A forma com que a Legião

Urbana está percebendo seu espaço configura-se num modo peculiar de apropriação, pois é

a prática social dos indivíduos que confere à cidade uma significação; passando, portanto, a

compor a identidade do grupo ou do indivíduo.

O ponto mais áspero da canção talvez seja o momento em que o interprete canta:

“os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana”. Nada mais urbano que a

relação entre a juventude, nesse caso punks e pós-punks transgredindo toda e qualquer

ordem306, e policiais militares fardados e prontos para manter essa mesma ordem, sempre a

serviço das elites que precisam da estabilidade do corpo social para perpetuação no poder.

A juventude é um período marcado por turbulências e grande agitação social,

muitas vezes a colocando num espaço marginal, restando-lhe o afrontamento com o

estabelecido. Por ser um período de rupturas, mas também de aproximações e encontros,

alguns grupos de jovens podem criar um estilo que muitas vezes escapa a certas

manifestações típicas do enquadramento e da normatização307. Na verdade essa prática é

constituída de estratégias de sobrevivência, de afirmação, maneiras de fazer que

confrontam-se com a vigilante tecnologia disciplinar308. Isso faz com que os jovens urbanos

estabeleçam um embate simbólico e direto com as sentinelas do ordenado. A tensa e

305 MAGNANI e TORRES (orgs), op. cit., p.18. 306 ABRAMO, op. cit. p. 73. 307 CAIFA, Janice. Movimento Punk na Cidade: A Invasão dos Bandos Sub. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p . 61. 308 CERTEAU, op. cit., p. 41.

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pesada Veraneio Vascaína309 da banda Capital Inicial é um exemplo do embate de um

grupo de jovens com a polícia. Essa música parece ser um alerta sobre a presença de

policiais e sobre suas peculiares práticas nas ruas das cidades brasileiras, ainda mais em

tempos de abertura lenta e gradual:

Cuidado Pessoal, lá vem Vindo a Veraneio Toda pintada de preto, Branco cinza e vermelho Com números do lado Dentro dois ou três tarados Assassinos armados e uniformizados Veraneio Vascaína, vem Dobrando a esquina (...) e se eles vêm com fogo em cima é melhor sair da frente tanto faz, ninguém se importa se você é inocente com uma arma na mão Eu boto fogo no país Não vai ter problema, eu Sei Eu estou do lado da lei.310

Seguindo na mesma lógica de contestação da ação policial, outras bandas do

mesmo período e também vagando entre o punk e o rock, seguem denunciando a repressão

contra o que foge ao normativo e ordenado. Com uma canção seca, de batida rápida e voz

em tom de raivosa indignação, Polícia do grupo Titãs é uma perfeita demonstração do que

determinados jovens pensavam da atitude policial na década de 1980:

Dizem que ela existe pra ajudar Dizem que ela existe pra proteger Eu sei que ela pode te parar Eu sei que ela pode te prender Polícia para quem precisa de polícia Dizem pra você obedecer

309 Veraneio era o camburão que as polícias usavam nos anos 80. Vascaína porque a polícia militar em Brasília tem as cores do Vasco da Gama. Hoje essa canção faz parte do repertório do Capital Inicial. 310 Capital Inicial. Veraneio Vascaína. In: Acústico MTV. Abril Music, 2000.

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Dizem pra você responder Dizem pra cooperar Dizem pra você respeitar Polícia pra quem precisa Polícia para quem precisa de polícia311

Assim como a canção AA UU, essa canção foi escrita sob o impacto da prisão de

três integrantes da banda. Essa experiência fica evidente na forma como Toni Belloto

pronuncia a palavra “prender” no quarto verso. É momento em que a indignação com a

ação policial fica aguda, mais poderosa. A instituição polícia, bem como suas práticas,

parece ter assombrado muitos jovens na década de 1980. Além da crítica à ação policial,

essas bandas estão lendo a cidade propriamente dita, a percebem como palco de sua

existência. Nesse sentido, destaco uma outra canção da banda brasiliense Legião Urbana.

“Tédio (com um T bem grande pra você)”, hino dos punks da Brasília de 1978, que define

bem o dia-a-dia da cidade e a situação de jovens, mesmo de classe média, sem muitas

opções de lazer numa cidade artificialmente construída. Revela o repúdio à cidade. Numa

entrevista a Showbizz de julho de 1998, Marcelo Bonfá acaba dizendo que todos os lugares

em Brasília são iguais, não há nada de interessante. Além de manifestar a relação da

juventude de classe média com o mundo urbano, a música ainda abre espaço para lembrar

que aqueles punks eram, ironicamente, vizinhos do presidente. A canção propõe a negação

da forma de vida burguesa baseada tanto na encenação e no fingimento quanto ao trato

social. Uma crítica fincada no presente, nas relações cotidianas, na realidade pelos jovens

conhecida.

Moramos na Cidade, também o presidente e todos vão fingindo viver decentemente só que eu não pretendo ser tão decadente (...) Tédio com um T bem grande pra você

311 Titãs. Polícia. In: Cabeça Dinossauro. WEA, 1986.

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Andar a pé na chuva, às vezes eu me amarro Não tenho gasolina, também não tenho carro Também não tenho nada de interessante pra fazer312

Na década de 1980, como escrevi anteriormente, a crise econômica e social do

país agravou a distância entre pobres e ricos no Brasil. A militância dos diversos

movimentos de negros dá visibilidade a uma triste herança brasileira. É constatado que a

maioria dos pobres são de origem africana e habitam a periferia das grandes metrópoles,

principalmente as favelas em morros313. O tráfico de drogas e outras violências urbanas

ganham destaque na mídia e passam a fazer parte do dia-a-dia dos brasileiros. Na canção

Mais do Mesmo a Legião denuncia a rede social a que as populações negras estão sujeitas,

denuncia o preconceito silencioso, a velada prática discriminatória. E ainda mostra em que

circunstâncias a classe média toma conhecimento de fato da realidade das camadas

marginalizadas da sociedade:

Ei menino branco o que é que você faz aqui Subindo o morro pra tentar se divertir Mas já disse que não tem E você ainda quer mais Por que você não me deixa em paz? Desses vinte anos nenhum foi feito pra mim E agora você quer que eu fique assim igual a você É mesmo, como vou crescer se nada cresce por aqui? Quem vai tomar conta dos doentes? Quando tem chacina de adolescentes Como é que você se sente? Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel, Sempre mais do mesmo Não era isso que você queria ouvir? Bondade sua me explicar com tanta determinação Exatamente o que eu sinto, como penso e como sou E realmente não sabia que eu pensava assim. (...)314

312 Legião Urbana. Tédio (Com um T bem grande pra você). In: Que País é Este?. EMI-Odeon, 1987. 313 60% do pobres brasileiros e 69% dos indigentes são negros. In: SBRAVATI, Daniela Fernanda. Para Além do Politicamente Correto. Florianópolis: [monografia em História], UDESC, 2003, p. 8. 314 Legião Urbana. Mais do Mesmo. In: Que País é Este?. EMI, 1987.

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Esse diálogo entre o rapaz negro e o branco que sobe o morro para comprar

drogas; esse diálogo entre duas realidades, duas classes sociais, duas vivências diferentes

traduz bem as contradições do Brasil. Mais ainda, torna visíveis cenas corriqueiras e

muitas vezes imperceptíveis na correria diária. Um dos símbolos mais usuais e lineares de

esperança, “a luz no fim do túnel”, ganha uma versão mais amarga, mais voltada para o

presente, mais palpável. As cidades brasileiras estão cada vez mais acostumadas a conviver

com os acordes advindos dos revólveres, escutam e protegem-se dessa sonora música

urbana. A curva do crescimento urbano acentuou-se durante os anos de 1970, mas foi

somente em 1980 que a maioria da população era urbana315. Isso trouxe conseqüências

graves para esses migrantes e para a já caótica situação social do Brasil. As cidades

sofreram o processo de inchamento e com a falta de possibilidade de abrigar a massa

empobrecida que se desloca movida pela esperança. Viu-se ao longo da década um número

cada vez maior de crianças e moradores de rua freqüentando as calçadas dos centros das

grandes cidades. A banda gaúcha Nenhum de Nós316, que entrou no cenário rock na

segunda metade dos anos de 1980, compôs a canção Jornais, um indignado e triste protesto

musicado, denunciando a condição de muitos que usavam a rua como lar, como abrigo.

(...) As pessoas que enrolam nos jornais Não são mais notícias Não esperam de um papel em duas cores Nada mais que um pouco de calor A calçada não é pai, não é mãe, não é nada Nada mais que um abrigo, um refúgio Tão estranho pra quem passa Pra quem passa

315 FAUSTO, op.cit., p.506. 316 Influenciados pelo rock inglês e música folk e norte-americana, os amigos Thedy Corrêa (voz e baixo), Carlos Stein (guitarra) e Sady Homrich (bateria) formaram o Nenhum de Nós em Porto Alegre, em 1986. No ano seguinte, foram contratados pelo selo Plug, da BMG, e lançaram seu primeiro e homônimo LP. Ficaram bastante conhecido por conta da canção Camila, Camila. In: www.cliquemusic.com.br/asrtistas.

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Onde vai? Nós estamos de passagem Onde vai? Onde a rua nos abriga desse frio. (...)317

Ao analisar os jornais e as revistas Veja e Isto É percebi um significativo aumento,

entre 1978 e 1987, das manchetes e reportagens abordando o aumento da violência nos

grandes centros urbanos. Parece aí haver uma relação com o crescimento desenfreado que

marginalizou os migrantes, com a favelização e com as graves crises econômicas vividas

durante da década de 1980. Esse também foi um elemento capturado pelo rock nacional.

Os Titãs protestaram contra o caos que as cidades haviam se tornando na canção Violência:

O movimento começou, o lixo fede nas calçadas. Todo mundo circulando, as avenidas congestionadas. O dia terminou, a violência continua. Todo mundo provocando todo mundo nas ruas. A violência está em todo lugar. Não é por causa do álcool, Nem é por causa das drogas. A violência é nossa vizinha, Não é só por culpa sua, Nem é só por culpa minha. Violência gera violência. Violência doméstica, violência cotidiana, São gemidos de dor, todo mundo se engana... Você não tem o que fazer, saia pra rua, Pra quebrar minha cabeça ou pra que quebrem a sua. Violência gera violência. Com os amigos que tenho não preciso inimigos.318

Cada cidade comporta várias cidades. Cada grupo social viverá um tipo de

cidade, terá um tipo de prática urbana. A geração que foi jovem nos anos de 1980 e

identificou-se com as questões trazidas pelo rock foi cronista, mas também foi paisagem de

uma cidade violenta e cinza, palco para as contradições e transformações sociais do Brasil.

Nossas metrópoles, recortadas pela perspectiva do pedaço, mostram-se estilhaçadas,

317 Nenhum de Nós. Jornais. In: Nenhum de Nós. Sony, 1987. 318 Titãs. Violência. In: O Blesq Bloon. WEA, 1987.

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convertem-se em flutuantes arquipélagos exibindo os trabalhos do tempo. Territórios

descontínuos que são, comportam memórias e sentimentos comuns. Territórios-ilhas

repetindo-se nos muitos fragmentos. Como uma errante tempestade, as bandas parecem

visitar e unir essas vagueantes ilhas. Suas canções são

(...) um retrato mais amplo da juventude urbana brasileira. De repente tem um conjunto que fala daquilo que você sente e é o mesmo que outras pessoas sentem. E você descobre que não tá mais sozinho.319

As canções do rock nacional constróem pontes imaginais entre os sentimentos dos

vários jovens, nos vários cantos das cidades; dão forma para os pensamentos de muitos, que

perplexos, viveram um tempo estranho, por vezes cinza e melancólico, mas também

colorido e cheio de possibilidades e caminhos a serem trilhados. Caminhos construídos sob

o espectro do fim, da sombra e da incerteza ao som dos acordes finais do breve século XX.

319 Entrevista de Renato Russo à revista Bizz. São Paulo, abril de 1987.

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Os Anos de 1980 Acabaram?

Quem anda duzentas jardas Sem vontade Anda seguindo seu próprio funeral Vestindo a própria mortalha.320

Estava acertando os últimos detalhes da dissertação e pensando o que escreveria

nas considerações finais. A idéia dessa parte do trabalho veio quando minha orientadora

liga-me para dizer que a última Revista Cult321 trazia a reportagem de capa sobre o

surgimento punk na Inglaterra e seus desdobramentos pelo mundo.

Figura 14: revista Cult, no 96, outubro de 2005

320 WHITMAN, Walt. Folhas Das Folhas de Relva. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. 321 Esta é uma revista em que filósofos, críticos literário, psicanalistas, poetas e artistas colaboram mensalmente. Ela é lida por uma parte da inlectualidade brasileira e traz temas que são analisadas por várias áreas das humanidades.

144

A idéia e a estética punk, mesmo depois de quase 30 anos, ainda parecem bastante

atuais. Tédio, desprezo, raiva, desencanto e vontade de mudar ainda são perceptíveis e boa

parte da geração de jovens hoje. O fracasso do sonho dos anos de 1960 ainda causam

desconforto e mal-estar, principalmente porque ainda não conseguimos criar uma

alternativa sólida ao capitalismo. Talvez os versos de Cazuza “Meu Partido / É um coração

Partido / E as ilusões / Estão todas perdias” estejam tão ou mais atuais do que quando

foram escritos em 1988. Continuamos buscando trilhas e saídas, mas a floresta parece mais

densa do que imaginávamos. A própria idéia de “fazer você mesmo” continua muito atual

na seguinte frase à exaustão repetida: “mude a si mesmo e você poderá mudar o mundo”. A

ética de uma preservação pessoal preconizada pelo punk e difundida pelo rock continua

tendo reverberações.

As bandas punks devolveram ao rock sua simplicidade original, deram à música

pop uma atmosfera tribal: tensão e relaxamento, barulho, agitação, imprevisibilidade,

hostilidade. Eram fascinantes e repulsivos ao mesmo tempo. O punk e o rock não disseram

o que era a sociedade. Trouxeram referências do que a sociedade estava se tornando.

Mostrou o fim e o início de algo, que talvez ainda seja muito recente para dizer o que seja.

Por isso encarar o punk e o rock como resistência pode soar como equivoco. Produziram

uma existência como obra de arte, signos de sociabilidade estéticos que constituem modos

de existência ou estilos de vida; uma possibilidade de vida322.

322 DELEUZE, op. cit., 123.

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As bandas que na década de 1980 fizeram algum tipo de sucesso são

constantemente reinventadas nos programas musicais chamados de Acústico323s,

produzidos pela MTV. Titãs, em 1997, Paralamas, em 1999, Capital Inicial, em 2000 e Ira!

agora em 2005, são alguns poucos exemplos de bandas de rock, com influencia punk que

subiram ao palco para tocar suas canções sem guitarras ou instrumentos elétricos. Mesmo

sem trazerem nada de novo, continuam sendo executados com certa regularidade nas rádios

brasileiras. Legião Urbana, por exemplo, continua sendo a mais pedida na rádio 89 FM de

São Paulo.324 Contudo há uma gama bastante grande de bandas que fizeram sucesso nos

anos de 1980 e caíram no profundo esquecimento. Sucesso de uma música, ou um só LP.

Absynto, Grafite, Cheque Especial, Degradê, Obina Shock, Zero, Eletrodomésticos, Sangue

da Cidade, Nova Embalagem, Espírito da Coisa, Telex são só algumas das bandas que

tiveram uma alta vendagem de discos, ganharam dinheiro, mas sumiram do mercado.

Mesmo com todas as produções intelectuais, com todo o enfoque dado pela mídia

impressa e televisiva ainda falta escrever muito sobre música da década de 1980. Os

caminhos percorridos nessa dissertação priorizaram algumas possibilidades de análises. É

preciso fazer um trabalho mais significativo das capas dos LPs, bem como fazer uma ampla

pesquisa da forma como o rock foi consumido e apropriado. Refletir sobre o processo de

recepção desse estilo musical. São apenas algumas possibilidades entre tantas existentes.

As próprias fontes com as quais trabalhei sugerem outras pesquisas, outras abordagens. O

Presente continuum preconizado nas canções do rock e do punk parece ainda bastante vivo.

Os tempos se interpelam, se entrelaçam, nos impelem a novos horizontes.

323 As bandas usam outros arranjos musicais, elaboram um cenário característico, usam apenas violões, baixos não elétricos e outros instrumentos como piano e te mesmo violinos. 324 ALEXANDRE, op. cit., 371. Dado de 2004.

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Sumário

Deu Pra Ti, Anos 70................................................................................ 09 I – Primeiro Capítulo: Se liga Que Isso Aqui é Rock´n´ Roll - Abertura para o rock............................................................................... 18 - Nova República do Rock........................................................................ 44 - Abertura Para o Mercado........................................................................ 47 II – Segundo Capítulo: Diálogos Com a Morte, Encontros Com o Novo - Ideologia, Eu Quero Uma Pra Viver....................................................... 52 - O Futuro É Vortex................................................................................... 69 - AIDS e a Alegoria da Morte.................................................................... 86 III – Terceiro Capítulo: Vivendo o Presente, Pisando Em Escombros - Até Quando Esperar?............................................................................. 95 - O Mergulho no Presente......................................................................... 101 - A Droga do Presente................................................................................ 112 - Crônicas Urbanas..................................................................................... 116 - A Particularidade de Brasília no Início da Década de 1980.................... 124 Os Anos de 1980 Acabaram?................................................................... 143 Fontes e Bibliografia ............................................................................... 146