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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CAMINHOS DO AX:
A TRANSNACIONALIZAO AFRO-RELIGIOSA PARA OS PASES PLATINOS A PARTIR DO TERREIRO
DE ME CHOLA DE OGUM, DE SANTANA DO LIVRAMENTO RS.
DANIEL FRANCISCO DE BEM
Porto Alegre, 2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CAMINHOS DO AX:
A TRANSNACIONALIZAO AFRO-RELIGIOSA PARA OS PASES PLATINOS A PARTIR DO TERREIRO
DE ME CHOLA DE OGUM, DE SANTANA DO LIVRAMENTO RS.
DANIEL FRANCISCO DE BEM
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.
ORIENTADOR: PROFESSOR DR. ARI PEDRO ORO
Porto Alegre, Maro de 2007
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Dedico esta dissertao me Chola de Ogum Mal, a Belkis, Pitufo, Javier e a
todos os membros dos terreiros da Casa Africana Reino de Ogum Mal pela
hospitalidade para com um estranho. Espero que este trabalho possa s
valorizar o projeto de vida de vocs.
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AGRADECIMENTOS
Ao longo da minha trajetria pessoal e acadmica, contei com o apoio de mais
pessoas do que sou capaz de me lembrar. Por vezes uma palavra furtiva que
desencadeia uma srie de derivaes que transformam toda a realidade. Meu
primeiro agradecimento para Marcelo Tadvald, que em 2003, em um momento
particularmente difcil para mim, insistiu para que eu participasse das reunies do
Ncleo de Estudos da Religio (NER) do Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social da UFRGS. Foi a partir de ento que esta dissertao se tornou
uma possibilidade mais concreta. Portanto, agradeo, por tudo Marcelo, porque s
o irmo que a vida me permitiu escolher.
Ademais, teo meus agradecimentos a algumas das pessoas que so, de
alguma forma, responsveis pela materializao deste trabalho:
Ao Prof. Dr. Ari Pedro Oro, pela confiana em mim depositada em tantos
momentos, pelo seu exemplo de pessoa e profissional.
me-de-santo Chola de Ogum Mal, pela disponibilidade, interesse,
pacincia e confiana para comigo. todos os seus filhos-de-santo em Santana do
Livramento, Posadas e Montevidu, pela ateno e desprendimento com que me
receberam em tantas oportunidades.
Em Santana do Livramento ainda agradeo a prof. Mestre Gladys Bentancor e
esposo Fernando Roses pela acolhida sincera, o dilogo de qualidade e a
experincia de vida que me mostrou um pouco de como so os uruguaios. E a
agradeo ao seu Srgio da Santeria Canto dos Orixs, pela gentileza e
disponibilidade de me acompanhar em algumas das minhas entrevistas.
todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Antropologia
Social da UFRGS, por me guiarem no aprendizado da Antropologia; sobretudo ao
Prof. Dr. Bernardo Lewgoy e a Prof. Dr. Caleb Farias por sempre estarem abertos ao
dilogo.
Ao PRONEX/ CNPQ que financiou a maior parte das minhas expedies pela
regio fronteiria entre Brasil, Argentina e Uruguai. Sem esse apoio, este trabalho
no teria sido possvel.
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Aos amigos e colegas de ncleo Rafael Derois, Cntia vila, Rosilene
Schoenfelder, Antnio Madalena, por todo o apoio, auxlio e interesse, meu muito
obrigado.
J. R. Saldanha e Rita Rauber por tudo que fizeram por mim, sobretudo nos
momentos mais difceis de todo esse processo.
Aos meus amigos e familiares pelo tempo de convivncia que lhes foi
subtrado, meu muito obrigado por entenderem a importncia desta pesquisa para
mim.
A minha me Ilca Cardoso de Bem, grande incentivadora de todos os meus
projetos. Te amo e espero que te orgulhes de mim.
A minha namorada Adriana, parceira intelectual, musa inspiradora e suporte
moral, sem o qual eu teria soobrado perante esta tarefa. Amorzinho, mesmo nos
longes da distncia meu amor teu.
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verdade que a antropologia estuda problemas, e no povos, como disse
Evans-Pritchard; mas seus problemas so aqueles dos povos que estuda (...) [e assim existem] problemas postos por
estes povos para si mesmos, e portanto para os antroplogos. (...) O que sempre
se passa uma negociao entre os problemas do etnlogo pessoais tanto
quanto tericos e os problemas de seus informantes, tomados em maior ou menor
medida como a expresso de um pensamento integralmente social
(Eduardo Viveiros de Castro)
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RESUMO
A conformao de comunidades dentro do processo de difuso dos sistemas
religiosos afro-brasileiros para o Uruguai e a Argentina propicia o surgimento de
famlias-de-santo transnacionais, trans-tnicas e trans-territoriais. o que ocorre na
Casa Africana Reino de Ogum Mal, com sede em Santana do Livramento (Brasil),
um ponto de partida tradicional para a transnacionalizao afro-religiosa na fronteira
do Brasil com o Uruguai. Suas filiais encontram-se em Montevidu (Uruguai) e
Posadas (Argentina), havendo ainda ramificaes em So Miguel de Tucum
(Argentina). Organizados por me Chola, membros desse coletivo percorrem,
durante o calendrio litrgico, os vrios pontos desse territrio, visitando-se
mutuamente, construindo sua religiosidade e reforando o pertencimento rede.
Busca-se aqui, atravs do mtodo etnogrfico, recompor a ambincia
experimentada durante os rituais e, ao mesmo tempo, identificar os momentos em
que os atores envolvidos performatizam tenses identitrias, na medida que, ao se
relacionar atravs de uma estrutura ritual compartilhada, acabam por a experienciar
a partir de significantes e prticas culturais informadas por outros pertencimentos,
sejam tnicos, lingsticos ou nacionais.
Palavras-chave: transnacionalizao religio afro-brasileira ritual fronteira
jogos identitrios
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ABSTRACT
The diffusion of African-Brazilian religions into Uruguay and Argentina leads to
the formation of families-in-saint which can be at once transnational, transethnical
and transterritorial. Such is the case of the Casa Africana Reino de Ogum Mal
(The African House of the Kingdom of Ogum Mal), whose headquarters lies is
Santana do Livramento (Brazil), a traditional departure point for the
transnationalization of African-Brazilian religion, on the Brazilian-Uruguayan border.
Its has branches in Montevideo (Uruguay) and Posadas (Argentina), and also links in
San Miguel de Tucumn (Argentina). Leaded by mother Chola, the members of this
collectivity cross the many point of this territory during the liturgical calendar, paying
each other visits, building their faith and reinforcing their attachment to this network.
This dissertation leans on the ethnographic method to recreate the ritual
experience. At the same time it tries to identify moments in which the actors perform
their identitary tensions. Although sharing the same ritual structure each actor
experiences it from significants and cultural pratiques informed by different
attachments, be they ethnical, linguistic or national.
Key-words: transnationalisation African-Brazilian religion ritual border identity
role-playing
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: Brasil, Uruguai e Argentina:Territorializao da rede de terreiros vinculados me Chola de Ogum Mal 2006........................................................p. 12 Figura 2: Seu Srgio e esposa................................................................................p. 22 Figura 3: Me Chola ...............................................................................................p. 27 Figura 4: Dois caboclos...........................................................................................p. 34 Figura 5: Fachada de templo em Rivera.................................................................p. 40 Figura 6: Homenagem me Chola.......................................................................p. 45 Figura 7: Exus durante o Pai Nosso.......................................................................p. 53 Figura 8: Batizado do filho de Beatriz.....................................................................p. 64 Figura 9: Afresco em Montevidu...........................................................................p. 74 Figura 10: Esttua de Iemanj na Rambla..............................................................p. 76 Figura 11: Marca de fronteira entre Santos............................................................p. 77 Figura 12: Ritual para Iemanj................................................................................p. 79 Figura 13: Me Chola e alguns filhos montevideanos..........................................p. 87 Figura 14: Frente do terreiro de Posadas...............................................................p. 94 Figura 15: Ritual para Oxum...................................................................................p. 97 Figura 16: Presos de obrigao..........................................................................p. 101
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SUMRIO
INTRODUO.....................................................................................................................................p. 6 CAPTULO 1: EXPERINCIAS RELIGIOSAS E SOCIAIS NUM TERREIRO EM SANTANA DO LIVRAMENTO......................................................... p. 17 1. O primeiro contato..........................................................................................................................p. 17 2. No Canto dos Orixs......................................................................................................................p. 20 3. Na Casa Africana Reino de Ogum Mal........................................................................................p. 22
3.1. A histria de me Chola...................................................................................................p. 26 4. Ampliando a rede...........................................................................................................................p. 30 5. Minha primeira sesso de Umbanda..............................................................................................p. 31 6. Um cavalo bailarino........................................................................................................................p. 39 7. Conversa franca.............................................................................................................................p. 41 8. Com os Santos...............................................................................................................................p. 42 9. A Quimbanda das almas................................................................................................................p. 49 10. Obrigao de mata a la pampa....................................................................................................p. 57 11. Fabiano, o interior e o exterior......................................................................................................p. 65 12. As histrias de Tita.......................................................................................................................p. 68 CAPTULO 2: ILHAS NO EXTERIOR...............................................................................................p. 73 1. A Montevidu afro-umbandista.......................................................................................................p. 73 2. Saudao a rainha do mar no Ro de la Plata................................................................................p. 76 3. Na Playa Ramrez..........................................................................................................................p. 81 4. Transnacionalizao afro-religiosa, mate e culinria.....................................................................p. 82 5. Preparando ebs para uma quinzena............................................................................................p. 85 6. Batuque em Montevidu.................................................................................................................p. 87 7. Em Posadas...................................................................................................................................p. 92 8. Um presente para Oxum................................................................................................................p. 93 9. Uma festa de Quimbanda transnacional........................................................................................p. 98 10. Obrigao de Batuque em Posadas...........................................................................................p. 100
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11. O calendrio religioso.................................................................................................................p. 103 CAPTULO 3: TRANSNACIONALIZAO: NA FRONTEIRA, OS JOGOS IDENTITRIOS........p. 106 1. Condies scio-histricas-espaciais da regio fronteiria..........................................................p. 106 2. A transnacionalizao afro-religiosa transfronteria para os pases platinos...............................p. 110 3. A identidade afro-religiosa e os fatores constituintes da sua transnacionalizao .....................................................................................................................p. 111
3.1. O projeto de vida religioso e territorial de me Chola de Ogum Mal ...........................................................................................................................p. 112
3.2. O ethos e viso de mundo propostos na experincia ritual afro-religiosa .........................................................................................................................p. 117
3.2.1. Consideraes sobre o conceito de ritual.................................................p. 118 3.2.2. A Aliana atravs do sacrifcio, uma perspectiva ritual.............................p. 123 4. Os jogos identitrios na microssociologia das interaes de uma rede religiosa transnacional..................................................................................................p. 131 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................................p. 138 REFERNCIAS................................................................................................................................p. 143
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INTRODUO
Esta dissertao versa sobre o processo de transnacionalizao das religies
afro-brasileiras para os pases platinos, pela fronteira Brasil Uruguai, a partir do
projeto territorializado da rede de terreiros Casa Africana Reino de Ogum Mal, que
tem a sua principal sede na cidade gacha de Santana do Livramento. O foco
investigativo desta pesquisa centrou-se na questo dos jogos identitrios
performatizados pelos membros de tal comunidade religiosa, sobretudo nos
momentos rituais.
Em 2003, recm graduado em Cincias Sociais, fui convidado a participar das
reunies do Ncleo de Estudos da Religio (NER) do Programa de Ps-Graduao
em Antropologia Social da UFRGS, coordenado pelo professor Dr. Ari Pedro Oro. Ao
me aproximar do temrio da Antropologia da Religio , trazendo como bagagem uma
infncia em Uruguaiana, cidade na fronteira com a Argentina, e um interesse pela
histria da regio platina, fui apresentado pelo professor Ari aos estudos sobre a
transnacionalizao afro-religiosa. Deste encontro derivou a pesquisa que embasa o
presente trabalho.
Entre 18 e 30 julho de 2005 fiz uma viagem exploratria pela fronteira gacha.
Dos terreiros contatados nas cidades de Santana de Livramento (BRA), Rivera
(URU) e Uruguaiana (BRA), Paso de Los Libres (ARG), a Casa Africana Reino de
Ogum Mal se destacou como um bom exemplo de rede religiosa transnacional, na
medida em que a me-de-santo relatou realizar um itinerrio ligando as vrias sedes
do seu terreiro, conformando um projeto transnacional bem sucedido. No primeiro
encontro com este grupo estive no terreiro de me Chola em Santana do Livramento
em trs oportunidades, nos dias 20, 22 e 23 de julho. Desde de ento realizei vrias
expedies as cidades em que se encontram esses terreiros, onde visitei e
permaneci nos mesmos, como exposto abaixo:
2 visita, em 27 de agosto de 2005, ao terreiro de Santana do Livramento;
3 visita, em 01 de novembro de 2005, ao mesmo terreiro;
4 visita, entre 08 e 11 de dezembro de 2005, ao terreiro de Posadas;
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5 visita, entre os dias 21 e 31 de janeiro de 2006, ao terreiro de Santana do
Livramento;
6 visita, entre os dias 02 e 05 de fevereiro de 2006, ao terreiro em
Montevidu;
7 visita, entre os dias 20 e 23 de abril de 2006, ao terreiro de Santana do
Livramento;
8 visita entre os dias 06 e 11 de setembro ao terreiro de Posadas.
Esta dissertao a primeira sistematizao mais densa, mais reflexiva, dos
dados que venho coletando ao longo destes 18 meses de pesquisa. Como este um
trabalho em processo, pretendo continuar aprimorando o meu entendimento sobre
este objeto e aprofundar a investigao de vrias dimenses do mesmo com as
quais tive contato durante a observao participante. Tambm pretendo desenvolver
e ampliar em futuras pesquisas os desdobramentos aqui apontados sobre o tema da
transnacionalizao de sistemas religiosos.
Dado o cunho antropolgico desta pesquisa, tenho lanado mo de
metodologias consagradas na tradio disciplinar, compreendendo as questes
propostas a partir de um olhar, uma escuta e uma escritura antropolgica,
parafraseando Roberto Cardoso de Oliveira (1996). Portanto, realizar esta pesquisa
consistiu em vivenciar a observao participante (BECKER, 1999) e a experincia
afetiva junto aos grupos e locais onde se realizam essas manifestaes religiosas,
que permitem que os cdigos estruturais e estruturantes de suas concepes sejam
definidos, atualizados, re-significados e propagados.
Cada objeto de pesquisa requer uma abordagem diferenciada por parte do
pesquisador. Dentro de uma relao que deve primar pela comunicao, o
antroplogo se empenha na realizao profcua do encontro com os grupos e
pessoas envolvidas. Tenses, conflitos e dilaceraes vivenciadas no campo
parecem ser, no entanto, uma realidade em qualquer pesquisa antropolgica. Estes
problemas podem variar de acordo com o tema, evidentemente, mas podem ser
melhor ou pior vivenciados em consonncia com o comportamento do pesquisador.
A forma de insero, de estabelecimento de um mnimo grau de intimidade entre as
partes, pesquisador/ pesquisado, antroplogo/ outro, deve ser levada em conta, a fim
de proporcionar o desvelar de sentidos mais profundos, mais aproximados da
realidade de percepo e de cognio dos sujeitos.
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Para mim a questo mais difcil durante o perodo de confeco desta
dissertao foi o da escritura etnogrfica, no s no que se refere aos jogos de poder
que essa escrita materializa (CLIFFORD, 1998). Sei que essas relaes permeiam
todo o texto, porque todo o texto representao e toda a representao est no
lugar do que se quer representar, re(a)presentando o objeto a partir de um ponto de
vista impregnado pelo projeto do pesquisador (RAFFESTIN, 1993; SILVA, 2000).
claro que uma srie de expedientes de construo textual podem me ajudar a
problematizar, e em certo nvel, apaziguar esta questo. Entre os inmeros autores
que tematizam a questo, James Clifford (1998) advoga a construo de um texto
etnogrfico cada vez mais polifnico. Vagner Silva coloca claramente a grande
questo que me assalta:
Como transpor, entretanto, a riqueza, a complexidade, as difceis negociaes de significados ocorridas entre antroplogo e grupo pesquisado, enfim toda a srie de problemas e situaes imponderveis que surgem durante a realizao do trabalho de campo, para a forma final, textual, da etnografia, sem perder de vista aspectos relevantes do conhecimento antropolgico como o prprio modo pelo qual este produzido? (SILVA, 2000, p. 118).
claro que o mtodo etnogrfico um instrumento epistemolgico coerente
para construir as tramas e redes de relaes nas quais transparecem as aes dos
homens (ECKERT, 1998, p. 12-13). Mas como adequar tanta vida em cento e
poucas pginas e ainda fazer uma srie de cruzamentos entre esta experincia e as
experincias, mediadas pelo texto, de outros antroplogos que estudaram assuntos
prximos ao meu?
Entre os instrumentos necessrios ao antroplogo, a teoria, como nos mostra
Lvi-Strauss (2003), aquela capaz de realizar o colamento e a
complementariedade entre o significante disponvel (que nomina o concreto) e o
significado penetrado (o que se desvela como ontolgico a esse concreto). O
pensamento simblico estabelece ou constri parcialmente essa correspondncia, na
forma de significantes flutuantes, que adequam respostas inventadas s
proposies problematizadas por dada comunidade (Lvi-Strauss, 2003). Contudo
no se pode negar que, com maior ou menor grau de colamento realidade: 1. as
explicaes nativas esto na base das prticas dos nativos, podendo ser
identificadas nas aes individuais; 2. o fato de que explicaes e prticas so
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relativas a instncias histricas, sociais e naturais, antes de mais nada, elas so
relacionais para com os outros membros deste grupo, outros grupos humanos,
outros seres, a dinmica real dada, a realidade concebida. Assim, quando pensamos
sobre as construes simblicas humanas, pelo ponto de vista antropolgico, pelo
menos de uma antropologia como pensada por Lvi-Strauss:
[...] No podemos jamais estar seguros de havermos atingido o sentido e a funo de uma instituio se no pudermos reviver a sua incidncia sobre uma conscincia individual. Como esta incidncia parte integrante da instituio, toda interpretao deve fazer coincidir a objetividade da anlise histrica ou comparativa [como essa instituio exerce sua influncia concretamente] com a subjetividade da experincia vivida [como sentida, interpretada, a ao desta instituio] (LVI-STRAUSS, 2003, p. 15).
Neste ponto da empresa antropolgica a teoria se une ao mtodo etnogrfico,
que busca recriar a subjetividade da experincia vivida pelo outro. Na construo
dessa escritura etnogrfica tentarei recompor um pouco da ambincia experimentada
durante os rituais que participei, o clima encantatrio totalizante que busca
prescritivamente reviver pensamentos e paisagens mticas associadas cosmogonia
das tradies sudanesas onde, performaticamente, apresentam-se as tenses
identitrias entre os atores envolvidos na medida em que, apesar de relacionarem-se
atravs de uma estrutura ritual compartilhada, a experienciam a partir de
significantes e prticas culturais informadas pelos seus pertencimentos anteriores
(LEACH, 1996; SAHLINS, 1997). Assim, o ritual converte-se, diante de um olhar
informado antropologicamente, em metacomentrio sobre as dinmicas de criao,
manuteno e transformao dos cdigos de organizao social de determinado
grupo, pois, como escreveu Roberta Peters em relao as festas de casamento de
famlias palestinas no Rio Grande do Sul:
H um aspecto do ritual que o da expressividade cnica e [...] ele coaduna coisas, smbolos e situaes que podem ser incongruentes [...] somente no ritual, estas incongruncias so expressas publicamente e convertidas em algo inteligvel e ao mesmo tempo polifnico (Peters, 2006, p. 70).
Nesta pesquisa busco entender o que significa ser praticante de religies afro-
brasileiras na zona de fronteira entre Brasil, Argentina e Uruguai. Abordarei
problemas relativos s categorias identitrias destas pessoas. Como se estruturam e
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hierarquizam-se as diversas identidades das quais esses sujeitos so portadores?
Como se relacionam as identidades tnicas, nacionais e religiosas em contextos
rituais transnacionais?
Como tcnicas de pesquisa utilizadas nessa trajetria investigativa, servi-me
da j referida observao participante, do registro fotogrfico, escrito e de udio dos
rituais e de outros eventos de sociabilidade do grupo pesquisado, de entrevistas
semi-estruturadas de carter aberto. Tais instrumentos parecem ser os que melhor
possibilitam compreender, nas trajetrias individuais e sociais (VELHO, 1999) dos
sujeitos envolvidos, determinadas questes preservando o universo discursivo de
cada interlocutor narrativa, biografia e histria de vida (DEBERT, 1986) e de cada
experincia religiosa apresentada, tambm, a partir de relatos.
A pesquisa apresentada nestas pginas justifica-se, primeiramente, pela atual
importncia dos estudos de fenmenos transnacionais como limitadores,
descentralizadores e redimensionadores de vrios pertencimentos a unidades
socioculturais, polticas e econmicas (RIBEIRO, 2000), sobretudo em relao aos
Estados nacionais.
A temtica da transnacionalizao religiosa no propriamente uma novidade
para os cientistas sociais brasileiros, argentinos e uruguaios, visto os vrios trabalhos
que se debruaram sobre o processo de transnacionalizao religiosa afro-brasileira
e neopentecostal para os pases do Prata pela fronteira gacha. Contudo,
certamente ainda h muito a ser pesquisado sobre este tema, tanto no que diz
respeito as suas redes constituintes quanto a sua estruturao sociolgica e aos
seus contedos e operadores simblicos. Acredito que esta pesquisa pode contribuir
enquanto registro antropolgico de um determinado momento do processo de
territorializao de uma comunidade religiosa formada em e a partir de Santana do
Livramento, historicamente reconhecida como um dos principais centros de difuso
das religies afro-brasileiras para os pases platinos, e dos jogos identitrios
engendrados dentro deste processo.
Por fim, esta pesquisa ganha relevncia ao debruar-se sobre a constituio e
atual dinmica de um processo de transnacionalizao religiosa que ocorre entre
Estado-Naes perifricos, dentro das classificaes poltico-econmicas do sistema
mundial e entre redes de sujeitos no-hegemnicos, com intensas prticas
transnacionais pouco documentadas, aliceradas em uma estrutura religiosa ritual de
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matriz sudanesa (ou melhor dizendo, de matriz etno-lingstica ioruba). Dirigir o olhar
para tais processos buscar entender os fluxos alternativos e subterrneos que,
existentes dentro da prpria modernidade, no assemelham-se s foras de
homogenizao desta, mas, ao contrrio, so foras de heterogenizao (RIBEIRO,
2000), fenmenos de resistncia e ressurgimento tnicos contra a lealdade terminal
ao Estado, uma lealdade onvora das possveis lealdades alternativas (SANTOS,
2000).
A transnacionalizao religiosa, como bem definiu o professor Ari Pedro Oro,
remete propagao sobretudo de bens e necessidades simblicas, que ocorre
margem do aparato estatal (Oro, p. 18). Assim, o processo de transnacionalizao,
apesar de existir dentro dos territrios estatais e ser praticado por cidados dessas
naes, nada tem a ver com os interesses do Estado-Nao. Pode-se citar alguns
tipos de transnacionalizao religiosa, a) a partir de fluxos migratrios, b) atravs do
deslocamento transfronteirio e c) atravs da circulao miditica internacional de
certas idias religiosas. Segundo Ari Oro:
A implantao das religies afro-brasileiras nos pases do Prata obedece preferencialmente a um modelo feito de [...] deslocamentos e viagens de agentes religiosos, fiis e interessados pela religio, entre Brasil/Uruguai/Argentina, sem a fixao definitiva em outro pas (ORO, 1999, p. 70).
Nessa forma de transnacionalizao a ultrapassagem das fronteiras dos
estados nacionais e pode gerar comunidades nas quais os sujeitos, instituem redes
familiares, religiosas, de solidariedade e reciprocidade e compartilham identidades
coletivas.
Dentro do processo transnacional afro-religioso, o ritual, enquanto uma
linguagem que se encontra colada a toda a ao produzida comunitariamente,
configura-se como espao e tempo privilegiado tanto para o exerccio e a construo
da identidade do grupo, quanto para a problematizao dos mltiplos pertencimentos
em que os atores desta comunidade foram socializados anteriormente, como o
pertencimento tnico, nacional, geracional, de gnero, lingstico etc. O ritual revela
tenses entre foras identitrias centrpetas, aglutinadas em torno da identidade
religiosa compartilhada, e centrfugas, outros pertencimentos que afastam os
indivduos de uma experincia mais completa da identidade religiosa. Estas linhas de
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fora atravessam todos os lances dos jogos identitrios experienciados neste coletivo
natureza-cultura (LVI-STRAUSS, 1982; LATOUR, 1994), ou seja, os humanos e os
seres espirituais do panteo religioso da Linha Cruzada.
No caso da comunidade religiosa de Linha Cruzada Casa Africana Reino de
Ogum Mal, passa-se que (1) esta uma comunidade sediada no em um nico
terreiro, mas em vrios terreiros que se territorializam por trs pases (vide figura 1),
tendo como sede o de Santana do Livramento (BRA) e como filiais de destaque
aqueles localizados em Montevidu (URU) e Posadas (ARG), articulando ainda dois
terreiros localizados em So Miguel de Tucum (ARG); (2) Esta rede de terreiros
organiza-se em torno da me-de-santo Chola de Ogum e conta com filhos-de-santo
brasileiros, uruguaios e argentinos que circulam pelos trs terreiros, agregando-se
sob a identidade de praticantes desta religio e criando entre si toda uma economia
de trocas simblicas, que tem no ritual o seu mercado, que ora performatiza as
diferenas, sobretudo nacionais e tnicas, dos diversos atores envolvidos, ora
investe na expresso da aliana identitrio-religiosa existente nesta comunidade; (3)
Assim, tendo diferentes terreiros em diferentes cidades, que por sua vez, esto em
diferentes pases, me Chola estruturou o calendrio litrgico de sua comunidade de
forma que determinados rituais prioritariamente devam ser praticados em
determinadas cidades, criando um circuito ritual transnacional que organiza e
possibilita a existncia da comunidade materializada nesta rede de terreiros.
Figura 1: Brasil, Uruguai e Argentina:Territorializao da rede de terreiros vinculados me Chola de Ogum Mal 2006.
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As religies afro-brasileiras tm uma histria antiga, pois existem relatos de
cultos africanos sendo praticados em terras brasileiras j em meados do sculo XVII,
os chamados Calundus Coloniais. Mas realmente no sculo XIX que, com a
urbanizao crescente e o maior contingente de negros livres, cresce
significativamente o nmero desses grupos, que tem suas capacidades organizativas
aumentadas, se transformando, com o tempo, de clulas de resistncia religiosa
africana em instituies religiosas afro-brasileiras. Nos primrdios dessas religies o
que estava em pauta era a superao das diferenas, polticas, culturais e religiosas
entre os escravos negros, oriundos de diversos grupos tnicos, em prol da
continuidade do exerccio religioso de forma similar a dos sistemas africanos
(SILVEIRA, 2005).
Essas religies constituem um sistema religioso complexo, que abrange desde
variaes regionais1 do culto aos orixs, mais prximo da matriz religiosa africana,
cujos exemplos incluem o Candombl, Batuque, Tambor de Mina do Maranho,
Xang do Recife etc, at religies sincretizadas com o espiritismo Kardecista e o
catolicismo (que o caso da Umbanda), passando pela mistura de algumas dessas
vertentes (como acontece com a Linha Cruzada ou Umbanda Cruzada), na qual os
praticantes participam de rituais de Batuque, Quimbanda e Umbanda; por sua vez, a
Quimbanda uma linha ritual, ramificada da Umbanda, na qual se reverenciam
espritos do tipo trickster, chamados de exus e pombagiras. Na Linha Cruzada,
apesar das especificidades de cada uma dessas religies, alguns elementos so
fixos e aparecem em todas variantes, revelando um padro cultural. Todas essas
religies compartilham, em maior ou menor grau, elementos lingsticos, rituais,
mticos e simblicos de ascendncia sudanesa entre os quais destacam-se as
prticas ligadas ao ax (fora vital); a possesso, ou incorporao, das entidades no
crente e a ritos iniciticos e sacrificiais (CORRA, 1988; ORO, 1999).
No Rio Grande do Sul, sabe-se que pelo menos desde meados do sculo
XIX se pratica o Batuque, originrio das nucleaes negras de Rio Grande e Pelotas
sendo portanto uma religio nativa do estado. Desde sua origem pode-se perceber a
1 Essas variaes devem-se principalmente a dois fatores: a ascendncia dos diferentes grupos africanos que chegaram ao Brasil (Banto, Jje, Nag etc.), mas que j tinham uma matriz religiosa compartilhada na frica e adaptaes locais na constituio destes cultos nas diversas regies do pas.
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necessidade de uma configurao trans-tnica para sustentar a manuteno dessa
tradio religiosa, como aponta Norton Corra:
Apesar do pequeno nmero de sudaneses, o Batuque manteve-se graas estrutura slida e do alto nvel de articulao interna do modelo jje-nag. Mas contribuiu sem dvida para isto um nmero significativo de participantes e a supe-se o ingresso de no-sudaneses pois do contrrio no se sustentaria como manifestao. Entretanto, este ingresso no resultou, ao que tudo indica, em grandes influncias banto no ritual. Pelo fato de ter cooptado negros de origens tnicas diversas, pode-se dizer que teria atuado no passado, como importante fator de identidade para as grandes massas negras urbanas de todas as origens tnicas, no Rio Grande do Sul (CORREA, 1988, p. 7071).
Atualmente, conforme relatos de informantes2, o campo afro-religioso do
estado dominado pela linha cruzada e prevalece no batuque a nao (tradio)
Ijex, ou a mistura desta com a nao Jje.
Na fronteira gacha, as religies afro-brasileiras comeam a ser praticadas
com maior visibilidade nas primeiras dcadas do sculo XX, difundindo-se, a partir
da, pelos territrios uruguaio e argentino. No Uruguai sabe-se da existncia de
terreiros em Artigas, desde 1936 e na capital, Montevidu, desde 1942. No entanto, o
processo de transnacionalizao afro-religiosa para os pases platinos s se
intensificou em meados da dcada de sessenta, quando abriram portas os primeiros
terreiros em territrio argentino (CORREA, 1998)3.
Santana do Livramento tornou-se uma das principais cidades na rota de
difuso das religies afro-brasileiras pelo espao platino. L viveram e trabalharam
dois dos principais responsveis pela expanso da Linha Cruzada, pai Joo do Bar,
porto-alegrense, e me Teta de Oxal, esta santanense e filha-de-santo do primeiro.
A transnacionalizao foi por eles impulsionada, seja atravs de viagens peridicas
ao Uruguai e Argentina, seja pela iniciao de inmeros fiis uruguaios e
argentinos, principalmente na Nao (PI HUGARTE, 1993b; ORO, 1999). Ainda hoje
2 Esses relatos foram colhidos em diversos terreiros de Porto Alegre e do Interior do Rio Grande do Sul. Posteriormente essas observaes foram confirmadas, em uma comunicao pessoal, pelo prof. Dr. Ari Pedro Oro. 3 Para outras anlises sobre o incio do processo de difuso das religies afro-brasileiras para o
Uruguai e a Argentina, consultar os textos de Alejandro Frigrio (1998) e Rita Segato (1998).
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trabalham em Santana do Livramento muitos pais-de-santo contemporneos e/ ou
descendentes desses personagens histricos. Me Chola de Ogum Mal, por
exemplo, por um certo tempo esteve no grupo de um filho-de-santo de Joo do Bar,
tendo sido iniciada por este no Batuque.
Esta dissertao composta por trs captulos. Os dois primeiros so
etnogrficos. No captulo inicial eu abordo a minha percepo da fronteira, como
materializada na prpria espacialidade das cidades de Santana do Livramento e
Rivera, bem como descrevo os eventos relativos aos rituais que assisti nas 1, 2, 3,
5 e 7 visitas que realizei a sede brasileira da Casa Africana Reino de Ogum Mal,
em Santana do Livramento. Nestas visitas eu acompanhei uma sesso de Umbanda,
uma quinzena de Batuque, um ritual de Quimbanda para o dia dos finados, a
obrigao de mata na Umbanda deste terreiro e a obrigao de Batuque pela festa
de Ogum. Minha narrativa enfatizar o contexto e as enunciaes das pessoas e
suas entidades em que pude identificar a performatizao das tenses resultantes
dos jogos de identidades entre os membros desta rede, quando territorializada no
seu principal terreiro.
No segundo captulo descrevo, alm dos rituais realizados nos terreiros de
Posadas e Montevidu, um pouco da cena religiosa afro-brasileira nestas cidades, da
estrutura de deslocamento entre os terreiros desta rede e apresento registros das
horas de cio, sociabilidade e aprendizado que ocorrem entre os momentos rituais,
mas que so to fundamentais para a coeso e reproduo deste grupo quanto os
ltimos. Tambm aqui a nfase se coloca sobre os jogos identitrios que acontecem
nestas outras estaes da rede transnacional constituda e percorrida por me Chola
e seus filhos-de-santo.
No terceiro captulo, procurei organizar uma anlise antropolgica que
permitisse entender o processo de transnacionalizao das religies afro-brasileiras
a partir da regio fronteiria, na qual uma estrutura social compartilhada permite o
atravessamento dos bens simblicos e elementos identitrios diacrticos deste
sistema religioso para o espao platino, usando da rede familiar e de sociabilidade da
me Chola para conectar os terreiros geridos por ela em um territrio em rede,
tramado sobre o mesmo espao em que territorializam-se outros projetos de outros
grupos e portanto, competindo com outras territorialidades e outros elementos
identitrios culturais (oriundos dos pertencimentos lingsticos, tnicos e nacionais).
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No entanto, existe a manuteno da comunidade transnacional, pela existncia de
uma forte identidade religiosa, estruturada por uma perspectiva ritual organizada a
partir do ethos e da viso de mundo deste sistema religioso. Neste contexto de
transnacionalizao o ritual torna-se a esfera onde se desenrolaram jogos identitrios
que ora buscam dirimir as diferenas, ora buscam ressalt-las, de forma que as
diferenas entre os atores se problematizam na interao ritual e acabam a
transformando.
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CAPTULO 1 Experincias religiosas e sociais num
terreiro em Santana do Livramento
O relato que segue trata dos contatos por mim realizados em Santana do
Livramento e Rivera. Entre os vrios momentos sociais, privilegiei os rituais
realizados na Casa Africana Reino de Ogum Mal, no para analis-los apenas
enquanto prticas religiosas, mas enquanto espao e tempo privilegiados para a
performatizao de elementos significativos, de convergncia, dissenso, conflito e
apaziguamento das tenses advindas da configurao particular do grupo social em
questo: o jogo de identidades sociais, religiosas, tnicas, nacionais desse grupo
multi-tnico e transnacional. As tenses resultantes da especificidade deste grupo
aparecem nas falas dos atores, assim como nas palavras de suas entidades por
ocasio dos rituais, como se ver.
1. O primeiro contato
Na segunda-feira, dia 18 de julho de 2005, cheguei em Santana do Livramento
s cinco horas da manh, vindo de Porto Alegre, acompanhado de Adriana4, depois
de uma viagem de mais de 500 quilmetros, percorridos em quase sete horas de
nibus. Fazia muito frio. Saindo da rodoviria, como no tnhamos muita certeza do
rumo a tomar para chegar ao hotel em que ficaramos hospedados em Rivera fomos
nos informar com um senhor de tez morena, comum aos tipos fronteirios, que
estava acendendo um cigarro um pouco mais adiante. Ele disse que deveramos
subir em direo Praa Internacional e cruzar a Linha; a calle que procurvamos
era a primeira paralela direita desde a principal, a avenida Sarandi; seu portugus
era carregado de hispanismos e, por isso, presumi que ele fosse uruguaio.
4 Adriana gegrafa e pesquisa sobre fronteira e contrabando. Acompanhou-me em etapas de cinco das minhas incurses a campo; quatro Santana do Livramento (julho, agosto, novembro de 2005 e janeiro de 2006) e uma Posadas (dezembro de 2005).
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Com mochilas pesadas e roupas grossas, caminhvamos rpido para
espantar o frio e o cansao. Passamos ao largo da Praa Internacional, escura e
deserta - neste momento no vi o obelisco e as bandeiras, das respectivas naes,
demarcando os limites dos dois pases, imponentes no Sol claro5. Atravessamos
uma avenida, atrs de ns todas as placas, propagandas e smbolos estavam
escritos em portugus, nossa frente sinais do mesmo tipo, todos em espanhol.
Tnhamos derivado silenciosamente de Santana do Livramento para Rivera, mas, por
um momento, ainda no estvamos l; estaramos, irrefletidamente, suspensos no
limiar entre ambas as cidades enquanto estivssemos no canteiro central desta
avenida, sobreposto prpria Linha de Fronteira, limite fsico da territorializao
desses Estados. Pensei como era fcil cruzar de um lado para o outro sem se
perceber disso. Quantas pessoas, quantas vezes por dia realizavam esse
movimento? Essas foram as primeiras impresses que recebi acerca desta fronteira,
do tipo de gente que l vive e do espao em que ocorrem as trocas materiais e
simblicas que se realizam pela justaposio de dois territrio nacionais (Brasil e
Uruguai) e das redes que o atravessam.
s dez horas da manh j estava no saguo do hotel procurando nos guias
telefnicos locais algum anncio de pais-de-santo ou de santeras. Copiei os dois
endereos que encontrei, ambos em Santana e sa em direo ao lado brasileiro
para telefonar a esses e outros contatos que me haviam sido indicados em Porto
Alegre por um pai-de-santo influente, presidente de uma federao afro-religiosa.
No consegui encontrar nenhuma dessas pessoas, e o pai-de-santo porto-alegrense
estava de obrigao e no poderia atender o telefone; comeava a ficar um pouco
tenso: eu no conhecia o lugar; tinha poucos dias, pouco dinheiro; no possua
experincia de campo anterior profunda e ainda no tinha nenhum contato naquela
cidade que me era estranha. E se no conseguisse encontrar nenhuma marca,
nenhum evento ou nenhuma pessoa atravs dos quais pudesse iniciar o contato com
os atores locais que vivem a religiosidade afro-brasileira e agenciam o processo da
sua transnacionalizao para o Uruguai?
5 Um gesto comum para a maioria dos turistas que visitam essa fronteira o de posarem para uma foto em frente ao obelisco, com um p no Brasil e o outro no Uruguai.
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Acompanhado de Adriana e mais uma gegrafa carioca6 sa para fazer um
reconhecimento das imediaes da zona central da Linha, o corao pulsante de
comrcio e servios que une, e no divide, as duas cidades. No lado uruguaio
espalham-se os famosos freeshops, cheios de perfumes, aparelhos eletrnicos,
chocolates, vinhos e usques; o teatro municipal de Rivera; uma danceteria; um
cassino; queijarias; restaurantes; padarias e aquele clima retr descolado composto
pelas largas caladas, a arquitetura das casas, o vesturio dos transeuntes; entre
estes, sempre presentes, estavam muitas pessoas com os seus apetrechos para
tomar mate e os inmeros fumantes... Nas ruas brasileiras, uma srie de lojas
populares oferecendo os mais variados artigos, de objetos de vesturio a acessrios
para o chimarro; alguns restaurantes movimentados; alguns hotis; o terminal dos
nibus que percorrem todo o Livramento; o nico cinema das duas cidades; mais
pessoas nas ruas em caladas mais estreitas... Sobre a Linha, naquele mesmo
canteiro que me referi acima, a balburdia dos camels brasileiros e uruguaios,
oferecendo uma miscelnea de objetos para todos os gostos e necessidades (por
vezes, supostamente, objetos iguais em qualidade aos do freeshop), e dos
cambistas. No comrcio, indistintamente nos dois lados da fronteira, havia muitos
atendentes de ambas as nacionalidades e na maioria dos lugares os preos estavam
expostos tanto em pesos uruguaios, quanto em reais; o dlar estadunidense tambm
sendo usado como moeda corrente.7
Errando pelo lado brasileiro, na avenida Joo Pessoa, acompanhando
paralelamente a Linha, sou alertado por Adriana para uma pequena placa escrita
mo e dependurada em um poste de iluminao e que aponta para uma entrada com
escadas para o andar inferior de uma galeria, construdo abaixo do nvel da rua (o
prdio fora construdo sobre uma encosta, por isso o desnvel do andar). Na placa
estava escrito apenas: Santera Canto dos Orixs, acompanhado por uma seta em
diagonal descendente. Eu sabia o que santera queria dizer, esta, enquanto loja
6 A forma como se estrutura a fronteira em Santana do Livramento e Rivera, torna estas cidades objeto de estudo para vrias cincias humanas, de forma que, atravs de Adriana me inseri em um grupo binacional de gegrafas, (ela, gacha, a outra, carioca e uma terceira uruguaia residente em Livramento) que estavam realizando investigaes sobre a dinmica poltico-econmica entre essas cidades. Tive a oportunidade de acompanhar algumas entrevistas com autoridades locais, nas quais consegui compor um quadro mais amplo sobre as relaes locais, regionais, nacionais e internacionais que atravessam vrias esferas da vida nestas cidades. 7 Para uma leitura mais especifica sobre os atravessamentos sociais, culturais e econmicos, na fronteira em Santana do Livramento-Rivera ver o trabalho de Andrea Quadrelli-Sanchz (2002).
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especializada na venda de artigos religiosos, sobretudo para rituais afro-brasileiros,
equivalente aquilo que em Porto Alegre chamamos de bazar ou flora (Oro, 1999).
2. No Canto dos Orixs
Descendo por dois lances de escadas vi do lado esquerdo um curto corredor
que leva a duas lojinhas e, direita, num canto, justificando um dos sentidos do
prprio nome, a Santera Canto dos Orixs. Uma esttua de Iemanj, em tamanho
natural, est esquerda da porta do estabelecimento e a primeira coisa que
algum v ao se virar para este lado do corredor; do lado direito desta, j no interior
da loja, uma outra esttua de um casal de pretos velhos, dessas em que se pode
colocar algum dinheiro sobre a palma da mo da esttua. A loja tem uns trs metros
de profundidade, por uns cinco de largura, com um p direito de dois metros e meio.
O espao encontra-se completamente atulhado por objetos religiosos em prateleiras
e nos dois balces dispostos em L, mas, tambm, dependurados no teto ou
colocados ordeiramente pelo cho. Velas e esttuas dos mais variados tamanhos;
guias8 multicoloridas e rolos de fitas de tecido verde, azul, rosa, vermelho, roxo,
amarelo; representaes metlicas em tamanho reduzido de facas, escovas,
espelhos, luas, estrelas, ferraduras, bigornas, machados duplos que, posteriormente
fiquei sabendo com um pai-de-santo de Uruguaiana, eram usadas nos
assentamentos9 dos Orixs, visto que esses cones representam domnios e
atividades ligadas a essas divindades; pilhas de incensos e defumadores que
carregam com odores fortes o ar do recinto.
Quando entrei na loja, nessa primeira vez, havia uma mulher branca, cabelos
escuros um pouco abaixo dos ombros, na casa dos trinta anos, atendendo dois
clientes. Esperei acanhadamente, ouvia meio sem querer um pouco da conversa que
se desenrolava; atravs dessa, tive certeza de que a mulher era uruguaia. Os
clientes atendidos, fui falar com ela para pedir o contato com alguns pais-de-santo
locais e talvez at uma entrevista. Um pouco desconfiada mas solcita, ela me
passou trs ou quatro contatos, e falou-me que, se eu quisesse fazer a entrevista e
pegar outros contatos, deveria voltar pela tardinha para falar com o marido dela.
8 Colares que o fiel das religies afro-brasileiras usa para proteo e como indicao das entidades que esto com ele. 9 Rito que institui a aliana pessoa/ orao.
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Agora tinha por onde comear, mas a verdade que no tive muita sorte nas
minhas visitas: no achei um dos endereos em Santana e, na cidade de Rivera, tive
um primeiro contato com a me-de-santo ela era brasileira, branca, por volta dos
trinta e, segundo ela prpria, teria largado a carreira jornalstica para viver s para a
religio10 agendamos uma entrevista, mas no dia marcado ela teria feito uma
viagem de emergncia para Tacuaremb11. Apenas consegui alguma coisa ligando
para uma certa me Chola que atendia no bairro do Prado em Santana do
Livramento, marquei uma entrevista para ali dois dias, na quarta-feira vinte de julho.
Queria mais tempo, tanto para ver se conseguia outros pais-de-santo, quanto para
me preparar para essa entrevista; tambm acabei no voltando a santera Canto dos
Orixs neste dia.
No dia 19 de julho, uma tera-feira, fui em duas outras santeras, com
pssimos resultados, e segui uma indicao at o Centro Cultural Zumbi dos
Palmares, cuja presidente, dona Enilda, seria tambm me-de-santo, alm de
professora de escola pblica e pessoa poltica importante dentro do movimento
negro de Santana do Livramento e Rivera. Dirigi-me para a rua Doutor Fialho, onde
est localizado o centro cultural. Depois de me perder e encontrar o trajeto
novamente, quando estava caminhando pela rua General Cmara e faltavam menos
de duas quadras para eu chegar na rua pretendida, passo pela frente de um provvel
terreiro: Centro So Jernimo Reino do Pai Xang. Anotei o endereo, para passar
ali depois de conhecer o trabalho da dona Enilda. No entanto, o centro cultural
estava fechado, s dava atendimento algumas tardes por semana (como me
informou uma vizinha), e, por isso, voltei ao terreiro acima citado. Um senhor negro
me atende no porto, diz que a sua esposa que a responsvel pelo centro no se
encontra, est no colgio trabalhando. Qual o nome da sua esposa?, perguntei.
Enilda!, me respondeu ele. Sim, no havia coincidncia, a senhora que eu
procurava era a esposa desse senhor, mas de qualquer forma ele no podia me
ajudar, teria que voltar outra hora e falar pessoalmente com ela.
Pela tarde voltei a santera Canto dos Orixs e finalmente conheci o seu
Srgio, homem moreno e de compleio fsica larga, de cabelo escuro ondulado,
10 Termo mico pelo qual os praticantes denominam as religies afro-brasileiras. Ari Pedro Oro argumenta que sua origem pode caracterizar uma estratgia de oposio acusao sofrida de serem membros de uma seita, evidentemente, no sentido negativo do termo (ORO, 1999, p. 19, grifo no original). 11 Cidade uruguaia, capital de departamento, distante aproximadamente 100 km de Rivera.
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olhos brilhantes e sorriso largo, com os seus trinta e tantos anos; sua fala cheia de
expresses bem gaudrias como bah, tch guri, capaz e sobretudo as palavras
com os seus e bem articulados em comparao com a fala mdia dos porto-
alegrenses que articulam esses e como se fossem i. Seu Srgio montou essa loja
em Santana faz mais de quinze anos. Antes, um tio seu tinha uma flora no bairro da
Azenha em Porto Alegre; sua famlia se divide entre evanglicos e afro-
umbandistas12. A entrevista que fiz com ele me possibilitou visualizar um pouco a
atual cena afro-religiosa de Santana do Livramento e Rivera e conhecer alguns dos
protagonistas da construo dessa histria. Atravs dele e de sua esposa conheci
duas me-de-santo e um pai-de-santo dos mais importante da regio e que foram
contemporneos de pai Joo do Bar e me Teta de Oxal13.
Figura 2: Seu Srgio e esposa
Foto do autor
3. Na Casa Africana Reino de Ogum Mal
Por volta das dezesseis horas, do dia 20 de julho de 2005, fui ao terreiro de
me Chola, acompanhado por Adriana. Quando ligara anteriormente, me Chola
pediu para que eu esperasse, pois sua filha, Belkis, me passaria a localizao da
casa:
De onde tu sai para chegar aqui? perguntou ela.
Eu acho que vou sair de perto da Linha, da rua Almirante Tamandar.
Ento tu tens que pegar o nibus PRADO...Sabes onde fica o Hipdromo?
12 Termo mico comum no Uruguai, equivalente de praticantes de religies afro-brasileiras. 13 Como vimos na introduo estes atores so dois dos mais importantes responsveis pela difuso das religies afro-brasileiras no Uruguai e na Argentina a partir da fronteira em questo.
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No!
Ele a tua referncia, passou por ele para bajar duas quadras depois, no
armazm do Sica, um prdio amarelo, viste?
E depois?
Bueno, ali tu j podes preguntar que todos sabem onde o terreiro, mas
s subir duas quadras e dobrar a esquerda. O terreiro bem no meio dessa quadra,
no tem como errar.
E tu pode me dar o endereo?
S, posso, mas no vai te ajudar, porque ningum usa o nome da rua aqui,
capaz de se forem te dar informao, te mandarei pro outro lado, viste? Anota a,
Joo Alves Coelho de Moraes, cento e quarenta e seis.
Realmente o nome da rua no tinha servido de nada, mas as indicaes
estavam muito claras e achamos o lugar com facilidade.
Em uma rua sem calamento, de um bairro de periferia, entre casas simples,
paramos em frente a uma casa de alvenaria que no se distinguia entre as demais; o
terreno na parte da frente cercado por um muro de um metro de altura, na poca,
pintado de branco. Antes deste, na calada defronte a casa est colocado uma
espcie de pdio para se decorar com bandeiras em dias de grandes festas (mais
adiante falarei destas)14. Entre o muro e a parede externa da casa existe uma
varanda onde esto os nicos sinais externos que mostram que esta casa um
templo e um territrio afro-religioso, muito discretos, estes indcios podem passar
despercebidos para o transeunte ocupado com os seus prprios pensamentos.
Destaco quais so estes sinais: duas placas, colocadas uma acima da outra,
na parede, ao lado esquerdo da porta, sendo que na superior, que de pedra
branca, se l, escrito em letras douradas Casa Africana Reino de Ogum Mal e na
segunda, que feita de um mrmore escuro e esverdeado, est escrito, tambm em
letras douradas, Reino Ogum Male Casa Africana15; uma plaquetinha branca sobre
um suporte de ferro na qual se l: Consultas: Bzios, cartas e cristais; do lado
esquerdo da varanda h, em um nvel abaixo da linha do muro, um recanto para
14 Eu mesmo s fui me dar conta desta estrutura em abril de 2006, quando o vi enfeitado por vrias bandeiras durante um ritual. 15 Os motivos dessa mudana da grafia de Mal podem ser vrios...Prefiro acreditar que a placa tenha sido encomendada por algum filho-de-santo estrangeiro que no atentou para a forma correta da escrita do termo em portugus (os falantes de espanhol geralmente do uma sonorizao oclusiva do e final desta palavra, dizendo Mal e no Mal).
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Iemanj, colocado no ngulo que junta o muro lateral (decorado com o desenho de
um rio correndo entre pedras, sob quatro estrelas azuis) e a parede da casa est um
pedestal de gesso que se abre, em sua parte superior, em uma grande concha
dentro da qual est aninhada uma pequena esttua de Iemanj adornada com duas
lampadinhas, flores artificiais e colares; do lado direito da varanda e igualmente
inferior em altura ao muro, temos uma casa para o Bar da rua, construda tambm
em alvenaria, com o teto caramelo e a portinhola marrom escura.
Eu e Adriana batemos palmas desde a calada, entramos na varanda atravs
de um portozinho de madeira e testamos a porta de entrada sem resultados. De
repente algum chama da casa da direita. Era para entrarmos por ali. Voltamos
calada e adentramos um pequeno porto de ferro; passamos por um jardim; por
uma casa marrom de madeira ladeada por uma rea calada coberta por um
caramancho, na qual havia uma churrasqueira. Esta passagem leva a uma outra
pea construda nos fundos da casa de madeira. Era de l que nos estavam
chamando e parecia que por l que chegaramos, atravs de uma rota alternativa,
at o templo. Fomos recebidos por uma mulher negra, na faixa dos quarenta anos,
tinha uma expresso sria, quase brava, vinha carregando uma cuia de chimarro.
Nos aproximamos e eu, que j tinha reconhecido a voz dela, a cumprimentei: Opa,
tudo bem? Tu a Belkis?. Isto! Tu o Daniel? Pode passar no mais a me Chola t
te esperando no outro salo!
Entramos na pea em que ela estava. Havia uma mesa perto da porta e
sentados prximos a ela havia mais umas quatro pessoas no recinto. Estavam
fazendo uma roda de chimarro. Este cmodo tem uns dez metros de largura, por
uns cinco de comprimento; na parede em que se encontra a porta pela qual
entramos e nas paredes que fazem ngulo com esta h um grande mural a la
Caminito16, mostrando um casal danando tango ao lado de um lampio, em
vermelho e negro. O teto era baixo. Na parede oposta tambm h um balco, que
divide a pea e atrs deste esto outras trs portas de peas menores, que estavam
fechadas. Posteriormente, soube serem um depsito de bagagens e dois quartos-de-
exu, algo equivalente a um quarto-de-santo17, com os assentamentos dos exus dos
16 Uma rua famosa do bairro bomio da Boca, em Buenos Aires, importante na histria do tango. 17 Tanto aquilo que estou chamando de quarto-de-exu, quanto o quarto-de-santo, so espaos sagrados nos quais se guardam os assentamentos, respectivamente, dos Exus e Pombagiras e dos Orixs.
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filhos-de-santo da casa. Na parede lateral esquerda, a partir da porta pela qual
entramos, h outras duas portas, uma que leva para uma cozinha entre a cozinha e
o primeiro quarto-de-exus, um corredor leva para um rea coberta nos fundos do
ptio e outra, com trs degraus adiante, atravs da qual se penetra para o salo no
qual me encontraria com me Chola.
O salo grande, composto por uma nica pea retangular medindo dez
metros de largura por vinte e cinco de comprimento, dividida em trs reas que ficam
bem delimitadas pela disposio da moblia e dos objetos religiosos que se
encontram em seu interior. A primeira rea, na qual est a porta de entrada que d
para a varanda descrita anteriormente, ocupa quase um quarto da rea total do
salo; na sua esquerda uma porta para um banheiro; junto parede da frente, de
cada um dos lados da porta, pilhas de cadeiras de plstico; o cho de cimento em
um acabamento simples. A segunda rea, que ocupa algo como metade do salo,
tem o cho coberto de parqu e vrios quadros de Orixs, trofus, duas espadas,
muitos diplomas de federaes afro-religiosas, que garantem me Chola o
exerccio do sacerdcio nos territrios dos Estado-Naes pelos quais ela circula, e
vrios objetos decorativos de inspirao religiosa dependurados nas duas paredes
laterais, nas quais esto encostadas mais dessas cadeiras; junto da parede direita h
uma pequena plataforma, com mais ou menos um e meio de lado, sobre ela um
banco e dois tambores grandes; e quase na rea de transio para o terceiro setor,
est uma poltrona verde de encosto alto. Na terceira rea do salo, que separada
das outras reas por uma grande cortina (que nesta ocasio estava aberta),
encontram-se a partir da parede esquerda: um porta estandarte com bandeiras de
vrios pases nos quais Chola tem filhos-de-santos residentes e para os quais ela s
vezes viaja (Brasil; Argentina; Uruguai; Mxico; Estados Unidos da Amrica) e do
terreiro (uma bandeira verde, com algumas estrelas brancas e duas faixas vermelhas
que atravessam diagonalmente a bandeira), a entrada para um banheiro; uma srie
de prateleiras lotadas de imagens tanto de santos catlicos, quanto de entidades18
afro-religiosas; a porta do peji, ou quarto-de-santo, que fica alinhada, igualmente
como a porta de entrada, na metade da distncia entre as paredes laterais do salo;
18 Entidade um termo genrico que os afro-umbandistas utilizam para se referir aos espritos e divindades que so cultuados em seus rituais.
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mais uma srie de prateleiras, mais um banheiro e a porta que comunica-se com o
outro salo e pela qual entramos.
Me Chola estava sentada na poltrona verde. Eu e Adriana nos sentamos nas
cadeiras de plstico ao lado da poltrona; Belkis parou-se de p ao lado da poltrona
da me. Esta uma senhora de aspecto slido, que irradia uma aura de poder e
sabedoria ali, naquele momento, sem me dar conta, estava entrando em um reino
em que ela a rainha, tudo parece emanar dela e todos ficam como que apagados
perante o seu brilho prprio. Feies meio indgenas, quer dizer, queixo quadrado,
olhos pequenos, escuros e penetrantes, pele morena clara. Cabelo pintado de acaju
e bem arrumado, abrigada num xale-poncho elegante e senhorial, usava na mo
esquerda um grande, todavia sbrio, anel, talvez de ouro, no qual est escrito o seu
nome, Gloria. Belkis, atenta, mas discreta, com os braos relaxados e as mos
entrelaadas a frente do corpo era a imagem de uma princesa: inteligente e
poderosa mas contida pela fora que reconhece na me.
Esta primeira entrevista realizada com me Chola consistiu na sua histria de
vida, seu projeto, sua interpretao da estrutura ritual da Linha Cruzada e sua
memria e conhecimento sobre a difuso deste campo religioso na fronteira, no
Uruguai e na Argentina, narrativa que ratifica e ratificada por entrevistas que fiz
com seu Srgio, pai Pocho de Xang e me Dlsia de Ogum. Em vrias outras
oportunidades voltei a conversar sobre estes assuntos com me Chola e com os
seus familiares.
Na seqncia apresentarei de maneira sinttica um pequeno relato sobre a
vida da informante e dos seus movimentos dentro das religies afro-brasileiras, que
culminam com o atual estgio de consolidao da Casa Africana Reino de Ogum
Mal como uma comunidade religiosa transnacional composta por trs terreiros
localizados no Brasil, Argentina e Uruguai e algumas centenas de filhos-de-santo,
alguns, como expliquei acima, atualmente radicados em diversos outros pases,
como por exemplo Mxico e Estados Unidos da Amrica.
3.1 A histria de me Chola
Glria Silveira, uruguaia, nascida em 1942 no departamento de Rivera, filha
de uma mulher negra e de um basco errante. Sua me trabalhou por vrios anos
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como cozinheira de uma famlia de turcos e por isso mudou-se com sua menina e
mais dois filhos para a casa dos patres. At os seis anos de idade Cholinha, como
era chamada a menina, tinha um estilo de vida citadino, em Rivera, e algumas
regalias perante a famlia dos empregadores de sua me. Sua me faleceu e Chola e
seus irmos foram viver com a av na zona rural de Rivera, que trabalhava como
lavadeira para os fazendeiros do entorno.
Figura 3: Me Chola (primeiro plano)
Foto do autor
Chola ficou neste lugar por uns dez anos. Diz que foi nesta poca de privao
que aprendeu a fazer muito com pouco e as mais diversas formas de lidas que lhe
possibilitaram ser uma boa me-de-santo, orientando e pegando junto, nos
trabalhos rituais com os filhos-de-santo. Posteriormente, Chola comeou a trabalhar
como domstica em Rivera, onde conheceu seu primeiro marido e pai dos seus trs
filhos: Jaime, Javier e Belkis. Este relacionamento durou mais de vinte e cinco anos,
mas foi muito difcil, sendo seu marido muito machista e autoritrio, segundo as
palavras da prpria.
Foi neste momento da vida que me Chola teve seu primeiro contato com a
religio quando, com cerca de vinte e quatro anos, teve um problema de bcio e um
vizinho lhe falou de uma senhora que benzia e curava as pessoas. Chola titubeou e o
vizinho lhe chamou de medrosa; para desdiz-lo, Chola foi se consultar com a bruja
que lhe orientou a procurar um lugar para se desenvolver mediunicamente. A partir
deste momento Chola, primeiro sozinha, mas logo acompanhada por seus filhos,
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passou a freqentar o centro umbandista do pai Sidnei de Bar, pai-de-santo porto-
alegrense que pela dcada de sessenta estava radicado em Santana do Livramento.
Aps algum tempo s na Umbanda, Chola quis aprontar-se tambm no Batuque.
Mas, quando teve condies para seguir seu desenvolvimento nesta linha ritual, seu
chefe19 na Umbanda j tinha voltado a morar em Porto Alegre e ela teve que receber
a mo20 do pai Pocho de Xang na sua cabea, este filho-de-santo de Joo do Bar.
Alguns anos depois, j na dcada de setenta, Chola se libera e comea a dar
sesses em sua casa em Rivera, na cozinha, para alguns parentes e vizinhos.
Sempre que ia visitar um de seus irmos em Montevidu acabava por ser procurada
para dar consultas com os bzios. Sua reputao cresceu e essas visitas se
tornaram cada vez mais freqentes e chegaram a ter uma periodicidade semanal.
Esse foi um momento tumultuado, pois seu marido no permitia que ela pernoitasse
em Montevidu. Por isso, ela, sempre acompanhada por um de seus filhos, saa de
Rivera a meia-noite, chegava em Montevidu pela manh e pela noite voltava para
Rivera trazendo alguns produtos cosmticos, roupas e bijuterias para vender e
repassar21. Desde ento, em Montevidu Chola j teve terreiros em mais de trs
endereos, mas tambm passou um bom tempo sem um templo estabelecido, at
que, mais ou menos quinze anos atrs, Cristina do Bar, uma de suas filhas-de-
santo montevideanas, lhe cedeu a garagem de sua casa para usar como terreiro.
Durante este perodo a vida particular de Gloria passou por mudanas
considerveis, como ter que se responsabilizar pela criao e sustento dos filhos de
um outro irmo e, mais adiante, divorciar-se. Felizmente, ela contava com a ajuda de
alguns dos seus filhos-de-santo mais prximos, como Hugo de Xang e sua famlia e
Ilda de Oxum e seu esposo, entre outros. Passado algum tempo, Chola inicia uma
relao com o seu segundo e atual companheiro, Paulo, e posteriormente transfere
seu terreiro para Santana do Livramento. H aproximadamente dez anos, Paulo
construiu a atual sede da Casa Africana Reino de Ogum Mal, nesta cidade.
A partir da dcada de noventa, j como uma me-de-santo de prestgio e com
muitos filhos-de-santo no Uruguai e Argentina, me Chola contatada por alguns de
19 Forma de tratamento do sacerdote lder de um centro de Umbanda. Este cargo pode ser somado a outros de outras linhas rituais das religies afro-brasileiras, como quando este chefe tambm um pai-de-santo. 20 Receber a mo significa que foi iniciada no Batuque por esse sacerdote que entre outras coisas derramou sangue ritual sobre a sua cabea para despertar seu Orix. 21 Junto ao percurso religioso transnacional, ocorre tambm um percurso econmico.
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seus netos-de-santo de Posadas, no nordeste da Argentina, que estavam um pouco
desconfiados e descontentes com o seu pai-de-santo (filho-de-santo da me Chola).
Este homem estava lhes iniciando na Quimbanda sem todavia estar pronto e liberado
para tanto por sua me-de-santo. Chola se mandou para Posadas para
desmascarar o filho-de-santo e dele se desvincular. Reparando os erros cometidos
por este, para com as pessoas de Posadas, ela se torna responsvel por esses fiis
e passa a visit-los mensalmente para dar sesses e guiar seu desenvolvimento na
religio, constituindo ento a terceira filial do seu terreiro, naquela cidade.
A partir deste novo territrio conquistado e da ampliao de sua rede de
contatos na Argentina, me Chola fez uma ponte para a cidade de So Miguel de
Tucum no Noroeste argentino, lugar em que, na atualidade, madrinha de dois
terreiros, os quais visita algumas vezes por ano, ao passo que tambm recebe estes
filhos-de-santo em Santana do Livramento.
No atual momento de sua vida, em uma posio estvel, porm em um ritmo
acelerado de trabalho para articular um grande nmero de filhos-de-santo ainda
ligados a estes cinco terreiros, me Chola, sem muita pressa, mas com uma
determinao discreta e contnua, comea a preparar a sucesso de sua famlia-de-
santo e um futuro afastamento da cena religiosa, que iniciaria-se com um censo dos
seus filhos-de-santo (para confirmar a descendncia religiosa destes a partir de sua
casa) e o no aprontamento22 de novos filhos-de-santo a partir de abril de dois mil e
sete.
Nas quase trs horas de entrevista, me Chola, plena de autoridade, com a
voz repleta de inflexes graves e sorrisos pontuando as partes do discurso que
pediam conivncia ou aquiescncia, narrava a sua vida e dardejava suas opinies
enquanto que Belkis intervinha completando as informaes, lembrando detalhes,
alcanando coisas, dando apartes que reforavam o relato de sua me. No meio da
conversa, uma moa vem agradecer me Chola por t-la aceito novamente como
membro de sua corrente23, estava transtornada e chorava muito. Magnanimamente,
22 Aceitao de um indivduo como filho-de-santo e orientao do desenvolvimento religioso do mesmo at a sua liberao para, se o indivduo quiser, ser um pai-de-santo e gerir o seu prprio terreiro ou continuar como mdium, plenamente desenvolvido, na corrente de seu pai-de-santo. 23 Corrente um termo mico relacionado com o grupo de pessoas que faz parte do terreiro e que participam dos rituais de transe e incorporao. O termo advm da corrente de energia espiritual formada pelos mdiuns em trabalho.
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me Chola a recebeu e se comprometeu a continuar orientando o seu
desenvolvimento espiritual.
Quando samos do terreiro, j noite escura, e caminhvamos para pegar o
nibus, reparamos que havia muitas igrejas evanglicas nas imediaes do terreiro
de me Chola. Muito diferentes da casa simples e discreta que abriga o templo afro-
religioso, estes outros templos tm fachadas chamativas, se no na arquitetura, pelo
menos em grande placas que trazem o nome das tais confisses religiosas e os
horrios dos cultos.
4. Ampliando a rede
Na tarde da quinta-feira 21 de julho de 2005, voltei ao Centro Cultural Zumbi
dos Palmares, mas dona Enilda no se encontrava ali. Acabei entrevistando uma
sobrinha dela e apesar da conversa ter sido muito interessante, mais me distanciou
da minha investigao do que me aproximou, pois o assunto me levou para uma
srie de temas colaterais aos da religiosidade afro-brasileira na fronteira, como
pertencimento tnico e as aes afirmativas. Ao pesquisar a religio afro no Uruguai
fui vrias vezes apresentado a militantes de movimentos culturais ligados
promoo do candombe (ritmo tradicional ao qual se atribui uma origem negra) e do
movimento poltico Mundo Afro, o que talvez mostre o grau de laicidade da
sociedade uruguaia. Alm disso, acabei descobrindo que o Centro So Jernimo
Reino do Pai Xang um centro de Umbanda branca de longa histria em Santana
do Livramento, mas com um nmero de freqentadores agora restrito. O interessante
do meu contato com esses parentes da dona Enilda que ao longo das minhas
outras visitas a Livramento, percebi que este grupo tem desde h muito relaes de
reciprocidade com a comunidade religiosa de me Chola. Uma outra sobrinha de
dona Enilda, Tita, uma mdium encostada no terreiro de Chola; no passado, em
seus primeiros anos na religio, Chola era freqentadora contumaz das sesses de
Umbanda dirigidas por Maria Redonda, a me de dona Enilda, e at hoje sempre que
h festas religiosas em uma das casas, a outra manda uma delegao para
prestigiar as cerimnias.
Pela manh da sexta-feira, dia 22 de julho, fui com seu Srgio visitar uma
outra me-de-santo uruguaia, radicada na periferia de Rivera. Me Dlsia de Ogum,
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nascida em 1937, me concedeu uma entrevista muito interessante, na qual relatou a
sua entrada nas religies afro-brasileiras a partir de um problema de sade que
comeou a tratar atravs do seu desenvolvimento em um centro esprita, do qual
teve que afastar-se por ter comeado a incorporar a cabocla Jurema. Neste
momento com quatorze anos, foi levada por sua av ao terreiro de me Teta, de l
continuou seu desenvolvimento com o pai-de-santo de me Teta, o j citado Joo do
Bar, e continuou em suas mos at a morte deste, passando depois para as mos
de me Teta e com a morte desta, em 1998, Dlsia passou a ser orientada por pai
Pocho de Xang, com o qual se encontra ligada at hoje. Tambm me Dlsia tem
vrias ligaes com o terreiro de me Chola, as duas se conheceram e forjaram a
sua amizade enquanto eram filhas-de-santo de pai Pocho; Dlsia madrinha de
Javier, filho de Chola, na religio, e tambm me biolgica de um dos tamboreiros
de me Chola.
5. Minha primeira sesso de Umbanda
Ainda no dia 22, voltei ao terreiro de me Chola para assistir uma sesso de
Umbanda, acompanhado de Gladys, uma gegrafa uruguaia residente em Santana
do Livramento. Chegamos um pouco antes das vinte e trinta e o terreiro estava com
a luz da varanda acessa e a porta de entrada aberta; organizado para o ritual o salo
estava diferente do que eu tinha visto na quarta-feira. Na assistncia24 as cadeiras
de plstico estavam organizadas, cinco a cinco, em fileiras dispostas esquerda e
direita da porta, delimitando um corredor que ligava a entrada rea da gira ritual, a
segunda rea deste salo. Do lado esquerdo s estavam sentados homens e do lado
direito mulheres. Atravessamos a assistncia para cumprimentar Belkis. Nessa rea
alguns membros do terreiro, j vestidos com suas roupas rituais, esperavam o incio
dos trabalhos conversando entre si. Outros passavam rapidamente para irem se
trocar; e no tablado dos tambores, um rapaz moreno, de porte atltico, com o cabelo
castanho bem crespo com algumas partes descoloridas afinava um tambor enquanto
conversava com um homem de pele um pouco mais escura. Belkis pediu que nos
sentssemos nas cadeiras dispostas contra as paredes laterais, que contornavam a
24 Local de um terreiro onde ficam as pessoas que s assistem ao ritual e que depois se submetem a passes e a consultas com as entidades dos mdiuns que formam a corrente. No espao em questo, a assistncia a primeira parte do salo a partir da porta de entrada.
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rea da gira ritual para visualizarmos melhor o desenvolvimento da sesso. Outras
pessoas j estavam sentadas ali, pareciam ser mais ntimas da casa ou possurem
mais status e a diviso sexual presente na assistncia no se realizava nestas
cadeiras.
Alguns minutos depois, vrios mdiuns estavam a postos no meio do salo,
formando um crculo. Todos descalos, as mulheres de saias compridas, com calas
por baixo e os homens, com calas brancas, dois, em particular, estavam usando
umas bombachas brancas muito folgadas. Belkis estava posicionada no ponto de
passagem da rea da gira ritual para a rea do altar e do peji. Antes de comear a
sesso, Belkis agradeceu a presena de todos e informou que me Chola deixou
um beijo para todos! Ela no est presente porque teve que viajar para a capital.
Imediatamente algum perguntou em tom galhofeiro qual delas? [Montevidu ou
Porto Alegre], s no sbado fui saber que era para Montevidu.
Comeou um toque contnuo de sineta, um turbulo foi trazido para defumar o
ambiente, os mdiuns se reuniram na rea de gira, as pessoas na assistncia (a
sobrinha da professora Enilda que entrevistei no dia anterior, entre elas), agora
lotada se acomodaram, algumas roupas foram trazidas pelos mdiuns ou pelo
pblico e colocadas prximas ao altar. S ento a porta do quarto-de-santo foi aberta
e se entoou um ponto para Ogum que por refro tinha: Ogum de Mal, Ogum de
Nag!, acompanhado pelo tambor e o ag. Seguiu-se um outro ponto para as vrias
entidades e todos os mdiuns na corrente se deitaram, encostando o rosto no cho,
realizando a ao de bater a cabea em sinal de reverncia aos Orixs e s
entidades da Umbanda.
Durante este tipo de ritual, muitas coisas acontecem ao mesmo tempo e
enquanto se iniciava o primeiro ponto, algum membro da casa que estava fora da
roda se aproximou de mim e de Gladys e pediu que tirssemos os sapatos, nesta
parte do salo no se pode ficar calado, falta de respeito, disse-nos. Um pouco
envergonhados pela gafe ficamos de ps descalos sobre o parqu gelado.
Aps estes primeiros procedimentos que vrios pontos foram executados, os
mdiuns danando, uns aps os outros sendo tomados pelas entidades, comeando
a girar e dando muitas voltas no mesmo lugar, com uma velocidade constante e
aparentemente sem comprometimento do senso de equilbrio; os olhos fechados ou
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fixos em algum lugar e concentrados; o vento produzido pelo movimento das saias
era impressionante.
Quando paravam de girar, suas faces estavam transformadas: algumas
adquirem uma expresso indefinida, outras viram carrancas; mas as antigas
rostidades (DELEUZE & GUATTARI 1995-1997; ANJOS, 1993) prprias de cada
indivduo, foram substitudas por outras rostidades tambm especficas, cada
mdium com um outro rosto tambm particular: o de outro ser, uma entidade que
est no corpo do mdium. Esta entidade fora o corpo do mdium, ou ele resiste
entidade, mas o fato que o corpo do mdium se retesa e algum outro mdium vem
at o possudo e lhe tira a rigidez soprando em seus ouvidos e/ ou lhe passando a
mo pelos braos e cruzando-os sobre o peito25. A partir de ento a entidade
realmente se apossa do corpo do mdium e, se dirigindo at a frente do quarto-de-
santo, tambm bate a cabea.
Quando a msica pra, a roda, que fora desfeita durante os processos de
incorporao, se refaz. Um forte barulho, como o ronco de um animal, se espalha
pelo salo, so as entidades respirando; algumas caminham para frente e para trs,
outras manquejam; algumas do gritos fortes, parecem bravas; todas
performatizam alguma postura especfica com os membros superiores, um brao
erguido com a mo fechada de uma maneira especfica, ou um brao dobrado nas
costas... so sinais caractersticos de cada entidade, tornando-as passveis de
reconhecimento, para os iniciados, pelo seu caminhar, pelo seu gestual. Percebi que
alguns mdiuns estavam comunicando as mesmas gestualidades, portanto seria a
mesma entidade que estaria incorporada neles. Mesmo assim, pequenos detalhes do
gestual indicaram-me que poderia at ser a mesma entidade, mas no
completamente, pois cada entidade se torna particular em cada mdium.
As entidades (ouvi as pessoas ao redor falarem de caboclos) que j tinham
batido a cabea cruzam o salo e saem varanda para saudar tanto a casa do Bar
da Rua, quanto a esttua de Iemanj. Alguns caboclos deram fortes gritos, que me
assustaram um pouco, pois no estava esperando por isso. Depois voltam e
cumprimentaram os tamboreiros em uma saudao na qual se passa o antebrao
25 Por vezes quando a entidade se manifesta com muita fora, faz-se necessrio mais de um mdium para lhe segurar e realizar esse destravamento do seu corpo, como aconteceu em determinado momento: Ai Ogum Beira-Mar o que trouxe do mar? cantava-se em outro ponto e o homem moreno que estava tocando ag incorporou to forte que outros trs mdiuns vieram em seu auxlio.
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direito pelo antebrao direito do outro e depois se repete o mesmo com o antebrao
esquerdo. Fazem esse cumprimento cruzado que termina com um abrao que repete
a mesma lgica. As entidades tambm se cumprimentam entre si e cumprimentam
algumas pessoas da assistncia. Quando se sadam entre si, percebe-se uma
etiqueta muito baseada em afinidades e hierarquia; todos foram cumprimentar Belkis,
mas nem todos foram cumprimentar outros mdiuns. Belkis no permitia que
algumas entidades fossem bater cabea para a sua entidade, aceitando apenas o
cumprimento cruzado. No obstante, de outros exigia que batessem a cabea.
Depois que incorporara, a entidade de Belkis veio me cumprimentar Fora sempre!,
o acento uruguaio dela perdido, sua entidade falando em portugus bem claro.
Figura 4: Dois caboclos
Foto do autor
Entre os mdiuns havia uma discreta maioria de mulheres, de todas as idades,
desde uma menina (Cac como lhe chamam) que na poca tinha oito anos, at a
sua av (dona Deolinda) que tem mais de setenta anos; havia tambm duas
adolescentes: Bianca, de dezenove anos e Carina, de treze; vrias mulheres entre
trinta e quarenta anos. Entre os homens que estavam na roda, s havia um menor,
Antnio (irmo de Cac), de quatorze anos; havia, tambm um rapaz mais velho,
Fabiano (vinte e poucos anos) e alguns homens acima dos trinta, e um nico senhor
mais idoso.
Cac chamou muito a minha ateno. No imaginava que crianas tambm
poderiam participar da roda. Parecendo dentro do seu vestido branco uma aia de
casamento, ela tocava sineta, danava, to bem quanto os adultos, mas no
incorporava. Todavia, mesmo assim girava, acompanhada por um adulto que ficava
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limitando o espao da sua gira com os braos e depois a levou para beber um copo
com gua que estava na rea do altar 26, abaixo de uma esttua de So Jorge (pelo
sincretismo, Ogum).
A entidade em Belkis comeou a passar a saia pelos tambores e tamboreiros,
a fim de limp-los: segurando a saia pela barra a esfregando por toda a superfcie
dos tambores com movimentos de cima para baixo e depois sacudindo a saia em
direo ao cho, como quem sacode uma toalha cheia de p ou farelos. Depois
limpando os tamboreiros em si, e, por fim, repetindo essa ao no tocador de ag. O
procedimento foi, tambm, realizado por vrias outras entidades. Contudo, cada
entidade tem uma forma prpria de executar uma limpeza, algumas s sopram
assobiando em torno da pessoa ou objeto a ser limpo; outras ficam fazendo um
movimento com a mo de forma que o dedo indicador bate no dedo mdio, segurado
pelo polegar (produzindo um estalo). Este movimento acompanhado por algumas
palavras ou por grunhidos indefinidos; outras, ainda, apenas passam as mos em
toda a extenso do corpo que querem limpar.
O ritual se interrompeu por alguns momentos e recomeou com os tambores
sendo batidos em outro ritmo e as pessoas cantando Eu vi mame Oxum na
cachoeira, sentada na beira do rio [...]; Belkis desenhava em frente ao quarto-de-
santo, o que em outro momento me explicou que seria um ponto grfico, uma
assinatura icnica do novo tipo de entidade que estava sendo invocada nesta
segunda parte da sesso. Belkis desenhou com giz azul cinco linhas horizontais
serpenteantes, como se fossem as ondas de um mar, e sobre elas desenhou quatro
estrelas-de-davi e se deitou quase sobre o desenho beijando o cho. Depois, no
meio do tal ponto colocou um copo com um lquido claro (que eu no soube precisar
qual era) e os outros mdiuns vieram se deitar em frente ao desenho. Neste
momento j estvamos com quase uma hora de sesso. Posteriormente, em
conversa com Belkis, ela me contou que as entidades que estavam se manifestando
neste momento eram mes dgua e pretos velhos.
Mais pontos cantados sobre Oxum, [...] minha me Oxum na Umbanda e no
Candombl [...] e o vento dos espritos na dana girante dos cavalos continua.
26 Em setembro de 2006, durante uma conversa com Belkis ela me explicou que neste ritual que narro agora, se fazia a menina girar para ela no ficar carregada com todas as energias que estavam em circulao na roda. Talvez a ao de beber da gua, que estava abaixo da imagem, tenha a mesma explicao.
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Belkis, possuda por esta me dgua vem me limpar novamente, sopra em minhas
mos, as fecha e me d uma beno. Dona Deolinda saiu da roda e foi se sentar em
uma cadeira na parede oposta a qual eu estava. Um pouco depois, Belkis foi at ela
e a limpou, levantou seus braos e a senhora pareceu que cairia para frente, se
levantou e voltou para a roda. Uma moa negra com tranas no cabelo, seu apelido
Tita (a sobrinha da professora Enilda), de estatura baixa, de vinte e poucos anos,
saiu da roda, tambm foi se sentar perto dessa senhora, estava com uma expresso
muito estranha no rosto, olhos revirando... ficou sentada ali um bom tempo,
provavelmente incorporada por um preto velho. Cac voltou a girar e a ir beber gua
no p do santo. Mais uma vez, todos os mdiuns incorporados se dirigiram varanda
para cumprimentar a casa do Bar e a esttua de Iemanj.
Uma grande pausa, os tambores silenciaram, um dos tamboreiros, um homem
de meia-idade, chamado Wilma, filho da me Dlsia de Ogum como vim a saber
mais tarde27, acendeu um cigarro; muitas