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Campos, matos, sertões - paisagens imaginadas e expedições naturalistas no
século XIX
Andre Sicchieri Bailão1
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar os relatos de viagens das missões naturalistas
de A. de Saint-Hilaire e XXX Spix e von Martius pelo Planalto Central, suas
narrativas escritas, desenhos e mapas, no que diz respeito à produção de
conhecimento sobre os “campos” brasileiros - que posteriormente foram renomeados
de “Cerrado”, embora não correspondam exatamente ao mesmo conjunto de
paisagens. A partir do material selecionado, procuramos apontar quais encontros entre
os viajantes e inúmeros elementos humanos e não-humanos foram mobilizados em
suas descrições e caracterizações dessas paisagens, quais narrativas e imagens
produziram e foram produzidas por essas redes científicas, em suas trajetórias em
campo e na posterior estabilização do conhecimento. Este trabalho faz parte de um
um projeto de pesquisa em antropologia da ciência que busca compreender diferentes
caracterizações, imaginações e transformações do “Cerrado” em narrativas e imagens
das ciências naturais e de projetos estatais brasileiros entre 1820 e 1960.
Palavras-chave: cerrado; viajantes naturalistas; paisagem; história natural;
antropologia da ciência
Introdução
Este trabalho faz parte de um projeto de doutorado em antropologia social,
cuja proposta é a de compreender diferentes caracterizações e imaginações do
‘Cerrado’ em narrativas e imagens produzidas pelas ciências naturais e projetos
estatais no Brasil entre 1815 e 1961. Inspirados por estudos de antropologia e história
da ciência (cf. Latour 2000; Shapin & Schaffer 1985), defendemos que ‘fatos
naturais’ têm história, produção e autoria – e podemos traçar a partir dos indícios
documentais e imagéticos a história do ‘Cerrado’, como essa paisagem, que hoje
classificamos como um ‘bioma’, foi pensada, classificada, percorrida e transformada.
Este trabalho tem por objetivo analisar duas missões naturalistas oitocentistas
pelo Brasil, destacando-se os estudos científicos, relatos de viagem, imagens,
desenhos, estampas e mapas decorrentes e que ativamente produziram classificações e
formas de pensar, visualizar, narrar e imaginar as paisagens brasileiras. Nosso
enfoque específico serão as narrativas e imagens sobre os ‘sertões’ do Planalto
1 Doutorando em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS / FFLCH / USP), sob orientação da Profa. Titular Lilia Moritz
Schwarcz, com início em 2016.
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Central, seus ‘campos’ e ‘matos’ nas missões científicas do francês Auguste de Saint-
Hilaire e dos naturalistas bávaros Johann B. von Spix e Carl Friedrich P. von Martius,
que datam do início do século XIX. A escolha desses cientistas e seus materiais se
justifica por sua influência duradoura nas descrições, classificações e imaginações das
paisagens brasileiras nos últimos dois séculos.
Para tanto, o material analisado será: (1) os relatos de viagem de Saint-Hilaire,
Voyages dans l’intérieur du Brésil, publicado em várias partes e traduzido para o
português e dos quais selecionamos os volumes Viagem pelas Províncias do Rio de
Janeiro e Minas Gerais; Viagem às nascentes do Rio São Francisco; Viagem à
Província de Goiás (1975a, 1975b, 1975c [1830]). (2) Os relatos de viagem de Spix e
Martius, Reise in Brasilien, publicado em três volumes e traduzido para o português,
dos quais analisaremos apenas os dois primeiros (1981a, 1981b [1828]). (3) As
imagens e mapas do Atlas zur Reise in Brasilien, que originalmente acompanhava os
relatos de Spix e Martius, mas que, na tradução brasileira, foram redistribuídos ao
longo dos três volumes do Reise in Brasilien. (4) O primeiro volume da obra Flora
Brasilienses (Martius et al. 1906), organizada por Martius e colaboradores naturalistas
em mais de meio século - constam do primeiro volume o primeiro mapa
fitogeográfico produzido sobre o Brasil e estampas fisionômicas contendo descrições
pictóricas das paisagens, seguidas de legenda. A obra está disponível digitalizada
integralmente na internet (PROJETO, s.d. [1906]) e seu primeiro volume foi
publicado no Brasil, traduzido do latim (Martius 1996 [1840]).
Dessas obras, passaremos a alguns modos de descrever e retratar as paisagens,
por meio de diferentes recursos narrativos e pictóricos utilizados pelos autores nesses
materiais diversos entre si – indicando contrastes e relações, para mostrar como eram
complexas essas imaginações de paisagens. Ao final da análise, faremos algumas
considerações a respeito das ‘paisagens’ como objetos de análise social e de análise
da história e antropologia da ciência e tecnologia; suas polissemias e classificações
complexas; suas presenças e transformações na história do pensamento social
brasileiro e da constituição do Estado-nação – apontando a algumas questões que
podem ser feitas a respeito.
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O Brasil dos viajantes
A partir de meados do século XVIII, tiveram início projetos naturalistas
classificatórios, inspirados na obra do sueco Carl von Lineu e posteriormente do
alemão Alexander von Humboldt, e conduzidos tanto na Europa como em suas
colônias ao redor do mundo (cf. Stepan 2001).
No território colonial português na América, um vasto conhecimento a
respeito de animais, flores, solo e paisagens do território brasileiro era produzido e
acumulado por colonizadores, viajantes e habitantes livres ou escravizados desde o
início da colonização europeia no século XVI (cf. Ribeiro 2005, Dean 1996).
Todavia, a produção de um conjunto sistemático de conhecimentos de tipo científico
moderno se deu a partir da realização de missões luso-brasileiras pelo território, que
tiveram início com a reforma acadêmica pombalina - com a contratação do naturalista
italiano Domenico Vandelli e a criação de instituições científicas de cunho iluminista
em Coimbra e Lisboa (Pádua 2004). Devido ao protecionismo da Coroa em relação às
riquezas naturais de sua colônia, o Brasil foi mantido isolado pelos colonizadores às
missões estrangeiras até o século seguinte.
Com a mudança da corte portuguesa em 1808 para o Rio de Janeiro e a
abertura dos portos às nações aliadas em 1815, inúmeras missões naturalistas
europeias afluíram ao Brasil no que Sérgio Buarque de Holanda chamou de um “novo
descobrimento do Brasil” (Holanda 1976; Lisboa 1997:29). Muitas foram financiadas
por suas Coroas e vieram associadas a comitivas diplomáticas à nova capital. A vinda
de cientistas estrangeiros continuou no período imperial e republicano, durante a
fundação de instituições científicas brasileiras.2
Segundo Mary Louise Pratt (2008), os viajantes descreviam extensivamente os
caminhos que percorriam, ordenando o que encontravam, como as paisagens, a flora,
2 Durante o período republicano, cientistas estrangeiros produziram estudos, relatos e imaginações
sobre as paisagens do Brasil central em missões coordenadas por instituições científicas brasileiras -
que esses cientistas estrangeiros ajudaram a formar. Luis Cruls, cientista belga do Observatório
Nacional no Rio de Janeiro, participou nos anos 1890 da missão demarcatória da nova capital, que
criou a área do futuro Distrito Federal; Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês ligado à Universidade
de São Paulo, percorreu o Brasil Central nos anos 1930 em missão etnográfica; geógrafos estrangeiros
ligados à Universidade do Brasil (atual UFRJ) e ao IBGE participaram de missões na região da nova
capital durante os anos 1940; fotógrafos estrangeiros participaram da produção de imagens oficiais
durante a construção e inauguração de Brasília na virada dos anos 1950 e 60. O objetivo de meu
projeto de doutorado é discutir detidamente várias dessas viagens no que diz respeito ao ‘cerrado’, o
que será realizado nos próximos quatro anos.
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a fauna, os minérios, as culturas agrícolas – até mesmo os climas (Bailão 2014) e os
homens (Schwarcz 1993) – na forma de texto, em crônicas de viagem e relatos
científicos, e imagens, produzindo mapas, desenhos, pinturas e gravuras. As missões
multidisciplinares eram compostas normalmente de botânicos, zoólogos,
mineralogistas, desenhistas e pintores, como J. Moritz Rugendas e T. Ender.
Além da classificação, catalogação e anotação textual e pictórica da
multiplicidade de elementos e informações com os quais se deparavam, os viajantes
coletavam espécimes naturais que enviavam para museus e jardins botânicos
europeus, onde eram estudados e exibidos (Pratt 2008; Reinaldo 2014; Sevcenko
1996; Stepan 2001; Vanzolini 1996). Segundo o biólogo Mario G. Ferri (in: Saint-
Hilaire 1975 [1830]), o herbário coletado no Brasil por Saint-Hilaire, por exemplo,
continha mais de trinta mil espécimes de mais de sete mil espécies, das quais mais da
metade eram desconhecidas na época pelos naturalistas.
Para as burocracias imperiais que patrocinavam os viajantes, o interesse estava
na produção de mapas mais detalhados, exploração dos recursos naturais, como
minérios, remédios e plantas de uso comercial e prover suas jovens instituições
científicas - museus, universidades e jardins botânicos - de exemplares naturais de
todo o mundo, ao melhor estilo colecionista, classificatório aliada à empresas de
exploração comercial (Dean 1996). Para as burocracias luso-brasileira e, após a
independência, brasileira o interesse em trazer estrangeiros estava vinculada à série de
reformas acadêmicas, econômicas, tecnológicas e administrativas promovidas pelo
Estado, que criou inúmeras instituições novas, para melhorar a exploração de
produtos naturais e criar um “ambiente metropolitano” (Lisboa 1997: 29).
Especificamente em relação às paisagens, elas foram classificadas e
sistematizadas pela ciência natural a partir de tipos fisionômicos, caracterizações de
regiões segundo critérios de clima e vegetação e que aproximavam regiões distantes
entre si, mas semelhantes segundo a tipologia. Essas práticas seguiam o projeto
desenvolvido pelo naturalista Alexander von Humboldt, que traçou conexões entre a
complexidade de distribuição da vegetação a determinações topográficas e climáticas,
a partir de sua experiência na América do Sul, ordenando tipos paisagísticos
fitogeográficos (Stepan 2001). Em relação às paisagens brasileiras especificamente, o
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primeiro mapa fitogeográfico do Brasil foi produzido para a Flora Brasiliensis,
coordenado por Martius, seguindo este modelo (Fig. 1).
Sobre as paisagens que chamamos de ‘cerrado’, segundo Ricardo Ribeiro
(2005:47-49), a palavra aparece em meados do século XVIII como tipificação local de
uma vegetação específica encontrada no interior. Somente ao final do século XIX e ao
longo do XX é que a categoria vai ser expandida para indicar de forma geral toda a
paisagem do Brasil central3.
Veremos a seguir que os modos de descrição da paisagem nos relatos dos
viajantes não era generalista – eles descreviam as sucessões de paisagens específicas,
atentando-se à multiplicidade e complexidade de elementos e relações observados,
adotando nomenclaturas locais, discutindo caracterizações, problemas, riquezas e
potencialidades das paisagens. A forma generalista de classificação das paisagens
surge com a produção de mapas e imagens do território e com a produção de relatos
científicos e dedicados a um público especialista.
Voyage dans l’intérieur du Brésil
O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), foi um dos mais
conhecidos cientistas estrangeiros que visitou o Brasil, tendo produzido extensa obra
sobre e a partir de suas viagens. Segundo Pignal et al. (2013) e a página virtual sobre
o viajante no dossiê da exposição A França no Brasil (Biblioteca Nacional Digital
s./d.), Saint-Hilaire é uma figura esquecida na França, enquanto foi homenageado no
Brasil com nomes de distritos, reservas, instituições e uma exposição comemorativa
em 1979 na Biblioteca Nacional. Em 1975, Mário G. Ferri, editor da coleção
Reconquista do Brasil da editoras Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo,
cita-o, em conjunto com Martius, como o naturalista que mais contribuiu ao
conhecimento da flora brasileira (Ferri in: Saint-Hilaire, 1975a: p. XI).
Tendo crescido durante o período de ascensão do romantismo na literatura e
nas ciências naturais na Europa, foi leitor de Humboldt, Buffon, Herder e
Chateaubriand. Se formou na Faculdade de Medicina e estudou botânica no Museu de
História Natural, ambos em Paris. Veio ao Brasil em 1816 com a comitiva do Duque
3 Transformação que será um dos objetivos de meu projeto de doutorado ao longo dos próximos anos.
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de Luxemburgo, embaixador francês junta à Corte no Rio de Janeiro, e permaneceu
aqui seis anos. O Rio de Janeiro foi seu local principal de estadia e depósito de suas
coleções naturais, despachadas frequentemente a Paris, mas realizou inúmeras viagens
pelo interior e pelo litoral brasileiro (Fig. 2) – visitando, inclusive, o Uruguai.
Ao voltar para a França em 1822, começou a longa preparação do herbário e
de suas notas, observações, relatos de viagens e catalogações, publicadas na forma de
relatórios e catálogos científicos sobre botânica – Plantas usuais dos brasileiros,
Flora Brasiliae Meridionalis e História das Plantas mais notáveis do Brasil e do
Paraguai – e na forma de relatos de viagens, o Voyage dans l’intérieur du Brésil, em
quatro volumes (oito tomos), publicados entre 1830 e 1851 e conhecidos no Brasil
como oito volumes com o nome dos subtítulos – como, por exemplo, Viagem pelas
Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1975a), Viagem às nascentes do rio
São Francisco (1975b), Viagem à Província de Goiás (1975c), analisados aqui.
Nos diferentes volumes da Viagem Saint-Hilaire fez uma minuciosa descrição
e caracterização das paisagens de seus percursos, das plantas que observava e
coletava, anotando e muitas vezes criando seu nome científico, algumas vezes
incluindo seu nome ‘local’, seus usos e características sensíveis. Realizou descrições e
explicações dos tipos e causas das ‘geografia das plantas’, indicando relações entre
clima, latitude, solo e relevo para a distribuição das plantas e das paisagens –
seguindo as análises e teorias de Humboldt.
Apreendeu e utilizou as classificações e a nomenclatura criadas pelos
habitantes locais aos diferentes tipos paisagísticos, mantidos no texto original em
francês – mas mantendo seus interlocutores anônimos e quase silenciando por
completo as relações de troca de conhecimento que manteve com eles. Em relação ao
território que hoje descrevemos como ‘cerrado’ em Minas Gerais, Goiás e São Paulo,
Saint-Hilaire descreve a existência de uma infinidade de termos, como ‘matas’,
‘matos’, ‘campos’, ‘carrascos’, ‘carrasqueiros’, ‘caatingas’, ‘capões’, ‘capoeiras’,
‘capoeirões’ (Saint-Hilaire 1975a: 231-6) – sendo os cinco primeiros termos advindos
do português, e os quatro últimos de língua-geral (do tupi-guarani) (CUNHA 1997). É
um indício de que não havia uma classificação generalista da paisagem, mas sim,
específica e situada. Desse modo, os ‘sertões’ – segundo Janaína Amado (1995),
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categoria simbólica mais ampla que designava qualquer região longe da civilização –
eram caracterizados em relação à sua flora como um mosaico de paisagens alternadas.
Saint-Hilaire adotou uma oposição entre ‘matos’ e ‘campos’ – vegetação
densa de árvores e arbustos e vegetação rala de ervas – para descrever de forma mais
ampla os ‘sertões’ do interior do Brasil. Os ‘matos’ podiam ser: ‘matas virgens’, ou
‘florestas’ densas do litoral e da Serra do Mar. As secundárias, ‘capoeiras’, que
crescem após derrubada ou queimada para plantações e o abandono dessas 4 .
‘Capoeirões’, capoeiras que deixaram de ser cortadas por muito tempo. ‘Caatingas’,
as matas secas que perdem suas folhas durante a estação das secas. ‘Carrascos’,
palavra portuguesa que originalmente designava um tipo de carvalho retorcido
mediterrâneo (Ribeiro 2005), que eram a denominação das ‘florestas anãs’ de locais
elevados, com árvores e arbustos pequenos próximos entre si - e os ‘carrasqueiros’,
uma transição entre esses e a caatinga. Finalmente, ‘capões’, ‘matas em ilha’, oásis de
vegetação densa isolados em meio aos campos.
Os ‘campos’ eram a denominação geral para a vegetação rasteira do interior
do Brasil, tanto natural, coberto de ervas nativas, como artificial, quando ervas
recobriam antigas matas derrubadas ou queimadas ou eram dominados por espécies
invasoras, como o capim-gordura. Os ‘campos gerais’ eram as grandes extensões de
campos do interior do Brasil, naturais ou artificiais e que podiam ter árvores isoladas,
retorcidas e pouco desenvolvidas. Saint-Hilaire ainda indica as denominação
‘tabuleiros’ e ‘chapadas’ cobertos e descobertos – isto é, com matas ou com campos –
morros aplainados com vegetação mais ou menos densa, típicos do Planalto Central.
Ao longo de seu relato de viagem, o botânico destaca o mosaico de paisagens
e a impossibilidade de traçar limites precisos entre ‘florestas’, ‘caatingas’ e
‘carrascos’, que se alternavam sucessivamente na paisagem, em diferentes
topografias, como vales, tabuleiros, montes, brejos, várzeas. Além das sucessões
alternantes e repetidas entre elas, o botânico também indicou a dificuldade de uma
classificação muito precisa:
Sente-se, aliás, que todas essas expressões não podem ser
absolutamente rigorosas, pois as diferenças que elas indicam
4 Prática já adotada por populações tupi-guarani, de onde veio o termo, à chegada dos portugueses em
1500 e disseminada pelas populações luso-brasileiras (cf. Dean 1996).
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passam de umas para outras por gradações insensíveis. Há matas
que ninguém hesitará em denominar matas virgens ou caatingas;
não existe porém, na natureza, limites bem precisos entre as
florestas virgens e as caatingas, estas e os carrascos, e, finalmente,
entre estes últimos e o verdadeiros campos (Saint-Hilaire 1975a:
232).
Nessa paisagem, o botânico atravessou caatingas secas, para, em seguida,
encontrar oásis de bosques verdejantes em terrenos baixos, por exemplo, carrascos
cheios de flores e folhas, ou fazendas em terras abundantes. Além dos limites
imprecisos, também notou a profunda diferença entre tipos de paisagem que, apesar
da mesma denominação, conforme a mudança de localidade, apresentavam diferentes
tamanhos, espécies e relações entre plantas.
O mosaico complexo traçado pelo botânico incluem nos relatos ações,
alterações e ocupações humanas, com indicações sobre a exploração da terra, tipos de
cultivo, e degradações, notando a rápida substituição da complexa vegetação das
matas nativas por uma simples vegetação de samambaias e sapê, decorrente tanto das
queimadas e derrubadas para fins agrícolas5, como da alteração do relevo devido à
intensa mineração, como da intrusão de uma espécie não-nativa, o capim-gordura, que
não é utilizado para alimentar o gado e impede o crescimento de outras espécies
vegetais.
Saint-Hilaire esteve atento à rápida e profunda mudança das paisagens,
conforme o avanço das populações rurais em busca de novas terras e “novos
imaginários” (p. 366), deixando os “desertos” abatidos e inférteis para trás, habitações
abandonados que logo viravam ruínas – com as quais ele cruzou inúmeras vezes.
Em meio aos enunciados de estilo cientificista, de estilo naturalista,
sistematizador e classificatório, Saint-Hilaire, como outros viajantes estrangeiros e
seus relatos de viagem pelo Brasil, inseria enunciados com sentimentos – como as
caatingas secas e “tristes” – e imagens, com a do ‘deserto’. Deserto é um tema
recorrente nos relatos de Saint-Hilaire, que visitou a região do interior de Minas
Gerais durante o inverno, afligido por “calores excessivos”, quando a paisagem havia
5 O que o botânico em diversas passagens ao longo dos relatos - e diversos autores brasileiros do século
XIX – apontava como um dos maiores problemas tecnológicos do Brasil, o não-uso de arado para
fertilizar o solo com o húmus, a dependência das queimadas de mata virgem para produzir cinzas,
fertilizantes naturais, porém com o rápido esgotamento das terras e destruição da rica vegetação
original (cf. Dean 1996 principalmente, Pádua 2004 e Ribeiro 2005 para uma discussão historiográfica
dessa questão).
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sido “devorada” pela seca, a terra estava ressecada e algumas regiões dessas “tristes
florestas” não contavam nem com a presença de flores, nem insetos, nem pássaros –
que voltavam a aparecer percurso afrente, ao cruzar novas ‘matas’, ‘carrascos’ e
‘brejos’. Como apontou Lisboa (1997) em relação aos escritos de Spix e Martius, os
temas das belezas pitorescas e das paisagens infernais se alternam nos escritos dos
viajantes naturalista oitocentistas.
A ambiguidade é recorrente nas descrições e caracterizações do ‘sertão’ –
“divisão vaga e convencional determinada pela natureza particular do território e,
principalmente, pela escassez de população” (1975a: 307). Descreveu o ‘sertão’ de
Minas Gerais e Goiás como “imensos desertos”, onde, apesar da riqueza da terra, ele
encontrava ociosidade, preguiça, indolência, pobreza, tristeza, poucos cultivos.
Entretanto, cabe notar que, em meio ao que descrevia como paisagem “monótona”,
ele relata encontrar uma rica fazenda, com o maior pomar que viu em Minas Gerais
(p. 323), cultivos de plantas nativos (mandioca, milho) e exóticas (couve, uva, cebola,
alface, morango, laranja) (pp. 323-4), ou na passagem em que diz, próximo ao rio São
Francisco, que “desde o Rio de Janeiro, não vira ainda tão considerável extensão de
terreno cultivado” (p. 346).
Em meio às frequentes descrições do calor e da seca, mostrou desânimo e
tristeza frente à monotonia de uma paisagem desprovida de vida, cultura e cultivo –
apesar de, ao mesmo tempo, descrever encontros com tropas de burros (p. 330) e
habitações (p. 353) - mas também mostrou animação e curiosidade frente à
“prodigiosa quantidade de plantas diferentes” (p. 322), à beleza majestosa, e surpresa
frente ao mistério indeterminável dos brotos de folhas que surgiam na paisagem ao
final da estação seca antes das chuvas (p. 348).
Após esse breve relato, podemos ver a convivência de inspirações
‘iluministas’ e ‘românticas’ entre os naturalistas. A construção dos enunciados e dos
modos discursivos nos relatos de viagem naturalista deve ser compreendida como
uma constante relação entre narrativa científica, conduzida por um narrador-cientista
que descreve atentamente as paisagens que percorre e constantemente classifica,
nomeia, coleciona, extrai, e um narrador que descreve sensivelmente as paisagens
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com o uso constante de impressões, sentimentos, gostos, memórias de outras épocas e
lugares, analogias.
Reise in Brasilien
O botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e o zoólogo
Johann Baptist von Spix (1781-1826) fizeram parte da missão do Museu de História
Natural de Munique, patrocinada pelo Rei Maximiliano José I da Baviera, e vieram na
comitiva da Princesa Leopoldina de Habsburgo, arquiduquesa e filha do Imperador
José I da Áustria, esposa do príncipe D. Pedro de Alcântara e futura Imperatriz do
Brasil. A comitiva trouxe embaixadores e emissários de ambas as Coroas austríaca e
bávara e inúmeros outros cientistas italianos, tchecos, germânicos, além de
ilustradores e gravuristas.
Os naturalistas percorreram diversas regiões do interior do Brasil em uma só
viagem a partir do Rio de Janeiro, visitando o Sudeste, Nordeste e a região
Amazônica e publicaram seus relatos em três volumes – na edição original, havia um
volume anexo o Atlas zur Reise in Brasilien, com desenhos e gravuras. Realizaram
colecionismo intenso e dedicado ao longo do percurso, que viu resultado na obra
Flora Brasiliensis, maior coleção científica de análises e imagens sobre a flora
encontrada no Brasil feita até hoje, e na coleção de exsicatas, herbário e plantas vivas
levadas ao Museu de História Natural de Munique.
Realizam extensa catalogação dos tipos, gêneros e espécies observados e
colecionados e, como Saint-Hilaire, muitas vezes foram os responsáveis pela
nomeação científica das plantas – como o buriti (Mauritia vinifera Mart.), por
exemplo. Os buritis e outros tipos de palmeiras atraíam frequentemente sua atenção,
sendo citadas, além de classificadas, a todo o momento nos relatos e normalmente
acompanhadas de adjetivos como ‘majestosas’. Em seu retorno à Europa, Martius até
mesmo dedicou às palmeiras brasileiras uma obra científica especializada: a Historia
Naturalis Palmarum, além de inúmeras ilustrações de palmeiras, algumas do próprio
botânico e outras de artistas contratados (Beluzzo 1996: 111).
Como Saint-Hilaire, eles observaram a mesma alteração rápida e profunda da
paisagem no sertão de Minas Gerais, afetado pela mineração e pelas queimadas
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frequentes – às quais eles atribuem como causa apenas a ação do homem – e
defenderam investigação sobre a história e a geografia das plantas,
antes que a mão destruidora e transformadora do homem tenha
obstruído ou desviado o curso da natureza. Só por poucos séculos
ainda disporá a ciência de completa liberdade de ação para este
fim, e os subsequentes investigadores não mais obterão os fatos na
sua pureza das mãos da natureza, que já hoje, pela atividade
civilizadora deste país em vigoroso progresso, está sendo
transformada em muitos respeitos (1981b: 102-3).
A ambiguidade também está presente ao longo dos relatos e temas caros às
descrição românticas, como o ‘deserto’ e o ‘jardim’, são frequentes. Sobre as
paisagens do Planalto Central, eles se referiam a uma “solidão deserta”, ora um
“deserto queimado” que parecia ter sido “estarrecida pelo sopro da morte” (p. 101),
ora “campinas verdejantes”, abundantes de buritis e acácias floridas, plantas raras e
animais diversos, onde era “indescritível o encanto desta região, onde frescos bosques
alternam com extensas campinas cheias de claras fontes e de grupos de majestosas
palmeiras buritis” (p. 105). Ora os trópicos eram belos como um “jardim extenso, no
qual a natureza reuniu tudo o que a imaginação de um poeta escolheria para morada
de ninfas ou de fadas” (p. 112); ora perigosos, com rios infestados de febres, cobras,
jacarés e piranhas, matas cheias de animais selvagens. As descrições românticas da
paisagem também encontraram representação pictórica (Fig. 3), em que padrões
estéticos da composição de cenas da pintura de paisagem europeia conviviam com
poucos elementos visuais voltadas à descrição botânica e naturalista.
A paisagem do Brasil central, para eles, era complexa e múltipla, um mosaico
de ‘matas’, ‘campos’, ‘campinas’, ‘arbustos cerrados’, ‘matagais cerrados’,
‘caatingas’, ‘brejos’, ‘tabuleiros’ alternando-se sucessivamente e diferenciando-se
conforme as condições de solo e clima. Como em Saint-Hilaire, os autores bávaros se
mostram atentos às classificações locais da paisagem brasileira – e frequentemente
citam os termos locais de origem no português ou na língua geral para se referir aos
diferentes tipos de vegetação que observavam.
É importante mencionar que os naturalistas não mencionam os contextos e as
situações em que aprenderam os nomes. Os nomes são utilizados sem que sejam
apontados variações regionais de sentido e polissemias, e nem mesmo mencionam as
pessoas que lhes ensinaram as classificações. Os habitantes locais aparecem desse
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modo de maneira anônima e genérica e o conhecimento transmitido por eles é
apropriado pelos viajantes para seus interesses tipológicos.
Cabe ressaltar que a classificação generalista como o ‘cerrado’ atual – que se
refere a toda a paisagem do interior do Brasil – não estava presente nos relatos dos
naturalistas, que fizeram uso específico apenas para indicar trechos de uma vegetação
arbustiva ou florestal qualquer que se apresentava como densa 6 . A denominação
generalista usual para falar dos sertões do interior do Brasil eram ‘campos’ (Fluren).
‘Cerrado’ aparece em Viagem pelo Brasil, na tradução brasileira de adjetivos
que, no original, designavam ‘fechado’, ‘espesso’ (dichten, dürren, como em
‘arbustos cerrados’) ou o substantivo ‘cerrado’ (Dickicht, uma designação para
qualquer mata ou bosque denso, e Gestrüppe e Gebüsche, matas de arbustos), como
no seguinte trecho sobre Goiás: “na grande maioria do território (...) não existem as
altas matas, que se veem nas províncias marítimas, porém matas baixas sem folhas na
seca, cerrados e campinas” (p. 106). Provavelmente indicava uma re-tradução, pois
em uma curta obra lançada na mesma década (Martius 1824), a respeito
especificamente da caracterização dos reinos vegetais brasileiros, o nome ‘cerrado’
(serrado) aparece junto a ‘carrasco’ como uma designação da população local para
campos densos de arbustos, interrompidos por algumas árvores e palmeiras – da
mesma forma que nos relatos de Saint-Hilaire.
Entretanto, algumas generalizações classificatórias já estavam presentes no
Reise e nas imagens em desenhos esquemáticos de Martius e gravuras feitas por
artistas, presentes no volume anexo Atlas zur Reise in Brasilien. São nessas imagens
fisionômicas da paisagem que estão as primeiras informações fitogeográficas sobre o
Brasil (Beluzzo 1996: 111). Por exemplo, em uma imagem do Atlas (Fig. 4), há
esquemas, numa espécie de corte transversal das paisagens, representando as
diferenças de topografia, relevo, solo e, principalmente, cobertura vegetal, incluindo-
se culturas agrícolas, pastagens, atividades mineradoras.
Acompanhando as imagens estão indicados em legenda os ‘tipos’ paisagísticos
encontrados e gêneros brasileiros de plantas. Os marcadores escolhidos para o
desenho são os vales dos rios principais, algumas cidades, montanhas e serras
6 A origem do bioma ‘Cerrado’ também indicava a característica ‘densa’ da vegetação arbustiva e foi a
generalização de um tipo específico (tabuleiros e matos cerrados) para um geral ao longo do sec. XX.
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‘pitorescas’ – que na tradição romântica significava uma paisagem com alto valor
simbólico, observada em viagens naturalistas e artísticas e descrita por meio de
desenhos e pinturas (Lisboa 1997).
Diferentemente das gravuras encomendadas (Fig. 3), que seguiam padrões
pictóricos de paisagens europeias, esses desenhos – assim como outros, de objetos e
pinturas corporais indígenas, vestimentas e ‘cenas’ com africanos e afrodescendentes
escravizados – continham menos elementos e tinham intuito de informar visualmente
com inúmeros detalhes o leitor dos diferentes ‘tipos’ paisagísticos (ou culturais e
humanos) classificados e comentados ao longo da narrativa.
Flora Brasiliensis
Martius coproduziu com colaboradores e financiamento de várias Coroas,
inclusive a brasileira, durante o reinado de D. Pedro II, a grandiosa obra Flora
Brasiliensis (1840-1906), que continha análises e estudos de espécimes coletados no
Brasil e desenhos científicos feitos por ele e colegas. O primeiro volume, publicado
em Munique em 1840, contém o primeiro mapa fitogeográfico do Brasil, inaugurando
por aqui a forma de imaginar e visualizar o território como uma unidade geográfica,
dividido em cinco regiões naturais. Contém também cinquenta e nove estampas
fisionômicas sobre “as regiões do Brasil, descritas e representadas por imagens e a
vegetação dessa terra amplamente exposta” (Martius 1996), cuja intenção era
apresentar aos leitores imagens das diferentes regiões na forma combinações
pictóricas de elementos paisagísticos escolhidos como representativos (Reinaldo
2014:118).
Assim como era feito com regiões climáticas, em que visualizações
cartográficas reduziam paisagens a algumas poucas generalizações, o mapa
fitogeográfico do Brasil seguia o projeto humboldtiano de compreender os territórios
do mundo segundo relações entre vegetação, topografia, solo e clima, e representá-los
de forma a mimetizar as divisões geopolíticas da tradição cartográfica, por meio de
regiões coloridas delimitadas por fronteiras bem definidas e marcadas, como nos
mapas oitocentistas dos países europeus e suas colônias pelo mundo – o que difere
profundamente das caracterizações realizadas ao longo das narrativas escritas, tanto
14
por não representar o mosaico alternante de diferente tipos, como por excluir das
classificações as paisagens das pastagens, cultivos, cidades, áreas de mineração,
grandes campos de plantas exóticas profundamente misturas às vegetações nativas.
O mapa fitogeográfico foi produzido em 1852, portanto após a publicação da
primeira edição da Flora, de 1840, e foi baseado em uma carta corográfica publicada
em 1846 para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) pelo Coronel
Conrado Jacobo de Niemeyer (Martius 1996: 20) – por sua vez baseado em mapas
anteriores e expedições científicas da época. Nele, o território do Império brasileiro
foi subdividido em cinco regiões, indicando diferentes domínios naturais (as
Provinciae Florae Brasiliensis), nomeadas como ninfas da mitologia clássica e
pintado com diferentes cores (Fig. 1).
No caso das paisagens do Brasil central, a representação dividiu o território
entre Hamadryades (caatingas) ao longo do vale do Rio São Francisco, norte de Goiás
e as províncias do Nordeste, e Oreades (campos do Planalto Central) em Minas
Gerais (entre a Serra do Mar e o vale do São Francisco), sul de Goiás e interior de São
Paulo. Cada província paisagística representava uma generalização de vegetação
encontrada nas cinco regiões: por exemplo, a alternância entre ‘matas’, ‘campos’ e
diferentes tipos de vegetação arbustiva, florestal e de caatinga, foi reduzida ao grande
denominador ‘campos’. No mapa, as paisagens florísticas seguem regiões de clima-
relevo e o Brasil central foi classificado como a Regio calido-siccae (região quente e
seca), onde cresce a ‘caatinga’ e a montano-campestris (região montanhosa
campestre), dos ‘campos’.
Além do mapa, estavam as estampas fisionômicas (Tabulae Physiognomicae),
inspiradas em desenhos de Martius e outros artistas europeus que viveram no Brasil e
realizadas em gravuras – por artistas como M. Rugendas e T. Ender. As intenções de
Martius e dos organizadores dos volumes da Flores eram as de, segundo suas palavras
na página de “Explicações sobre as ilustrações”:
descrever as riquezas da flora brasileira (...). Para realizar
isto de maneira correta e mais fácil, pareceu-nos
necessário não apenas descrever com palavras as
principais variedades de plantas, mas ainda ilustrar com
desenhos as suas principais características. Assim, pois,
pelo estudo os leitores serão levados a conhecer cada uma
das plantas brasileiras como se estivessem lá mesmo, em
15
meio ao teatro da própria flora. Conduzidos por nós,
poderão percorrer com os olhos da alma os amenos jardins
daquela natureza tão pródiga, tomando contato – e temos
certeza que com imenso prazer – com aquelas plantas
como se elas estivessem vivas e exuberantes (...) (Martius
1996: p. 22).
Houve, portanto, coprodução intensa de artistas e cientistas na imaginação das
paisagens brasileiras, com seleção de tipos ideais de plantas, animais, topografia e
condições atmosféricas na composição das imagens e sua consequente influência nas
formas de visualizar e compreender o território (Diener & Costa 2013).
Sobre as paisagens dos percursos pelo Brasil central há algumas gravuras
indicativas (Fig. 5), compostas por cenas de viagem, com tropas de burros, cães de
caça, tatus e outros animais típicos, naturalistas coletando espécimes de plantas de
interesse científico, e elementos selecionados dos relatos e observações: palmeiras de
tamanho expressivo, que dominam ou centralizam a imagem, vegetação arbustiva e
árvores isoladas – estereotipando o que os próprios autores observavam e relatavam
em campo e silenciando, ao excluir das estampas sobre os ‘sertões’, elementos
humanos como fazendas, currais, habitações.
Além disso, a Flora Brasiliensis possui como acompanhamento legendas
originalmente em latim descrevendo as estampas e os catálogos botânicos – e que
foram traduzidas em 1996 para o português em uma edição do primeiro volume da
Flora no Brasil. No texto referente à gravura da estampa 23 (Fig. 5), Martius
menciona as palavras “serrado” (sic) e “carrasco” como as denominações dos
habitantes locais para essa vegetação de “arbustos”,
uma grande variedade de plantas e arbustos, densamente agrupados,
em que galhos e guirlandas de arbustos de fronde pouco sucosa,
que, bem apertados entre si e frequentemente estão ligados por
ramos circundantes de rebentos volúveis e de grinaldas de flores e
não são interrompidos a não ser raramente por uma árvore mais alta,
muito frondosa ou por uma palmeira (Martius 1996: 88).
O texto é um resumo da pequena obra em alemão Die Physiognomie des
Pflanzenreiches in Brasilien [A Fisionomia dos Reinos vegetais no Brasil] (Martius
1824), texto mais curto e generalista, porém mais especializado e destinado ao
público com interesse científico, a respeito dos tipos fisionômicos anotados e
observados durante a viagem e descritos extensivamente nos volumes do relato de
viagens.
16
Na legenda à estampa, desenhada pelo próprio Martius, está presente o uso do
recurso discursivo científico, em que a complexa paisagem percorrida pelos viajantes
é produzida textualmente e pictoricamente por meio da seleção de tipos
representativos para a classificação que o autor deseja – normalmente o foco das
imagens –, acompanhada da enumeração de espécies e seus nomes científicos,
tipologia do clima e da vegetação.
Todavia, ao lado desse recurso, o autor, mesmo em uma obra de cunho
científico especializado como a Flora, faz uso de recursos discursivos relacionados a
suas impressões pessoais, memórias e sentimentos da mesma maneira que nos relatos
pessoais de viagem. Martius, que visitou a região durante os meses de estiagem,
menciona na legenda a opressão do calor e da secura, a imensidão e a desolação da
paisagem de arbustos afastada dos “vestígios da cultura humana”. O autor até mesmo
cita um trecho de um poema de Goethe:
Mas porém quem é ele?
Entre os arbustos perde-se o seu rastro,
atrás dele fecham-se
os arbustos
as hastes da grama erguem-se novamente
o vazio o engole! (Goethe apud: Martius 1996: 88).
Paisagens imaginadas
Após a curta exposição do material, podemos elaborar algumas questões a
respeito das múltiplas formas que as paisagens assumem nos encontros entre os
viajantes e elementos mobilizados de seus percursos em suas descrições e
caracterizações posteriores.
Paisagens são vividas e imaginadas como ordenamentos e seleção de certos
elementos, então cabe analisar a produção desses ordenamentos por cientistas, artistas
e instituições, por exemplo. O que nos leva a uma atenção sobre os relatos de viagem
dos naturalistas e os percursos dos viajantes, diferentes momentos da produção e de
circulação do conhecimento, das imagens, das narrativas, dos mapas e dos estudos
científicos, sobre o campo feito pelos viajantes (cf. Beluzzo 1996, Dean 1996, Pratt
2008, Reinaldo 2014, Schama 1996, Schwarcz 2014, Stepan 2001 2011).
Cabe ressaltar a diferença de caracterização das paisagens entre os relatos de
viagens e imagens, mapas e textos curtos voltados às práticas classificatórias
17
naturalistas. Essas últimas, baseados na concepção de reinos e províncias
fisionômicos influenciaram as posteriores caracterizações nacionalistas dos territórios
(Hirsch, 1995:11) e ressoavam o ideário romântico nacionalista que padronizava
pátrias políticas e suas paisagens típicas nacionais (Schwarcz, 2014). O mapa de
Martius, por exemplo, e sua proposta de classificação do território em províncias
naturais foi tão central para a classificação do território brasileiro que influenciou
classificações e representações cartográficas científicas e estatais realizados ao longo
do século XX.
Da mesma forma que a ‘nação’ (cf. Anderson 2008), imaginada por meio de
instituições científicas e objetos (mapas, museus, monumentos, textos educacionais,
imagens), as paisagens, longe de serem espaços neutros e dados, foram ativamente
imaginadas e transformadas durante a história da formação das ciências naturais e do
Estado-nação nos últimos dois séculos. Imaginadas no sentido forte da palavra,
conforme empregada por Benedict Anderson – não como sinônimo de ‘imaginário’ ou
‘falso’, mas como construído ativamente envolvendo pessoas, instituições, objetos,
percursos e, no caso das paisagens, flora, fauna, relevo.
Categorias são sempre relacionais e as paisagens brasileiras do Planalto
Central foram imaginadas em relação ou em oposição a outras categorias, como
‘cidade’, ‘campo cultivado’, ‘civilização’, ‘floresta’ (cf. Lima 2013, Stepan 2001,
Thomas 2010, Williams 2011). Isso se deu concomitantemente à produção científica,
política e colonial de diferentes categorias espaciais de alteridade – como ‘sertão’,
‘trópicos’, ‘Oriente’, ‘campos’, ‘o mundo selvagem’, ‘Oeste’7 – territórios, simbólicos
e naturais, imaginados como ‘outros’ em relação a ‘cidade’, ‘civilização’, por
exemplo, justificando tentativas de dominação, domesticação e transformação.
Cabe nos perguntar, de que forma classificações vigente são utilizadas,
reinventadas e transformação na produção dos materiais textuais e imagéticos sobre
paisagens? Por exemplo, Spix, Martius e Saint-Hilaire partem de uma classificação
comum ao período colonial, em que parcelas do território, denominadas ‘sertões’,
eram imaginadas como ‘vazio’, ‘deserto’ por naturalistas, estadistas e pela população
7 Cabe ressaltar que esses processos possuem diferenças de origem, contexto e significado entre si e
são repletos de ambiguidades e contradições, não sendo redutíveis a explicações generalistas. Sobre
‘sertão’, ver Lima (2013); ‘trópicos’, Stepan (2001); ‘campos’, ver Williams (2011); ‘vida selvagem’,
ver Thomas (2010); o ‘Oeste’ e o ‘mundo selvagem’, ver Schama (1996).
18
urbana (cf. Lima 2013) – mesmo quando eram habitadas, percorridas e transformadas
pela ação de populações locais, como o caso do Planalto Central.
De que forma as trajetórias e as experiências dos cientistas em campo
estiveram presentes na produção dessas classificações e imagens? Quais elementos
observados em campo foram destacados e quais foram silenciados? É possível a
análise de elementos silenciados por meio dos indícios que deixaram em diferentes
relatos? Como e em que medida práticas locais, condições e composições de
paisagem (ajudantes locais, classificações locais, atividades agropecuárias e
mineradoras, viagens, percursos, estações do ano, construções, queimadas) estiveram
presentes na produção de conhecimento? Como elementos híbridos (locais, exóticos,
naturais e humanos), que alteram através do tempo e a todo instante a composição da
paisagem, se relacionam com as maneiras como ela é imaginada?
Percebemos que buscar o ‘Cerrado’ nas descrições de paisagem oitocentistas
pode nos levar a perguntas anacrônicas, pois as classificações de paisagem na época
eram outras. Entretanto, diferente de Saint-Hilaire, Martius e sua obra posterior aos
relatos têm um papel central na formação e produção do conhecimento sobre o
território brasileiro, nas imaginações criadas sobre ‘domínios naturais’ por meio de
naturalizações, simplificações e generalizações em imagens, mapas e textos. Cabe
perguntar de que forma os produtos dessas redes científicas, como o grande projeto do
Flora Brasiliensis, se relacionam a padrões anteriores e estabelecidos de produção de
imagens e narrativas? De que forma eles os desestabilizam, criando novos padrões ou
os recriam? De que forma eles influenciaram produções de conhecimento e
imaginações sobre a paisagem posteriores? Como eles são reexplorados e
reinterpretados nas atuais produções científicas sobre essas paisagens?
Essas perguntas, pensadas a partir do relato breve e introdutório exposto nesse
trabalho, pretendem guiar a realização da pesquisa ao longos dos próximos anos.
Bibliografia
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22
ANEXO - CADERNO DE IMAGENS
Figura 1 – Tabula Geographica Brasiliae et Terrarum Adjacentium. Exhibens itinera
Botanicorum [Prancha Geográfica do Brasil e de terras adjacentes, mostrando o
itinerário do botânicos] in: MARTIUS, EICHLER, URBAN (org.). 1906. Flora
Brasiliensis. Vol. I, parte I, Tabula 61. Versão digitalizada disponível em:
http://florabrasiliensis.cria.org.br/
A legenda da esquerda indica as cinco Provinciae, tipos fisionômicos da
paisagem florística brasileira de acordo com a proposta de Martius - que
corresponderiam aproximadamente aos domínios ou biomas atuais. Foram nomeadas
de acordo com ninfas da mitologia clássica: Naiades (florestas amazônicas) em verde
claro; Hamadryades (caatingas) em rosa; Oreades (campos do Planalto Central) em
amarelo); Dryades (florestas atlânticas) em verde escuro; Napaeae (campos
meridionais) em cinza. A elas estão relacionadas regiões naturais, indicadas por
nomes em latim (como Regio montano-campestris para os campos das Oreades), e
elas estão dividias entre reinos florísticos: o Império florístico brasileiro corresponde
aos campos, florestas atlânticas e caatingas; as florestas amazônicas pertenceriam ao
Império dos grandes rios Amazonas-Orinoco e os campos do sul ao Império
meridional Paraguaio-Cisandino. A cor azul tracejada indica as paisagens fluviais e
litorâneas alagadas e de várzea.
23
A legenda da direita indica em diferentes tracejados os itinerários
aproximados do viajantes naturalistas que cruzaram o Brasil. Dwyer (1955) nota que
o itinerário indicado para Saint-Hilaire continha erros.
24
Figura 2 – Sammelgebiet von Friedrich Sellow und Auguste de Saint-Hilaire (1814-
1831) in: HERTER, W. 1945 “Auf den Spuren der Naturforscher Sellow und Saint-
Hilaire”. Botanische Jahrbücher Systematik 74: 119-149. Disponível em:
http://hvsh.cria.org.br/caderno?herter
O mapa faz parte de uma série produzida por W. Herter em 1945 com os
itinerários dos viajantes F. Sellow e A. de Saint-Hilaire no Brasil, realizados em papel
transparente sobre papel, disponíveis ao final de seu artigo. No artigo ele cataloga em
uma tabela as localidades (e províncias) dos itinerários, mês a mês, ano a ano,
indicados com índice - além dos mapas.
25
O mapa acima contém todos os principais itinerários de Saint-Hilaire em terra
e mar indicados de acordo com o ano de viagem: 1816 (“16” em verde), 1817 (“17”
em vermelho) etc.
26
Figura 3 – “Serra de Itambé”, desenhada por F. W. Couven in: Spix, J. B. Von;
Martius, K. F. P. von. Atlas zur Reise in Brasilien. München: M. Lindauer. 1828, p.
1531.
Desenho de F. W. Couven – provavelmente a partir de um rascunho de
Martius. Martius correspondia-se com seus gravuristas (como Rugendas e Ender) a
respeito da produção das ilustrações do Atlas, volume anexo de Viagem pelo Brasil.
O primeiro plano está desenhado em uma escala diferente do resto da imagem,
para enfatizar seus elementos. O grupo de viajantes está iluminado e diagonalmente
em relação ao monte e ao céu. O primeiro plano indica detalhadamente cenas e
elementos escolhidos. Pela estrada segue a tropa de burros, os viajantes e seus
ajudantes (geralmente homens escravizados) que auxiliavam na pesquisa – um deles
atira em um grupo de pássaros com uma espingarda. Os elementos escolhidos são
árvores típicas da paisagem, desenhadas com detalhes – exploradas detidamente por
Martius em suas obras científicas – normalmente em pouco número de espécies e se
repetindo poucas vezes, para enfatizá-las.
Em segundo plano, com menos detalhes, está o vale com a vegetação
arbustiva dos campos gerais, árvores genéricas e uma densa floresta de um dos lados
do Monte Itambé em Minas Gerais. A cena lembra paisagens alpinas europeias,
frequentemente visitadas por artistas e cientistas europeus, retratando a fertilidade de
campos arborizados e a tranquilidade de uma paisagem compreendida aos olhos dos
leitores e do desenhista como ‘natural’, inabitada – um paraíso tropical.
Martius e Spix comparam a região com os Alpes, mas descrevem-na com
detalhes diferentes dos desenhados por Couven (1981b: p. 41-2). Segundo o relato, a
vegetação dos campos no topo vai dando lugar a vegetações mais densas, mas, ainda
assim, arbustiva e de gramíneas. No sopé da montanha, havia capões baixos nos vales
fluviais em meio aos campos gerais, planos com árvores isoladas. Por todo o lado ao
27
longo do rio, os viajantes relataram restos de cascalho lavado, resquícios da intensa
exploração de diamantes na região – o que indica profundas alterações da paisagem
da região.
Figura 4 – “Vegetations-karte, die Verbreitung des Pflanzenwuchses und der
charakteristischen Pflanzenformen in eine Theile von Rio de Ianeiro, S. Paulo und
Minas Geraïs darstellend ” in: Spix, J. B. Von; Martius, K. F. P. von. Atlas zur Reise
in Brasilien. München: M. Lindauer. 1828, p. 1531.
Esquemas paisagísticos em forma de corte transversais em duas regiões – nos
estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. A primeira região (do Rio de
Janeiro até o monte Araasoiava) ocupa os três esquemas acima, a segunda (do monte
Araasoiva até Vila Rica), os dois abaixo. Há indicações de altitude (seguindo escala
de pressão atmosférica e de “pés parisienses”), contornos do relevo e da paisagem
(principalmente vales fluviais, dos rios Tietê, Paraíba, Grande, São Francisco etc.) e
pequenos desenhos de vegetação que, segundo a legenda localizada na parte inferior
da imagem, indicam espécies, gêneros e paisagens ‘típicas’. Há outros ‘tipos’ não
indicados pela legenda, como uma pessoa (índio ou negro), sentado na beira de um
curso d’água, pedras, cidades, currais, e plantações.
Na legenda estão indicados os seguintes tipos de paisagem: ‘Campo’
(tracejado); ‘Mato virgem’ (uma grande árvore); ‘Capão’ (pequena árvore rodeada de
arbustos); ‘Manguezal’ (uma grande árvores com raízes aéreas); e de árvores:
‘Araucária’ (uma pequena araucária); ‘Palmeiras das matas’; ‘Palmeiras dos campos’;
‘Canela de ema’; ‘Árvores de samambaias’; ‘bambuzais’; ‘cactos’; ‘Paineiras do
campo’; ‘eriocaulon’.
28
Seguindo o curso longitudinal do esquema, vemos o mosaico de tipos
paisagísticos indicados pelos autores nos relatos a respeito do interior do Brasil.
Detalhe 1 da Figura 4. Um detalhe do desenho da figura acima, indicando o morro
do Itambé, o mesmo desenhado por Couven para Spix e Martius na gravura indicada
pela Figura 3.
Estão indicados em toda o desenho os ‘campos’ de ervas e gramíneas, ‘capão’
em fundo de vales, e árvores ‘canelas de ema’ e ‘paineiras do campo’ espalhadas pelo
desenho.
Detalhe 2 da Figura 4. Seguindo o detalhe para a direita, a partir do desenho
indicado para a região do monte do Itambé, vemos sucessivos desenhos indicando
trechos de ‘matas’ e ‘capões’, com bambuzais, em meio aos ‘campos’ mais extensos –
com árvores isoladas e separadas umas das outras, como no detalhe 1.
29
Figura 5. “Campi Extenso, Denso Virgulto Contecti, Prope Serra de S. Antonio in
Deserto Prov. Minarum” [Campos extensos, cobertos de denso matagal, próximo a
Serra de Santo Antônio no Sertão [Deserto] da Província de Minas Gerais] in:
MARTIUS, EICHLER, URBAN (org.). 1906. Flora Brasiliensis. Vol. I, parte I,
Tabula 23. Versão digitalizada disponível em: http://florabrasiliensis.cria.org.br/
Martius indica na legenda que a estampa é baseada em um desenho feito por
ele no dia 13 de junho de 1818, momento da viagem em que percorre o Distrito
Diamantino – mesma região que deu origem à estampa que vimos na Figura 3.
Como na estampa (Fig. 3) do relato de viagens, essa estampa trabalhava com
duas escalas, uma em primeiro plano da imagem, repleta de detalhes botânicos e
algumas ‘cenas’ típicas e outra em segundo plano, indicando relevos, marcadores
territoriais e uma generalização dos elementos. As estampas da Flora, entretanto,
possuem mais detalhes que as incluídas em Atlas zur Reise – Flora foi um projeto que
contou com orçamento, tempo e colaboradores em maior extensão do que os relatos
de viagem.
Em primeiro plano, vemos desenhos de espécies botânicas selecionadas como
típicas da paisagem, algumas palmeiras, de tamanho expressivo (lembremo-nos que
Spix e Martius se referiam a elas constantemente como “majestosas”), arbustos,
samambaias e uma pequena árvore isolada. Cenas da viagem se desenrolam com dois
cães de caça, dois tatus e um viajante a cavalo coletando. Em segundo plano, os
elementos se generalizam, a vegetação torna-se uma mancha com poucos elementos
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em destaque, algumas grandes palmeiras, as montanhas, a tropa de burros. Assim
como na Figura 3, a intenção era exemplificar elementos escolhidos para caracterizar
o que eles chamavam de “deserto”, uma região longínqua da cultura -e não
representar fielmente a paisagem conforme os relatos escritos com toda sua
complexidade.