Caminhando, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Sábado, 10 de janeiro de 2015 A Editor: Jary Mércio Tel. 3221-6609 Email: jary@odiario@com Cultura D1 Na manhã de 7 de setembro, o calor endiabrado não afastou o público da avenida XV de No- vembro: crianças, adultos e ido- sos à espera do tradicional des- file cívico-militar da cidade. De cima do palco, Madalena Alves pode ser vista em seu terno elegante, em meio a políticos e personalidades locais. Sere- na, ela não aparenta qualquer resquício de nervosismo. Faz muito tempo, aliás, que Mada- lena não se sente nervosa quan- do sobe num palco. Desde que passou a ser convidada para en- toar o hino do País nos desfiles de Sete de Setembro, em 1997, Madalena vem amadurecendo sua técnica vocais e já não se apavora com o que pode vir pela frente. Ela já está acostu- mada. Do palco, Madalena enxerga logo ali embaixo as três senho- ras que, anualmente, saem de casa para ouvi-la entoar o hino. E quando descer do palco, após a apresentação, Madalena sabe que as três desconhecidas se- nhoras estarão à espera dela na escada do palco, prontas para recebê-la com fortes abra- ços e agradecimentos. Enquan- to pensa na calorosa recepção que ganhará das três senhoras, Madalena recebe o sinal da pro- dução. Que se ajeite e se prepa- re: o show vai começar. Outro sujeito se aproxima e lhe entrega o microfone. A postos, o tecladista dá o sinal com a cabeça. E, no palco, Madalena inicia a sua interpretação do hino. “O que eu gostoédeapresentaraminhaver- são, mais lenta e lírica. Só canto o hino no formato marcial quando mepedem”,diz. Naquele 7 de setembro, após terminar o hino, Madalena só não contava com o pedido que re- ceberia dos organizadores. Que- brando o protocolo, eles pedi- ram que ela voltasse para um bis, soltando novamente o gogó no “Hino Nacional”. “Aquilo foi uma grande alegria para mim”, lembra a cantora. E uma alegria Alexandre Gaioto [email protected] y O vozeirão dos hinos GENTE/MÚSICA O Maringaense Madalena Alves, 55, é conhecida por entoar os hinos, há anos, em eventos oficiais O “Só não cantei em posses de deputados e presidentes”, comenta a cantora, feliz da vida ainda maior para as três desco- nhecidas senhoras. Canto geral Num escritório da avenida Duque de Caxias, onde traba- lha como funcionária pública no setor de capacitação dos servi- dores, a voz dos hinos vai pas- sando sua vida a limpo. No Lar Betânia, Madalena entrou aos 5 anos e saiu de lá aos 24. A mú- sica sempre fez parte do cotidia- no dela. Ainda em tenra idade, tinha aulas de iniciação musical e de técnicas vocais. Foi lá que aprendeu a can- tar. E quando a coordenadora do Lar Betânia resolveu publicar Não é toda dupla sertaneja que está bem afinada. Do rock não gosto porque é muito tumultuado MADALENA ALVES Cantora Bem conhecida na cidade, Ma- dalena passou a ser convocada para cantar, inclusive, o hino do Japão - em japonês, claro - num evento que, anualmente, reúne a comunidade nipônica aqui da cidade. A paixão pelos hinos é tanta que Madalena não abre mão deles nem quando está sozinha em casa. “Até no chuveiro canto os meus hinos”, revela. “E o que eles têm de tão espe- cial?”, pergunto à cantora. Sen- tada em seu escritório, vestindo uma blusinha de azul brilhante, Madalena abre um sorriso. “É di- ferente das outras músicas. Sei que hoje ninguém valoriza os hinos, são até motivo de piada. Mas temos que mudar isso. Afi- nal, tirando o Nacional, o ‘Hino de Maringá’ é um dos mais boni- tos que há”, diz a cantora. Para Madalena, o hino deveria ser uma obrigação em todas as escolas. “O ‘Hino à Bandeira’, o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens. É uma forma de in- centivar o patriotismo”, opina. Ela lembra o dia em que foi se apresentar na inauguração de uma escola maringaense. Quan- do começou a cantar, percebeu que a garotada não sabia a letra inteira e errava com frequência os versos. “Então, um dia fui a Marmeleiro e lá tomei um susto: até as crianças da pré-escola sabi- am a letra do hino da própria ci- dade”, lembra. O rock errou Além dos hinos, Madalena tem um gosto eclético: Zeca Pagodi- nho, Martinho da Vila, pagode, sertanejo raiz e música gospel. Só não gosta de rock nem de ser- tanejo “universitário”. “São mú- sicas muito berradas. Não é toda dupla que está bem afinada. Do rock não gosto porque é muito tu- multuado”, avalia. A voz dos hinos nunca escre- veu uma música nem jamais pen- sou em gravar um CD. Munida de um repertório popular, já se apresentou em casamentos e for- maturas de alunos. Mas nada se compara à emoção de cantar seus hinos. “Nunca vou me can- sar deles. Depois de 33 anos na Prefeitura, estou me preparan- do para me aposentar. Acho que vou me dedicar a algum instru- mento, talvez o piano ou o tecla- do. Talvez eu pense, depois, em gravar um CD. Quem sabe?” QUAL GRANDE SHOW VOCÊ GOSTARIA DE ASSISTIR NESTE ANO NA CIDADE? O Viva Maringá preparou uma lista com 50 nomes, de ChicoBuarqueaSepultura,paraosintrernautasescolhe remoartistaquedeveriaseapresentarnesteanoemMa ringá.Oresultadodavotaçãoserádivulgadonodia30de janeiro e enviado aos principais produtores de shows da cidade. ///AlexandreGaioto NO GOGÓ. A maringaense Madalena Alves, que descobriu a paixão pelos hinos e pela música no Lar Betânia: “O ‘Hino à Bandeira’ e o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens”, diz —FOTO: ARQUIVO PESSOAL TAVARES Sérgio Tavares A literatura tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutura sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas constituídas por passeios do protagonista Caminhando ma de minhas atividades preferidas é a caminhada. Há algo de rendoso no caminhar que contribui direta- mente para o meu processo criativo. Tal como reflete o escritor japonês Haruki Murakami, na coletânea de ensaios “Do que eu falo quando falo em corri- da” (que é uma aceleração da caminhada, da qual também sou adepto), gosto de sair pelas ruas a esmo, “em meu próprio vácuo aconchegante, caseiro, meu silêncio nostálgico”. Porém, ao con- trário deste, cujo vácuo retém “pensamentos aleatórios”, o meu serve para botar as ideias em ordem, derrubar bloqueios e are- jar inventividades. Tantas vezes já sai de casa com um germe de inspiração e retornei com um texto maduro. A vantagem de caminhar onde moro é que o lugar favorece a mar- cha. Meu bairro, por exemplo, pode ser percorrido em cerca de 10 minutos. As extensões dos bairros vizinhos esticam um pouco o tempo, mas não os tornam insuperáveis. O que é ótimo, pois faz do carro uma vaidade tola e empreende uma ligação sentimental com a paisagem. Nesse vácuo que crio, relaciono-me com os edifícios, as praças, o mar, as árvores que precisam de outros para que efetuem suas ca- minhadas. Não há nada mais emotivo que caminhar numa tarde de outono, sob o céu que se põe em cílios de fogo, ou numa manhã de inverno, contemplando as ondas raivosas que dispa- ram, do cabeceio contra a língua cinzenta, estilhas d’água. Quan- do caminho nunca estou no presente, mas num futuro que logo será literatura. Literatura que tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutu- ra sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas consti- U tuídas por passeios do protagonista. Autores clássicos, como Ni- colau Gogol e Anton Tchekov, passando por William Faulkner, Juan Rulfo, Cormac McCarthy e Julio Cortázar, na sutileza esma- gadora de “Continuidade dos parques”, lançam personagens em jornadas rumo ao mundo, rumo a si. Por aqui, temos romances e contos de Machado de Assis, Lima Barreto e Graciliano Ramos que dão partida a um caminhar reno- vado por contemporâneos do porte de Rubem Fonseca, Amilcar Bettega e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Um relato cativante sobre ca- minhada está no posfácio do formidável “O cavalo perdido e ou- tras histórias”, de Felisberto Hernández, escrito pelo crítico e tra- dutor Davi Arrigucci Jr.: “Como costumava fazer então, saía para caminhar ao deus-dará todas as tardes, tentando botar as ideias no lugar, e sempre acabava a caminhada no velho sebo de seu Marino Izzo (…), o único espaço em São Paulo onde o espírito se afina conforme a música que paira no ar cambiante da tarde”. Meu predileto, todavia, é aquele que inicia o romance “Se nin- guém falar de coisas interessantes”, de Jon McGregor, justamen- te por um efeito no qual, ao invés de o personagem caminhar pela cidade, a cidade é que caminha pelo personagem. “Se você pres- tar atenção, poderá ouvir. A cidade canta. Se ficar em silêncio, em um jardim, no meio de uma rua, no telhado de uma casa. O canto é mais perceptível à noite, quando o som passa mais precisamen- te pela superfície das coisas, quando a canção alcança um lugar dentro de você”. Penso que isso é que motiva a caminhada, a cidade canta para mim. E essa canção que traduzo em literatura, tal como agora, quando chego às últimas linhas dessa crônica, mirando um fu- turo onde será lida. Vocês está no futuro, leitor. Mesmo quando paro de caminhar, você continua. em 1998 seu primeiro livro, agen- dando o lançamento na Câma- ra dos Vereadores, não pensou duas vezes: convidou Madalena, a primeira interna da instituição, para entoar o “Hino Nacional”. “Foi ali que tudo começou. No Lar Betânia ganhei uma família e ainda aprendi a gostar de música edecantaros hinos”,comenta. Aos 55 anos, Madalena já per- deu as contas de quantas vezes se apresentou em posses de ve- readores, prefeitos e governado- res, sem falar nas outras cerimô- nias oficiais, como o desfile de 7 de setembro. “Só não cantei em posses de deputados e presiden- tes”, comenta, feliz da vida. Por apresentação, ela cobra de R$ 250 a R$ 300, valor que é dividi- do com o pianista que estiver em sua companhia.

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Caminhando, de Sérgio Tavares, publicado n'O Diário do Norte do Paraná, em 10 de janeiro de 2014

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Sábado, 10 de janeiro de 2015 A Editor: Jary Mércio

Tel. 3221-6609 Email: jary@odiario@com

CulturaD1

Na manhã de 7 de setembro, o calor endiabrado não afastou o público da avenida XV de No-vembro: crianças, adultos e ido-sos à espera do tradicional des-file cívico-militar da cidade. De cima do palco, Madalena Alves pode ser vista em seu terno elegante, em meio a políticos e personalidades locais. Sere-na, ela não aparenta qualquer resquício de nervosismo. Faz muito tempo, aliás, que Mada-lena não se sente nervosa quan-do sobe num palco. Desde que passou a ser convidada para en-toar o hino do País nos desfiles de Sete de Setembro, em 1997, Madalena vem amadurecendo sua técnica vocais e já não se apavora com o que pode vir pela frente. Ela já está acostu-mada.

Do palco, Madalena enxerga logo ali embaixo as três senho-ras que, anualmente, saem de casa para ouvi-la entoar o hino. E quando descer do palco, após a apresentação, Madalena sabe que as três desconhecidas se-nhoras estarão à espera dela na escada do palco, prontas para recebê-la com fortes abra-ços e agradecimentos. Enquan-to pensa na calorosa recepção que ganhará das três senhoras, Madalena recebe o sinal da pro-dução. Que se ajeite e se prepa-re: o show vai começar.

Outro sujeito se aproxima e lhe entrega o microfone. A postos, o tecladista dá o sinal com a cabeça. E, no palco, Madalena inicia a sua interpretação do hino. “O que eu gosto é de apresentar a minha ver-são, mais lenta e lírica. Só canto o hino no formato marcial quando me pedem”, diz.

Naquele 7 de setembro, após terminar o hino, Madalena só não contava com o pedido que re-ceberia dos organizadores. Que-brando o protocolo, eles pedi-ram que ela voltasse para um bis, soltando novamente o gogó no “Hino Nacional”. “Aquilo foi uma grande alegria para mim”, lembra a cantora. E uma alegria

Alexandre Gaioto [email protected] y

O vozeirão dos hinos GENTE/MÚSICA

Maringaense Madalena Alves, 55, é conhecida por entoar os hinos, há anos, em eventos oficiais “Só não cantei em posses de deputados e presidentes”, comenta a cantora, feliz da vida

ainda maior para as três desco-nhecidas senhoras.

Canto geral Num escritório da avenida Duque de Caxias, onde traba-lha como funcionária pública no setor de capacitação dos servi-dores, a voz dos hinos vai pas-sando sua vida a limpo. No Lar Betânia, Madalena entrou aos 5 anos e saiu de lá aos 24. A mú-sica sempre fez parte do cotidia-no dela. Ainda em tenra idade, tinha aulas de iniciação musical e de técnicas vocais.

Foi lá que aprendeu a can-tar. E quando a coordenadora do Lar Betânia resolveu publicar

“Não é toda dupla sertaneja que está bem afinada. Do rock não gosto porque é muito tumultuado MADALENA ALVES Cantora

Bem conhecida na cidade, Ma-dalena passou a ser convocada para cantar, inclusive, o hino do Japão - em japonês, claro - num evento que, anualmente, reúne a comunidade nipônica aqui da cidade.

A paixão pelos hinos é tanta que Madalena não abre mão deles nem quando está sozinha em casa. “Até no chuveiro canto os meus hinos”, revela.

“E o que eles têm de tão espe-cial?”, pergunto à cantora. Sen-tada em seu escritório, vestindo uma blusinha de azul brilhante, Madalena abre um sorriso. “É di-

ferente das outras músicas. Sei que hoje ninguém valoriza os hinos, são até motivo de piada. Mas temos que mudar isso. Afi-nal, tirando o Nacional, o ‘Hino de Maringá’ é um dos mais boni-tos que há”, diz a cantora.

Para Madalena, o hino deveria ser uma obrigação em todas as escolas. “O ‘Hino à Bandeira’, o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens. É uma forma de in-centivar o patriotismo”, opina. Ela lembra o dia em que foi se apresentar na inauguração de uma escola maringaense. Quan-do começou a cantar, percebeu

que a garotada não sabia a letra inteira e errava com frequência os versos. “Então, um dia fui a Marmeleiro e lá tomei um susto: até as crianças da pré-escola sabi-am a letra do hino da própria ci-dade”, lembra.

O rock errou Além dos hinos, Madalena tem um gosto eclético: Zeca Pagodi-nho, Martinho da Vila, pagode, sertanejo raiz e música gospel. Só não gosta de rock nem de ser-tanejo “universitário”. “São mú-sicas muito berradas. Não é toda dupla que está bem afinada. Do

rock não gosto porque é muito tu-multuado”, avalia.

A voz dos hinos nunca escre-veu uma música nem jamais pen-sou em gravar um CD. Munida de um repertório popular, já se apresentou em casamentos e for-maturas de alunos. Mas nada se compara à emoção de cantar seus hinos. “Nunca vou me can-sar deles. Depois de 33 anos na Prefeitura, estou me preparan-do para me aposentar. Acho que vou me dedicar a algum instru-mento, talvez o piano ou o tecla-do. Talvez eu pense, depois, em gravar um CD. Quem sabe?”

QUAL GRANDE SHOW VOCÊ GOSTARIA DE ASSISTIR NESTE ANO NA CIDADE? O Viva Maringá preparou uma lista com 50 nomes, de Chico Buarque a Sepultura, para os intrernautas escolherem o artista que deveria se apresentar neste ano em Maringá . O resultado da votação será divulgado no dia 30 de janeiro e enviado aos principais produtores de shows da cidade. /// Alexandre Gaioto

NO GOGÓ. A maringaense Madalena Alves, que descobriu a paixão pelos hinos e pela música no Lar Betânia: “O ‘Hino à Bandeira’ e o ‘Hino à Árvore’ precisam chegar aos jovens”, diz —FOTO: ARQUIVO PESSOAL

TAVARES

Sérgio Tavares

A literatura tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutura sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas constituídas por passeios do protagonista

Caminhando ma de minhas atividades preferidas é a caminhada. Há algo de rendoso no caminhar que contribui direta-mente para o meu processo criativo. Tal como reflete o escritor japonês Haruki Murakami,

na coletânea de ensaios “Do que eu falo quando falo em corri-da” (que é uma aceleração da caminhada, da qual também sou adepto), gosto de sair pelas ruas a esmo, “em meu próprio vácuo aconchegante, caseiro, meu silêncio nostálgico”. Porém, ao con-trário deste, cujo vácuo retém “pensamentos aleatórios”, o meu serve para botar as ideias em ordem, derrubar bloqueios e are-jar inventividades. Tantas vezes já sai de casa com um germe de inspiração e retornei com um texto maduro. A vantagem de caminhar onde moro é que o lugar favorece a mar-cha. Meu bairro, por exemplo, pode ser percorrido em cerca de 10 minutos. As extensões dos bairros vizinhos esticam um pouco o tempo, mas não os tornam insuperáveis. O que é ótimo, pois faz do carro uma vaidade tola e empreende uma ligação sentimental com a paisagem. Nesse vácuo que crio, relaciono-me com os edifícios, as praças, o mar, as árvores que precisam de outros para que efetuem suas ca-minhadas. Não há nada mais emotivo que caminhar numa tarde de outono, sob o céu que se põe em cílios de fogo, ou numa manhã de inverno, contemplando as ondas raivosas que dispa-ram, do cabeceio contra a língua cinzenta, estilhas d’água. Quan-do caminho nunca estou no presente, mas num futuro que logo será literatura. Literatura que tem quilômetros de passagens e eixos movidos por percursos cumpridos a pé. “Ulysses”, de James Joyce, estrutu-ra sua trama numa longa caminhada, e “O apanhador no campo de centeio”, de J. D. Salinger, dispõe de cenas radiosas consti-

U tuídas por passeios do protagonista. Autores clássicos, como Ni-colau Gogol e Anton Tchekov, passando por William Faulkner, Juan Rulfo, Cormac McCarthy e Julio Cortázar, na sutileza esma-gadora de “Continuidade dos parques”, lançam personagens em jornadas rumo ao mundo, rumo a si. Por aqui, temos romances e contos de Machado de Assis, Lima Barreto e Graciliano Ramos que dão partida a um caminhar reno-vado por contemporâneos do porte de Rubem Fonseca, Amilcar Bettega e Luiz Alfredo Garcia-Roza. Um relato cativante sobre ca-minhada está no posfácio do formidável “O cavalo perdido e ou-tras histórias”, de Felisberto Hernández, escrito pelo crítico e tra-dutor Davi Arrigucci Jr.: “Como costumava fazer então, saía para caminhar ao deus-dará todas as tardes, tentando botar as ideias no lugar, e sempre acabava a caminhada no velho sebo de seu Marino Izzo (…), o único espaço em São Paulo onde o espírito se afina conforme a música que paira no ar cambiante da tarde”. Meu predileto, todavia, é aquele que inicia o romance “Se nin-guém falar de coisas interessantes”, de Jon McGregor, justamen-te por um efeito no qual, ao invés de o personagem caminhar pela cidade, a cidade é que caminha pelo personagem. “Se você pres-tar atenção, poderá ouvir. A cidade canta. Se ficar em silêncio, em um jardim, no meio de uma rua, no telhado de uma casa. O canto é mais perceptível à noite, quando o som passa mais precisamen-te pela superfície das coisas, quando a canção alcança um lugar dentro de você”. Penso que isso é que motiva a caminhada, a cidade canta para mim. E essa canção que traduzo em literatura, tal como agora, quando chego às últimas linhas dessa crônica, mirando um fu-turo onde será lida. Vocês está no futuro, leitor. Mesmo quando paro de caminhar, você continua.

em 1998 seu primeiro livro, agen-dando o lançamento na Câma-ra dos Vereadores, não pensou duas vezes: convidou Madalena, a primeira interna da instituição, para entoar o “Hino Nacional”. “Foi ali que tudo começou. No Lar Betânia ganhei uma família e ainda aprendi a gostar de música e de cantar os hinos”, comenta.

Aos 55 anos, Madalena já per-deu as contas de quantas vezes se apresentou em posses de ve-readores, prefeitos e governado-res, sem falar nas outras cerimô-nias oficiais, como o desfile de 7 de setembro. “Só não cantei em posses de deputados e presiden-tes”, comenta, feliz da vida. Por apresentação, ela cobra de R$ 250 a R$ 300, valor que é dividi-do com o pianista que estiver em sua companhia.