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Caminhos e possibilidades para o brincar entre as crianças e os adultos Um relato das atividades lúdicas permanentes direcionadas às crianças de 0 a 6 anos no SESC Campinas - SP Eixo 4- Práticas Pedagógicas, Culturas Infantis e Produção Cultural para crianças pequenas. Anne Binder 1 Sandra Aparecida de Siqueira 2 Resumo Este texto traz experiências vivenciadas pela equipe de educadoras, no processo de construção, planejamento e consolidação de uma ação programática permanente direcionada às crianças de 0 a 6 anos no SESC Campinas SP. Tendo como um dos objetivos principais o fortalecimento da relação adulto-criança por meio do brincar, um conjunto de ações foi pensado, testado e (re)organizado, com vistas a superar o desafio de envolver pais, mães, avós e responsáveis pelas crianças no momento do brincar. Através da experiência prática e da troca junto às crianças e adultos, foi possível avaliar que a preparação de espaços e situações que possibilitem o livre brincar é uma das principais maneiras de estimular as crianças desta faixa etária. Considera-se, assim, que ao brincar as crianças conseguem dar os rumos e conduzir suas escolhas e que a atribuição das educadoras, neste contexto, é mediar relações, preparar situações e cenários, estimular as trocas entre as crianças e delas com os adultos. 1 Educadora equipe SESC Campinas. 2 Educadora equipe SESC Campinas. “Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós” Manoel de Barros

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Caminhos e possibilidades para o brincar entre as crianças e os adultos

Um relato das atividades lúdicas permanentes direcionadas às crianças de 0 a 6 anos no SESC Campinas - SP

Eixo 4- Práticas Pedagógicas, Culturas Infantis e Produção Cultural para

crianças pequenas.

Anne Binder1

Sandra Aparecida de Siqueira2

Resumo

Este texto traz experiências vivenciadas pela equipe de educadoras, no

processo de construção, planejamento e consolidação de uma ação

programática permanente direcionada às crianças de 0 a 6 anos no SESC

Campinas – SP. Tendo como um dos objetivos principais o fortalecimento

da relação adulto-criança por meio do brincar, um conjunto de ações foi

pensado, testado e (re)organizado, com vistas a superar o desafio de

envolver pais, mães, avós e responsáveis pelas crianças no momento do

brincar. Através da experiência prática e da troca junto às crianças e

adultos, foi possível avaliar que a preparação de espaços e situações que

possibilitem o livre brincar é uma das principais maneiras de estimular as

crianças desta faixa etária. Considera-se, assim, que ao brincar as crianças

conseguem dar os rumos e conduzir suas escolhas e que a atribuição das

educadoras, neste contexto, é mediar relações, preparar situações e

cenários, estimular as trocas entre as crianças e delas com os adultos.

1 Educadora equipe – SESC Campinas.

2 Educadora equipe – SESC Campinas.

“Que a importância de

uma coisa há que ser

medida pelo

encantamento que a

coisa produza em nós”

Manoel de Barros

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Olhares sobre a infância e o brincar

A simplicidade está presente na brincadeira. O brincar é uma forma

de explorar coisas, que independe do brinquedo. Renata Meirelles

3

Relatamos, neste texto, as experiências realizadas e vivenciadas por

parte da equipe de educadoras do Serviço Social do Comércio – SESC,

unidade de Campinas - SP, no âmbito das ações educativas e lúdicas

direcionadas às crianças de 0 a 6 anos e, especialmente, direcionadas à

primeira infância.

As ações programáticas para o público infantil no SESC SP têm como

um dos objetivos principais assegurar o brincar, sendo este compreendido

como um direito cultural da criança. Alinham-se aos objetivos gerais

propostos por esta instituição para a educação infantil4:

Reconhecer a criança como um ser que, em formação, possui uma

realidade existencial concreta e peculiar que deve ser respeitada

em sua singularidade.

Admitir que todo projeto de formação de cidadania, ainda que

voltado para o futuro, não pode prescindir dos valores do

presente, próprios do universo infantil, e com eles tem de ser

necessariamente articulados.

Reconhecer o direito da criança à formação sobre todos os

aspectos de sua existência individual e social, de modo a permitir-

lhe autoconhecimento e o domínio do meio em que vive.

Assumir a brincadeira como valor básico de toda ação educativa,

entendida como melhor forma de afirmação da identidade da

criança.

Nesta perspectiva, para além de aspectos cognitivo, motor e

intelectual que norteiam o processo de desenvolvimento infantil,

assumimos que as crianças devem ser envolvidas nas decisões que fazem

parte de suas vidas. Este é o desafio que se coloca em nossas ações. Ao

mesmo tempo, o que está no centro das intenções é o estimulo e

aprimoramento da relação das crianças com os adultos, sejam estes últimos

3 Renata Meirelles é educadora e pesquisa, desde 1994, brincadeiras de diferentes regiões brasileiras.

Idealizadora do Projeto BIRA – Brincadeiras Infantis da Região Amazônica, de intercâmbio lúdico em comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia, e autora de “Giramundo e outros brinquedos e brincadeiras dos meninos do Brasil”, livro que publicado em 2007. 4 Extraído da publicação “uma conversa sobre o SESC” Coordenação José Menezes Neto e Hélio José P.

Magalhães. (pág. 25) Março/2010.

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pais, mães ou responsáveis. Na medida em que consideramos o brincar

como a principal forma que as crianças têm para se expressar, se comunicar

e aprender, entendemos que é significativa a presença e participação dos

adultos nas brincadeiras.

Como referências conceituais e metodológicas utilizadas no

desenvolvimento das ações programáticas, destacamos PEREIRA (1997),

KISHIMOTO (1997), FRIEDMANN (1996), FREYBERGER (2000), MEIRELLES

(2009), BENJAMIM (2002). Estes autores nos auxiliam na reflexão sobre a

primeira infância, o brinquedo e a brincadeira, os espaços para o brincar, a

educação não-formal e o papel do adulto neste contexto.

Por meio destes e de outros estudos, é possível compreender que a

infância, entendida como um período repleto de particularidades e fase

significativa/determinante da vida de todos é uma construção social e

teórica contemporânea. E nem sempre foi assim.

Levamos em consideração o fato de que a história da infância é

traçada sob a perspectiva do olhar do adulto, dada a impossibilidade de as

crianças registrarem de maneira sistematizada sua própria história. Se fosse

possível dar-lhes esse papel ao longo dos tempos (às crianças que estão nas

ruas, nas casas, no campo, nas instituições, no trabalho, etc) ouviríamos,

certamente, uma diversa gama de histórias que não nos permitiria traçar

um perfil homogêneo do que é a infância, descolando-as de seus contextos

históricos e sociais (ROCHA, R.C.L. 2002).

Estudos revelam que este período da vida, hoje nomeado como

infância, historicamente, passou por diferentes entendimentos: não era

percebido em sua singularidade, por vezes desvalorizado, considerado

apenas como um momento a ser superado em direção à vida adulta. Assim,

as representações sociais sobre a infância foram diversas. E é no início do

século XX que se constrói um entendimento mais específico sobre as

crianças, seja por meio de estudos na área da biologia, seja na área da

psicologia social. Com o passar do tempo, de acordo com as transformações

sociais, econômicas e políticas, a infância ganhou relevância e as crianças

passaram a ter, perante os adultos, olhares e espaços diferenciados.

Aspectos relacionados à proteção, vulnerabilidade e, mais recentemente, o

estatuto político da infância ganharam atenção especial, seja no meio

acadêmico ou no âmbito das leis e normas sociais.

As discussões atuais contemplam aspectos antes ignorados e

consideram a criança como um sujeito de direitos: ser histórico e social, que

tem participação direta sobre o mundo em que se encontra. Criança como

produtora de cultura. “Cultura da infância”, que se estabelece nas relações

com outras crianças (seus pares), com os adultos e de acordo com o

contexto socioeconômico em que estão inseridas.

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Assim, entendendo as crianças como sujeitos e agentes, com

conhecimentos, leitura de mundo, vontade própria, que precisam ser

observadas, compreendidas e respeitadas em suas particularidades, que se

iniciou e se consolidou uma programação específica direcionada às crianças

de 0 a 6 anos no SESC Campinas, ações estas que relatamos a seguir.

Os Primeiros Passos...

Tendo como principais motivadores a demanda por projetos e

ações que contemplassem crianças pequenas, é que se iniciou um trabalho

específico de planejamento programático para as crianças de 0 a 6 anos no

SESC Campinas. O trabalho teve início no primeiro semestre de 2010,

quando chegamos para compor a equipe de educadores da unidade. Até

então, quatro educadores/as eram responsáveis pela programação infantil

da unidade, porém atuavam mais especificamente nas ações processuais

direcionadas às crianças de 7 a 12 anos.

O momento de nossa chegada coincide, portanto, com o início de

um trabalho mais explícito, cuidadoso e direcionado, que buscava

aproximar pais, mães e filhos (especialmente os bebês) de um espaço

educativo, de lazer e fruição cultural que é o SESC Campinas. O princípio

orientador do planejamento era, e ainda é, o desenvolvimento de

atividades lúdicas que envolvessem e contemplassem não apenas as

crianças na experiência do brincar, mas, também, os adultos responsáveis.

Desde então, esta programação composta por diferentes atividades

temáticas acontece diariamente, de terça a domingo, em horários

diversificados. É destinada às crianças de 0 a 6 anos acompanhadas por um

ou mais adultos responsável. Cada ação tem duração de uma hora e meia

ou duas horas, porém a participação é espontânea e as crianças, junto com

os adultos, podem permanecer o tempo que considerarem prazeroso e

proveitoso.

As atividades temáticas são diversificadas e buscam utilizar

elementos de diferentes linguagens tais como literatura, música, dança,

canto, artes, entre outras. “Histórias Animadas”, “Meus Sentidos”, “Quer

Brincar? Vem Comigo!”, “De Fora do Berço”, “Vamos Fazer Arte?”, “Som,

Música, Ação!”, “Música e Movimento para Pequeninos”, “Corpo em Ação”,

“Nosso Quintal”, “Momento Lúdico”, “Brincadeiro”, “Revirando o Baú”, são

atividades que foram, outras ainda são, desenvolvidas neste projeto desde

o ano de 2010. Cada uma delas tem propósitos, intenções e preparos

específicos, porém, todas são realizadas no âmbito de um mesmo projeto

que tem como principais objetivos: desenvolver a autonomia infantil, bem

como o fortalecer a relação adulto-criança por meio do brincar.

“É no brincar, e talvez apenas no

brincar, que a criança ou o adulto

fruem sua liberdade de criação”.

D.W.Winnicott

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Já no planejamento inicial de cada ação, observamos que uma

questão fundamental seria a preparação/organização dos espaços para o

ato de brincar. O ambiente deveria ser estimulante e potencializar da

brincadeira, de forma que as crianças pudessem se apropriar e, ao mesmo

tempo, transformar.

Grande parte da programação aqui mencionada foi realizada em

uma sala de atividades, de porte médio, com uma face toda de vidro, que

possibilita visualização externa. Trata-se uma sala multiuso, não projetada

como um ambiente para crianças de 0 a 6 anos, mas que foi preparada para

acolher esta programação.

Em algumas ocasiões, as atividades também foram transferidas

para outros espaços da unidade, por vezes mais amplos, por vezes

menores; alguns com maior e outros com menor visibilidade; o que nos

colocava sempre um desafio de readequação tanto das propostas quanto

do ambiente. Diante disto, percebemos que é sempre possível criar espaços

estimulantes para o brincar, minimamente atrativos e aconchegantes.

O preparo, portanto, tem o intuito de transformar esse lugar

comum em um ambiente acolhedor, independentemente da idade, seguro

e especialmente convidativo ao brincar. Trabalhamos com cores, texturas,

tecidos, espelhos, objetos com volumes, cores, formas e tamanhos

diferenciados, ao mesmo tempo com pouco ou nenhum brinquedo

estruturado. Por vezes, objetos mais específicos como livros, fantoches,

cordas, bambolês, ioiôs, entre outros, são disponibilizados como elementos

para impulsionar o livre brincar.

Nesse livre brincar adultos e crianças, juntos, criam, comunicam-se,

aproximam-se.

Ampliando a prática e aprimorando o

fazer

Para construirmos caminhos possíveis no sentido de potencializar a

relação adulto-criança, é importante falar sobre a nossa própria prática e

relatarmos o começo de tudo... Chegamos juntas para esse trabalho e já

tínhamos experiências anteriores com processos de educação não-formal,

que tem a ludicidade como principal instrumento de trabalho. Porém, nossa

experiência com a faixa etária em questão era reduzida e não havíamos

passado anteriormente pelo desafio de envolver pais e mães nas atividades

com os pequenos.

E esse, de fato, foi nosso grande desafio.

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O SESC Campinas possui uma grande circulação de pessoas, de

diferentes faixas etárias que buscam atividades em diferentes linguagens

como esportes, saúde e alimentação, atividades artísticas variadas, entre

outras. Ao avistar um espaço com programação “monitorada” por uma

educadora, os pais, mães ou responsáveis pelas crianças se alegravam e

logo havia o desejo de, finalmente, ter um local onde deixar suas crianças

brincando em segurança. Ambos estariam, assim, liberados um do outro

para exercerem o seu direito ao lazer, separadamente.

Para ambos, adultos e crianças, essa parecia sempre uma boa

solução.

A princípio, tivemos grandes dificuldades em por em prática as

propostas de programação, especialmente pela falta de disponibilidade dos

adultos em permanecer no espaço.

Quando chegavam, sempre abordávamos primeiro a criança, que já

adentrava ao espaço e iniciava a exploração dos encantos e das

possibilidades de brincadeiras. Enquanto isso, conversávamos com o adulto

(comumente mães e avós) e explicitávamos as intenções e objetivos:

“Entre, brinque com seu pequeno”. As respostas eram geralmente

negativas. Percebíamos uma decepção inicial em não poder simplesmente

deixar a criança; ao mesmo tempo constrangimento e a não disposição para

o brincar. Uma dificuldade em estar e se comunicar com a criança por meio

da brincadeira.

Não raro, algumas crianças cujos pais já conheciam nossos convites

ao brincar, já chegavam sozinhas, nos dizendo que estavam autorizadas a

permanecer ali, brincando conosco. No afã de colocar em prática nosso

planejamento para essa ou aquela atividade, no início dos trabalhos era

comum recebermos crianças desacompanhadas dos adultos e, é bem

verdade, nos divertíamos muito. Assim, tivemos a oportunidade de

conhecer as crianças, experimentar atividades, utilizar diferentes materiais,

linguagens. Divertimos-nos e nos frustramos com propostas que pareciam

não funcionar mas que, na verdade, apenas não aconteciam como

esperávamos.

Caminhamos desta forma por alguns meses. Poucos adultos

envolvidos no brincar. As atividades eram muito agradáveis, porém

sentíamos que a ausência dos adultos poderia ser trabalhada por nós. Era

um objetivo a ser cumprido e tornou-se um desafio.

É importante salientar que, em um primeiro momento,

elaborávamos propostas muito sistematizadas e formatadas, com etapas

bem estruturadas. Ao longo do tempo, observamos que, para essa faixa

etária, não era necessário dirigir ações sistemáticas e esperar resultados. O

próprio processo, assim como as diferentes formas de apropriação das

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propostas pelas crianças eram realmente os aspectos mais fundamentais.

As crianças sempre as conduziam para outros lados...

Tendo em vista o pressuposto de que a criança deve ser agente

condutora de seu brincar, aprendemos com elas que deveríamos deixá-las

fruir em sua imaginação e desejo diante daquele espaço e daqueles

materiais. Sem frustrações para todos nós, educadoras e crianças e em

respeito à infância e à sua cultura.

Assim, após meses de observações e avaliações, chegamos a uma

ideia simples e que se apresentou bastante significativa: mudança de

abordagem. Mudança no convite ao brincar.

Passamos então a nos dirigir aos pais. A explicação da proposta,

seguida do convite. “Quer brincar?”. As crianças só poderiam entrar e

permanecer acompanhadas. Aos pequenos que chegavam sozinhos,

explicávamos também a intenção e as convidávamos a voltar com seu

acompanhante adulto. Etapa de desconstrução para reconstrução.

Nós educadoras, não dirigíamos mais as brincadeiras. O espaço era

preparado de diferentes formas por nós e oferecido ao adulto. Ali, ele teria

a possibilidade de estar e brincar com seu pequeno, de (re)aprender a

brincar, de conhecer o modo como brincam suas crianças, de ensinar suas

brincadeiras de infância... Tudo isso e o que mais inventassem nesse

universo tão propício à imaginação.

Para nossa satisfação, mais e mais pessoas começaram a freqüentar

as atividades. Lentamente, como bom processo educativo que se propõe.

Se por um lado deixamos de conduzir as brincadeiras, por outro,

passamos a observar com mais atenção os adultos e a relação que

estabeleciam com as crianças. Inicialmente era comum apenas mães e avós,

raramente alguns pais, tentando entregar-se ao lúdico com seus filhos/as e

netos/as.

A princípio, e por muitas vezes, havia o constrangimento, algo como

“brincar é coisa de criança” ou “não sei mais brincar” ou “o que é eu estou

fazendo aqui mesmo?”. Estas eram nossas leituras sobre suas expressões; e

o adulto permanecia ali, sentado, de canto, observando alheio à quão

valiosa era sua presença ali, para as crianças e para nós.

E, aos poucos, ante a sedução da magia e do fantástico que se

descortinava a seus olhos nos movimentos das crianças, rostos adultos

passavam de uma expressão constrangida para uma expressão leve, pés

calçados passaram a pés descalços, alguns sorrisos, depois gargalhadas e

pronto,: a entrega ao lúdico começava a acontecer! Estes foram e são

momentos de muita satisfação para nós: ver os adultos se dispondo à

brincadeira. A alegria das crianças com isso é encantadora.

“/.../ aprender com as

crianças pode ajudar a

compreender o valor da

imaginação, da arte, da

dimensão lúdica, da

poesia, de pensar

adiante.”

(KRAMER, 2003, p.105)

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É fato que essa disposição total dos adultos ainda não acontece em

todos os casos, mas hoje está presente grande parte dos que participam

das atividades. Houve nesse processo alguns adultos bem “brincantes”

(como chamamos os adultos que gostam de brincar), que tiveram uma boa

surpresa ao saber que: o espaço era pra eles também, que o brincar era

livre e o convite era à família. E brincavam. E brincam. Tiveram também um

papel importante na conquista desse objetivo.

De forma a exemplificar de fato a dinâmica desta programação e as

possibilidades, registramos a seguir alguns exemplos práticos.

A atividade Corpo em ação tem como objetivo o movimento

corporal de seus participantes. É um convite a transformar o corpo em um

brinquedo. Os materiais são meios para dar complexidade a esta criação. É

uma proposta simples e que tem ótima aceitação. A composição do espaço

define o quão ricas podem ser as experiências corporais que surgirão. Uma

enorme “cama de gato” armada com elástico, sem mais nenhum outro

objeto, já é o suficiente para envolver adultos e crianças por uma hora e

meia! Ou então um espaço composto apenas por bolas de diversos tipos

(bexigas, bolas gigantes, bolas de tênis, de jornal, de futebol). Ou uma

composição desses dois. Ou bambolês. Ou cubos de espuma, grandes e

pequenos onde é possível entrar, transformar em túnel, em fantasia.

Outra atividade que compõe a programação é Histórias Animadas,

uma das primeiras propostas que criamos. Como parte de nosso processo

de experimentação e aprendizado passou por várias transformações de lá

para cá. No início a atividade era dirigida por nós, educadoras, e apenas

crianças participavam. Escolhíamos um livro ou uma estória previamente e

propúnhamos uma contação ou mediação de leitura juntamente com

alguma atividade lúdica que remetesse ao universo daquela narrativa: uma

confecção, ou uma brincadeira, ou trazíamos fantasias para uma releitura,

dentre tantas outras propostas que foram surgindo à medida que tínhamos

que criar situações que ampliassem as possibilidades de vivenciar a estória.

A mudança surge quando ao invés de dirigirmos a atividade passamos a

propor a oportunidade de o adulto contar as estórias para as crianças ou

vice-versa. Livros, fantoches, dedoches, fantasias, cartões com imagens,

dado de imagens, baralho faz de conta, colchas e almofadas coloridas

convidam o público a contar, criar ou (re)significar estórias.

Revirando o baú e Nosso quintal são propostas mais recentes, que

buscam resgatar brincadeiras populares, essas que aconteciam em espaços

como os quintais das casas, nas ruas, praças. Trazem objetos conhecidos há

muito tempo por adultos de diferentes gerações. Ao revirar o baú, adultos e

crianças inventam, resgatam e reinventam jogos e brincadeiras, com

cordas, bambolês, piões, cinco marias, jogo da velha... Um estímulo à

memória e a criatividade. Cordas e bambolês não permanecem parados em

À espera dos convidados...

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canto algum do espaço, ganham movimentos e emprestam suas formas aos

mais devidos fins. Viram amarelinhas, cobras, mangueiras, cavalinhos,

pistas de corrida. São os preferidos, de adultos e crianças. Mães e pais

tentando recordar – com o corpo – como rodar um bambolê, algumas

crianças tentam pela primeira vez. Adultos pulando corda, crianças

aprendendo a pular corda... Juntos.

Neste contexto e, ao longo do trabalho desenvolvido, além da

mudança de nossa abordagem, notamos também que o espaço deveria ser

um pouco modificado. Ele deveria ser mais aconchegante para os adultos;

ter locais específicos para guarda de seus pertences; em que pudessem

sentar-se perto das crianças e dos objetos propostos para a atividade e que

esses lhes instigassem também a imaginação e a memória corporal de seu

brincar.

E assim...

Acreditamos que foi construído, gradualmente, um caminho e uma

“identidade” para a programação destinada aos pequeninos na unidade.

Hoje, o público já possui um entendimento dos combinados,

conhece como as atividades funcionam, chegam preparados e dispostos

para estar e brincar com as crianças. Evidentemente que fazemos um

trabalho contínuo de explicitar como o nosso trabalho é desenvolvido, pois,

ainda há casos em que os adultos gostariam de “deixar” as crianças

conosco. Nestes casos, optam por não brincar e os pequenos ficam

bastante frustrados. Porém acreditamos que além de brincar com seus

pares, é sempre muito proveitoso que as crianças brinquem com os adultos

mais próximos, sejam eles familiares ou responsáveis. Isto lhes traz

segurança, aprimora os laços afetivos ao mesmo tempo em que possibilita

compartilhar e construir saberes e aprendizados.

Hoje, nos sentimos mais seguras com o desenvolvimento desta

linha de programação, e a idéia do livre brincar nos faz todo o sentido:

estimular a imaginação, a troca entre os pares, a escolha de possibilidades.

Entendemos que as crianças conseguem dar os rumos e conduzir suas

escolhas no ato de brincar, e que nossa atribuição é mediar, preparar,

estimular, incrementar, aprender.

Aqui vale dizer que, como educadoras responsáveis por este

trabalho, hoje conseguimos brincar e mediar sem dirigir as atividades a

todo o momento, o que nos é bastante prazeroso, como boas “adultas

brincantes” que somos. E isso não impede que os adultos presentes deixem

de brincar com seus pequenos, ao contrário, existe hoje a percepção de que

nós não podemos substituí-los nesse ato de brincar.

“por entre tecidos e bastidores

coloridos /.../adornado de cores em

que a cada passo as coisas mudam

de lugar, a criança é recebida como

participante” (BENJAMIN, 2002,

p.69-70)

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Ao mesmo tempo tornou-se possível sermos mediadoras e

observadoras do brincar. Nessas observações percebemos aspectos muito

interessantes: temos um público freqüentador (que sempre retorna em

dias e horários parecidos) e um público flutuante e esporádico. Se, antes,

tínhamos um número grande de mães e avós frequentando as atividades,

passamos a receber um aumento do número de pais que passaram a

frequentar o espaço. Sozinhos com as crianças ou acompanhando a mãe e o

filho. Maior número de grupos familiares envolvidos juntos no ato de

brincar.

Podemos, também, trocar experiências com os adultos presentes

nas atividades. O ambiente acolhedor e o próprio brincar parecem gerar

segurança aos adultos, que compartilham conosco diferentes experiências,

questões, soluções, alegrias e conquistas vivenciadas na criação das

crianças, trazendo reflexões muito significativas para nós educadoras.

Também tivemos a oportunidade de receber educadoras que vieram

interessadas em compartilhar experiências e ouvimos relatos de mães que

se inspiraram em algumas atividades para propor brincadeiras em casa ou

na escola que a criança frequenta. Uma delas foi uma ideia bastante

simples, em que transformamos uma caixa de papelão num tipo de “boca

do palhaço”, com buracos em forma de olhos, boca e careca, por onde

poderiam ser lançadas bolas de jornal que também foram feitas por nós. É

nossa famosa “Caixa Maluca”. Outra foi um dado de histórias, feito também

com uma caixa cúbica de papelão, onde cada face possui uma figura, que

serve de mote para a criação coletiva de uma única história.

Conclusão

Aqui vamos concluir esse relato e apenas ele, pois nossas atividades

ainda acontecem e estão abertas às transformações que se apresentem ao

longo do percurso.

No que se refere à construção da ação programática propriamente,

foi muito importante estarmos apoiadas e subsidiadas pela instituição.

Tivemos autonomia e espaço para criar, inventar, errar, acertar, refazer,

transformar. Sempre temos uma enorme oportunidade de aprendizado,

tanto por nossas experimentações, pelos momentos de estudo, pela troca

de idéias entre a equipe, pelo convívio com as crianças e com os adultos.

Por meio das experiências praticadas e vivenciadas por até o

momento, consideramos que a preparação e o cuidado com o espaço físico

para o brincar é fundamental para a realização de propostas direcionadas

às crianças, em especial às de 0 a 6 anos. Acreditamos que educadores,

“Fazer do lúdico um

espaço dialógico

entre crianças e

adultos abre a

possibilidade de

participarmos da vida

da criança e de sua

cultura como um

outro que traz

experiências, histórias,

visões e valores

distintos e, por

ocupar um outro

lugar social e olhar

para a vida sob

outras perspectivas,

apresenta modos

diversos de

interpretar e lidar

com a cultura

contemporânea”.

(SALGADO, 2008,

p.105)

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professores ou mesmo pais que queiram estar e estimular as crianças

devem fazê-los em ambientes convidativos, aconchegantes, seguros, aberto

às mudanças feitas pelas próprias crianças, que ofereça estímulos e

desafios. A utilização de objetos não estruturados nas atividades traz muita

riqueza para elas, pois estimula a imaginação e a criatividade, além de

oferecer oportunidades diversas para compartilhar e reinventar.

Ressaltamos ainda que para além de vivenciar e de rever a própria

prática; observar e aprender com o público para o qual trabalhamos foi

fundamental para o amadurecimento do trabalho. Assim, os relatos

registrados neste texto traduzem nossos olhares e impressões sobre os

caminhos trilhados e também nos aponta novas possibilidades para trilhar

os caminhos que ainda estão por vir...

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“Brincar com crianças não é

perder tempo, é ganhá-lo.”

Carlos Drummond de Andrade

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