Campos, matos, sertões - paisagens imaginadas e expedições ... · riquezas naturais de sua...

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1 Campos, matos, sertões - paisagens imaginadas e expedições naturalistas no século XIX Andre Sicchieri Bailão 1 Resumo Este trabalho tem por objetivo analisar os relatos de viagens das missões naturalistas de A. de Saint-Hilaire e XXX Spix e von Martius pelo Planalto Central, suas narrativas escritas, desenhos e mapas, no que diz respeito à produção de conhecimento sobre os “campos” brasileiros - que posteriormente foram renomeados de “Cerrado”, embora não correspondam exatamente ao mesmo conjunto de paisagens. A partir do material selecionado, procuramos apontar quais encontros entre os viajantes e inúmeros elementos humanos e não-humanos foram mobilizados em suas descrições e caracterizações dessas paisagens, quais narrativas e imagens produziram e foram produzidas por essas redes científicas, em suas trajetórias em campo e na posterior estabilização do conhecimento. Este trabalho faz parte de um um projeto de pesquisa em antropologia da ciência que busca compreender diferentes caracterizações, imaginações e transformações do “Cerrado” em narrativas e imagens das ciências naturais e de projetos estatais brasileiros entre 1820 e 1960. Palavras-chave: cerrado; viajantes naturalistas; paisagem; história natural; antropologia da ciência Introdução Este trabalho faz parte de um projeto de doutorado em antropologia social, cuja proposta é a de compreender diferentes caracterizações e imaginações do ‘Cerrado’ em narrativas e imagens produzidas pelas ciências naturais e projetos estatais no Brasil entre 1815 e 1961. Inspirados por estudos de antropologia e história da ciência (cf. Latour 2000; Shapin & Schaffer 1985), defendemos que ‘fatos naturais’ têm história, produção e autoria e podemos traçar a partir dos indícios documentais e imagéticos a história do ‘Cerrado’, como essa paisagem, que hoje classificamos como um bioma’, foi pensada, classificada, percorrida e transformada. Este trabalho tem por objetivo analisar duas missões naturalistas oitocentistas pelo Brasil, destacando-se os estudos científicos, relatos de viagem, imagens, desenhos, estampas e mapas decorrentes e que ativamente produziram classificações e formas de pensar, visualizar, narrar e imaginar as paisagens brasileiras. Nosso enfoque específico serão as narrativas e imagens sobre os ‘sertões’ do Planalto 1 Doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS / FFLCH / USP), sob orientação da Profa. Titular Lilia Moritz Schwarcz, com início em 2016.

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Campos, matos, sertões - paisagens imaginadas e expedições naturalistas no

século XIX

Andre Sicchieri Bailão1

Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar os relatos de viagens das missões naturalistas

de A. de Saint-Hilaire e XXX Spix e von Martius pelo Planalto Central, suas

narrativas escritas, desenhos e mapas, no que diz respeito à produção de

conhecimento sobre os “campos” brasileiros - que posteriormente foram renomeados

de “Cerrado”, embora não correspondam exatamente ao mesmo conjunto de

paisagens. A partir do material selecionado, procuramos apontar quais encontros entre

os viajantes e inúmeros elementos humanos e não-humanos foram mobilizados em

suas descrições e caracterizações dessas paisagens, quais narrativas e imagens

produziram e foram produzidas por essas redes científicas, em suas trajetórias em

campo e na posterior estabilização do conhecimento. Este trabalho faz parte de um

um projeto de pesquisa em antropologia da ciência que busca compreender diferentes

caracterizações, imaginações e transformações do “Cerrado” em narrativas e imagens

das ciências naturais e de projetos estatais brasileiros entre 1820 e 1960.

Palavras-chave: cerrado; viajantes naturalistas; paisagem; história natural;

antropologia da ciência

Introdução

Este trabalho faz parte de um projeto de doutorado em antropologia social,

cuja proposta é a de compreender diferentes caracterizações e imaginações do

‘Cerrado’ em narrativas e imagens produzidas pelas ciências naturais e projetos

estatais no Brasil entre 1815 e 1961. Inspirados por estudos de antropologia e história

da ciência (cf. Latour 2000; Shapin & Schaffer 1985), defendemos que ‘fatos

naturais’ têm história, produção e autoria – e podemos traçar a partir dos indícios

documentais e imagéticos a história do ‘Cerrado’, como essa paisagem, que hoje

classificamos como um ‘bioma’, foi pensada, classificada, percorrida e transformada.

Este trabalho tem por objetivo analisar duas missões naturalistas oitocentistas

pelo Brasil, destacando-se os estudos científicos, relatos de viagem, imagens,

desenhos, estampas e mapas decorrentes e que ativamente produziram classificações e

formas de pensar, visualizar, narrar e imaginar as paisagens brasileiras. Nosso

enfoque específico serão as narrativas e imagens sobre os ‘sertões’ do Planalto

1 Doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da

Universidade de São Paulo (PPGAS / FFLCH / USP), sob orientação da Profa. Titular Lilia Moritz

Schwarcz, com início em 2016.

2

Central, seus ‘campos’ e ‘matos’ nas missões científicas do francês Auguste de Saint-

Hilaire e dos naturalistas bávaros Johann B. von Spix e Carl Friedrich P. von Martius,

que datam do início do século XIX. A escolha desses cientistas e seus materiais se

justifica por sua influência duradoura nas descrições, classificações e imaginações das

paisagens brasileiras nos últimos dois séculos.

Para tanto, o material analisado será: (1) os relatos de viagem de Saint-Hilaire,

Voyages dans l’intérieur du Brésil, publicado em várias partes e traduzido para o

português e dos quais selecionamos os volumes Viagem pelas Províncias do Rio de

Janeiro e Minas Gerais; Viagem às nascentes do Rio São Francisco; Viagem à

Província de Goiás (1975a, 1975b, 1975c [1830]). (2) Os relatos de viagem de Spix e

Martius, Reise in Brasilien, publicado em três volumes e traduzido para o português,

dos quais analisaremos apenas os dois primeiros (1981a, 1981b [1828]). (3) As

imagens e mapas do Atlas zur Reise in Brasilien, que originalmente acompanhava os

relatos de Spix e Martius, mas que, na tradução brasileira, foram redistribuídos ao

longo dos três volumes do Reise in Brasilien. (4) O primeiro volume da obra Flora

Brasilienses (Martius et al. 1906), organizada por Martius e colaboradores naturalistas

em mais de meio século - constam do primeiro volume o primeiro mapa

fitogeográfico produzido sobre o Brasil e estampas fisionômicas contendo descrições

pictóricas das paisagens, seguidas de legenda. A obra está disponível digitalizada

integralmente na internet (PROJETO, s.d. [1906]) e seu primeiro volume foi

publicado no Brasil, traduzido do latim (Martius 1996 [1840]).

Dessas obras, passaremos a alguns modos de descrever e retratar as paisagens,

por meio de diferentes recursos narrativos e pictóricos utilizados pelos autores nesses

materiais diversos entre si – indicando contrastes e relações, para mostrar como eram

complexas essas imaginações de paisagens. Ao final da análise, faremos algumas

considerações a respeito das ‘paisagens’ como objetos de análise social e de análise

da história e antropologia da ciência e tecnologia; suas polissemias e classificações

complexas; suas presenças e transformações na história do pensamento social

brasileiro e da constituição do Estado-nação – apontando a algumas questões que

podem ser feitas a respeito.

3

O Brasil dos viajantes

A partir de meados do século XVIII, tiveram início projetos naturalistas

classificatórios, inspirados na obra do sueco Carl von Lineu e posteriormente do

alemão Alexander von Humboldt, e conduzidos tanto na Europa como em suas

colônias ao redor do mundo (cf. Stepan 2001).

No território colonial português na América, um vasto conhecimento a

respeito de animais, flores, solo e paisagens do território brasileiro era produzido e

acumulado por colonizadores, viajantes e habitantes livres ou escravizados desde o

início da colonização europeia no século XVI (cf. Ribeiro 2005, Dean 1996).

Todavia, a produção de um conjunto sistemático de conhecimentos de tipo científico

moderno se deu a partir da realização de missões luso-brasileiras pelo território, que

tiveram início com a reforma acadêmica pombalina - com a contratação do naturalista

italiano Domenico Vandelli e a criação de instituições científicas de cunho iluminista

em Coimbra e Lisboa (Pádua 2004). Devido ao protecionismo da Coroa em relação às

riquezas naturais de sua colônia, o Brasil foi mantido isolado pelos colonizadores às

missões estrangeiras até o século seguinte.

Com a mudança da corte portuguesa em 1808 para o Rio de Janeiro e a

abertura dos portos às nações aliadas em 1815, inúmeras missões naturalistas

europeias afluíram ao Brasil no que Sérgio Buarque de Holanda chamou de um “novo

descobrimento do Brasil” (Holanda 1976; Lisboa 1997:29). Muitas foram financiadas

por suas Coroas e vieram associadas a comitivas diplomáticas à nova capital. A vinda

de cientistas estrangeiros continuou no período imperial e republicano, durante a

fundação de instituições científicas brasileiras.2

Segundo Mary Louise Pratt (2008), os viajantes descreviam extensivamente os

caminhos que percorriam, ordenando o que encontravam, como as paisagens, a flora,

2 Durante o período republicano, cientistas estrangeiros produziram estudos, relatos e imaginações

sobre as paisagens do Brasil central em missões coordenadas por instituições científicas brasileiras -

que esses cientistas estrangeiros ajudaram a formar. Luis Cruls, cientista belga do Observatório

Nacional no Rio de Janeiro, participou nos anos 1890 da missão demarcatória da nova capital, que

criou a área do futuro Distrito Federal; Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês ligado à Universidade

de São Paulo, percorreu o Brasil Central nos anos 1930 em missão etnográfica; geógrafos estrangeiros

ligados à Universidade do Brasil (atual UFRJ) e ao IBGE participaram de missões na região da nova

capital durante os anos 1940; fotógrafos estrangeiros participaram da produção de imagens oficiais

durante a construção e inauguração de Brasília na virada dos anos 1950 e 60. O objetivo de meu

projeto de doutorado é discutir detidamente várias dessas viagens no que diz respeito ao ‘cerrado’, o

que será realizado nos próximos quatro anos.

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a fauna, os minérios, as culturas agrícolas – até mesmo os climas (Bailão 2014) e os

homens (Schwarcz 1993) – na forma de texto, em crônicas de viagem e relatos

científicos, e imagens, produzindo mapas, desenhos, pinturas e gravuras. As missões

multidisciplinares eram compostas normalmente de botânicos, zoólogos,

mineralogistas, desenhistas e pintores, como J. Moritz Rugendas e T. Ender.

Além da classificação, catalogação e anotação textual e pictórica da

multiplicidade de elementos e informações com os quais se deparavam, os viajantes

coletavam espécimes naturais que enviavam para museus e jardins botânicos

europeus, onde eram estudados e exibidos (Pratt 2008; Reinaldo 2014; Sevcenko

1996; Stepan 2001; Vanzolini 1996). Segundo o biólogo Mario G. Ferri (in: Saint-

Hilaire 1975 [1830]), o herbário coletado no Brasil por Saint-Hilaire, por exemplo,

continha mais de trinta mil espécimes de mais de sete mil espécies, das quais mais da

metade eram desconhecidas na época pelos naturalistas.

Para as burocracias imperiais que patrocinavam os viajantes, o interesse estava

na produção de mapas mais detalhados, exploração dos recursos naturais, como

minérios, remédios e plantas de uso comercial e prover suas jovens instituições

científicas - museus, universidades e jardins botânicos - de exemplares naturais de

todo o mundo, ao melhor estilo colecionista, classificatório aliada à empresas de

exploração comercial (Dean 1996). Para as burocracias luso-brasileira e, após a

independência, brasileira o interesse em trazer estrangeiros estava vinculada à série de

reformas acadêmicas, econômicas, tecnológicas e administrativas promovidas pelo

Estado, que criou inúmeras instituições novas, para melhorar a exploração de

produtos naturais e criar um “ambiente metropolitano” (Lisboa 1997: 29).

Especificamente em relação às paisagens, elas foram classificadas e

sistematizadas pela ciência natural a partir de tipos fisionômicos, caracterizações de

regiões segundo critérios de clima e vegetação e que aproximavam regiões distantes

entre si, mas semelhantes segundo a tipologia. Essas práticas seguiam o projeto

desenvolvido pelo naturalista Alexander von Humboldt, que traçou conexões entre a

complexidade de distribuição da vegetação a determinações topográficas e climáticas,

a partir de sua experiência na América do Sul, ordenando tipos paisagísticos

fitogeográficos (Stepan 2001). Em relação às paisagens brasileiras especificamente, o

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primeiro mapa fitogeográfico do Brasil foi produzido para a Flora Brasiliensis,

coordenado por Martius, seguindo este modelo (Fig. 1).

Sobre as paisagens que chamamos de ‘cerrado’, segundo Ricardo Ribeiro

(2005:47-49), a palavra aparece em meados do século XVIII como tipificação local de

uma vegetação específica encontrada no interior. Somente ao final do século XIX e ao

longo do XX é que a categoria vai ser expandida para indicar de forma geral toda a

paisagem do Brasil central3.

Veremos a seguir que os modos de descrição da paisagem nos relatos dos

viajantes não era generalista – eles descreviam as sucessões de paisagens específicas,

atentando-se à multiplicidade e complexidade de elementos e relações observados,

adotando nomenclaturas locais, discutindo caracterizações, problemas, riquezas e

potencialidades das paisagens. A forma generalista de classificação das paisagens

surge com a produção de mapas e imagens do território e com a produção de relatos

científicos e dedicados a um público especialista.

Voyage dans l’intérieur du Brésil

O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), foi um dos mais

conhecidos cientistas estrangeiros que visitou o Brasil, tendo produzido extensa obra

sobre e a partir de suas viagens. Segundo Pignal et al. (2013) e a página virtual sobre

o viajante no dossiê da exposição A França no Brasil (Biblioteca Nacional Digital

s./d.), Saint-Hilaire é uma figura esquecida na França, enquanto foi homenageado no

Brasil com nomes de distritos, reservas, instituições e uma exposição comemorativa

em 1979 na Biblioteca Nacional. Em 1975, Mário G. Ferri, editor da coleção

Reconquista do Brasil da editoras Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo,

cita-o, em conjunto com Martius, como o naturalista que mais contribuiu ao

conhecimento da flora brasileira (Ferri in: Saint-Hilaire, 1975a: p. XI).

Tendo crescido durante o período de ascensão do romantismo na literatura e

nas ciências naturais na Europa, foi leitor de Humboldt, Buffon, Herder e

Chateaubriand. Se formou na Faculdade de Medicina e estudou botânica no Museu de

História Natural, ambos em Paris. Veio ao Brasil em 1816 com a comitiva do Duque

3 Transformação que será um dos objetivos de meu projeto de doutorado ao longo dos próximos anos.

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de Luxemburgo, embaixador francês junta à Corte no Rio de Janeiro, e permaneceu

aqui seis anos. O Rio de Janeiro foi seu local principal de estadia e depósito de suas

coleções naturais, despachadas frequentemente a Paris, mas realizou inúmeras viagens

pelo interior e pelo litoral brasileiro (Fig. 2) – visitando, inclusive, o Uruguai.

Ao voltar para a França em 1822, começou a longa preparação do herbário e

de suas notas, observações, relatos de viagens e catalogações, publicadas na forma de

relatórios e catálogos científicos sobre botânica – Plantas usuais dos brasileiros,

Flora Brasiliae Meridionalis e História das Plantas mais notáveis do Brasil e do

Paraguai – e na forma de relatos de viagens, o Voyage dans l’intérieur du Brésil, em

quatro volumes (oito tomos), publicados entre 1830 e 1851 e conhecidos no Brasil

como oito volumes com o nome dos subtítulos – como, por exemplo, Viagem pelas

Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1975a), Viagem às nascentes do rio

São Francisco (1975b), Viagem à Província de Goiás (1975c), analisados aqui.

Nos diferentes volumes da Viagem Saint-Hilaire fez uma minuciosa descrição

e caracterização das paisagens de seus percursos, das plantas que observava e

coletava, anotando e muitas vezes criando seu nome científico, algumas vezes

incluindo seu nome ‘local’, seus usos e características sensíveis. Realizou descrições e

explicações dos tipos e causas das ‘geografia das plantas’, indicando relações entre

clima, latitude, solo e relevo para a distribuição das plantas e das paisagens –

seguindo as análises e teorias de Humboldt.

Apreendeu e utilizou as classificações e a nomenclatura criadas pelos

habitantes locais aos diferentes tipos paisagísticos, mantidos no texto original em

francês – mas mantendo seus interlocutores anônimos e quase silenciando por

completo as relações de troca de conhecimento que manteve com eles. Em relação ao

território que hoje descrevemos como ‘cerrado’ em Minas Gerais, Goiás e São Paulo,

Saint-Hilaire descreve a existência de uma infinidade de termos, como ‘matas’,

‘matos’, ‘campos’, ‘carrascos’, ‘carrasqueiros’, ‘caatingas’, ‘capões’, ‘capoeiras’,

‘capoeirões’ (Saint-Hilaire 1975a: 231-6) – sendo os cinco primeiros termos advindos

do português, e os quatro últimos de língua-geral (do tupi-guarani) (CUNHA 1997). É

um indício de que não havia uma classificação generalista da paisagem, mas sim,

específica e situada. Desse modo, os ‘sertões’ – segundo Janaína Amado (1995),

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categoria simbólica mais ampla que designava qualquer região longe da civilização –

eram caracterizados em relação à sua flora como um mosaico de paisagens alternadas.

Saint-Hilaire adotou uma oposição entre ‘matos’ e ‘campos’ – vegetação

densa de árvores e arbustos e vegetação rala de ervas – para descrever de forma mais

ampla os ‘sertões’ do interior do Brasil. Os ‘matos’ podiam ser: ‘matas virgens’, ou

‘florestas’ densas do litoral e da Serra do Mar. As secundárias, ‘capoeiras’, que

crescem após derrubada ou queimada para plantações e o abandono dessas 4 .

‘Capoeirões’, capoeiras que deixaram de ser cortadas por muito tempo. ‘Caatingas’,

as matas secas que perdem suas folhas durante a estação das secas. ‘Carrascos’,

palavra portuguesa que originalmente designava um tipo de carvalho retorcido

mediterrâneo (Ribeiro 2005), que eram a denominação das ‘florestas anãs’ de locais

elevados, com árvores e arbustos pequenos próximos entre si - e os ‘carrasqueiros’,

uma transição entre esses e a caatinga. Finalmente, ‘capões’, ‘matas em ilha’, oásis de

vegetação densa isolados em meio aos campos.

Os ‘campos’ eram a denominação geral para a vegetação rasteira do interior

do Brasil, tanto natural, coberto de ervas nativas, como artificial, quando ervas

recobriam antigas matas derrubadas ou queimadas ou eram dominados por espécies

invasoras, como o capim-gordura. Os ‘campos gerais’ eram as grandes extensões de

campos do interior do Brasil, naturais ou artificiais e que podiam ter árvores isoladas,

retorcidas e pouco desenvolvidas. Saint-Hilaire ainda indica as denominação

‘tabuleiros’ e ‘chapadas’ cobertos e descobertos – isto é, com matas ou com campos –

morros aplainados com vegetação mais ou menos densa, típicos do Planalto Central.

Ao longo de seu relato de viagem, o botânico destaca o mosaico de paisagens

e a impossibilidade de traçar limites precisos entre ‘florestas’, ‘caatingas’ e

‘carrascos’, que se alternavam sucessivamente na paisagem, em diferentes

topografias, como vales, tabuleiros, montes, brejos, várzeas. Além das sucessões

alternantes e repetidas entre elas, o botânico também indicou a dificuldade de uma

classificação muito precisa:

Sente-se, aliás, que todas essas expressões não podem ser

absolutamente rigorosas, pois as diferenças que elas indicam

4 Prática já adotada por populações tupi-guarani, de onde veio o termo, à chegada dos portugueses em

1500 e disseminada pelas populações luso-brasileiras (cf. Dean 1996).

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passam de umas para outras por gradações insensíveis. Há matas

que ninguém hesitará em denominar matas virgens ou caatingas;

não existe porém, na natureza, limites bem precisos entre as

florestas virgens e as caatingas, estas e os carrascos, e, finalmente,

entre estes últimos e o verdadeiros campos (Saint-Hilaire 1975a:

232).

Nessa paisagem, o botânico atravessou caatingas secas, para, em seguida,

encontrar oásis de bosques verdejantes em terrenos baixos, por exemplo, carrascos

cheios de flores e folhas, ou fazendas em terras abundantes. Além dos limites

imprecisos, também notou a profunda diferença entre tipos de paisagem que, apesar

da mesma denominação, conforme a mudança de localidade, apresentavam diferentes

tamanhos, espécies e relações entre plantas.

O mosaico complexo traçado pelo botânico incluem nos relatos ações,

alterações e ocupações humanas, com indicações sobre a exploração da terra, tipos de

cultivo, e degradações, notando a rápida substituição da complexa vegetação das

matas nativas por uma simples vegetação de samambaias e sapê, decorrente tanto das

queimadas e derrubadas para fins agrícolas5, como da alteração do relevo devido à

intensa mineração, como da intrusão de uma espécie não-nativa, o capim-gordura, que

não é utilizado para alimentar o gado e impede o crescimento de outras espécies

vegetais.

Saint-Hilaire esteve atento à rápida e profunda mudança das paisagens,

conforme o avanço das populações rurais em busca de novas terras e “novos

imaginários” (p. 366), deixando os “desertos” abatidos e inférteis para trás, habitações

abandonados que logo viravam ruínas – com as quais ele cruzou inúmeras vezes.

Em meio aos enunciados de estilo cientificista, de estilo naturalista,

sistematizador e classificatório, Saint-Hilaire, como outros viajantes estrangeiros e

seus relatos de viagem pelo Brasil, inseria enunciados com sentimentos – como as

caatingas secas e “tristes” – e imagens, com a do ‘deserto’. Deserto é um tema

recorrente nos relatos de Saint-Hilaire, que visitou a região do interior de Minas

Gerais durante o inverno, afligido por “calores excessivos”, quando a paisagem havia

5 O que o botânico em diversas passagens ao longo dos relatos - e diversos autores brasileiros do século

XIX – apontava como um dos maiores problemas tecnológicos do Brasil, o não-uso de arado para

fertilizar o solo com o húmus, a dependência das queimadas de mata virgem para produzir cinzas,

fertilizantes naturais, porém com o rápido esgotamento das terras e destruição da rica vegetação

original (cf. Dean 1996 principalmente, Pádua 2004 e Ribeiro 2005 para uma discussão historiográfica

dessa questão).

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sido “devorada” pela seca, a terra estava ressecada e algumas regiões dessas “tristes

florestas” não contavam nem com a presença de flores, nem insetos, nem pássaros –

que voltavam a aparecer percurso afrente, ao cruzar novas ‘matas’, ‘carrascos’ e

‘brejos’. Como apontou Lisboa (1997) em relação aos escritos de Spix e Martius, os

temas das belezas pitorescas e das paisagens infernais se alternam nos escritos dos

viajantes naturalista oitocentistas.

A ambiguidade é recorrente nas descrições e caracterizações do ‘sertão’ –

“divisão vaga e convencional determinada pela natureza particular do território e,

principalmente, pela escassez de população” (1975a: 307). Descreveu o ‘sertão’ de

Minas Gerais e Goiás como “imensos desertos”, onde, apesar da riqueza da terra, ele

encontrava ociosidade, preguiça, indolência, pobreza, tristeza, poucos cultivos.

Entretanto, cabe notar que, em meio ao que descrevia como paisagem “monótona”,

ele relata encontrar uma rica fazenda, com o maior pomar que viu em Minas Gerais

(p. 323), cultivos de plantas nativos (mandioca, milho) e exóticas (couve, uva, cebola,

alface, morango, laranja) (pp. 323-4), ou na passagem em que diz, próximo ao rio São

Francisco, que “desde o Rio de Janeiro, não vira ainda tão considerável extensão de

terreno cultivado” (p. 346).

Em meio às frequentes descrições do calor e da seca, mostrou desânimo e

tristeza frente à monotonia de uma paisagem desprovida de vida, cultura e cultivo –

apesar de, ao mesmo tempo, descrever encontros com tropas de burros (p. 330) e

habitações (p. 353) - mas também mostrou animação e curiosidade frente à

“prodigiosa quantidade de plantas diferentes” (p. 322), à beleza majestosa, e surpresa

frente ao mistério indeterminável dos brotos de folhas que surgiam na paisagem ao

final da estação seca antes das chuvas (p. 348).

Após esse breve relato, podemos ver a convivência de inspirações

‘iluministas’ e ‘românticas’ entre os naturalistas. A construção dos enunciados e dos

modos discursivos nos relatos de viagem naturalista deve ser compreendida como

uma constante relação entre narrativa científica, conduzida por um narrador-cientista

que descreve atentamente as paisagens que percorre e constantemente classifica,

nomeia, coleciona, extrai, e um narrador que descreve sensivelmente as paisagens

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com o uso constante de impressões, sentimentos, gostos, memórias de outras épocas e

lugares, analogias.

Reise in Brasilien

O botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e o zoólogo

Johann Baptist von Spix (1781-1826) fizeram parte da missão do Museu de História

Natural de Munique, patrocinada pelo Rei Maximiliano José I da Baviera, e vieram na

comitiva da Princesa Leopoldina de Habsburgo, arquiduquesa e filha do Imperador

José I da Áustria, esposa do príncipe D. Pedro de Alcântara e futura Imperatriz do

Brasil. A comitiva trouxe embaixadores e emissários de ambas as Coroas austríaca e

bávara e inúmeros outros cientistas italianos, tchecos, germânicos, além de

ilustradores e gravuristas.

Os naturalistas percorreram diversas regiões do interior do Brasil em uma só

viagem a partir do Rio de Janeiro, visitando o Sudeste, Nordeste e a região

Amazônica e publicaram seus relatos em três volumes – na edição original, havia um

volume anexo o Atlas zur Reise in Brasilien, com desenhos e gravuras. Realizaram

colecionismo intenso e dedicado ao longo do percurso, que viu resultado na obra

Flora Brasiliensis, maior coleção científica de análises e imagens sobre a flora

encontrada no Brasil feita até hoje, e na coleção de exsicatas, herbário e plantas vivas

levadas ao Museu de História Natural de Munique.

Realizam extensa catalogação dos tipos, gêneros e espécies observados e

colecionados e, como Saint-Hilaire, muitas vezes foram os responsáveis pela

nomeação científica das plantas – como o buriti (Mauritia vinifera Mart.), por

exemplo. Os buritis e outros tipos de palmeiras atraíam frequentemente sua atenção,

sendo citadas, além de classificadas, a todo o momento nos relatos e normalmente

acompanhadas de adjetivos como ‘majestosas’. Em seu retorno à Europa, Martius até

mesmo dedicou às palmeiras brasileiras uma obra científica especializada: a Historia

Naturalis Palmarum, além de inúmeras ilustrações de palmeiras, algumas do próprio

botânico e outras de artistas contratados (Beluzzo 1996: 111).

Como Saint-Hilaire, eles observaram a mesma alteração rápida e profunda da

paisagem no sertão de Minas Gerais, afetado pela mineração e pelas queimadas

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frequentes – às quais eles atribuem como causa apenas a ação do homem – e

defenderam investigação sobre a história e a geografia das plantas,

antes que a mão destruidora e transformadora do homem tenha

obstruído ou desviado o curso da natureza. Só por poucos séculos

ainda disporá a ciência de completa liberdade de ação para este

fim, e os subsequentes investigadores não mais obterão os fatos na

sua pureza das mãos da natureza, que já hoje, pela atividade

civilizadora deste país em vigoroso progresso, está sendo

transformada em muitos respeitos (1981b: 102-3).

A ambiguidade também está presente ao longo dos relatos e temas caros às

descrição românticas, como o ‘deserto’ e o ‘jardim’, são frequentes. Sobre as

paisagens do Planalto Central, eles se referiam a uma “solidão deserta”, ora um

“deserto queimado” que parecia ter sido “estarrecida pelo sopro da morte” (p. 101),

ora “campinas verdejantes”, abundantes de buritis e acácias floridas, plantas raras e

animais diversos, onde era “indescritível o encanto desta região, onde frescos bosques

alternam com extensas campinas cheias de claras fontes e de grupos de majestosas

palmeiras buritis” (p. 105). Ora os trópicos eram belos como um “jardim extenso, no

qual a natureza reuniu tudo o que a imaginação de um poeta escolheria para morada

de ninfas ou de fadas” (p. 112); ora perigosos, com rios infestados de febres, cobras,

jacarés e piranhas, matas cheias de animais selvagens. As descrições românticas da

paisagem também encontraram representação pictórica (Fig. 3), em que padrões

estéticos da composição de cenas da pintura de paisagem europeia conviviam com

poucos elementos visuais voltadas à descrição botânica e naturalista.

A paisagem do Brasil central, para eles, era complexa e múltipla, um mosaico

de ‘matas’, ‘campos’, ‘campinas’, ‘arbustos cerrados’, ‘matagais cerrados’,

‘caatingas’, ‘brejos’, ‘tabuleiros’ alternando-se sucessivamente e diferenciando-se

conforme as condições de solo e clima. Como em Saint-Hilaire, os autores bávaros se

mostram atentos às classificações locais da paisagem brasileira – e frequentemente

citam os termos locais de origem no português ou na língua geral para se referir aos

diferentes tipos de vegetação que observavam.

É importante mencionar que os naturalistas não mencionam os contextos e as

situações em que aprenderam os nomes. Os nomes são utilizados sem que sejam

apontados variações regionais de sentido e polissemias, e nem mesmo mencionam as

pessoas que lhes ensinaram as classificações. Os habitantes locais aparecem desse

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modo de maneira anônima e genérica e o conhecimento transmitido por eles é

apropriado pelos viajantes para seus interesses tipológicos.

Cabe ressaltar que a classificação generalista como o ‘cerrado’ atual – que se

refere a toda a paisagem do interior do Brasil – não estava presente nos relatos dos

naturalistas, que fizeram uso específico apenas para indicar trechos de uma vegetação

arbustiva ou florestal qualquer que se apresentava como densa 6 . A denominação

generalista usual para falar dos sertões do interior do Brasil eram ‘campos’ (Fluren).

‘Cerrado’ aparece em Viagem pelo Brasil, na tradução brasileira de adjetivos

que, no original, designavam ‘fechado’, ‘espesso’ (dichten, dürren, como em

‘arbustos cerrados’) ou o substantivo ‘cerrado’ (Dickicht, uma designação para

qualquer mata ou bosque denso, e Gestrüppe e Gebüsche, matas de arbustos), como

no seguinte trecho sobre Goiás: “na grande maioria do território (...) não existem as

altas matas, que se veem nas províncias marítimas, porém matas baixas sem folhas na

seca, cerrados e campinas” (p. 106). Provavelmente indicava uma re-tradução, pois

em uma curta obra lançada na mesma década (Martius 1824), a respeito

especificamente da caracterização dos reinos vegetais brasileiros, o nome ‘cerrado’

(serrado) aparece junto a ‘carrasco’ como uma designação da população local para

campos densos de arbustos, interrompidos por algumas árvores e palmeiras – da

mesma forma que nos relatos de Saint-Hilaire.

Entretanto, algumas generalizações classificatórias já estavam presentes no

Reise e nas imagens em desenhos esquemáticos de Martius e gravuras feitas por

artistas, presentes no volume anexo Atlas zur Reise in Brasilien. São nessas imagens

fisionômicas da paisagem que estão as primeiras informações fitogeográficas sobre o

Brasil (Beluzzo 1996: 111). Por exemplo, em uma imagem do Atlas (Fig. 4), há

esquemas, numa espécie de corte transversal das paisagens, representando as

diferenças de topografia, relevo, solo e, principalmente, cobertura vegetal, incluindo-

se culturas agrícolas, pastagens, atividades mineradoras.

Acompanhando as imagens estão indicados em legenda os ‘tipos’ paisagísticos

encontrados e gêneros brasileiros de plantas. Os marcadores escolhidos para o

desenho são os vales dos rios principais, algumas cidades, montanhas e serras

6 A origem do bioma ‘Cerrado’ também indicava a característica ‘densa’ da vegetação arbustiva e foi a

generalização de um tipo específico (tabuleiros e matos cerrados) para um geral ao longo do sec. XX.

13

‘pitorescas’ – que na tradição romântica significava uma paisagem com alto valor

simbólico, observada em viagens naturalistas e artísticas e descrita por meio de

desenhos e pinturas (Lisboa 1997).

Diferentemente das gravuras encomendadas (Fig. 3), que seguiam padrões

pictóricos de paisagens europeias, esses desenhos – assim como outros, de objetos e

pinturas corporais indígenas, vestimentas e ‘cenas’ com africanos e afrodescendentes

escravizados – continham menos elementos e tinham intuito de informar visualmente

com inúmeros detalhes o leitor dos diferentes ‘tipos’ paisagísticos (ou culturais e

humanos) classificados e comentados ao longo da narrativa.

Flora Brasiliensis

Martius coproduziu com colaboradores e financiamento de várias Coroas,

inclusive a brasileira, durante o reinado de D. Pedro II, a grandiosa obra Flora

Brasiliensis (1840-1906), que continha análises e estudos de espécimes coletados no

Brasil e desenhos científicos feitos por ele e colegas. O primeiro volume, publicado

em Munique em 1840, contém o primeiro mapa fitogeográfico do Brasil, inaugurando

por aqui a forma de imaginar e visualizar o território como uma unidade geográfica,

dividido em cinco regiões naturais. Contém também cinquenta e nove estampas

fisionômicas sobre “as regiões do Brasil, descritas e representadas por imagens e a

vegetação dessa terra amplamente exposta” (Martius 1996), cuja intenção era

apresentar aos leitores imagens das diferentes regiões na forma combinações

pictóricas de elementos paisagísticos escolhidos como representativos (Reinaldo

2014:118).

Assim como era feito com regiões climáticas, em que visualizações

cartográficas reduziam paisagens a algumas poucas generalizações, o mapa

fitogeográfico do Brasil seguia o projeto humboldtiano de compreender os territórios

do mundo segundo relações entre vegetação, topografia, solo e clima, e representá-los

de forma a mimetizar as divisões geopolíticas da tradição cartográfica, por meio de

regiões coloridas delimitadas por fronteiras bem definidas e marcadas, como nos

mapas oitocentistas dos países europeus e suas colônias pelo mundo – o que difere

profundamente das caracterizações realizadas ao longo das narrativas escritas, tanto

14

por não representar o mosaico alternante de diferente tipos, como por excluir das

classificações as paisagens das pastagens, cultivos, cidades, áreas de mineração,

grandes campos de plantas exóticas profundamente misturas às vegetações nativas.

O mapa fitogeográfico foi produzido em 1852, portanto após a publicação da

primeira edição da Flora, de 1840, e foi baseado em uma carta corográfica publicada

em 1846 para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) pelo Coronel

Conrado Jacobo de Niemeyer (Martius 1996: 20) – por sua vez baseado em mapas

anteriores e expedições científicas da época. Nele, o território do Império brasileiro

foi subdividido em cinco regiões, indicando diferentes domínios naturais (as

Provinciae Florae Brasiliensis), nomeadas como ninfas da mitologia clássica e

pintado com diferentes cores (Fig. 1).

No caso das paisagens do Brasil central, a representação dividiu o território

entre Hamadryades (caatingas) ao longo do vale do Rio São Francisco, norte de Goiás

e as províncias do Nordeste, e Oreades (campos do Planalto Central) em Minas

Gerais (entre a Serra do Mar e o vale do São Francisco), sul de Goiás e interior de São

Paulo. Cada província paisagística representava uma generalização de vegetação

encontrada nas cinco regiões: por exemplo, a alternância entre ‘matas’, ‘campos’ e

diferentes tipos de vegetação arbustiva, florestal e de caatinga, foi reduzida ao grande

denominador ‘campos’. No mapa, as paisagens florísticas seguem regiões de clima-

relevo e o Brasil central foi classificado como a Regio calido-siccae (região quente e

seca), onde cresce a ‘caatinga’ e a montano-campestris (região montanhosa

campestre), dos ‘campos’.

Além do mapa, estavam as estampas fisionômicas (Tabulae Physiognomicae),

inspiradas em desenhos de Martius e outros artistas europeus que viveram no Brasil e

realizadas em gravuras – por artistas como M. Rugendas e T. Ender. As intenções de

Martius e dos organizadores dos volumes da Flores eram as de, segundo suas palavras

na página de “Explicações sobre as ilustrações”:

descrever as riquezas da flora brasileira (...). Para realizar

isto de maneira correta e mais fácil, pareceu-nos

necessário não apenas descrever com palavras as

principais variedades de plantas, mas ainda ilustrar com

desenhos as suas principais características. Assim, pois,

pelo estudo os leitores serão levados a conhecer cada uma

das plantas brasileiras como se estivessem lá mesmo, em

15

meio ao teatro da própria flora. Conduzidos por nós,

poderão percorrer com os olhos da alma os amenos jardins

daquela natureza tão pródiga, tomando contato – e temos

certeza que com imenso prazer – com aquelas plantas

como se elas estivessem vivas e exuberantes (...) (Martius

1996: p. 22).

Houve, portanto, coprodução intensa de artistas e cientistas na imaginação das

paisagens brasileiras, com seleção de tipos ideais de plantas, animais, topografia e

condições atmosféricas na composição das imagens e sua consequente influência nas

formas de visualizar e compreender o território (Diener & Costa 2013).

Sobre as paisagens dos percursos pelo Brasil central há algumas gravuras

indicativas (Fig. 5), compostas por cenas de viagem, com tropas de burros, cães de

caça, tatus e outros animais típicos, naturalistas coletando espécimes de plantas de

interesse científico, e elementos selecionados dos relatos e observações: palmeiras de

tamanho expressivo, que dominam ou centralizam a imagem, vegetação arbustiva e

árvores isoladas – estereotipando o que os próprios autores observavam e relatavam

em campo e silenciando, ao excluir das estampas sobre os ‘sertões’, elementos

humanos como fazendas, currais, habitações.

Além disso, a Flora Brasiliensis possui como acompanhamento legendas

originalmente em latim descrevendo as estampas e os catálogos botânicos – e que

foram traduzidas em 1996 para o português em uma edição do primeiro volume da

Flora no Brasil. No texto referente à gravura da estampa 23 (Fig. 5), Martius

menciona as palavras “serrado” (sic) e “carrasco” como as denominações dos

habitantes locais para essa vegetação de “arbustos”,

uma grande variedade de plantas e arbustos, densamente agrupados,

em que galhos e guirlandas de arbustos de fronde pouco sucosa,

que, bem apertados entre si e frequentemente estão ligados por

ramos circundantes de rebentos volúveis e de grinaldas de flores e

não são interrompidos a não ser raramente por uma árvore mais alta,

muito frondosa ou por uma palmeira (Martius 1996: 88).

O texto é um resumo da pequena obra em alemão Die Physiognomie des

Pflanzenreiches in Brasilien [A Fisionomia dos Reinos vegetais no Brasil] (Martius

1824), texto mais curto e generalista, porém mais especializado e destinado ao

público com interesse científico, a respeito dos tipos fisionômicos anotados e

observados durante a viagem e descritos extensivamente nos volumes do relato de

viagens.

16

Na legenda à estampa, desenhada pelo próprio Martius, está presente o uso do

recurso discursivo científico, em que a complexa paisagem percorrida pelos viajantes

é produzida textualmente e pictoricamente por meio da seleção de tipos

representativos para a classificação que o autor deseja – normalmente o foco das

imagens –, acompanhada da enumeração de espécies e seus nomes científicos,

tipologia do clima e da vegetação.

Todavia, ao lado desse recurso, o autor, mesmo em uma obra de cunho

científico especializado como a Flora, faz uso de recursos discursivos relacionados a

suas impressões pessoais, memórias e sentimentos da mesma maneira que nos relatos

pessoais de viagem. Martius, que visitou a região durante os meses de estiagem,

menciona na legenda a opressão do calor e da secura, a imensidão e a desolação da

paisagem de arbustos afastada dos “vestígios da cultura humana”. O autor até mesmo

cita um trecho de um poema de Goethe:

Mas porém quem é ele?

Entre os arbustos perde-se o seu rastro,

atrás dele fecham-se

os arbustos

as hastes da grama erguem-se novamente

o vazio o engole! (Goethe apud: Martius 1996: 88).

Paisagens imaginadas

Após a curta exposição do material, podemos elaborar algumas questões a

respeito das múltiplas formas que as paisagens assumem nos encontros entre os

viajantes e elementos mobilizados de seus percursos em suas descrições e

caracterizações posteriores.

Paisagens são vividas e imaginadas como ordenamentos e seleção de certos

elementos, então cabe analisar a produção desses ordenamentos por cientistas, artistas

e instituições, por exemplo. O que nos leva a uma atenção sobre os relatos de viagem

dos naturalistas e os percursos dos viajantes, diferentes momentos da produção e de

circulação do conhecimento, das imagens, das narrativas, dos mapas e dos estudos

científicos, sobre o campo feito pelos viajantes (cf. Beluzzo 1996, Dean 1996, Pratt

2008, Reinaldo 2014, Schama 1996, Schwarcz 2014, Stepan 2001 2011).

Cabe ressaltar a diferença de caracterização das paisagens entre os relatos de

viagens e imagens, mapas e textos curtos voltados às práticas classificatórias

17

naturalistas. Essas últimas, baseados na concepção de reinos e províncias

fisionômicos influenciaram as posteriores caracterizações nacionalistas dos territórios

(Hirsch, 1995:11) e ressoavam o ideário romântico nacionalista que padronizava

pátrias políticas e suas paisagens típicas nacionais (Schwarcz, 2014). O mapa de

Martius, por exemplo, e sua proposta de classificação do território em províncias

naturais foi tão central para a classificação do território brasileiro que influenciou

classificações e representações cartográficas científicas e estatais realizados ao longo

do século XX.

Da mesma forma que a ‘nação’ (cf. Anderson 2008), imaginada por meio de

instituições científicas e objetos (mapas, museus, monumentos, textos educacionais,

imagens), as paisagens, longe de serem espaços neutros e dados, foram ativamente

imaginadas e transformadas durante a história da formação das ciências naturais e do

Estado-nação nos últimos dois séculos. Imaginadas no sentido forte da palavra,

conforme empregada por Benedict Anderson – não como sinônimo de ‘imaginário’ ou

‘falso’, mas como construído ativamente envolvendo pessoas, instituições, objetos,

percursos e, no caso das paisagens, flora, fauna, relevo.

Categorias são sempre relacionais e as paisagens brasileiras do Planalto

Central foram imaginadas em relação ou em oposição a outras categorias, como

‘cidade’, ‘campo cultivado’, ‘civilização’, ‘floresta’ (cf. Lima 2013, Stepan 2001,

Thomas 2010, Williams 2011). Isso se deu concomitantemente à produção científica,

política e colonial de diferentes categorias espaciais de alteridade – como ‘sertão’,

‘trópicos’, ‘Oriente’, ‘campos’, ‘o mundo selvagem’, ‘Oeste’7 – territórios, simbólicos

e naturais, imaginados como ‘outros’ em relação a ‘cidade’, ‘civilização’, por

exemplo, justificando tentativas de dominação, domesticação e transformação.

Cabe nos perguntar, de que forma classificações vigente são utilizadas,

reinventadas e transformação na produção dos materiais textuais e imagéticos sobre

paisagens? Por exemplo, Spix, Martius e Saint-Hilaire partem de uma classificação

comum ao período colonial, em que parcelas do território, denominadas ‘sertões’,

eram imaginadas como ‘vazio’, ‘deserto’ por naturalistas, estadistas e pela população

7 Cabe ressaltar que esses processos possuem diferenças de origem, contexto e significado entre si e

são repletos de ambiguidades e contradições, não sendo redutíveis a explicações generalistas. Sobre

‘sertão’, ver Lima (2013); ‘trópicos’, Stepan (2001); ‘campos’, ver Williams (2011); ‘vida selvagem’,

ver Thomas (2010); o ‘Oeste’ e o ‘mundo selvagem’, ver Schama (1996).

18

urbana (cf. Lima 2013) – mesmo quando eram habitadas, percorridas e transformadas

pela ação de populações locais, como o caso do Planalto Central.

De que forma as trajetórias e as experiências dos cientistas em campo

estiveram presentes na produção dessas classificações e imagens? Quais elementos

observados em campo foram destacados e quais foram silenciados? É possível a

análise de elementos silenciados por meio dos indícios que deixaram em diferentes

relatos? Como e em que medida práticas locais, condições e composições de

paisagem (ajudantes locais, classificações locais, atividades agropecuárias e

mineradoras, viagens, percursos, estações do ano, construções, queimadas) estiveram

presentes na produção de conhecimento? Como elementos híbridos (locais, exóticos,

naturais e humanos), que alteram através do tempo e a todo instante a composição da

paisagem, se relacionam com as maneiras como ela é imaginada?

Percebemos que buscar o ‘Cerrado’ nas descrições de paisagem oitocentistas

pode nos levar a perguntas anacrônicas, pois as classificações de paisagem na época

eram outras. Entretanto, diferente de Saint-Hilaire, Martius e sua obra posterior aos

relatos têm um papel central na formação e produção do conhecimento sobre o

território brasileiro, nas imaginações criadas sobre ‘domínios naturais’ por meio de

naturalizações, simplificações e generalizações em imagens, mapas e textos. Cabe

perguntar de que forma os produtos dessas redes científicas, como o grande projeto do

Flora Brasiliensis, se relacionam a padrões anteriores e estabelecidos de produção de

imagens e narrativas? De que forma eles os desestabilizam, criando novos padrões ou

os recriam? De que forma eles influenciaram produções de conhecimento e

imaginações sobre a paisagem posteriores? Como eles são reexplorados e

reinterpretados nas atuais produções científicas sobre essas paisagens?

Essas perguntas, pensadas a partir do relato breve e introdutório exposto nesse

trabalho, pretendem guiar a realização da pesquisa ao longos dos próximos anos.

Bibliografia

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22

ANEXO - CADERNO DE IMAGENS

Figura 1 – Tabula Geographica Brasiliae et Terrarum Adjacentium. Exhibens itinera

Botanicorum [Prancha Geográfica do Brasil e de terras adjacentes, mostrando o

itinerário do botânicos] in: MARTIUS, EICHLER, URBAN (org.). 1906. Flora

Brasiliensis. Vol. I, parte I, Tabula 61. Versão digitalizada disponível em:

http://florabrasiliensis.cria.org.br/

A legenda da esquerda indica as cinco Provinciae, tipos fisionômicos da

paisagem florística brasileira de acordo com a proposta de Martius - que

corresponderiam aproximadamente aos domínios ou biomas atuais. Foram nomeadas

de acordo com ninfas da mitologia clássica: Naiades (florestas amazônicas) em verde

claro; Hamadryades (caatingas) em rosa; Oreades (campos do Planalto Central) em

amarelo); Dryades (florestas atlânticas) em verde escuro; Napaeae (campos

meridionais) em cinza. A elas estão relacionadas regiões naturais, indicadas por

nomes em latim (como Regio montano-campestris para os campos das Oreades), e

elas estão dividias entre reinos florísticos: o Império florístico brasileiro corresponde

aos campos, florestas atlânticas e caatingas; as florestas amazônicas pertenceriam ao

Império dos grandes rios Amazonas-Orinoco e os campos do sul ao Império

meridional Paraguaio-Cisandino. A cor azul tracejada indica as paisagens fluviais e

litorâneas alagadas e de várzea.

23

A legenda da direita indica em diferentes tracejados os itinerários

aproximados do viajantes naturalistas que cruzaram o Brasil. Dwyer (1955) nota que

o itinerário indicado para Saint-Hilaire continha erros.

24

Figura 2 – Sammelgebiet von Friedrich Sellow und Auguste de Saint-Hilaire (1814-

1831) in: HERTER, W. 1945 “Auf den Spuren der Naturforscher Sellow und Saint-

Hilaire”. Botanische Jahrbücher Systematik 74: 119-149. Disponível em:

http://hvsh.cria.org.br/caderno?herter

O mapa faz parte de uma série produzida por W. Herter em 1945 com os

itinerários dos viajantes F. Sellow e A. de Saint-Hilaire no Brasil, realizados em papel

transparente sobre papel, disponíveis ao final de seu artigo. No artigo ele cataloga em

uma tabela as localidades (e províncias) dos itinerários, mês a mês, ano a ano,

indicados com índice - além dos mapas.

25

O mapa acima contém todos os principais itinerários de Saint-Hilaire em terra

e mar indicados de acordo com o ano de viagem: 1816 (“16” em verde), 1817 (“17”

em vermelho) etc.

26

Figura 3 – “Serra de Itambé”, desenhada por F. W. Couven in: Spix, J. B. Von;

Martius, K. F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. München: M. Lindauer. 1828, p.

1531.

Desenho de F. W. Couven – provavelmente a partir de um rascunho de

Martius. Martius correspondia-se com seus gravuristas (como Rugendas e Ender) a

respeito da produção das ilustrações do Atlas, volume anexo de Viagem pelo Brasil.

O primeiro plano está desenhado em uma escala diferente do resto da imagem,

para enfatizar seus elementos. O grupo de viajantes está iluminado e diagonalmente

em relação ao monte e ao céu. O primeiro plano indica detalhadamente cenas e

elementos escolhidos. Pela estrada segue a tropa de burros, os viajantes e seus

ajudantes (geralmente homens escravizados) que auxiliavam na pesquisa – um deles

atira em um grupo de pássaros com uma espingarda. Os elementos escolhidos são

árvores típicas da paisagem, desenhadas com detalhes – exploradas detidamente por

Martius em suas obras científicas – normalmente em pouco número de espécies e se

repetindo poucas vezes, para enfatizá-las.

Em segundo plano, com menos detalhes, está o vale com a vegetação

arbustiva dos campos gerais, árvores genéricas e uma densa floresta de um dos lados

do Monte Itambé em Minas Gerais. A cena lembra paisagens alpinas europeias,

frequentemente visitadas por artistas e cientistas europeus, retratando a fertilidade de

campos arborizados e a tranquilidade de uma paisagem compreendida aos olhos dos

leitores e do desenhista como ‘natural’, inabitada – um paraíso tropical.

Martius e Spix comparam a região com os Alpes, mas descrevem-na com

detalhes diferentes dos desenhados por Couven (1981b: p. 41-2). Segundo o relato, a

vegetação dos campos no topo vai dando lugar a vegetações mais densas, mas, ainda

assim, arbustiva e de gramíneas. No sopé da montanha, havia capões baixos nos vales

fluviais em meio aos campos gerais, planos com árvores isoladas. Por todo o lado ao

27

longo do rio, os viajantes relataram restos de cascalho lavado, resquícios da intensa

exploração de diamantes na região – o que indica profundas alterações da paisagem

da região.

Figura 4 – “Vegetations-karte, die Verbreitung des Pflanzenwuchses und der

charakteristischen Pflanzenformen in eine Theile von Rio de Ianeiro, S. Paulo und

Minas Geraïs darstellend ” in: Spix, J. B. Von; Martius, K. F. P. von. Atlas zur Reise

in Brasilien. München: M. Lindauer. 1828, p. 1531.

Esquemas paisagísticos em forma de corte transversais em duas regiões – nos

estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. A primeira região (do Rio de

Janeiro até o monte Araasoiava) ocupa os três esquemas acima, a segunda (do monte

Araasoiva até Vila Rica), os dois abaixo. Há indicações de altitude (seguindo escala

de pressão atmosférica e de “pés parisienses”), contornos do relevo e da paisagem

(principalmente vales fluviais, dos rios Tietê, Paraíba, Grande, São Francisco etc.) e

pequenos desenhos de vegetação que, segundo a legenda localizada na parte inferior

da imagem, indicam espécies, gêneros e paisagens ‘típicas’. Há outros ‘tipos’ não

indicados pela legenda, como uma pessoa (índio ou negro), sentado na beira de um

curso d’água, pedras, cidades, currais, e plantações.

Na legenda estão indicados os seguintes tipos de paisagem: ‘Campo’

(tracejado); ‘Mato virgem’ (uma grande árvore); ‘Capão’ (pequena árvore rodeada de

arbustos); ‘Manguezal’ (uma grande árvores com raízes aéreas); e de árvores:

‘Araucária’ (uma pequena araucária); ‘Palmeiras das matas’; ‘Palmeiras dos campos’;

‘Canela de ema’; ‘Árvores de samambaias’; ‘bambuzais’; ‘cactos’; ‘Paineiras do

campo’; ‘eriocaulon’.

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Seguindo o curso longitudinal do esquema, vemos o mosaico de tipos

paisagísticos indicados pelos autores nos relatos a respeito do interior do Brasil.

Detalhe 1 da Figura 4. Um detalhe do desenho da figura acima, indicando o morro

do Itambé, o mesmo desenhado por Couven para Spix e Martius na gravura indicada

pela Figura 3.

Estão indicados em toda o desenho os ‘campos’ de ervas e gramíneas, ‘capão’

em fundo de vales, e árvores ‘canelas de ema’ e ‘paineiras do campo’ espalhadas pelo

desenho.

Detalhe 2 da Figura 4. Seguindo o detalhe para a direita, a partir do desenho

indicado para a região do monte do Itambé, vemos sucessivos desenhos indicando

trechos de ‘matas’ e ‘capões’, com bambuzais, em meio aos ‘campos’ mais extensos –

com árvores isoladas e separadas umas das outras, como no detalhe 1.

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Figura 5. “Campi Extenso, Denso Virgulto Contecti, Prope Serra de S. Antonio in

Deserto Prov. Minarum” [Campos extensos, cobertos de denso matagal, próximo a

Serra de Santo Antônio no Sertão [Deserto] da Província de Minas Gerais] in:

MARTIUS, EICHLER, URBAN (org.). 1906. Flora Brasiliensis. Vol. I, parte I,

Tabula 23. Versão digitalizada disponível em: http://florabrasiliensis.cria.org.br/

Martius indica na legenda que a estampa é baseada em um desenho feito por

ele no dia 13 de junho de 1818, momento da viagem em que percorre o Distrito

Diamantino – mesma região que deu origem à estampa que vimos na Figura 3.

Como na estampa (Fig. 3) do relato de viagens, essa estampa trabalhava com

duas escalas, uma em primeiro plano da imagem, repleta de detalhes botânicos e

algumas ‘cenas’ típicas e outra em segundo plano, indicando relevos, marcadores

territoriais e uma generalização dos elementos. As estampas da Flora, entretanto,

possuem mais detalhes que as incluídas em Atlas zur Reise – Flora foi um projeto que

contou com orçamento, tempo e colaboradores em maior extensão do que os relatos

de viagem.

Em primeiro plano, vemos desenhos de espécies botânicas selecionadas como

típicas da paisagem, algumas palmeiras, de tamanho expressivo (lembremo-nos que

Spix e Martius se referiam a elas constantemente como “majestosas”), arbustos,

samambaias e uma pequena árvore isolada. Cenas da viagem se desenrolam com dois

cães de caça, dois tatus e um viajante a cavalo coletando. Em segundo plano, os

elementos se generalizam, a vegetação torna-se uma mancha com poucos elementos

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em destaque, algumas grandes palmeiras, as montanhas, a tropa de burros. Assim

como na Figura 3, a intenção era exemplificar elementos escolhidos para caracterizar

o que eles chamavam de “deserto”, uma região longínqua da cultura -e não

representar fielmente a paisagem conforme os relatos escritos com toda sua

complexidade.