Caminhos Convergentes Desigualdades Raciais

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ESTADO E SOCIEDADE NA SUPERAÇÃO DAS DESIGUALDADES RACIAIS NO BRASIL ORGANIZADORAS MARILENE DE PAULA ROSANA HERINGER JOSÉ MAURÍCIO ARRUTI RENATO FERREIRA NILMA LINO GOMES ROSANA HERINGER SILVIA RAMOS ÁTILA ROQUE FRANCINE SAILLANT MARCIO ANDRÉ DE O. DOS SANTOS VALTER ROBERTO SILVÉRIO JUREMA WERNECK CONVERGENTES CAMINHOS

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Caminhos Convergentes Desigualdades Raciais

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  • ESTADO E SOCIEDADENA SUPERAODAS DESIGUALDADESRACIAIS NO BRASILO R G A N I Z A D O R A S

    MARILENE DE PAULAROSANA HERINGER

    JOS MAURCIO ARRUTIRENATO FERREIRANILMA LINO GOMESROSANA HERINGERSILVIA RAMOSTILA ROQUEFRANCINE SAILLANTMARCIO ANDR DE O. DOS SANTOSVALTER ROBERTO SILVRIOJUREMA WERNECK

    CONVERGENTESCAMINHOS

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    uma organizao poltica, semfins lucrativos, que se entendecomo parte da corrente polticaverde, representada na Alemanhapela coalizo partidria Aliana90/Os Verdes. A hbs possuiescritrios internacionais em22 pases. Nossa organizao levao nome do escritor vencedor doprmio Nobel, Heinrich Bll, quesimboliza posturas com as quaisnos identificamos: defesa daliberdade e da democracia,tolerncia e participao social.

    No Brasil atuamos em parceriacom ONGs e movimentos sociaispara estabelecimento dodesenvolvimento ambientalmentesustentvel e includente comdemocracia de gnero, justiasocial e garantia de DireitosHumanos.

    ligadas violncia no campo e nas cidades;e monitoramento das polticaspblicas de promoo daigualdade racial.

    Fundao Heinrich Bll(hbs na sigla em alemo)

    Nossa linha de aoem Direitos Humanos eDemocracia est focada noacompanhamento do Parlamentoe controle social do oramentopblico; apoio a denncias deviolaes de direitos

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    Caminhos convergentes: Estado e Sociedade na superao dasdesigualdades raciais no Brasil / Orgs. Marilene de Paula,Rosana Heringer. - Rio de Janeiro : Fundao Heinrich Boll,ActionAid, 2009.

    292p.

    ISBN 978-85-62669-00-2

    1. Desigualdades raciais. 2. Ao afirmativa. 3. Polticas pblicas.4. Brasil. I. Paula, Marilene de. II. Heringer, Rosana. III. Titulo

    CDU 323.12(81)

    Ficha catalogrfica Sandra Infurna CRB-7 4607

    Caminhos convergentes: Estado e Sociedadena superao das desigualdades raciais no Brasil

    Fundao Heinrich Bll e ActionAid Brasil

    FUNDAO HEINRICH BLLRua da Glria, 190, 7 andar Glria20241-180 | Rio de Janeiro/RJTel.: +55 (21) 3221.9900 | www.boell.org.br

    ACTIONAID BRASILRua Morais e Vale, 111, 5 Andar Centro20021-260 | Rio de Janeiro/RJTel.: +55 (21) 2189.4600 | www.actionaid.org.br

    ORGANIZADORASMarilene de PaulaRosana Heringer

    ARTIGOSJos Maurcio Arruti, Renato Ferreira, Nilma Lino Gomes,Rosana Heringer, Silvia Ramos, tila Roque,Francine Saillant, Marcio Andr de O. dos Santos,Valter Roberto Silvrio e Jurema Werneck

    COORDENAO EDITORIALMarilene de PaulaRosana Heringer

    REVISOHelena Costa

    PROJETO GRFICOMais Programao Visualwww.maisprogramacao.com.br

    CAPAArte sobre foto de Andr Telles

    IMPRESSOWalprint Grfica e Editora

    TIRAGEM1.000 exemplares

    Permitida a reproduo parcial desta obra desde que citada a fonte.

  • SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................................ 5

    PARTE 1

    1 EVOLUO E CONTEXTO ATUAL DAS POLTICASPBLICAS NO BRASIL: EDUCAO, DESIGUALDADEE RECONHECIMENTO ................................................................................................. 13VALTER ROBERTO SILVRIO

    2 LIMITES E POSSIBILIDADES DA IMPLEMENTAODA LEI 10.639/03 NO CONTEXTO DAS POLTICASPBLICAS EM EDUCAO .......................................................................................... 39NILMA LINO GOMES

    3 POLTICAS PBLICAS PARA QUILOMBOS:TERRA, SADE E EDUCAO .................................................................................... 75JOS MAURCIO ARRUTI

    4 MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS E OS RESULTADOSDE DURBAN .................................................................................................................. 111JUREMA WERNECK

    5 ANLISE DAS PRINCIPAIS POLTICAS DE INCLUSODE ESTUDANTES NEGROS NO ENSINO SUPERIORNO BRASIL NO PERODO 2001-2008 ..................................................................... 137ROSANA HERINGER E RENATO FERREIRA

    PARTE 2

    6 DIREITOS, CIDADANIA E REPARAES PELOSERROS DO PASSADO ESCRAVISTA: PERSPECTIVASDO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL .................................................................. 197FRANCINE SAILLANT

    7 POLTICA NEGRA E DEMOCRACIA NO BRASILCONTEMPORNEO: REFLEXES SOBRE OSMOVIMENTOS NEGROS ........................................................................................... 227MARCIO ANDR DE O. DOS SANTOS

    8 CONSTRUO E DESCONSTRUO DO SILNCIO:REFLEXES SOBRE O RACISMO E O ANTIRRACISMONA SOCIEDADE BRASILEIRA ................................................................................... 259TILA ROQUE

    9 NEGRO DRAMA .......................................................................................................... 275SILVIA RAMOS

    americoHighlight
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    INTRODUOMARILENE DE PAULA1

    ROSANA HERINGER2

    A Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofo-bia e Intolerncias Correlatas, convocada pela ONU e realizada em Durban,frica do Sul (2001), um dos marcos histricos para as reivindicaes domovimento negro contemporneo e para a implementao de polticas deao afirmativa. Em 2009 ocorreu em Genebra a Reviso do Plano de Aode Durban, quando representantes de governos e organizaes da socie-dade civil debateram os principais avanos e desafios para a eliminao dasdesigualdades raciais. No caso brasileiro, inegavelmente nos ltimos 10 anoshouve avanos, mas o cenrio ainda preocupante, com dados que apon-tam as desigualdades raciais como um dos principais problemas da jovemdemocracia brasileira.

    O Brasil teve uma participao ativa na Conferncia de Durban e o resul-tado da mesma levou o governo brasileiro a assumir compromissos e iniciarimportantes polticas voltadas para a promoo dos direitos dos afrodes-cendentes e da igualdade racial.

    Em pesquisa realizada pelo Ipea3 sobre as polticas de ao afirmativadurante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foram iden-tificados 40 programas e aes em instituies governamentais, tanto noExecutivo quanto no Judicirio. As aes mais relevantes foram as seguintes:no Ministrio da Educao: reavaliao dos livros didticos com exclusodaqueles que contivessem preconceitos de qualquer espcie, apoio a projetos

    1 Mestranda em Histria e Bens Culturais, coordenadora de programa da HeinrichBll Stiftung.

    2 Doutora em Sociologia, Coordenadora Executiva da ActionAid Brasil; ex-diretora doCentro de Estudos Afrobrasileiros da Universidade Candido Mendes (CEAB/UCAM).

    3 BEGHIN, Nathalie & JACCOUD, Luciana de Barros. Desigualdades raciais no Brasil:um balano da interveno governamental, Braslia, IPEA, 2002.

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    educacionais em reas quilombolas, criao do Programa Diversidade naUniversidade, de apoio a cursinhos pr-vestibulares com prioridade paraestudantes negros e indgenas; no Ministrio da Sade: incluso do quesitoraa/cor nos formulrios oficiais, apoio financeiro a projeto de pesquisaclnica sobre a anemia falciforme em comunidades remanescentes de qui-lombos; no Judicirio: implantao de aes afirmativas nos contratos deprestao de servios de terceiros com a participao de no mnimo 20% denegros; no Ministrio das Relaes Exteriores: concesso de vinte bolsas deestudo anualmente para afrodescendentes na preparao para concorreremao Instituto Rio Branco; no Ministrio da Cultura: ampliao do nmerode certificados de comunidades quilombolas; no Ministrio do Planeja-mento: estabelecimento de uma linha de pesquisa pelo Ipea, com o apoiodo Pnud, rgo da ONU; no Ministrio do Trabalho: instalao de Ncleosde Promoo da Igualdade de Oportunidades e de Combate Discriminaono Emprego e na Profisso nos estados, com base nas Delegacias Regionais doTrabalho; em alguns ministrios: criao de um programa de aes afirma-tivas vinculado ao preenchimento de cargos de direo DAS com metasde participao de 20% de afrodescendentes.

    A partir de 2003, com o incio do governo Lula, outras aes mais espe-cficas comearam a ser implementadas. Simbolicamente, a nomeao doprimeiro ministro negro para a instncia mxima do Judicirio, o SupremoTribunal Federal, teve um significado importante. No plano do ExecutivoFederal, criou-se ainda em 2003 a Secretaria Especial de Polticas de Pro-moo da Igualdade Racial Seppir, reunindo sob seu guarda-chuva umconjunto de aes voltadas para a populao afrodescendente, com destaquepara a atuao junto a comunidades quilombolas, no campo da sade dapopulao negra e tambm na rea do ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira nas escolas.

    Entretanto, se tomamos como referncia os ltimos oito anos, a partirda realizao da Conferncia de Durban, certamente o tema que recebeumais destaque no debate pblico e trouxe impactos mais visveis foi aampliao do acesso de estudantes negros ao ensino superior. Trata-se dachamada poltica de cotas.

    Seja pelo caminho pblico polticas de ao afirmativa em universi-dades federais e estaduais ou privado atravs do Programa Universidadepara Todos ProUni, iniciou-se uma efetiva mudana no perfil dos estu-dantes que ingressam anualmente no ensino superior no pas. Hoje a univer-sidade mais negra, mais misturada, mais diversa. E hoje, sete anos depois

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    da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj ter promovido seuprimeiro vestibular com reserva de vagas para estudantes negros, conta-bilizamos 80 universidades pblicas com algum tipo de ao afirmativano pas. O processo foi rico e diversificado, com adaptaes regionais e namaioria dos casos acompanhado de intenso debate no mbito da comuni-dade universitria.

    Neste sentido a presente publicao uma iniciativa da FundaoHeinrich Bll e da ActionAid Brasil para contribuir com o debate e a refle-xo sobre cenrios presentes e futuros neste campo. Convidamos 10 autorespara elaborar um balano das aes desenvolvidas no mbito das polticaspblicas de promoo da igualdade racial em diversas reas, tais como edu-cao, polticas para comunidades quilombolas, polticas para mulheresnegras, entre outras, assim como promover uma reflexo sobre os princi-pais atores polticos coletivos envolvidos na demanda e presso pela adoodestas polticas, com ateno especial para a atuao dos movimentos eorganizaes antirracistas neste perodo.

    Na primeira parte, cinco artigos apresentam uma anlise crtica sobreas principais polticas de promoo da igualdade racial formuladas e imple-mentadas pelo governo brasileiro, a partir de 2001. Embora saibamos quealgumas delas tiveram incio mesmo antes da Conferncia de Durban,tambm sabemos que o processo de mobilizao para a Conferncia e adivulgao posterior do seu plano de ao influenciaram a agenda governa-mental e ampliaram as condies polticas para que algumas iniciativas eprogramas fossem implementados.

    No primeiro artigo Valter Silvrio apresenta uma anlise histrica sobreas polticas de reduo da pobreza e da desigualdade no Brasil e refletesobre em que medida as desigualdades raciais so contempladas na formu-lao destas polticas. Sua anlise no artigo Evoluo e contexto atualdas polticas pblicas no Brasil: educao, desigualdade e reconhecimentoconcentra-se no perodo a partir dos anos 90, apresentando indicadores dedesigualdade racial em diversas reas e contribuindo com um panoramadas polticas desenvolvidas para lidar com estas desigualdades, principal-mente no campo educacional.

    A lei 10.639/03, que torna obrigatrio o ensino da histria da frica edas culturas afrobrasileiras nas escolas pblicas e privadas de educaobsica, uma poltica de ao afirmativa voltada para a valorizao daidentidade, da memria e da cultura negras, indita no mbito das diretrizescurriculares. O contexto de sua aprovao, sua relao com o contedo da

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    Conferncia e demais aes do Estado brasileiro na educao so abordadospor Nilma Lino Gomes em seu artigo Limites e possibilidades da implemen-tao da Lei 10.639/03 no contexto das polticas pblicas em educao.

    Jos Maurcio Arruti analisa em seu artigo Polticas pblicas para qui-lombos: terra, sade e educao as polticas pblicas para as comunidadesquilombolas, apontando o binmio reconhecimento e redistribuio comomeio de compreenso dos formatos escolhidos pelo governo para as ini-ciativas federais. O autor enfatiza as disputas atualmente existentes nestecampo, inclusive no mbito do governo, em relao titulao de territ-rios quilombolas, envolvendo procedimentos burocrticos cada vez maiscomplexos e embates no executivo, legislativo e judicirio. Tambm apontapara os efeitos ainda limitados de aes no campo da sade e educaovoltadas para estas comunidades.

    Jurema Werneck analisa em seu artigo Mulheres negras brasileiras e osresultados de Durban dados e informaes sobre as polticas pblicas paraas mulheres negras no campo da sade, educao, direitos reprodutivose trabalho, alm dos desafios postos para o movimento de mulheres nasuperao das desigualdades raciais e de gnero. Apresenta, por um lado,os principais indicadores disponveis para anlise das desigualdades degnero e raa combinadas e, por outro, analisa o impacto da implementaoda agenda resultante do Plano de Ao da Conferncia Mundial Contra oRacismo numa estratgia de reduo destas desigualdades.

    Rosana Heringer e Renato Ferreira, no artigo Anlise das principaispolticas de incluso de estudantes negros no ensino superior no Brasil noperodo 2001-2008 analisam o que j foi realizado e quais as perspectivas,lacunas e desafios a serem enfrentados quanto ampliao no acesso eadoo de programas de permanncia de estudantes negros no ensino supe-rior. O artigo aponta tambm as desigualdades raciais existentes no mbitodo ensino mdio e aborda alguns temas correlatos que precisam ser enfren-tados para a promoo de uma efetiva igualdade racial na educao. O textotraz um anexo com dados atualizados sobre as polticas de ao afirmativano ensino superior no Brasil.

    Na segunda parte do livro apresentamos um quadro dos desafios poltico-estratgicos para avanar na reduo das desigualdades raciais. Consideramosque a sociedade civil foi ator determinante para as mudanas polticas esociais em torno do tema das relaes raciais no Brasil nos ltimos anos.Por isso, convidamos quatro autores para analisar os caminhos percorridospela atual luta antirracista e seus desdobramentos.

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    Francine Saillant traz em seu artigo Direitos, cidadania e reparaespelos erros do passado escravista: perspectivas do movimento negro noBrasil, o cenrio do processo preparatrio da Conferncia, em especial ascontribuies dos grupos de mulheres negras a partir da realizao dasconferncias das Amricas, da conferncia nacional e das estaduais, e porfim, a participao brasileira em Durban. Enfatiza as discusses em tornodas formas de reparao das populaes historicamente discriminadas dosmeios econmicos e polticos, vislumbrando a partir do paradigma de Durbanos discursos articulados do movimento negro brasileiro em torno das noesde direitos e de cidadania.

    O movimento negro contemporneo um dos mais ativos na sociedadecivil e o principal ator na luta por polticas de ao afirmativa. Emboravitorioso em muitas conquistas, enfrenta hoje uma agenda extensa, frag-mentada em suas temticas, com vrios atores polticos em disputa cons-tante, em especial aqueles ligados ao debate sobre a adoo das polticas deao afirmativa. Marcio Andr dos Santos reflete em seu artigo Polticanegra e democracia no Brasil contemporneo: reflexes sobre os movi-mentos negros acerca do conceito de movimento negro e das mudanas ocor-ridas ao longo das ltimas dcadas com a institucionalizao desse movi-mento, a partir dos desafios postos quanto participao no Estado.

    tila Roque nos brinda no artigo Construo e desconstruo do siln-cio: reflexes sobre o racismo e o antirracismo na sociedade brasileira,com uma anlise sobre os desafios apresentados s ONGs brasileirasque historicamente no trabalhavam com a temtica das relaes raciais.O momentum proporcionado pela Conferncia teve o grande mrito decriar novos patamares de confiana poltica entre as organizaes e movi-mentos sociais em torno da causa antirracista. Vrios atores tiveram detopar o desafio de discutir uma outra agenda para o Brasil. Uma agendaque os estimulava a declarar o seu compromisso pelo fim das discrimina-es e desigualdades raciais.

    A partir dos anos 1990 observou-se a emergncia de novos atores naluta antirracista. Comeam a se constituir nas favelas e periferias urbanasbrasileiras grupos de jovens ligados a iniciativas de cultura e arte, com umdiscurso de enfrentamento da violncia, afirmao de pertencimento a essesterritrios e um indiscutvel orgulho racial, marca importante de suas men-sagens sociedade. Silvia Ramos pesquisou esses grupos e analisa no artigoNegro Drama quais so suas caractersticas, seus discursos, a articulaode uma nova proposta que imbrica mercado e trabalho social, sua funo

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    de mediao entre outros atores sociais (governo, mdia, organizaes dacooperao internacional, etc.) e o universo jovem das favelas e periferias.Afirma que o ponto fundamental a capacidade desses grupos de articulara problemtica do territrio e da violncia temtica racial.

    Acreditamos que, com este trabalho, oferecemos sociedade brasileirasubsdios para um debate mais informado sobre o estado da arte no que dizrespeito s polticas de promoo da igualdade racial, bem como uma anlisede cenrios possveis para o desenvolvimento de agendas futuras voltadaspara este tema.

    Apesar dos avanos apontados neste livro, muitas aes ainda precisamser implementadas e melhor desenvolvidas. A pobreza atinge desproporcio-nalmente a populao negra no Brasil, e necessrio que nos programas detransferncia de renda como o Bolsa Famlia este tambm seja um critriolevado em conta para identificao de beneficirios. O foco nas comuni-dades quilombolas importante neste sentido, mas no suficiente.

    O ensino mdio ainda precisa ser universalizado e, como o ensino supe-rior, ter o seu acesso ainda mais democratizado, para que tambm garanta oacesso, permanncia, concluso e sucesso de estudantes negros que ingressamneste estgio educacional. A melhoria geral da qualidade da educao nestesentido fundamental, mas preciso que se desenvolvam mecanismos espe-ciais para garantir que os estudantes negros e mais pobres no desistam nocaminho e concluam esta etapa com sucesso.

    O campo da representao poltica ainda um terreno basicamente brancono Brasil, revelando uma subrepresentao de polticos negros nos cargoseletivos. Ainda est para ser iniciado o debate sobre a representao dosnegros na poltica, de forma que o ncleo do poder no Brasil seja maisparecido com o conjunto de sua populao.

    O mesmo ocorre em outros espaos de poder como o judicirio, asforas armadas, os cargos mais qualificados do executivo federal. Polticasde ao afirmativa no servio pblico so necessrias para melhor equili-brar esta representao.

    Existe, portanto, um longo caminho a percorrer. O Brasil vem dandoos primeiros passos, os movimentos sociais que lutam contra o racismo semobilizam e algumas conquistas foram alcanadas nestes oito anos. Porm, preciso que se definam programas mais duradouros, cujos impactos possamser medidos em mdio prazo e que contribuam para a promoo de umaefetiva agenda de igualdade racial no Brasil. J esperamos demais.

  • PARTE 1

  • 131EVOLUO ECONTEXTO ATUALDAS POLTICAS PBLICASNO BRASIL: EDUCAO,DESIGUALDADE ERECONHECIMENTOVALTER ROBERTO SILVRIO1

    INTRODUONo Brasil, a dcada de 1990 pode ser descrita de diferentes formas emaneiras. No entanto, as interpretaes sobre o perodo nos remetem aum consenso em torno da importncia dos obstculos representados pelasdesigualdades raciais ao desenvolvimento econmico e, tambm, para oaprofundamento da democracia. Embora persistam na literatura contro-vrsias em torno dos fundamentos daquelas desigualdades, nos ltimos30 anos, o movimento negro brasileiro2 tem insistido no papel estruturanteda discriminao racial e do racismo na sua reproduo e perenidade.

    1 Professor Associado do Departamento e Programa de Sociologia da UniversidadeFederal de So Carlos/UFSCar.

    2 O movimento negro brasileiro em sua verso contempornea teve incio no dia 07 dejunho de 1978 com um ato pblico nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo.

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    Durante os anos 1980 foram produzidas inmeras anlises socio-lgicas que corroboravam as denncias do movimento negro em rela-o aos obstculos mobilidade social da populao negra no mer-cado de trabalho, com repercusses na vida educacional de crianas ejovens negros.

    Os estudos de Hasenbalg e Valle Silva, por exemplo, foram de grandeimportncia por tratarem de trs temas centrais no desenvolvimentoeconmico recente que permitem uma melhor compreenso do contextobrasileiro, a saber:

    a) as rpidas mudanas na estrutura social ocorridas dentro dos limitesde um modelo de modernizao conservadora, isto , um termo utilizadopara conceituar o crescimento econmico do Brasil, na perodo do golpemilitar de 1964, cuja inteno era manter o capital em mos de empre-srios brasileiros, ou empresas estatais, com todos os custos sociais queso inerentes quela opo; b) a reordenao dos perfis de estratificaoe os processos decorrentes de mobilidade social, que coexistem comfortes desigualdades3 distributivas e persistente pobreza4; e c) o papeldesempenhado pelas diferenciaes raciais na alocao de posies naestrutura social (Hasenbalg e Valle Silva, 1988, 9).

    Em relao diferenciao racial, os autores realizam uma avaliaocrtica das teorias que postulam a incompatibilidade entre racismo eindustrializao e que explicam as desigualdades raciais do presentecomo um legado da escravido e, ao mesmo tempo, demonstram que asdesigualdades raciais devem ser atribudas discriminao racial e segregao geogrfica dos grupos raciais, condicionada inicialmente peloregime escravista e reforada depois pela poltica oficial de promooda imigrao europeia para o sudeste do pas (Hasenbalg e Valle Silva,1988, p.10).

    3 Em linhas gerais, as desigualdades entre negros e brancos no Brasil resultam dasdisparidades na distribuio regional, qualificao educacional e estrutura deemprego que determinam distines na distribuio de renda (Brasil: o estado deuma nao, 2005).

    4 Na prtica a pobreza associada insuficincia de renda. Quando a soma dosrendimentos de um indivduo, ou de sua famlia, insuficiente para satisfazeras necessidades bsicas de alimentao, transporte, moradia, sade e educao,ele ou ela encontra-se em situao de pobreza (Brasil: o estado de uma nao, 2005).

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    As duas principais concluses desses estudos so as seguintes: 1) a supe-rao das desigualdades raciais, com a consequente mobilidade ascen-sional dos negros, s se dar pela implementao de polticas de promo-o diferencial que eliminem os mecanismos discriminatrios presentesno cotidiano nacional; 2) a experincia brasileira contradiz uma propo-sio bsica da chamada tese do industrialismo, segundo a qual ocrescimento industrial produz um aumento da fluidez social.

    Quando olhadas em perspectiva histrica as concluses de Hasenbalge Valle Silva exigem uma melhor compreenso do significado da moder-nizao conservadora e seu impacto na constituio do lugar das polticassociais no processo de desenvolvimento econmico que se instaura nopas a partir do primeiro governo de Getlio Vargas.

    O GOVERNO VARGAS E O PERFILDA POLTICA SOCIAL

    Na poca em que os fins sociais so preponderantemente econmicos,em que se organiza de maneira cientfica a produo e o pragmatismoindustrial elevado a limites extremos, assinala-se a funo do Estado,antes, e acima de tudo, como elemento coordenador desses mltiplosesforos, devendo sofrer, por isso, modificaes decisivas (Vargas, 1938,v.1, p. 192).

    Dois aspectos centrais chamam a ateno nos debates acadmicosacerca do governo Vargas e seus reflexos para as transformaes polti-cas do pas. O primeiro diz respeito s mudanas do papel do Estado emrelao ao desenvolvimento econmico. O segundo est relacionado aoprocesso de desenvolvimento dos direitos de cidadania e o seu conse-quente impacto na formulao de polticas sociais.

    Os marcos de transformaes e/ou mudanas no desenvolvimentoeconmico brasileiro, a partir de 1930, so amplamente consensuais naliteratura especializada e, tambm, aceitos pelos formadores de opiniopblica. As discordncias ocorrem, normalmente, em torno da intencio-nalidade ou no das medidas adotadas pelos governantes e do impactomais ou menos positivo e, tambm, mais ou menos modernizante dasmesmas, no que diz respeito ao desenvolvimento econmico. Em linhas

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    gerais, os marcos correspondem a transformaes internas e/ou externasno mbito econmico-poltico que repercutem tanto na sociedade civilorganizada quanto no arranjo institucional em construo do Estadobrasileiro; eles so os seguintes:

    a) no perodo considerado de grandes mudanas econmicas, entre1930-1945, os aspectos mais enfatizados pela literatura especializada soos impactos da quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, que teve comodesdobramento a crise econmica mundial dos anos 30; b) as mudanaspolticas no pas marcadas pelos dois perodos do governo Vargas,nos quais surgem as primeiras polticas pblicas com preocupaes deproteo social, especialmente dos trabalhadores; c) as repercusses doperodo da II Guerra Mundial na economia brasileira com nfase noprocesso de substituio das exportaes.

    O perodo entre 1946-61 foi marcado pela consolidao da estra-tgia de desenvolvimento apoiada na Industrializao por Substitui-o de Importaes (ISI) no qual se destacam tanto a tentativa deliberao da economia brasileira quanto o programa de metas consi-derado o auge da ISI.

    Na prtica, o plano de metas materializado pelo governo de JuscelinoKubitschek entre 1956 e 1961 foi caracterizado pelo aspecto nacionaldesenvolvimentista da poltica econmica que permitiu, por meio de umplanejamento orientado pelo Estado, a consolidao da indstria comosetor dinmico do desenvolvimento do pas.

    Durante o perodo autoritrio, 1964 a 1985, do ponto de vista eco-nmico chama a ateno que aps um perodo de estagnao ocorre ointitulado milagre econmico brasileiro, entre 1968 e 1973, ao qualse segue um perodo marcado pelo crescimento interno com endivida-mento em um mundo marcado pela crise do modelo econmico at entovigente. As repercusses da ruptura poltica com os preceitos demo-crticos permitiram a introduo de uma agenda marcada pelo controleideolgico dos rgos de formao da opinio pblica e, tambm, pelaperseguio, deportao e morte dos opositores ao regime. Uma dasconsequncias que vem sendo apontada como resultante desse processo que o tipo de modernizao que se instalou sob os governos militaresaprofundou as distncias sociais entre ricos e pobres, a corrupo nasinstituies do Estado, em todos os nveis de governo, beneficiando

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    grupos polticos regionais com vieses coronelistas e patrimonialistas, queinfluenciam a poltica nacional at os dias atuais.

    Em relao ao desenvolvimento dos direitos de cidadania o debate mais complexo uma vez que, no Brasil, as distines tnico-raciais e aintroduo de trabalho livre condicionaram e restringiram a expansodos mesmos para o conjunto de brasileiros e, ao mesmo tempo, noslegou, a partir da dcada de 30 do sculo XX, um Estado formulador depolticas sociais. O primeiro perodo Vargas tem sido caracterizado poraes de forte contedo antiliberal do governo na economia e, tambm,pelo intervencionismo estatal que, de certa forma, conquistou setores dasociedade tanto pela promessa de eficincia quanto de relaes impes-soais entre governo e sociedade que, em tese, contribuiriam para elimi-nar o uso de solues polticas de carter patrimonialistas.

    nesse contexto que surgem as polticas pblicas de proteo social.Em linhas gerais no Brasil as Cincias Sociais que estudam as polticassociais convencionaram consider-las como um campo de estudossobre a ao governamental com objetivos especficos relacionados coma proteo social.

    Alguns aspectos fundamentais presentes na literatura sobre tais pol-ticas so os seguintes: a) em contextos particulares, distintos significadosso atribudos ao termo poltica social; b) tais significados decorrem deconvenincia ou conveno, ou seja, so estabelecidos mediante escolhase/ou acordos. O primeiro aspecto sugere, enfatizando a dimenso hist-rica, que se pode entender e praticar poltica social que, como polticapblica ao de governo de diversos modos, dependendo da naturezado Estado e dos processos decisrios em vigor. O segundo aspecto reiteraa importncia dos atores sociais e de sua capacidade de negociar politi-camente suas posies na agenda pblica (Vianna, M.L.T., 2002).

    Desta tica, como nos mostra Teixeira,

    o campo das polticas sociais pode ser melhor definido sob a gide doconceito de cidadania. Assim, as polticas sociais tratariam dos planos,programas e medidas necessrios ao reconhecimento, implementao,exerccio e gozo dos direitos sociais reconhecidos em uma dada sociedadecomo includos na condio de cidadania, gerando uma pauta de direitose deveres entre aqueles aos quais se atribui a condio de cidados e seuEstado (Teixeira, 1985, pp 400-417).

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    Duas observaes centrais, presentes na literatura sobre cidada-nia, devem ser levadas em considerao na anlise do caso brasileiro.A primeira, formulada por Santos (1979), assevera ter se desenvolvidono Brasil uma cidadania regulada, a qual pode desvendar tanto oscondicionantes impostos pelo Estado ao tipo de poltica social e quaisbrasileiros poderiam ter acesso quanto os obstculos para a livre organi-zao de indivduos e grupos da sociedade civil para lutar por direitos.A segunda, atribuda a Carvalho (2001), nos ensina que, contrariamentes experincias de outras sociedades em relao ao desenvolvimento dosdireitos de cidadania, no caso brasileiro os direitos sociais antecederamos direitos civis e polticos.

    Bobbio (1992), ao analisar a teoria de Marshal (1967), observa trsfases no desenvolvimento dos direitos do homem. A primeira, na qual seafirmam os direitos civis que tm como fundamento reservar para oindivduo uma esfera de liberdade em relao ao Estado. A segunda, osdireitos polticos que concebem a liberdade como autonomia, portanto,para alm do no impedimento, propiciando a participao cada vezmais ampla, generalizada e frequente dos membros de uma comunidadeno poder poltico. E, finalmente, os direitos sociais, como os do bem-estar e da igualdade no apenas formal. So direitos que tendem a igua-lar situaes sociais desiguais (Bobbio, 1992, p.32-33). No caso brasi-leiro, a Constituio de 1988 estabelece, no artigo 6, que so direitossociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana,a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistnciaaos desamparados.

    No Brasil, a sequncia acima sugerida se inverteu, os direitos sociaisforam institucionalmente desenvolvidos a partir da dcada de trinta dosculo XX. No entanto, os direitos civis, mesmo figurando em todas asConstituies, foram constantemente desrespeitados. O peso da heranacolonial, da escravido e da grande propriedade privada so fatores queproduziram um pas comprometido com o poder privado e com umaordem social que, ao negar a condio humana de grande parcela da popu-lao, obstrua e reprimia intencionalmente a participao popular.Assim, aps um sculo do final da escravido e, tambm, do advento daRepblica, as restries ao pleno desenvolvimento dos direitos civis e pol-ticos foram extirpadas pela constituio de 1988, embora os elementos

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    contenciosos do passado permaneam operando na situao presentetanto pela inadequao do arranjo institucional, que se encontra em pro-cesso de mudana, quanto pela interferncia de grupos de interesse queno so representativos, e nem comprometidos com as demandas dossetores populares, que ainda controlam o parlamento brasileiro.

    Um dos resultados mais visveis dessa situao, como descreve o Ins-tituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea), pode ser sintetizado naseguinte anlise:

    a histria mostra que alm de nunca ter sido possvel levar o sistema deproteo social maioria da populao brasileira ocupada deixandodesprotegido tanto o contingente envolvido na economia de subsistnciano meio rural quanto aqueles empregados na vasta variedade de ativi-dades informais que proliferaram nos centros urbanos comeou a haver,desde os anos 1980, a expulso de parte do contingente antes incorpo-rado ao sistema (Ipea, 2007, p.8).

    Assim, a Constituio de 1988, comemorada pelos setores progres-sistas e democrticos e, tambm, intitulada de cidad, numa refernciaexplcita, substantiva e intensa a participao dos setores popularesorganizados, trouxe, no captulo da ordem social, a superao da con-cepo de cidadania regulada, ao incluir no arcabouo da proteo socialo conjunto dos brasileiros independente da existncia de vnculos com omercado de trabalho. Entretanto, ela promulgada no interior de umasituao social paradoxal na qual a vitria parcial dos setores popularesexpressa na ampliao da cobertura das polticas sociais, com vistas universalizao dos benefcios, acompanhada de restries estruturais.

    Como tambm observa o prprio Ipea, no volume sobre o acompa-nhamento e anlise das polticas sociais de 2007:

    os avanos de natureza jurdico-legal e da efetiva ampliao da cober-tura, a implementao das polticas sociais foi sendo condicionada,durante a dcada de 1990, pela combinao de fatores macroeconmicose polticos, que resultaram na configurao de uma agenda pautada porcinco diretrizes bsicas: universalizao restrita, privatizao da ofertade servios pblicos, descentralizao da sua implementao, aumento daparticipao no-governamental na sua proviso e focalizao sobre apobreza extrema em algumas reas da poltica social. (Ipea, 2007, p.8).

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    A complexidade da situao se amplia quando, tambm na dcadade 1990 exigncia dos setores populares organizados pela universa-lizao somam-se demandas histricas de segmentos populacionaisdiscriminados, mulheres, negros e ndios, entre outros, pelo reconheci-mento de sua excluso e do direito a ter direitos que assegurem e preser-vem suas especificidades culturais5. Tais demandas foram reconhecidascomo legtimas e esto presentes na Constituio Brasileira de 1988 e emtese garantem a todos o pleno exerccio dos direitos culturais (art. 215).Ao definir patrimnio cultural brasileiro de forma indireta, aponta comodireitos culturais as formas de expresso, os modos de criar, fazer e viver,as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas. O livre exerccio doscultos religiosos, a livre expresso da atividade intelectual, artstica,cientfica e de comunicao, e os direitos do autor tambm esto expres-samente assegurados na Constituio, no rol dos direitos e garantiasfundamentais (art. 5). A educao figura como direito social (art. 6) etambm como direito cultural (art. 205 a 214).

    Para alm dos fatores macroeconmicos ressaltados como condicio-nantes da efetivao dos avanos de natureza jurdico-legal, as lutassociais por meio das mobilizaes sociais dos chamados movimentossociais identitrios continuam, tanto no sentido da efetiva ampliaouniversal da cobertura quanto no que tange superao de discrimi-naes negativas, inscritas no processo histrico brasileiro.

    Neste sentido, a luta social de mulheres, ndios e negros nas ltimasdcadas acrescentou novos aspectos desconsiderados na visouniversalizante dos direitos de cidadania, qualificando o amplo debatenacional no ps-constituio de 1988.

    5 Os direitos culturais so parte integrante dos direitos humanos. Esto indicados no artigo27 da Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), e nos artigos 13 e 15 doPacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1966). No mbitointeramericano os direitos culturais esto indicados no Protocolo Adicional ConvenoAmericana sobre Direitos Humanos, conhecido como Protocolo de So Salvador(1988). No processo de implementao mundial dos direitos culturais foi adotada pelaUnesco, em novembro de 2001, a Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural.Ao mesmo tempo em que afirma os direitos das pessoas pertencentes s minorias livre expresso cultural, observa que ningum pode invocar a diversidade cultural parainfringir os direitos humanos nem limitar o seu exerccio. Os direitos culturais carecemde maior elaborao terica, para distingui-los de direitos civis, polticos, econmicose sociais. Por exemplo, o direito de autodeterminao dos povos, expresso no PactoInternacional de Direitos Civis e Polticos, tambm um direito cultural.

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    Ao inserir novas necessidades na agenda, os movimentos sociais quepressionam por polticas especficas se deparam com o desafio de, porum lado, assegurar que suas especificidades sejam atendidas por setratarem de diferenas que, embora construdas socialmente em relaoa aspectos inatos de um dado grupo, interferem objetivamente na reali-zao individual do grupo em questo marcando-o socialmente. Por outrolado, a exigncia pela ampliao da cobertura universal para assegurarque todos os brasileiros possam ter acesso proteo social permanececomo um desafio poltico para o conjunto dos setores democrticosorganizados. Assim, a articulao entre poltica universal e poltica comfoco em um dado grupo e/ou segmento social permanece como um desa-fio no Brasil do sculo XXI.

    OS DIREITOS CULTURAIS E A NECESSIDADEDE UM NOVO ARRANJO INSTITUCIONALQuando se trata do debate sobre diversidade cultural e seus desdobra-mentos nas questes das relaes sociais entre brancos e no-brancos possvel observar, com base na trajetria do pensamento e da ao daUnesco sobre a cultura e a diversidade, as mudanas de percurso e dotratamento dessas dimenses da vida social. O tema da diversidadecultural, na chave dos conflitos tnico-raciais, est na raiz da prpriacriao daquela agncia internacional e tem permeado seu pensamentoe aes desde o seu surgimento.

    A Unesco apostou na crena de que elucidar a contribuio dos diver-sos povos para a construo da civilizao seria um meio de favorecer acompreenso sobre a origem dos conflitos, do preconceito, da discrimi-nao e da segregao raciais. Ou seja, a Unesco apostou na ideia de queo conhecimento levaria compreenso e esta seria a base das condiespara a paz. Iniciou ento um ambicioso trabalho de pesquisa histrica,chamado Histria do Desenvolvimento Cientfico da Humanidade, queviria a ser escrita, durante vrios anos, por aqueles que eram identifi-cados como sendo os dois grandes entes scio-polticos e culturais emque se dividia o Mundo: o Oriente e o Ocidente.

    Nesse momento, as ideias de pluralismo, diversidade e interculturali-dade, embora presentes, diziam respeito s relaes entre pases, ou seja,

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    cada Estado-Nao era tido como uma entidade coesa e unitria sob oponto de vista da diversidade.

    Como nos lembrou Lvi-Strauss, em conferncia proferida em 2005por ocasio do sexagsimo aniversrio da Unesco, a abordagem da cul-tura nesse perodo estava ainda muito ancorada na ideia de produoartstica e de conhecimento histrico. Como decorrncia, a diversidadeera tratada exclusivamente como fonte de riqueza, como o tesourocomum da cultura. educao, e no cultura, era atribudo papelpreponderante na luta por banir o mito da superioridade racial.

    No entanto, j no final da dcada de 1940, a representao, no seioda Unesco, de fortes tenses internacionais relacionadas ao fim do colo-nialismo, assim como de discusses sobre os direitos das minorias, demons-trava que, tanto as origens quanto as possibilidades de mitigao demuitos desses conflitos se vinculavam cultura. Em paralelo, ganhavacorpo a ideia de que existiam caminhos prprios de cada povo ou decada cultura para o desenvolvimento, o que devia ser estimulado, desdeque se tomassem precaues contra o isolamento excessivo.

    A partir dos anos 1950, crescente a conexo da cultura no apenascom o desenvolvimento, mas com a poltica e com os direitos humanos.

    O tema dos direitos culturais comparece pela primeira vez no informedo Diretor Geral da Unesco, de 1969, quando se decide pela realizao deum estudo nesse campo. O Informe de 1977 aborda uma questo impor-tante, evitada no ps-guerra, quando a prioridade absoluta da Unesco eragarantir a paz e o entendimento entre estados soberanos. Trata-se do reco-nhecimento da importncia das diferenas culturais internas aos pases.

    Marca este perodo a busca do equilbrio entre a afirmao das identi-dades e a ameaa de divisionismos e de recluso. Uma srie de confernciasintergovernamentais regionais converge para o enunciado otimista daConferncia Intergovernamental sobre Polticas Culturais para AmricaLatina e Caribe, a qual defende que o pluralismo pode ser a verdadeiraessncia da identidade cultural e que esta deve ser considerada como umfator de estabilizao e no de diviso.

    A evoluo dessa trajetria conduziu conexo entre cultura e demo-cracia. A dificuldade de dar consequncia prtica aos conceitos formu-lados levava a Unesco a enfatizar, cada vez mais, a responsabilidade dosgovernos e a necessidade de polticas culturais no mbito de cada pas.

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    A sofisticada viso da cultura que resultou da Conferncia do M-xico, em 1982, ou seja, a sua compreenso como uma faculdade uni-versal e no apenas como um rgido conjunto de padres, trouxe consigoas ideias de renovao, discernimento e escolha crtica, respondendo ameaa de que o pluralismo pudesse se tornar um baluarte contra astrocas interculturais.

    Uma questo concreta o apartheid lana um foco sobre a relaoentre diversidade e igualdade, ou seja, evidencia-se a conexo com osdireitos humanos. No final da onda de descolonizao, o Plano de MdioPrazo da Unesco afirmava que o verdadeiro usufruto da condio deliberdade pelos povos depende de pr-requisitos que vo alm da suanova condio legal e poltica, mas de fatores econmicos, sociais e cul-turais. O foco na democracia e na promoo de direitos econmicos,sociais e culturais demonstra, na prtica, a relao entre cultura e pol-tica identificada em dcadas anteriores.

    O incio da dcada de 1990 enfatiza a importncia da cooperaocultural internacional, considerando a crescente interdependncia entrecultura e economia, a crescente reafirmao de identidades e o desenvol-vimento de sociedades cada vez mais multiculturais. Acentua-se a preocu-pao com os conflitos resultantes de sociedades fragmentadas e comple-xas, ou seja, multitnicas, multiculturais e multireligiosas. A nfase recainovamente sobre as polticas pblicas no mbito dos pases, que devemcuidar das relaes entre comunidades internas e reforar a coeso social.

    Na dcada seguinte, o cenrio da Conveno de 2005 o da globa-lizao. Vista pelo lado da cultura, a globalizao corresponderia transmisso e difuso, para alm de fronteiras nacionais, de conheci-mentos, ideologias, expresses artsticas, informao e estilos de vida.No caberia ingenuamente conden-la ou defend-la, mas buscar, inces-santemente, visualizar seus contornos mutantes. preciso agir para, deum lado, estender a todos o seu imenso potencial de expresso e inova-o, e, do outro, reduzir assimetrias e defender as culturas mais vulner-veis do risco da completa marginalizao ou supresso6.

    6 Palestra ministrada por Vincent Defourny sobre a Conveno para a Proteo ePromoo da Diversidade das Expresses Culturais. Seminrio Brasil Canad sobre aDiversidade Cultural Braslia, 27 de maro de 2007.

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    O GOVERNO LULANa dcada de 90 as mudanas da agenda poltica das principais organi-zaes do movimento negro brasileiro coincidiram com o momento deconformao do estado liberal democrtico no Brasil. Essas mudanaspossibilitaram que tais organizaes se deslocassem do campo da denn-cia para a crescente utilizao de mecanismos jurdico-polticos tanto paracriminalizar a discriminao e o racismo, como coletividade, quanto paraexigirem polticas pblicas compensatrias pelos danos espirituais emateriais causados pelo racismo e pela discriminao passados.

    A relevncia da questo racial para o equacionamento da questosocial no pas ficou mais evidente quando, durante a campanha presi-dencial de 2002, os principais candidatos presidncia da Repblica seviram obrigados a tratar, no debate pblico em rede nacional de televi-so, o tema das aes afirmativas para negros.

    A vitria de Lula, um nordestino, ex-lder sindical, ex-operrio,gerou um conjunto de expectativas em relao s mudanas pelas quaisvrios movimentos sociais lutam pelo menos h trs dcadas.

    Em relao ao Movimento Negro tais expectativas se tornaram aindamaiores quando, de forma indita na histria do pas, o presidente eleitonomeou dois ministros de Estado identificados como afrodescendentes.

    A positividade do cenrio se expandiu quando Lula sancionou, nodia 09 de janeiro de 2003, a lei n 10.639, a primeira do seu governo.A referida lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da educao nacional eintroduz a obrigatoriedade da temtica histria e cultura afrobrasileirano ensino bsico7.

    Durante o primeiro ano, em meio a controvrsias e ambiguidades, odiagnstico que inspirava as iniciativas governamentais em relao questo tnico-racial, como citamos abaixo, coincidia com as expec-tativas da maioria dos grupos e entidades negras espalhados por todo opas. Alm disso, o surgimento, no mbito do Ministrio da Educao,

    7 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizese bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da Rede de Ensinoa obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afrobrasileira, e d outrasprovidncias.

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    da Secretaria de Educao Continuidade Alfabetizao e Diversidade(Secad)8, em 2003, indicava a importncia que o tema da diversidadetnico-racial assumiria na rea de poltica social do governo Lula.

    Os dados estatsticos disponveis apontam para um agudo quadro dedesigualdade entre os grupos raciais que compem a sociedade brasi-leira. O modelo de relaes raciais no Brasil materializa, em toda asociedade, um tipo de segregao amparada nos preconceitos e nosesteretipos disseminados e sustentados pelas instituies sociais, dentreelas a escola. Essa questo transborda a esfera individual e constitui-seem fato presente no cotidiano da populao negra. A cor explica partesignificativa da variao encontrada nos nveis de renda, educao,sade, moradia, trabalho, lazer, violncia, etc. O racismo representa umelemento que tem determinado as desigualdades entre negros e brancosna sociedade brasileira, contrariando noes de cidadania, democraciae direitos humanos proclamadas pelo Estado (Relatrio de Gesto daSecad, 2004).

    Tudo levava a crer que no interior do governo vrios olhares eouvidos estavam atentos ao debate em torno da questo racial nasociedade brasileira, que j naquele momento ganhava mais espao naesfera pblica.

    Esse momento mostra-se profcuo para a reconfigurao de aes vol-tadas superao das desigualdades entre negros, indgenas e brancosna sociedade, visto que o Estado brasileiro signatrio de vrios tratadose convenes internacionais que advogam a eliminao da discriminaotnica, racial e de gnero (Relatrio de Gesto da SECAD, 2004).

    A preocupao com a educao e a escola ganha centralidade nosvrios pronunciamentos governamentais, como forma de superao dograve quadro de iniquidade social com base nas diferenas raciais.

    Muitos estudos confirmam que a questo racial tratada, na escola, demaneira displicente, com a propagao de aspectos legitimadores do

    8 Embora tenha surgido em 2003, a Secretaria de Educao Continuada,Alfabetizao e Diversidade Secad obteve sua condio como nova unidadeadministrativa do Ministrio da Educao (MEC) em 2004, por meio do Decreton 5.159, de 28 de Julho de 2004.

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    status quo, o que inibe a formao de uma identidade negra. O cotidianoescolar apresenta-se, desse modo, marcado por prticas discriminatriasque se refletem nas expectativas negativas sobre as possibilidades inte-lectuais dos/as negros/as, o que tem um enorme impacto no rendimentodos estudantes afrodescendentes (Relatrio de Gesto da SECAD, 2004).

    Com o surgimento da Secretaria Especial de Polticas de Promooda Igualdade Racial (Seppir)9, que tem como funo precpua transver-salizar a questo da diversidade tnico-racial em todos os Ministrios,as promessas governamentais ganhavam a possibilidade de se materiali-zarem de forma institucional. Assim, no primeiro ano do primeiro man-dato do governo Lula as aspiraes dos movimentos sociais identitriosem geral e, em especial, do movimento negro ganhavam a cena do debatepblico com intensidade gerando expectativas em torno de formulaesde polticas pblicas que, ao mesmo tempo, criassem um novo desenhoinstitucional e enfrentassem as iniquidades sociais construdas com basenas diferenas inatas. Mas, de alguma forma, isto no se deu a contento.Ento a questo a ser respondida a seguinte: o que tem inviabilizado oaprofundamento da ao governamental no tratamento das gravssimasdesigualdades sociais brasileiras que colocam, com base nos indicadoressociais, negros e brancos em plos opostos? E as propostas e proposi-es na rea da educao esto respondendo aos anseios do movimentonegro organizado e da populao negra em geral?

    Antes de responder as indagaes acima vale a pena dizer que, deacordo com a influente noo de Lowi (1964), os objetos de deciso dopoder poltico, em termos de polticas pblicas, compem arenasdecisrias que se dividem conceitualmente em trs tipos: regulatria,distributiva e redistributiva. A arena regulatria trata, por exemplo, dalimitao ou concesso de atividades, como a privatizao ou concessodireta de servios pblicos. A arena distributiva trata de estimular oudesestimular setores e atividades j existentes e regulamentados, como o caso da concesso de subsdios. A arena redistributiva intervm na

    9 A lei 10.678 de 23 de maio de 2003 criou a Secretaria Especial de Polticas dePromoo da Igualdade Racial da Presidncia da Repblica (publicada no DOU em 26de maio do mesmo ano).

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    estrutura econmica da sociedade criando mecanismos que diminuamas desigualdades sociais. Polticas sociais no campo da educao e sadeso exemplos de arenas redistributivas indiretas, pois influenciam emlongo prazo a diminuio da desigualdade social. Programas sociais comorenda mnima ou bolsa escola so exemplos de arenas redistributivasdiretas, pois caracterizam transferncia monetria direta para as pessoasmais pobres da sociedade.

    Duas posies contrastantes emergem com maior vigor e ganhamvisibilidade ao subsidiarem de forma concreta o desenho da polticapblica brasileira nos ltimos 12 anos, com especial destaque di-menso redistributiva da poltica social com centralidade na educao.A primeira, mais visvel durante o governo FHC, na qual o foco deveriaincidir prioritariamente sobre a universalizao do ensino fundamentala partir de um diagnstico que os problemas do ensino bsico repercu-tem no ensino superior de vrias maneiras. A principal delas seria nodotar os jovens, especialmente os de origem scio-econmica pobre, dascondies necessrias para competir pelo acesso ao ensino superior consi-derado reduzido e elitista, no somente em termos de nmero e compo-sio social dos estudantes que admite, mas tambm em seu formato,baseado em um suposto modelo nico de organizao universitria.

    Os desdobramentos efetivos desse diagnstico, quando transformadoem aes polticas concretas, foram, por um lado, o abandono do inves-timento nas universidades pblicas federais e, por outro lado, o estmuloao aumento quantitativo das instituies de ensino superior privadas,com um entendimento que leva a supor que a educao superior umamercadoria como outra qualquer que pode ser comprada no mercado.O pressuposto bsico dessas aes concretas era a existncia de umacrise no sistema educacional universitrio pblico que se resumia ao ele-vado custo. Isso impediria o Estado de continuar arcando com o finan-ciamento do sistema.

    As solues propostas foram a racionalizao dos gastos e a observa-o estrita da relao custo-benefcio, a diversificao do ensino superior,isto , a coexistncia de instituies multifuncionais (que conjuguempesquisa bsica, ensino e extenso) e outras instituies, por exemplo,dedicadas exclusivamente ao ensino e, tambm, um sistema de avalia-o do desempenho acadmico.

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    Uma das concluses dessa posio que caberia ao Estado subsidiarcom recursos apenas aquelas instituies multifuncionais dedicadas aodesenvolvimento de pesquisa bsica com notrio desempenho.

    Durante o primeiro mandato do governo Lula (2003-2006) se observauma mudana no tratamento da poltica pblica ao reconhecer a impor-tncia da participao dos setores populares organizados na concepoe no desenho da poltica sob a bandeira da incluso social.

    Em relao populao afrobrasileira a incluso social, diferente-mente do governo FHC, que optou pela criao de um Grupo de TrabalhoInterministerial (GTI) para propor polticas de valorizao da popula-o negra, o governo Lula optou por uma viso integral e sistmica dapoltica social, ao menos na sua concepo, na qual a criao da Seppirganha relevncia quando analisamos a sua misso.

    A misso da Secretaria Especial de Polticas de Promoo da IgualdadeRacial (Seppir) estabelecer iniciativas contra desigualdades raciais nopas. Seus principais objetivos so:

    1) promover a igualdade e a proteo dos direitos de indivduos egrupos raciais e tnicos afetados pela discriminao e demais formasde intolerncia, com nfase na populao negra;

    2) acompanhar e coordenar polticas de diferentes ministrios e outrosrgos do governo brasileiro para a promoo da igualdade racial;

    3) articular, promover e acompanhar a execuo de diversos programasde cooperao com organismos pblicos e privados, nacionais einternacionais;

    4) promover e acompanhar o cumprimento de acordos e convenesinternacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito promooda igualdade e combate discriminao racial ou tnica;

    5) auxiliar o Ministrio das Relaes Exteriores nas polticas interna-cionais, no que se refere aproximao de naes do continenteafricano (www.planalto.gov.br/seppir).

    Para tanto, a Seppir toma como referncia poltica o programa Brasilsem Racismo, que abrange a implementao de polticas pblicas nasreas do trabalho, emprego e renda; cultura e comunicao; educao,sade, quilombos, mulheres negras, juventude, segurana e relaes

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    internacionais. Em que pese a indistino entre reas temticas e pbli-cos especficos a que se destina a poltica, fica evidente a necessidade deatuao sistmica.

    As dificuldades da Seppir em cumprir a sua misso e atuar sistemi-camente decorrem, fundamentalmente, dos entraves internos ao go-verno, que restringem e limitam suas aes. Entre eles convm destacaros seguintes:

    a) embora a Seppir encontre-se vinculada Presidncia da Repblica,como uma secretaria especial com status de ministrio, seu oramento irrisrio para uma atuao efetiva e consistente de transversalizao dasquestes tnico-raciais no interior do governo; b) a composio de suaequipe foi feita, e tem sido reformulada, mais com base em critriospolticos do que em critrios tcnicos; c) a manuteno do desenho insti-tucional anterior, especialmente nos ministrios tradicionalmente consi-derados mais importantes na conduo da agenda poltica do governo,tem sido impermevel s tentativas de incluir temas relativos questotnico-racial nos mesmos; d) a existncia de discordncias sobre o efetivopeso da discriminao racial e do racismo, na composio dos fatoresque geram e compem as desigualdades, aparecem discursivamente, porexemplo, na nfase na indistino de cor da parcela da populao brasi-leira em situao de pobreza e/ou abaixo da linha da pobreza.

    Assim, nos constantes embates sobre os rumos da poltica social, poucoimportam os dados quantitativos, produzidos pelo prprio governo, osquais revelam as distines e distncias entre brancos e negros no Brasilcontemporneo. As resistncias intragovernamentais, que refletem astenses presentes no debate pblico, expressam-se no baixo grau de inova-o institucional e na manuteno de proposies de programas sociaisinsensveis, ou cosmeticamente sensveis, s diferenas tnico-raciais.

    Um exemplo da gravidade do quadro so as concluses presentes nadeclarao da Sociedade Civil das Amricas com vistas ConfernciaMundial de Reviso de Durban, encontro realizado em Braslia de 13 a15 de junho de 2008, nas quais podemos ler o seguinte:

    A Sociedade Civil das Amricas enfatiza a importncia da ConfernciaMundial contra o Racismo como um evento significativo para todas asvtimas do racismo, a discriminao racial, a xenofobia e todas as formascorrelatas de intolerncia nas Amricas.

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    Sete anos aps a aprovao da Declarao e do Plano de Ao de Durban,apesar dos esforos da Sociedade Civil e de alguns Estados da regio,no existe a institucionalizao nem os recursos oramentrios necess-rios para implementar os compromissos estabelecidos, e os Estados notm criado as condicionantes para uma participao efetiva e paritriada sociedade civil no desenho, implementao das polticas.

    As mulheres continuam enfrentando o racismo, a discriminao e a xeno-fobia por sua condio de gnero, raa e etnia, sua orientao sexual,religio, idade, capacidades especiais, que se manifestam em diversasformas de abuso e explorao sexual, excluso, trfego e violncia doms-tica e institucional.

    Vivemos num contexto onde o aumento dos fundamentalismos de ndolereligiosa, econmica e ideolgica, que nega a diversidade cultural e osdireitos humanos para as vtimas do racismo se associam com o modelode desenvolvimento neoliberal desumanizado que tem consequncias demltiplas formas de excluso, pobreza, incremento da desigualdade,racismo e discriminao.

    A violncia racial estrutural que afeta a grande maioria dos 150 milhesde afrodescendentes da regio alarmante e inaceitvel, exigindo aesimediatas, urgentes e comprometidas tanto dos Estados como das insti-tuies internacionais e intergovernamentais. Essa violncia racial mani-festa-se em deslocamentos forados, criminalizao de jovens, genocdiojustificado na delinquncia ou conflitos internos, inexistncia de polticaspblicas, negao poltica, explorao social de jovens e meninas, tr-fico de mulheres jovens, negao do direito ao registro e identidade jur-dica, violncia contra as mulheres e sobrerepresentao de jovens nosistema penitencirio.

    ALGUNS INDICADORES SOBRE DESIGUALDADESENTRE NEGROS E BRANCOSOs indicadores de desigualdades usados com maior frequncia, pelosrgos governamentais e analistas em geral, so aqueles relacionados spolticas pblicas redistributivas indiretas como, por exemplo, educao.Mais precisamente a mensurao das distncias educacionais, em termosda diferena de anos de escolarizao entre negros e brancos aparecemusualmente para demonstrar as iniquidades sociais do pas.

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    importante ressaltar que esse foco na educao est associado aofato de que as perspectivas analticas, embora variem nas respostas,mostram que cada ano de acrscimo de escolarizao representa 10% deaumento na renda de um indivduo no Brasil. Assim, o quadro abaixo tempor objetivo mostrar a centralidade da poltica educacional tanto naexplicao dos diferenciais de renda, entre negros e brancos, quanto daefetiva contribuio da discriminao racial na manuteno desses diferen-ciais enquanto o pas permanecer exclusivamente com polticas universais.

    QUADRO 1

    VELOCIDADES DE REDUO DE TAXAS DE DESIGUALDADESENTRE NEGROS E BRANCOS 1995-2005

    Educacional

    Diferena em anos de escolarizao Projeo dedesfavorvel aos negros igualdade

    Perodo 1995 2005

    Jovens e adultos> 14 anos 2,1 anos 1,8 anos 67 anosJovens e adultosde 15 a 24 anos 1,9 anos 1,5 anos 40 anos

    Emprego e renda Rendimento per capita

    Diferena de rendimentos Projeo dedesfavorvel aos negros igualdade

    Perodo 1995 2005

    Brancos R$ 582,00 R$ 590,00 + de 100 anosNegros R$ 245,00 R$ 270,00

    58% 54,3%

    Pobreza

    Negros e brancos abaixo Projeo de sadada linha da pobreza da linha da pobreza

    Perodo 1995 2005

    Brancos 25,6% 22,9% 65 anosNegros 53,4% 46,3%

    Fonte: Ipea, 2007 Sntese do autor

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    As pesquisas quantitativas tm demonstrado o afunilamento e aexcluso: em 2004, 6 milhes de crianas cursaram a 1 srie do fun-damental, mas apenas 2,8 milhes concluram a 8 srie (46,1%) esomente 1,6 milho (26,6% do total) de jovens terminaram o ensinomdio. Outro dado importante que na 1 srie do fundamental cercade 2/3 da turma vm dos segmentos mais pobres. J no ensino superior opercentual de pobres inferior a 5% (Estado da Nao, 2006, p.130).Uma das concluses que se pode tirar desses estudos que como amaioria da populao negra pobre, ela fica majoritariamente retidano ensino fundamental.

    O quadro acima demonstra que, mantidas a velocidade das taxas dereduo das desigualdades entre negros e brancos, entre 1995 e 2005, econsiderando que a educao respondesse s necessidades de formaocom a qualidade exigida pela sociedade, para que todos os jovens e adultosconclussem os nveis educacionais com sucesso, os negros demorariamde 40 a 67 anos para se igualarem, em termos de anos de escolarizaomdia, aos brancos e mais de 100 anos para atingirem os mesmos nveissalariais. Em relao linha de pobreza, os indicadores de presena dapopulao negra, nos ltimos 10 anos, so mais que o dobro dos da popu-lao branca. Assim, ao se manter a velocidade do perodo acima men-cionado os negros demorariam 65 anos para sarem daquela condio.

    Os estudos tendem a subsumir a questo tnico-racial condioscio-econmica, concluindo que bastaria atuar sobre os fatores econ-micos das desigualdades (distribuio regional, qualificao educacio-nal e estrutura de empregos) para que os indicadores dos diferenciaisentre negros e brancos tendessem convergncia. Dito de outra forma,com a universalizao e garantia de educao bsica de qualidade aclivagem tnico-racial no teria qualquer impacto na realidade social.

    O Ipea, ao decompor os diferenciais de rendimento, entre 1995 e2005, conseguiu separar os percentuais dos diferenciais salariais, entrebrancos e negros, que esto relacionados ao efeito da discriminaoracial e s diferenas de educao formal. Conforme a tabela a seguir,no indicador que pode ser chamado de termo de discriminao o pres-suposto que ambos os grupos teriam os mesmos nveis educacionais.J o segundo indicador composto das diferenas de formao, emtermos de educao formal.

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    DECOMPOSIO DOS DIFERENCIAIS DE RENDIMENTOENTRE BRANCOS E NEGROS

    Ano Termo de discriminao Diferenas de formao

    2005 40,1% 59,9%2001 41,4% 58,6%1995 41,7% 58,3%

    Fonte: Ipea, 2007 (Base Pnads 1995/ 2001/2005)

    Entre 1995 e 2005 a diferena salarial entre negros e brancos desfa-vorvel aos negros quando decomposta mostrava que as diferenas deformao (escolarizao) e a discriminao racial e o racismo respondiam,respectivamente, por 59% e 41%. Nos 10 anos observados houve umapequena diminuio de 1,6% do impacto do termo de discriminao nacomposio das diferenas salariais entre negros e brancos.

    De acordo com o Ipea, a melhor medida unidimensional de bem estar a renda. Assim, por exemplo, uma poltica educacional de qualidadepode atuar, simultaneamente, na reduo do peso relativo tanto da discri-minao racial quanto das diferenas de formao nos diferenciais derendimento de negros e brancos.

    Em relao ao desemprego o impacto da escolarizao tambm excepcional: em 2002 um indivduo cursando o ensino mdio tinha 17,6%de probabilidade de estar desempregado e caso tivesse cursando o supe-rior a probabilidade caa para 5,4% (Educao & Conjuntura, 2004, 4;Brasil o estado de uma nao, 2006, 121-228).

    Em sntese, nos ltimos 50 anos de expanso do ensino no pas osacertos so maiores que os erros, mas a correo dos erros ser determi-nante para o encontro do pas com um tipo de crescimento que possacorrigir as desigualdades.

    Os estudos observam, tambm, que na atual fase do desenvolvimentobrasileiro foram criados os mais variados filtros para o progresso indivi-dual por meio da escolaridade e que, portanto, os caminhos para o su-cesso individual vo ficando cada vez mais estreitos. Assim, cresce aconscincia de que a educao tanto um fator de mobilidade para osque a tm quanto de imobilidade para os que no a tm.

    O argumento pressupe que as autoridades governamentais brasileirasno esto totalmente convencidas da importncia nuclear da educaode qualidade para o processo de crescimento e desenvolvimento do pas.

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    De acordo com Balbachevsky (2005), os anos 1990 foram marcadospor profundas mudanas na economia as quais tiveram forte impacto nosistema de educao do pas. Tais mudanas, oriundas das presses daopinio pblica, ocasionaram o afastamento de uma perspectiva at entodominante que priorizava a formao de uma elite intelectual cientfica,e ganhou fora uma perspectiva que valoriza polticas voltadas quali-ficao geral da fora de trabalho. Essa mudana de perspectiva tendeua valorizar a graduao e o desenvolvimento das competncias dos estu-dantes que so exigidas pelo mercado de trabalho, por exemplo, enten-dimento bsico de matemtica. , tambm, a partir deste perodo que seintensificaram as reivindicaes e lutas concretas dos setores organiza-dos, por incluso com equidade e justia social.

    As aes afirmativas trouxeram para o centro do debate pblico, porexemplo, as disparidades no acesso ao ensino superior de qualidade, nor-malmente mas no exclusivamente pblico, entre brancos e no-brancos(negros e indgenas). Este processo alm de desencadear um amplo de-bate nacional em torno do direito ao acesso ao ensino superior, tambmlanou novas luzes sobre a eficcia e (re) significaes das doutrinas racis-tas no Brasil contemporneo. A questo presente nos inmeros debates a seguinte: por que o foco tem recado sobre o ensino superior?

    Porque, segundo Braga, h uma impressionante similaridade entreo perfil dos estudantes do ensino mdio privado e do ensino superiorpblico. De acordo, com um estudo da Hoper Educacional h umataxa de transferncia da ordem de 90% de alunos do ensino mdioparticular para o superior (Braga, 2004; Estado da Nao, 2006, p.153).O mesmo ocorre com o ensino superior privado onde 70% dos seusestudantes pertencem ao segmento dos 20% mais ricos.

    O debate brasileiro sobre educao tem avanado substantivamentedesde a ltima dcada do sculo XX, em especial em relao ao impactoda mesma sobre a economia e o desenvolvimento. No entanto, o inciodo sculo XXI tem sido marcado por uma ampla reivindicao dos seto-res organizados por incluso com equidade e justia social.

    Na dimenso econmica, as propostas de ao afirmativa (ou de cotaspara negros e indgenas) repem para o debate pblico e acadmico asimplicaes sociais da desconsiderao da influncia das caractersticasadscritas, tais como sexo e raa, na distribuio de oportunidades sociais

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    e na manuteno e reproduo de padres de desigualdade. Denuncia-seque a proposio bsica da tese do industrialismo, segundo a qual ocrescimento industrial produz um aumento da fluidez social, no se reali-zou no Brasil. Ao contrrio, a rigidez e a perpetuao das desigualdades,entre brancos e no-brancos, e entre mulheres e homens, nos remete depronto a analisar a eficcia dos mecanismos de reproduo da desigual-dade social no que diz respeito s suas origens e fatores condicionantes.

    Na dimenso simblica, as polticas de ao afirmativa respondem demanda por reconhecimento articulada pelos movimentos sociais notradicionais, isto , que tm por fundamento uma identidade cultural.Tendo em conta que o tnico e o nacional so fenmenos da mesmanatureza, ainda que de diferente magnitude, uma concepo ampliada ehistrica da diversidade pode articular todas as diferenas includas astnicas e promov-las com maior dignidade. Assim, os sistemaseducativos formais, cuja tendncia tem sido a de privilegiar o acesso aum tipo de conhecimento, em detrimento de outros, esto desafiados aconceberem a educao de forma mais ampla, seja ao procederem a refor-mas educativas ou ao elaborarem propostas curriculares.

    No primeiro caso, a superao da injustia econmica requer umalgica para sua superao em que no haja lugar para diferenciaohierrquica grupal, pois nenhum grupo admite ser mais explorado doque outro (Fraser, 1997). No segundo caso, a injustia simblica deman-da uma lgica para sua superao, na qual central o processo de dife-renciao grupal.

    A emergncia dos movimentos sociais de mulheres, ndios, negros,por exemplo, no deixa de ser um dos principais indicadores de queesses grupos, e, consequentemente, dos indivduos a eles pertencentes,sofrem com o que podemos denominar de um dficit de cidadania emsuas sociedades. Isso tem estimulado tanto a ampliao de suas organi-zaes por demandas especficas quanto, em vrios Estados nacionais,mudanas da matriz de polticas pblicas ao se reconhecer que taisgrupos precisam ser tratados desigualmente para atingir a to reivindi-cada igualdade de tratamento nas vrias esferas da vida social (Silvrio,2006, p.7). No Brasil, o movimento negro tem insistido na necessidadede mudanas estruturais na poltica educacional brasileira como formade reconstituio do pacto social.

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    A poltica de discriminao positiva na educao abre um caminhopossvel para as sociedades contemporneas aprofundarem variados pro-cessos de democratizao com incluso social. Existem vrios gruposelegveis para uma poltica de discriminao positiva. Na prtica, noentanto, tais polticas quase sempre esto orientadas para membros deum grupo identitrio (ou grupo que assume uma identidade tnica e ouracial), isto , um grupo que definido em termos de caractersticas queno so matria de escolhas voluntrias, geralmente determinadas pelonascimento e raramente alteradas ou alterveis.

    O Brasil na primeira dcada do sculo XXI tem experimentado umconjunto de tenses sociais, fruto do prprio processo de democratizao,que recolocaram, entre outras, a questo da discriminao racial e doracismo no centro do debate pblico. As cotas para negros e ndios naeducao superior se propagaram e hoje esto presentes em mais de 80instituies pblicas. O grande problema que esta propagao no vemsendo acompanhada de medidas governamentais condizentes para a manu-teno de iniciativas institucionais que, por um lado, expressam a sinto-nia daquelas instituies com os anseios populares de incluso efetiva e,por outro, experimentam a insegurana causada pelo silncio dos poderespblicos em relao s necessidades de destinao oramentria espec-fica para que os programas de aes afirmativas se configurem em prota-gonistas de um amplo processo de mudana no perfil das elites nacionais.

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  • 392LIMITES EPOSSIBILIDADES DAIMPLEMENTAODA LEI 10.639/03NO CONTEXTO DASPOLTICAS PBLICASEM EDUCAO1

    NILMA LINO GOMES2

    A Constituio Federal de 1988 define a educao como um direito social.A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei n 9394/96) e oPlano Nacional de Educao (Lei n 10.172, de 9/01/01) traduzem estadefinio jurdica em desdobramentos especficos nacionais e legislaescomplementares (por exemplo, a Lei 10.639/03 que torna obrigatrionas escolas pblicas e privadas da Educao Bsica a incluso da tem-tica Histria da frica e das culturas afrobrasileiras). Estes desdobra-mentos se configuram como componentes das polticas educacionais e

    1 Agradeo as crticas e sugestes de Miguel Arroyo e Luiz Fernandes Dourado durantea elaborao do artigo.

    2 Professora da Faculdade de Educao da UFMG. Coordenadora Geral do ProgramaAes Afirmativas na UFMG.

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    so base importante para a realizao das mesmas. Portanto, no mbitoda proposio, a Lei 10.639/03 se configura como uma poltica edu-cacional de Estado.

    A Lei 10.639 de 20033 e suas respectivas formas de regulamentao(resoluo CNE/CP 01/2004 e parecer CNE/CP 03/2004) vinculam-se garantia do direito educao. Elas o requalificam incluindo neste odireito diferena. A sua efetivao como poltica pblica em educaovem percorrendo um caminho tenso e complexo, no Brasil. possvelperceber o seu potencial indutor e realizador de programas e aes dire-cionados sustentao de polticas de direito e de reforo s questesraciais em uma perspectiva mais ampla e inclusiva. Estes vm sendo reali-zados pelo MEC e, em graus muito diferenciados, pelos sistemas deensino. No entanto, dada a responsabilidade do MEC, dos sistemas deensino, das escolas, gestores e educadores na superao do racismo e naeducao das relaes tnico-raciais, as iniciativas para a concretizaodessa poltica ainda se encontram em um nvel incipiente. A sua efetiva-o depender da necessria mobilizao da sociedade civil a fim de queo direito diversidade tnico-racial seja garantido nas escolas, nos curr-culos, nos projetos poltico-pedaggicos, na formao de professores,nas polticas educacionais, etc.

    Com avanos e limites a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curricularespossibilitaram uma inflexo na educao brasileira. Elas fazem parte deuma modalidade de poltica at ento pouco adotada pelo Estado brasi-leiro e pelo prprio MEC. So polticas de ao afirmativa voltadas paraa valorizao da identidade, da memria e da cultura negras.

    O desencadeamento desse processo no significa o seu completoenraizamento na prtica das escolas da educao bsica, na educaosuperior e nos processos de formao inicial e continuada de professo-res(as). A Lei e as diretrizes entram em confronto com as prticas e como imaginrio racial presentes na estrutura e no funcionamento da educa-o brasileira, tais como o mito da demcracia racial, o racismo ambguo,a ideologia do branqueamento e a naturalizao das desigualdades raciais.

    3 Essa lei foi alterada pela Lei 11.645 de 10 de maro de 2008, passando a incorporartambm a histria e cultura dos povos indgenas.

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    Essa legislao e suas diretrizes precisam ser compreendidas dentrodo complexo campo das relaes raciais brasileiras sobre o qual incidem.Isso significa ir alm da adoo de programas e projetos especficos vol-tados para a diversidade tnico-racial realizados de forma aleatria edescontnua. Implica a insero da questo racial nas metas educacio-nais do pas, no Plano Nacional da Educao, no Plano de Desenvolvi-mento da Educao, nos planos estaduais e municipais, na gesto daescola e nas prticas pedaggicas e curriculares de forma mais contun-dente. Significa, portanto, a realizao de uma mudana radical naspolticas universalistas, a ponto de toda e qualquer iniciativa de polticapblica em educao no Brasil passar a incorporar explicitamente adiversidade tnico-racial.

    Nesse processo, faz-se importante o dilogo com a sociedade civil e,mais particularmente, com o movimento negro. A Lei 10.639/03 e suasdiretrizes curriculares nacionais so fruto de um processo de lu