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VI SEMINÁRIO OS FESTEJOS JUNINOS NO CONTEXTO DA FOLKCOMUNICAÇÃO E DA CULTURA POPULAR CAMPINA GRANDE, 18 A 20 DE JUNHO DE 2009 MODALIDADE DO TRABALHO: Comunicação Científica Caminhando sobre Brasas: Ciência e Cultura Popular Alexandre Medeiros 1 Rosiane Valério de Moura 2 Resumo Caminhar sobre brasas é um antigo costume que encontrou abrigo nas tradições juninas do Nordeste e que tem sido frequentemente associado a poderes sobrenaturais e a práticas religiosas e crendices diversas. O imaginário popular está povoado por representações místicas a respeito deste fenômeno paradoxal. Ele tem servido de argumento para exibições de fé e práticas místicas das mais variadas. Entretanto, apesar de ser ainda o tema aberto à discussão, ele parece completamente possível de ser enquadrado cientificamente. Teorias físicas têm sido apontadas para explicar o referido fenômeno que tem sido reproduzido experimentalmente de forma cientificamente controlada em várias ocasiões. Este trabalho apresenta um relato de como este tema do caminhar sobre brasas está imerso no caldo cultural das tradições juninas do Nordeste brasileiro e faz um contraponto das mesmas com as principais teorias científicas desenvolvidas sobre o referido tema. Palavras-chave: Cultura popular. Fogo e brasa. O Caminhar sobre Brasas na Cultura Popular Nordestina: Origens, Tradições e Mitos Os festejos juninos são originários do hemisfério norte, onde a chegada do verão ocorre entre os dias 22 e 23 de junho. O verão era recebido pelos povos antigos com vários rituais pagãos em homenagem ao deus Sol, para que ele propiciasse a fertilidade do solo, o crescimento das plantas e a fartura das colheitas. Segundo nos revelam Sky (1989) e Danforth (1989), na Grécia e na Roma antigas, os deuses da colheita eram reverenciados com enormes fogueiras, cantorias e danças. As fogueiras eram acesas para livrar as plantações dos maus espíritos que podiam impedir a prosperidade. Ferônia, a deusa italiana dos cultos agrários, era homenageada com fogueiras, e os predestinados caminhavam sobre as brasas da fogueira 1 PhD em Ensino de Física (University of Leeds – Inglaterra), professor Adjunto do Departamento de Física da UFRPE. E-mail: [email protected] 2 Graduada em Serviço Social (UFAL), Mestranda em Extensão Rural e Desenvolvimento Local – UFRPE. E- mail: [email protected]

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VI SEMINÁRIO OS FESTEJOS JUNINOS NO CONTEXTO DA FOLKCOMUNICAÇÃO E DA CULTURA POPULAR CAMPINA GRANDE, 18 A 20 DE JUNHO DE 2009

MODALIDADE DO TRABALHO: Comunicação Científica

Caminhando sobre Brasas: Ciência e Cultura Popular

Alexandre Medeiros1 Rosiane Valério de Moura2 Resumo Caminhar sobre brasas é um antigo costume que encontrou abrigo nas tradições juninas do Nordeste e que tem sido frequentemente associado a poderes sobrenaturais e a práticas religiosas e crendices diversas. O imaginário popular está povoado por representações místicas a respeito deste fenômeno paradoxal. Ele tem servido de argumento para exibições de fé e práticas místicas das mais variadas. Entretanto, apesar de ser ainda o tema aberto à discussão, ele parece completamente possível de ser enquadrado cientificamente. Teorias físicas têm sido apontadas para explicar o referido fenômeno que tem sido reproduzido experimentalmente de forma cientificamente controlada em várias ocasiões. Este trabalho apresenta um relato de como este tema do caminhar sobre brasas está imerso no caldo cultural das tradições juninas do Nordeste brasileiro e faz um contraponto das mesmas com as principais teorias científicas desenvolvidas sobre o referido tema. Palavras-chave: Cultura popular. Fogo e brasa. O Caminhar sobre Brasas na Cultura Popular Nordestina: Origens, Tradições e Mitos

Os festejos juninos são originários do hemisfério norte, onde a chegada do verão

ocorre entre os dias 22 e 23 de junho. O verão era recebido pelos povos antigos com vários

rituais pagãos em homenagem ao deus Sol, para que ele propiciasse a fertilidade do solo, o

crescimento das plantas e a fartura das colheitas. Segundo nos revelam Sky (1989) e Danforth

(1989), na Grécia e na Roma antigas, os deuses da colheita eram reverenciados com enormes

fogueiras, cantorias e danças. As fogueiras eram acesas para livrar as plantações dos maus

espíritos que podiam impedir a prosperidade. Ferônia, a deusa italiana dos cultos agrários, era

homenageada com fogueiras, e os predestinados caminhavam sobre as brasas da fogueira

1 PhD em Ensino de Física (University of Leeds – Inglaterra), professor Adjunto do Departamento de Física da UFRPE. E-mail: [email protected]

2 Graduada em Serviço Social (UFAL), Mestranda em Extensão Rural e Desenvolvimento Local – UFRPE. E-mail: [email protected]

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quando o fogo já havia baixado. Toda a família participava deste ritual, para purificar-se dos

possíveis males corporais. Estas festas chegaram a Portugal com as conquistas romanas.

Assim como outras festas de origem pagã, as festas juninas também foram, com o tempo,

ganhando um significado religioso, pois a igreja se apropriou desses festejos, incorporando

aos mesmos as celebrações das datas cristãs. (Benjamin, 2003; Cavalcanti, 2009).

As festas juninas foram introduzidas no Brasil pelos portugueses, ainda no século

XVI. Aqui, elas sofreram mudanças, com novos costumes sendo acrescentados aos antigos.

Estas festas misturam ritos pagãos e cristãos e têm um importante papel no calendário

folclórico, com características que variam de acordo com a região do país.

Como revela Cascudo (1985), costumes como os de saltar fogueiras e de caminhar

sobre as brasas, foram logo incorporados às tradições locais, embora haja registro de que os

nossos indígenas já praticavam, de há muito, rituais semelhantes.

No Nordeste do Brasil mantém-se viva esta antiga tradição de caminhar sobre as

brasas da fogueira de São João. Como assinala Cascudo:

“No Brasil essa reminiscência resiste ao tempo por toda a região do Nordeste. Do

Estado da Bahia para o norte, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande

do Norte, Ceará, Piauí, estende-se a zona onde há sempre quem "atravesse a

fogueira", "passe a fogueira" na véspera do São João, 23 de junho” (Cascudo, 1985,

p.70).

O curioso é que as pessoas não se queimam nesta inusitada atividade. Conforme a

tradição mística, os participantes devem caminhar descalços sobre as brasas da fogueira. De

acordo com a crença generalizada, para não se machucarem, as pessoas devem ter muita

coragem e caminharem com leveza, pois se pisarem com força poderão queimar os pés nas

brasas. É freqüente que o padre abençoe os fiéis para que ninguém se machuque durante a

caminhada sobre as brasas, tida como uma prova de fé. Também outras religiões creditam um

alto valor simbólico a este ato de caminhar sobre brasas, principalmente aquelas que

preservam rituais de origem africana.

Os devotos tomam a caminhada como um agrado ao santo, que em troca lhes concede

o “milagre” de que eles não tenham os seus pés queimados. Entretanto, os próprios devotos

alertam para o fato de que a fogueira tem que ser de lenha, de madeira comum (nunca de

pneu) e que só deve caminhar quem tiver realmente fé no santo protetor. Na verdade, desde a

Antiguidade, esta travessia sobre as brasas impressionava vivamente a multidão e era tida

como um sinal de superioridade dos sacerdotes.

Qual a razão científica deste aparente milagre?

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Tentativas de Explicação Científica do Caminhar sobre Brasas

Como a ciência pode explicar o caminhar sobre brasas?

Há um certo número de teorias que têm sido apresentadas para explicar o fenômeno do

caminhar sobre brasas e que podem ser encontradas na literatura especializada (Leidenfrost,

1966; Leikind & MacCarthy,1983; 1985; Sky 1989; Taylor,1989; Walker,1977). Elas podem

ser vistas como complementares umas das outras para dar conta da complexidade do

fenômeno em causa. Seus principais pontos são os seguintes:

1. O carvão de madeira seca, usado por aqueles que caminham sobre as brasas, conduz

o calor de um modo muito pouco eficiente. O carvão em si mesmo pode estar muito quente,

mas ele não transfere calor rapidamente para qualquer coisa que toque no mesmo. Para que tal

condução de calor se processe é necessário um certo tempo de contato que os caminhantes

evitam atingir pisando rapidamente sobre as brasas.

2. Os pedaços de carvão têm superfícies muito irregulares e deste modo a área real da

superfície de contato dos mesmos com os pés do caminhante é muito pequena. Isto torna a

condução do calor do carvão para os pés ainda mais difícil, pois a condução do calor é

proporcional à área de contato.

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3. O carvão de madeira tem um baixo calor específico, ou seja, eles mudam facilmente

de temperatura mesmo com uma pequena transferência de calor. Deste modo, embora possam

estar a temperaturas elevadas, eles não possuem muita energia interna a ser transferida na

forma de calor para os pés do caminhante quanto se poderia supor.

4. Acrescente-se a isso, o fato de que o caminhar sobre brasas é feito geralmente após

a temperatura da fogueira já haver arrefecido. Ninguém acende a fogueira e começa logo a

caminhar. Espalham-se os pedaços de carvão pelo chão e deixam-se os mesmos arrefecerem

por um certo tempo. Deste modo, os pedaços de carvão ficarão encobertos por uma certa

quantidade de cinza. A cinza tem uma condução térmica ainda menor que o carvão sólido e

reduz, assim, ainda mais, a transmissão do calor das brasas para os pés.

Caminhando sobre brasas. Note-se a presença abundante de cinzas sobre as mesmas.

5. Aqueles que caminham sobre as brasas não gastam muito tempo sobre os pedaços

de carvão; eles mantêm-se sempre em movimento. Um tempo de contato de no máximo 1

segundo, com cada pedaço de carvão, parece ser um valor seguro para garantir uma baixa

transferência de calor para os pés.

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6. Além disso, o sangue é um bom condutor de calor. Deste modo, o calor que chega

ao pé é rapidamente transmitido pelo sangue ao resto do corpo, não permitindo assim que o

mesmo atinja rapidamente uma temperatura muito alta.

7. O “efeito Leidenfrost” parece também desempenhar um papel importante na

explicação deste fenômeno. Este efeito ocorre quando um objeto frio e molhado (como o pé)

toca um outro objeto quente e seco (como os pedaços de carvão). A água vaporiza-se criando

assim uma barreira de vapor entre o objeto quente e o objeto frio. Deste modo, os dois objetos

não se tocam verdadeiramente e a evaporação da água do objeto mais frio (ou simplesmente

do suor, quando excessivo, no caso do pé) é muito mais lenta do que poderia se esperar.

Desde que o vapor é também um mau condutor de calor, o pé não se queima facilmente. O

físico americano Jearl Walker, que deu esta explicação baseada no efeito Leidenfrost,

caminhou com sucesso sobre brasas para testar a sua hipótese. Outros cientistas, porém,

creditam o seu sucesso a outros fatores, como os acima apontados, e não exatamente ao efeito

Leidenfrost.

8. As distâncias percorridas sobre as brasas não são muito longas. Quando a distância

é maior, aumenta-se o tamanho do passo e a rapidez da caminhada.

Caminhando sobre brasas. Note-se a postura de corrida para vencer um percurso mais longo.

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9. Não se costuma caminhar sobre brasas carregando peso; mas, se isso for feito, como

ao carregar uma outra pessoa, o tamanho do percurso deve ser consideravelmente diminuído.

Como mostra a foto ao lado, mesmo aqueles

que aceitam caminhar sobre brasas

carregando alguém em suas costas, tomam a

precaução de fazê-lo por um percurso de

distância reduzida e ainda assim o fazem

sobre brasas arrefecidas recobertas de cinzas.

A conjunção desses dois fatores reduz em

muito a transmissão do calor das brasas para

os pés, possibilitando assim o aumento do

peso transportado. È um costume místico

tradicional transportar pessoas doentes nas

costas na travessia das brasas.

Muito peso, mas menor caminhada e brasas arrefecidas

10. É uma boa precaução molhar os pés antes e depois da caminhada. Entretanto,

aqueles que transpiram muito pelos pés (e o estado emocional pode auxiliar no aumento dessa

transpiração) conseguem fazer a caminhada sem molhar os pés.

Caminhando sobre brasas arrefecidas. Note-se ainda assim a bacia com água ao lado.

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Há, certamente, outras tentativas de representação deste curioso fenômeno que se

opõem à explicação científica e que são veiculadas por muitos dos seus praticantes.

Alguns místicos, por exemplo, têm

alegado que antes de caminhar sobre as

brasas eles costumam entoar alguns

cânticos e fazer certos exercícios

respiratórios. Há mesmo aqueles que se

expressam em um tom mais requintado,

afirmando que tais procedimentos criariam

uma espécie de “campo de energia” que os

protegeriam das possíveis queimaduras.

Cerimônia religiosa na qual os praticantes são vistos caminhar a largos passos, quase saltando, sobre as brasas.

Embora, do ponto de vista científico, isto não tenha o menor sentido, há de se

considerar, entretanto, como certo, que a tolerância à dor, esta sim, é algo que pode ser

altamente influenciada por fatores psicológicos. A percepção da dor não é algo tão simples

como a experiência diária pode aparentemente sugerir. Algumas pessoas sentem dor sem

qualquer causa aparente, enquanto outras sentem pouca dor mesmo quando afetadas por

ferimentos severos. Fatores emocionais e cognitivos parecem desempenhar um papel

importante na percepção da dor. Neste sentido, uma crença da parte de alguém de que pode

controlar a dor parece poder reduzir, de fato, o nível de dor experimentada. Por outro lado, o

medo pode aumentar o nível da dor sentida. O caminhar sobre brasas é algo que se dá,

geralmente, em um contexto místico-religioso e isso pode influenciar na redução do limiar de

tolerância da dor por parte dos caminhantes, sem que isto, entretanto tenha qualquer

influência nos possíveis danos físicos a serem causados aos pés. A explicação da redução dos

danos físicos aos pés está ligada aos fatores físicos acima alinhados e pode ser conseguida

mesmo por aqueles que não acreditem nos fatores místicos e religiosos muitas vezes alegados.

Alguns físicos mais céticos têm desafiado os místicos a tentarem caminhar sobre uma

chapa metálica aquecida em vez de caminhar sobre pedaços de carvão. Este desafio,

entretanto, não nos parece moralmente válido, pois as pessoas simples e de boa fé, certamente

se queimariam perigosamente. Há observações mais simples e seguras que podem ser feitas

no mesmo sentido do perigoso desafio acima mencionado. Aqueles que caminham sobre

brasas, deixam o fogo arrefecer e as cinzas se acumularem sobre as brasas (o que reduz

consideravelmente a transmissão do calor). Mesmo sem uma clareza do que estão fazendo, os

caminhantes não são suficientemente tolos para caminharem sobre as brasas ao rubro e se o

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fizerem lentamente o aparecimento de queimaduras será muito mais provável. Essas pessoas

também não param no meio da caminhada para realizar as suas orações, pois deste modo a

queimadura não seria apenas provável, mas sim garantida.

Os físicos Jearl Walker (redator do Scientific American) e David Willey (da

Universidade de Pittsburgh) mergulharam rapidamente os dedos em chumbo derretido. Antes

de mergulhaem os dedos no chumbo derretido, suas mãos foram mergulhadas em uma bacia

com água. A mão foi sacudida e os dedos foram então rapidamente mergulhados de 7 a 8 cm

no chumbo derretido e imediatamente retirados. O calor vindo do chumbo foi usado para

vaporizar a água nos dedos, fazendo com que uma camada de vapor protegesse a mão de

queimaduras, por um breve espaço de tempo.

O físico Jearl Walker preparando-se para mergulhar a mão em chumbo derretido a alta temperatura.

Mão do físico David Wiley mergulhada rapidamente em chumbo derretido a alta temperatura.

De todo modo, caminhar sobre brasas é um procedimento possível, fisicamente

explicável, mas que não deixa de ser bastante arriscado. Qualquer descuido nas necessárias

precauções a serem tomadas, conforme explicado acima, pode resultar em ferimentos muito

sérios. Caminhar lentamente sobre brasas não bem recobertas por cinzas, com os pés secos ou

pisando fortemente sobre o carvão aquecido, pode causar danos severos aos pés do praticante,

por mais místico que ele seja. Igualmente, caminhar sobre brasas “ao rubro”, ainda antes que

cinzas sejam formadas sobre as mesmas ou carregando peso excessivo, ou ainda utilizar

fogueiras feitas de madeira não muito seca, pode ser altamente perigoso. Por isso, se você

estiver pensando em caminhar sobre brasas, tome muito cuidado!

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Conclusões: Entre a Ciência e o Mito – Considerações Pedagógicas

Da análise científica da arte de caminhar sobre brasas, acima apresentada, depreende-

se que existe muito mais ciência embebida nos procedimentos intuitivos adotados pelos

praticantes desta arte do que se poderia à primeira vista imaginar. Embora alguns costumes

místicos utilizados no caminhar sobre brasas não encontrem respaldo científico; boa parte dos

procedimentos práticos adotados são perfeitamente compreensíveis em termos físicos.

Depreende-se daí que há um claro respaldo científico contido em alguns costumes

aparentemente apenas míticos presentes na cultura popular nordestina. Pode-se inferir,

também que um tal conhecimento pode ser decodificado a partir das vivências dos indivíduos

de tais práticas possibilitando assim uma nova abordagem pedagógica que parta de costumes

culturais e avance em direção ao conhecimento científico. No dizer de Paulo Freire:

“Impõe-se /.../ uma modalidade de ação através da qual, culturalmente, se enfrente a

‘cultura do silêncio’ e se opere a extrojeção de seus mitos. Nesta modalidade de ação,

a realidade que mediatiza seus sujeitos se “entrega” à “admiração” destes,

constituindo-se como objeto de conhecimento de ambos: educadores-educandos,

educandos-educadores” (Freire, 1981, p.28). /.../ “É uma tentativa corajosa de

desmitologização da realidade, um esforço através do qual, num permanente tomar

distância da realidade em que se encontram mais ou menos imersos” (Freire, 1981,

p.39).

Este tipo de enquadramento racional de procedimentos presentes na cultura popular

tem, certamente, o seu valor pedagógico, mas por outro lado, tende a romper o encantamento,

a dessacralizar certos mitos. Isto traz à baila os limites explicativos das intercessões e das

contradições existentes entre os mitos e as explicações científicas.

Certamente, haverá sempre aqueles que não se sentirão felizes com o contraponto

entre a beleza contida nas representações míticas dos fenômenos e as explicações científicas

dos mesmos. Eles poderão alegar que a explicação científica despe a realidade, dessacraliza o

imaginário e mata beleza do mito. Para eles nós nos limitaremos em citar as sábias palavras

do poeta Afonso Romano de Sant´ Anna: “A explicação científica não mata a beleza, ela

mata a ignorância”.

Referências Bibliográficas BENJAMIN, Roberto. Festejos Juninos: Origens. Continente Multicultural. N.10, Junho 2003. CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. São Paulo: Editora Itatiaia, 1985. pp.69-75.

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