Camila Fernandes - Mia, Uma Autobiografia Felina

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Camila Fernandes - Mia, Uma Autobiografia Felina

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Mia, uma autobiografia felina: Captulo 1

Mia, uma autobiografia felinaCamila Fernandes

Contra-indicado para pessoas ms e feias que no gostam de gatinhos. Contra-indicado para quem no gosta de surpresas.Captulo 1Ela nunca soube de onde vim, se eu j tivera um outro lar ou um outro amigo. Sempre me fez muitas perguntas, mas nunca esperou de mim respostas. E nada disso fez diferena.

Ocorreu h muito tempo. No saberia especificar quando. No me importa o tempo que passa, mas a maneira como passa, e nunca as lies que me oferta, mas somente o prazer que pode me proporcionar.

Mas prossigo: houve uma noite na minha vida de pobretona em que ela me encontrou. Era lpida e jovem. Caminhava com uma mulher robusta, de corpo muito slido quase um barril de carne que a puxava apressadamente pelo brao.

Nada pde abalar seu interesse quando encontrou meus olhos na escurido do beco, onde eu tremia. Seu rosto mido iluminou-se todo com o lampejo que s o mais jovens sabem lanar.

Olha s, me disse ela, com o dedo esperanoso em riste para mim.

um gato de rua, Emma. Deve ser arisco e cheio de doenas. Vamos embora.

Ela ignorou a mulher e veio a mim com uma graciosidade pouco comum entre os homens. No sei se posso dizer que ela me escolheu ou se fui eu a escolh-la. Mas minha vida de filhote esqulido e pulguento, apesar dos protestos de terceiros, chegou ao fim nos braos adolescentes de Emma.

Comparada escurido incerta das ruas, com suas crianas sentenciadas orfandade precoce, a casa de Emma era um paraso. Minha admirao diante do calor caseiro e de todas aquelas brilhantes luzes artificiais me valeu o primeiro de muitos elogios, logo que a porta da casa se fechou atrs de mim:

Que olhos enormes tem voc, nenm! Me, veja que olhos lindos ele tem.

Houve algazarra dos irmos menores quando ela me introduziu famlia:

Onde encontrou este gato?

Que magro! E bem feioso, no?

Eu acho que ele est doente.

s um filhote, seus paspalhos protestava Emma. Meu gato. No feio nem doente, e vocs esto com inveja.

Acho que ela no tinha idia do que era acariciar um gato. Causava-me mais desgosto do que deleite tentando passar a mo sobre minhas costas e ao mesmo tempo afastar-me dos dois rapazolas.

menino ou menina?

Nessa hora levantou-se o homem maior da casa, at ento sentado imponente e pachorrento na sua poltrona, com um jornal nas mos. Seu vulto atemorizou-me de incio. Como os mais astutos dentre os do meu tipo, eu j sabia reconhecer, aps breve exame visual, os que iriam me amar. No algo que aprendamos com nossos genitores ou em algum livro de ensinamentos, como os homens insistem em fazer. Ns no adquirimos um profundo conhecimento das coisas da mesma maneira que eles. Simplesmente passamos a sab-las. Est na nossa natureza.

Ele se aproximou de mim, virou-me de barriga para cima e, naturalmente, esperneei. Nada mais desagradvel do que mostrar o ventre a um desconhecido. Perco todo o meu equilbrio nessa posio e, por conseqncia, o controle da situao.

Meu suplcio foi curto. Uma mera olhadela.

E ento? perguntaram os circunstantes.

uma fmea.

Finalmente compreenderam. Eu, que at ento no me dirigira a ningum, ergui meu vergonhoso miado de felino raqutico. Julguei que Emma fosse me engolir com seus carinhos melodramticos.

Ento, eu estava em casa.

Aquelas dceis pessoas no sabiam o que fazer comigo. Era bvio que no estavam acostumadas a ter um lder natural no lar, isto , um gato. No que sejamos explicitamente eleitos como lderes ou tenhamos o hbito de dar ordens, mas nossa condio nativa sempre nos consegue o privilgio de ver tudo funcionando em nosso benefcio, desde que empreguemos para tanto uma frao de nossa inteligncia. At minha chegada, a tarefa de chefiar parecia pertencer ao homem maior, mas mesmo ele rendeu cordialmente suas atenes a mim. Estavam fascinados com cada uma de minhas idiossincrasias.

Adaptei-me placidez do confinamento a s cerimnias do convvio com outros seres em uma velocidade que quase me fez esquecer-me de quem era. Uma criatura caprichosa e indomvel mas venal ante a oferta de afago, comida e cama. Certamente eu aproveitava os ensejos de iar-me ao telhado, lanando-me a outras janelas e conhecendo outras famlias. Uma filha da rua, como tantos outros menos afortunados do que eu, que, sem modstia, sempre fui um belo espcime, o que certamente me rendeu o primeiro olhar de Emma. Sua famlia compreendeu a razo de sua admirao por mim aps o execrvel banho a que fui submetida no dia seguinte minha chegada.

Que crueldade fazer um indefeso filhote passar por aquilo. Fizeram isso muitas vezes depois, a despeito de minhas tentativas de fuga. Mas admito que naquela primeira ocasio eu estava mesmo precisando de mais do que um de meus banhos de lngua.

Emma insistiu em mostrar-me o resultado daquele cuidado. Aps me enxugar como podia numa toalha, segurou-me diante de algo que eu at ento desconhecia, que vinha a ser, conforme deduzi, minha prpria imagem. Estranhei aquela superfcie plana na qual encontrava a cara de um outro gato, magro, preto e hirsuto, com imensos olhos amarelos.

A est voc. Isto a um espelho, no v se assustar.

E ela ria. Nunca compreendi a razes do riso. Alguns humanos riem mais do que outros, mas absolutamente no vejo qualquer motivo para esta manifestao barulhenta, que surge de suas bocas em horas to diversas.

Talvez faam isso por distrao, sem querer ou para interromper o silncio, que eles gostam tanto de desrespeitar. Os homens fazem muito rudo, mas prefiro-os aos carros. Por mais que saiba que os carros, diferentes dos ces, no mordem e tampouco tm opinio prpria, nunca deixaro de me assustar. J os vi causarem estragos inenarrveis s pombas idiotas que bicam a rua e at mesmo a gatinhos desavisados. S me sinto segura quando esto quietos, encostados s caladas. Nada faz com que um gato deixe de temer aquilo que ele decide temer, como nada o convence a fazer o que ele no quer.

Pois bem. Indiferente s minhas especulaes, mas nunca minha presena, pouco a pouco, a famlia foi aprendendo a me satisfazer. No poderia querer mais nada alm da calma que os dois menores me negavam. Quando eu tentava dormir, buliam comigo com a mesma curiosidade com que as crias de uma gata olham e cheiram tudo o que existe, aps abrir os olhos. Eu tinha vontade de espanc-los. Faziam a todo momento perguntas ao homem maior:

Se ns a chamarmos com um assobio do outro lado da casa, ela vem?

No, mas se fosse um cachorro, quem sabe...

Ela abana o rabo quando est feliz?

No, meu filho, s os cachorros fazem isso, no os gatos. Se a cauda dela est se mexendo, ela deve estar zangada. Deixe-a em paz.

Ela morde?

Eu estava prestes a responder por mim mesma quando o homem se ergueu e veio em socorro de minhas futuras vtimas, apanhando-me nos braos.

Vo brincar com outra coisa, meninos. Os gatos s gostam de brincar depois de dormir.

Poucas vezes um homem disse algo to sbio. Somos inteiramente diferentes dos ces. No temos a necessidade de viver em matilhas e no temos de eleger lderes que no ns mesmos. Se eu fosse um co, ter-me-ia deixado impressionar pelo tamanho e pela autoridade do homem maior, oferecendo-lhe minha lealdade e mostrando-lhe o meu ventre, em sujeio. So serviais natos dos homens, embora saibam, como ningum nem mesmo eu manipular a vontade dos humanos, com seus olhos lacrimejantes e suas caudas inquietas. Esto sempre com as bocarras abertas e as lnguas de fora, rindo at babar da cara dos homens, sem que estes o percebam. No duvido que tenham bons coraes, mas os ces so, na verdade, interesseiros e volveis, e por isso que muita gente os prefere. Ns, bichanos, somos francos demais para os sentimentos frgeis de certas pessoas.

Os humanos tm dificuldade em compreender o que se quer deles. Quase no sabem se comunicar sem a emisso de rudos, a no ser quando sacodem as mos, o que tambm desairoso. s vezes, fazem as duas coisas ao mesmo tempo, criando um resultado cmico e, depois, tedioso. De qualquer modo, gosto quando falam comigo. Sempre o fazem mais gentilmente do que quando se dirigem uns aos outros, o que se deve obviamente ao respeito que me guardam. Agradeo, por minha vez, ronronando ou miando, algo que at mesmo eles podem entender.

Percebendo que suas relaes com o mundo se estabeleciam base de barulho, passei a miar sempre que desejava sua companhia. Nem sempre podiam me atender, mas faziam o possvel, e acho que se sentiam queridos por mim. verdade que no eram muito inteligentes. Contudo, sua maneira desajeitada, eram muito amorosos. At os dois menores. Com o tempo, aprendi a toler-los e, depois, com a vinda tardia da maturidade, as duas pestes tornaram-se bons companheiros.

No treinei minha memria para se ocupar com os inmeros sons que os homens produzem. claro que tenho coisas melhores com as quais ocupar-me. O curioso, no entanto, que notei que tambm usam sons especficos para definir uns aos outros e s coisas. So nomes. Passei a saber quando se referiam s pessoas da casa e aos assuntos da minha alada, como comida e banho.

Emma foi o primeiro nome que aprendi. Os menores tinham nomes que soavam como Van e Mar ou coisa que o valha. Os maiores eram Pai e Me para as crianas, de onde supus que estas denominaes servissem para as pessoas que tratavam de nosso bem-estar e folgana logo, eram Pai e Me para mim tambm. Pai e Me chamavam um ao outro por uma poro de nomezinhos que me pareciam fruto da natural indeciso humana. Era horrvel. Pareciam no saber o que queriam um do outro, e penso que de fato nunca souberam. Mesmo assim, ainda estavam juntos quando me separei deles e penso que ficaram juntos at o fim. Seu senso de convenincia era to apurado quanto o meu.

Quanto a mim, desde que ali pisei, fui chamada de Mia. um bom nome, que irei manter at segunda ordem.

Captulo 2O vnculo que se manifestava a todo momento entre os menores e os maiores fazia-me recordar qualquer coisa que at hoje no sei definir com certeza. Jamais tive um pai, mas sei que tive uma me e tambm tive irmos. Sei que era uma me porque tratava de mim como podia durante o pouco tempo em que estive junto dela. Sei que os outros eram irmos porque disputavam comigo sua ateno. Isto um irmo: um sujeito inoportuno que deseja o mesmo que voc e procura roubar aquilo que seu. Ainda assim, possvel estim-lo, parece-me. No tive chance de averiguar isso. Qualquer coisa me apartou daquela primeira famlia, mas no lastimo o fato. At onde pude ver, estava bem melhor entre os homens.

Me era um tanto reservada, mas jamais maldosa. Falava pouco comigo. Punha a minha comida no prato mesmo antes de eu lha requisitar e gritava quando eu me aninhava na enorme e tentadora cama onde ela dormia com Pai ou quando arranhava as almofadas do sof. Por mais que faamos uma coisa, impossvel que os homens compreendam que no devem nos impedir. Eles teimam em nos retirar dos nossos lugares prediletos.

Pai me permitia melhor exercer minha personalidade. Ns dois gostvamos muito de dormir. Ele costumava provocar-me com qualquer objeto interessante um lpis, uma fita de pano , eu fingia que o arranhava e esse era o nosso jogo. At permitia que me fizesse festas na barriga. Ele passava o dia ausente e retornava quando a cidade l fora j estava escura. Eu costumava ir receb-lo porta, o que o fazia sentir-se muito especial, segundo creio.

Todavia, Emma quem era realmente especial. Dentre todos, tinha o melhor cheiro um cheiro de coisa nova e revigorante. Comunicava-se bem, com olhares e gestos. Foi ela quem me levou a gostar do sorriso humano. Dizia-me uma poro de coisas que nem sempre eu compreendia, mas seu tom de voz me mostrava o que queria que eu soubesse. Tambm no penso que eles compreendessem tudo o que diziam uns aos outros. Pela maneira com que pronunciavam os nomes, podia-se interpretar o que desejavam ou sentiam. Era muito fcil, mas eu simulava inocncia quando ralhavam comigo, convencendo-os de que no entendia uma s palavra. Logo me cediam sua acessvel piedade ou uma ltima queixa, e eu me livrava do castigo maior.

Emma cansava-se facilmente de suas bonecas, preferindo, geralmente, brincar comigo. No de se admirar, j que as bonecas eram estranhas pessoinhas imveis, que no davam ateno sua conversa. Quando Emma ia lavar-se, levava-me consigo para o banheiro. Seno, eu ia at l com meus prprios ps. Conversvamos o tempo todo. Falava comigo bem mais do que com as outras pessoas da casa, e quer-me parecer que preferia minha companhia de qualquer um. No que isto me impressione. Afinal, sou uma tima ouvinte. Somente nisto posso ser equiparada aos ces.

No tenho certeza do motivo pelo qual os homens usam roupas para tapar suas peles. Talvez seja porque tenham to poucos plos no corpo que sintam frio a todo momento, como num inverno interminvel. Achava interessante observar sua freqente troca de roupas. Despiam-se e vestiam-se de novo pelo menos uma vez a cada dia. No tinham nenhum prurido quanto a estarem nus diante de mim, mas achavam intolervel a idia de o fazer diante uns dos outros! Ser que tinham medo de descobrir que eram todos iguais?

Os anos os tornaram muito diferentes do que eram no comeo.

Enquanto eu passara de menina raqutica a elegante dama de plos sedosos e barriga satisfeita, Van e Mar eram j quase homens feitos e bem mais quietos , Pai perdera uma boa parte dos poucos cabelos que ainda tinha na cabea, Me se parecia bem mais com um barril e Emma crescera notavelmente: era agora uma fmea plenamente crescida, com seus cabelos castanhos, encaracolados e muito ajeitados, e passava fora de casa mais tempo do que eu gostaria. Com esta exceo, no houvera em minha vida mudana digna de nota. Essencialmente, eu continuava vivendo da mesma forma como meus ancestrais devem ter vivido quando primeiramente se depararam com homens que reconheceram sua grandeza.

Aqueles anos de ociosidade e gula no fizeram seno acentuar meu temperamento exigente. Mesmo assim, ningum se podia queixar de que eu fosse preguiosa demais: era brincalhona, embora impaciente e, de certa forma, agressiva. No tanto quanto certos colegas de telhado gatos que lutavam ferozmente pela posse de seus territrios , mas considere-se que eu era uma gata domstica, que no tinha de vasculhar o lixo das casas em busca da minha ceia e tambm no enfrentava o frio, a chuva e outras misrias.

Eu fui especialmente irascvel no perodo em que desejei a companhia de outros gatos. Bem, minha famlia compreendia isto; cada um passaria por coisa semelhante algum dia se j no o havia feito , lidando com a necessidade de contato ntimo com os de sua prpria espcie. Mesmo assim, mantiveram-me trancada na poca, inimigos da idia de que eu me promiscusse com machos vadios. No eram to ingnuos quanto eu pensava e sabiam, to bem quanto eu, que o produto final de meus requebros seria um bando de gatinhos encantadores. Acho que no queriam ter de dedicar a outros a afeio que me tinham. Posso compreender isso. Via-me oscilando constantemente entre a euforia e a depresso. Sou mesmo uma pessoa difcil. E tenho de admitir que, nesses dias, tornei-me insuportvel.

No entanto, to logo abrandou-se tal obstinao, eu me esqueci dela e obtive licena para voltar aos telhados. Um gato um atleta e um explorador. Por mais que ame o trono do rei, nunca abandonar por completo as aventuras da senda dos vagabundos.

De qualquer modo, aquele ocasional desconforto no se repetiu. Lembro-me apenas de que fui levada at um certo homem, o qual fez-me dormir por meio de algum artifcio inebriante. Foi um episdio muito estranho. Seja o que for que me tenha sucedido em suas mos durante o sono, sei que despertei com a pele de minha linda barriga costurada e o certo que no voltei a ter acessos de lascvia...

Emma continuava to alegre como quando eu a conheci, embora muitas vezes eu a tenha pego a choramingar pelos cantos da casa. Lgrimas so coisas que acontecem com os olhos dos homens quando eles esto descontentes. Se bem que j vi pessoas chorando em momentos que no podem ter sido seno de felicidade. mais uma das estranhas reaes humanas diante da vida.

Emma sempre foi muito diferente de mim. No sabia impor sua vontade s pessoas. Penso que a nica vez em que a declarou abertamente foi quando contrariou a me e me trouxe para sua casa, de longe a melhor coisa que j fez. Talvez ela h tanto tempo no opinasse que as pessoas se haviam esquecido de que ela tinha desejos. Afinal, no podiam adivinhar.

Eu ia esfregar-me em suas pernas no havia outro modo de perguntar-lhe a causa das lgrimas. Aparentemente, minha abordagem funcionava com tranqilizante, pois ela me apanhava no colo e comeava a falar comigo. Talvez me dissesse tudo o que no ousava dizer aos outros. Pouco depois, acalmava-se.

Um dia, Emma chegou em casa muito animada. Um rapaz vinha com ela, de mos dadas. Seu nome, como soou-me, era Jo.

Ficaram um bom tempo conversando com Pai e Me, sentados na sala com xcaras nas mos. Riram. O tal rapaz certamente foi muito apreciado. E Emma no veio falar comigo enquanto o indivduo no se disps a partir.

Depois daquele dia, vrias vezes vi o tal Jo entrar e sair da casa. Pai e Me gostavam muito de receb-lo e Emma mais ainda de traz-lo. Quando sozinhos, praticavam carcias que a meu ver no deveriam causar muito prazer. Ele parecia irritar-se com ela s vezes, quando o beijava por mais tempo do que lhe parecia adequado ou simplesmente dizia algo com que ele no concordasse. Parecia to temperamental quanto eu com a diferena de que jamais Emma teria de mim mostras de aborrecimento, mesmo que me incomodasse enquanto eu dormia. Mas, na presena de Jo, ela praticamente se esquecia da minha existncia.

Um dos mais famigerados atributos felinos o da inconstncia. Em contrapartida, tambm somos conhecidos por nosso carter ciumento. Em pouco tempo decidi que, a no ser pela nfima possibilidade de o amigo de Emma mostrar-se delicado e amvel para comigo, ele iria sofrer.

Raramente arrisquei aproximar-me dele; quando pela primeira vez o fiz, notei que tentou ser corts, afagando minha cabea. Escapei-lhe e cheirei sua mo. No simpatizei com seu odor. Encarando-o bem, j vi que no conhecia nada sobre gatos e tambm no estava interessado em versar-se nesta admirvel arte. No queria nada comigo. Era o tipo de pessoa que eu ignoraria em qualquer outro caso, mas no nesse. Afinal, ele era a novidade no meu territrio e estava tomando algo que era antes unicamente meu a ateno de minha preferida. E quem era ele para permitir-se tamanha audcia?

Descobri-me capaz de sentir rancor. Descobriria, mais tarde, maiores motivos para senti-lo e a inutilidade que isso era.

No demorei a encontrar nos ares a previso de mudanas.

At ento, no experimentara nada parecido. Deparava-me com uma nova sensao de que qualquer coisa me aguardava e que no haveria como fugir dela.

Um grave defeito humano negligenciar, nas ocasies mais importantes, a vontade dos animais com quem vivem. Eles nos incluem em planos dos quais no temos notcia at que nos vejamos irremediavelmente contaminados por suas decises. Foi exatamente deste modo que eu vim a saber sobre a unio de Emma e Jo.

Como Pai e Me haviam feito h muito, eles reuniram seus pertences e suas vidas. Todos estavam muito agitados e, ao que parecia, felizes. Entre lgrimas e risos, os humanos manifestaram plenamente o absurdo de sua natureza. Ento, atiraram as malas ao carro e eu s mos de Emma. Meteram-me na apertada gaiolinha que antes haviam usado para levar-me ao homem que costurou minha barriga e, por um instante, temi que pretendessem costurar mais alguma coisa. Mas logo compreendi que Emma estava me levando consigo. Fomos ns duas. Ns e aquele invasor em nossas vidas perfeitas.

O nossa nova residncia ficava no ltimo andar de um edifcio cinzento, pequeno e antigo. Era muito bonita por dentro, embora no fosse to grande quanto a outra e certamente estivesse muito afastada de tudo o que eu conhecia. Mas era mais do que o bastante para uma gata, uma mulher e um homem.

Fiquei perplexa ao adentrar o lugar desconhecido, consciente de que poderia nele passar o resto de meus dias. Mas a adaptao nunca foi impossvel para mim. Depois que a alcancei, minha vida prosseguiu sem grandes incmodos, mas eu dormia sozinha num aconchegante cesto que Emma, precavida, forrara com seu velho cobertor para mim. Talvez porque quisesse desfrutar em particular da intimidade adquirida com Jo. Talvez porque soubesse que eu me recusaria a dividir um leito com ele.

No importava que ns reservssemos um ao outro nossa quase total indiferena. Ele no gostava de mim, eu no gostava dele e ramos conhecedores disso. Tnhamos um pacto de inimizade. At este ponto, compartilhar a casa era tolervel. Ele estava quase sempre fora dela e, durante este perodo, eu podia reinar e ser razoavelmente feliz.

Quando Emma comeou a inchar, percebi que amos ter uma visita permanente.Captulo 3

Eu nunca passara por tal experincia, mas claro que sabia o que era uma fmea prenhe. Confesso que temi maiores ameaas minha autoridade. Tornei-me insegura e requisitava ateno a todo tempo. S no esperava que Jo fosse justamente aquele que procuraria satisfazer-me. Na verdade, por conselho de Emma.

Querido, Mia tem estado muito carinhosa. Acho que ela sabe que vai ganhar um irmozinho.

Aquilo o enfastiava.

Que irmo, Emma, a gata no sua filha... Cuidado com este amor. No fique distrada depois que o menino nascer, ou pode acabar amamentando a gata em lugar dele.

No seja bobo. Ah, olhe para essa carinha. Por que voc no brinca um pouco com ela?

Eu protestaria se previsse que ele seguiria a sugesto. Com toda a delicadeza que era peculiar a criaturas da sua qualidade, ele largou a lata de cerveja vazia na mesa ao lado do sof, passou a mo por baixo do meu corpo e me ergueu no ar, pousando-me bruscamente sobre suas pernas. De ventre para cima. O homem queria a morte!

Arranhei-lhe a mo e ele, com um gemido, levantou-se, fazendo-me cair no cho. Nem Mar e Van, quando pequenos, poderiam ser to estpidos.

Droga! Ela me arranhou!

Voc no combina mesmo com animais, querido.

Talvez porque ele mesmo fosse um animal, e dos mais imundos. Emma poderia ter se casado com um rato. Ao menos, eu me divertiria com ele. Estava farta de Jo.

Para no inspir-lo a me castigar, saltei pela janela e fui respirar o ar da noite na escada de incndio.

Ali, eu tinha muito mais liberdade do que na antiga casa, mas isto no voltava minha preferncia vida que levava ento. Era nostlgica at o extremo da capacidade felina, que no invejvel. Minha memria muito seletiva: interessa-se quase que s por odores e outros detalhes familiares e prticos, como as pessoas e coisas das quais gosto ou no. Naquele momento, agachada sobre o corrimo que precedia o primeiro lance de degraus, eu procurava lembrar-me de minhas situaes prediletas na antiga casa.

Van e Mar acotovelando-se no corredor, arrastando tiras de pano para que eu os perseguisse. Me seduzida pela minha aparente inocncia, esquecendo-se da vassoura com que pretendia dar-me uma lio de disciplina. Pai coando meu pescoo, sem dar importncia s suas calas que eu enchia de plos. Emma ainda jovem, sentada comigo nos joelhos diante do espelho. Eu perambulando no escuro, ao ressonar da casa, escolhendo a cama onde iria passar a noite, acomodada junto a uma curva de cintura ou um brao acolhedor.

Meus ouvidos jamais me deixaram deriva. Voltei-me subitamente para um outro solitrio que se aproximava, subindo a escada em direo ao mesmo corrimo no qual eu me encontrava, cauteloso, mas sem vacilar. Era de um branco poludo de cidade, de plos hspidos, esbelto e lento. Um sem-teto como eu j fora. Devia ter passado toda a sua existncia nas ruas julguemo-lo por seu aspecto. E era um tanto idoso.

Primeiramente hostilizei-o com olhares. Um estranho sempre um estranho. Em geral, eu teria rosnado primeira vista do intruso. Cordato, ele manteve a distncia. No devia ter um nome. Eu estava inteiramente acostumada a nomes, mas no o suficiente para esquecer-me de que eram invenes dos homens, das quais os animais sem domiclio no partilhavam. Assim como as palavras. De modo que ele jamais precisaria delas para dizer-me o que disse com seu olhar firme:

Voc pode no me conhecer, mas eu j estava aqui bem antes da sua chegada.

Olhou para dentro da minha janela. Emma e Jo estavam sentados no sof.

Ora, voc tem humanos. Parecem ser dos bons. No?

No senti vontade de agred-lo. Pareceu-me antes um bom sujeito. Confesso que me apiedei do seu aspecto miservel. E h muito tempo eu no me relacionava com um do meu tipo de qualquer forma que fosse.

Ela das boas respondi-lhe. Ele um completo imbecil.

Bem, ento no posso dizer at que ponto voc afortunada por t-los. Qual dos dois d as ordens? Normalmente, um deles acha que manda.

Pensei um pouco antes de assumir aquela intragvel verdade.

o imbecil.

Que lstima, jovem.

A convivncia ainda no se tornou impossvel.

Aproveite enquanto so seus. Quase todos tm vida longa. Mas, s vezes, partem antes de ns.

melhor que desaparea agora, velho. Se ele o vir aqui, querer dar-lhe a sova da qual escapei. Tem inveja de ns.

Est entendido, este o seu territrio... Fique com a casa, mas deixe o teto para mim, sim? o meu predileto.

Foi-se escada abaixo. Admirei-me de que um gato, vivendo da vadiagem, pudesse ser to longevo quanto aquele. Mas que podia supor eu, que nada sabia de sua histria?

Eu nunca ia receber Jo porta. Houve, contudo, uma noite em que no pude deixar de faz-lo. Ele vinha com Emma e eles traziam uma novidade.

Eu passara antes disso um bom tempo sem ver Emma. Ela recomendara ao marido que, em sua ausncia, no se esquecesse de me alimentar e de ser bom comigo. claro que ele acatou o primeiro conselho. No ia querer que ela se deparasse com sua querida gata morta por desnutrio. Quanto ao segundo conselho, no posso dizer que no tenha tentado segu-lo. No me dirigiu palavra ou olhar ferino durante todo o tempo em que ela esteve fora, o que era muito mais gentileza do que se podia esperar dele.

De modo que, quando ele a trouxe de volta, fui dar-lhes as boas-vindas to logo ouvi a chave girar na fechadura.

Nos braos de Emma repousava qualquer coisa de porte semelhante ao meu, envolvida por um lenol. Logo que se sentou no sof, fazendo rudos delicados para o seu pacote, chamou-me para exibir-mo. Saltei para o seu lado e vislumbrei aquela criatura plenamente pobre de plos, trmula e enrugada, que era o seu filhote. Ento, disse a Jo:

Feche a janela. Esta brisa pode fazer mal ao beb...

Ele fez o que ela pediu, mas, em seguida, veio tomar-lhe a criana.

A brisa no lhe far nada. Olhe para ele! Um menino forte. To forte quanto o pai.

E ergueu-o bem alto nas mos. Mas o filhote comeou a chorar terrivelmente como s um filhote humano faz.

No nada, no nada... Isso. Pegue-o, Emma. Vou abrir uma cerveja para comemorar.

Veja bem, s uma...

Aos poucos vi que a presena do beb era mais fascinante do que ameaadora. E ele, menos digno de clera do que de piedade. O seu nome porque era muito pouco falado naquela casa eu no pude aprender bem. Passei a pensar nele apenas como o Pequeno. Por mais que crescesse, nunca teria de mim outro ttulo. Era uma coisinha plida e de poucas palavras. No me afagava. Tampouco molestava-me.

Nem sei se era capaz dessas coisas. De qualquer modo, depois de ele se tornar um pouco maior e mais forte, aproveitei-me de sua passividade e encontrei um bom companheiro para as noites mais frias. claro que trancavam a porta do quarto para evitar minhas invases, mas h muito tempo eu sabia que, para abr-la, bastava saltar sobre a maaneta e gir-la.

Disse que ele se tornara mais forte, mas no era exatamente o que Jo esperava de um filho seu. O Pequeno cresceu o bastante para mostrar-se ativo e interessado no mundo, como qualquer outro filhote, mas identifiquei nele uma estranha atitude diante de tudo. Eu j vira outras crianas humanas e elas eram ruidosas e agitadas. Mas ele apresentava constante abatimento. Logo largava das coisas que despertavam sua ateno. Movia-se vagarosamente. Por tudo isso e por observar os olhares piedosos que Emma lhe oferecia e as olhadelas impacientes com que Jo o desaprovava, constatei que havia algo de muito errado com ele. Foi isso o que, pouco a pouco, tornou o ambiente onde vivamos menos suportvel.

Ele no normal, Emma, voc sabe disto. frgil. Segura tudo tremendo, nem parece um homem. E na idade em que est j devia saber falar melhor!

Pelo amor de Deus, o que quer que eu faa?

Deus. Tenho certeza de que era um nome, mas nunca soube a quem se referia.

Voc a me dele. Eu no passo o dia inteiro fora de casa? No sustento esta famlia? Voc no pode ao menos educar melhor o menino? Ele j doente. Quer que seja tambm um desajustado?

Eu no tenho culpa alegava ela. L vinham novamente aquelas lgrimas. Estavam se tornando to comuns que eu j no tinha dvidas sobre sua causa. Eu dou a ele toda a ateno que posso. Ele... tem algum problema, voc sabe. Nasceu assim. Talvez ns possamos mand-lo a uma escola especial...

E mais isto: ele tambm no inteligente.

Eu no posso fazer nada, seu estpido!

Neste momento, ele a fustigou com uma expresso que eu nunca havia visto. Parecia que atribua a ela a culpa por todas as suas insatisfaes. Como podia uma criatura ser assim egosta, que fazia frente at mesmo ao mais arrogante dos felinos? Comparando-me com ele, descobri em mim mesma um sentido de generosidade e compaixo que me faria renegada pela minha prpria raa. At conhecer Jo, eu imaginara todos os seres humanos dotados de um talento para amar uns aos outros e uma boa vontade quase canina. Conclu, assombrada, que eu sabia muito pouco sobre sua ndole simples e imperturbvel. Hoje, sei que so to volveis e indisciplinados quanto ns prprios, ou mais. Jo foi, de fato, o primeiro ser humano perverso que j tive o desprazer de conhecer.

Ele avanou na direo dela e, por um momento, julguei que fosse agred-la. Mas deteve-se e a maneira como olhou para Emma f-la baixar de imediato os olhos e cobr-los com as mos.

Todos na minha famlia so inteligentes e fortes ele cuspiu. Na sua, no posso saber. uma vergonha!

Pela primeira e ltima vez em toda a minha regalada vida, desejei ser humana. Desejei o poder de gritar: Emma! Levante-se da e reaja, arranhe-o, expulse-o! Valia-me mais estar vagando faminta pelas ruas do que viver naquela jaula onde ns duas e o pobre filhote ramos dominados por aquele macho desprezvel. Ora, o que teria sido de mim se todos se deixassem iludir por minha aparente fragilidade, desprezando-me e condenando-me aos becos da vida?

Eu desejava ser humana. Ser humana e saltar sobre ele, empurr-lo pela janela, v-lo despencar pelo edifcio at que o cho duro da calada, l embaixo, findasse sua existncia.

Mas ele deixou a sala e ningum ousou fazer nada.

A partir de ento, jamais reafirmei meu apego a Emma, nem ela, tampouco, procurou-me. No que eu ignorasse seu sofrimento, mas sempre quis que ela se desvencilhasse do homem, e, no entanto, via-a decadente e anulada por aquele condicionamento auto-imposto. Acho que eu no queria mais o amor de algum assim.

Ela no era mais a Emma de minha infncia, era uma fmea dobrada e emudecida e o mrito da sua desgraa era todo do macho que ela escolhera como pai de sua prole. O mito da minha preferida estava obsoleto. A nica coisa que eu queria era preservar a honra de sua memria, vingando-me de algum modo do seu violador. Minha vaidade o pedia. Mas eu era pouco alm de uma observadora.

Captulo 4

Os humanos tm um estranho apego a coisas inteis. Certos objetos despertam neles maior interesse do que os prprios seres vivos. Tm enorme cuidado com determinadas miudezas, como conjuntos de ch de loua de no-sei-onde, com aquelas xcaras que mal conseguem segurar, de to pequenas. S servem como ornato para os seus mveis outro estrambtico costume humano colocar muitas coisas pequenas sobre coisas grandes com o nico propsito de dificultar nossa vida quando queremos caminhar por sobre as mesas, armrios e prateleiras. E infeliz do descuidado que se arrisca a bulir com essas preciosidades. por isto que parei de subir na penteadeira de Emma. Estava sempre cheia de frascos de perfume, e eu costumava tropear neles.

Se os humanos gostam tanto de embelezar suas casas, deviam ter mais gatos. Francamente, servimos para menos coisas do que um bom co: no apanhamos jornais, chinelos ou brinquedos que se nos atirem, no guardamos o lar contra ladres e, acima de tudo, no acatamos ordens. Mas o gato um adorno! Uma preciosidade viva que escolhe cuidadosamente o ponto da casa que ir enfeitar.

Eu falava sobre xcaras de ch, no? E sobre os infelizes que querem examin-las. Pois bem. Desde que me mudara para aquela nova casa, havia uma grande estante na sala. Pareceu-me impossvel us-la como passarela, pois era repleta de quinquilharias brilhantes entre elas uma enorme bandeja de loua com seu bule, seu aucareiro e suas xcaras, sobre uma toalha rendada. Emma limpava-as com um zelo nunca visto. A me de Jo lhas havia dado; tinha de trat-las com delicadeza, como se fossem bebs. Eram antigas, valiosas, cheias de recordaes. Molest-las era molestar Jo e toda a sua famlia. E eis que, naquela noite, l estava o Pequeno, vasculhando com seus dbeis dedos as minsculas peas de ornato. Eu o observava do sof, de certo modo feliz porque ele se livrara de sua apatia e tentava descobrir o mundo. Pegou um cinzeiro de pedra, olhou-o, circunspecto, e deixou-o cair. Mas o objeto pousou sobre o tapete e, sendo muito duro, no se quebrou. O Pequeno partiu para as outras curiosidades. Esticou seus braos para o alto, em busca das xcaras, mas era muito franzino e baixo. Ento, ficando trmulo nas pontas dos ps, alcanou a beirada da toalha e puxou-a para a frente.

Os homens no primam pela firmeza e a preciso; suas crianas, ainda menos. Toda a loua veio abaixo, permitindo a ele apenas afastar-se para o lado. Desta vez, apesar do murmrio da chuva que caa l fora, Emma ouviu o estardalhao. Correu para a sala.

Ah, Deus! O que voc fez? Machucou-se?

F-lo levantar-se e olhou para a loua. Runas.

Mas est tudo quebrado aqui... O que voc fez? Seu pai no vai gostar disso. No mesmo! Ah, no, no chore!

J falei sobre o senso de convenincia humana. O de Jo era dos melhores. Decidiu abrir a porta da casa naquele instante propcio e surgir na sala, com uma garrafa na mo. Sua cara estava molhada. Creio que se perdera da sua condio de homem e pai, pois no me pareceu mais inteligente do que um galo de briga.

O filhote chorava um choro agudo. Ela ficou parada, cacos de loua em suas mos.

Aconteceu por acidente explicou. Ns no...

Foi ele ou foi voc? Por causa do que eu disse ontem sobre a sua famlia? Voc quis ofender a minha?

No nada disso, ns estvamos aqui e...

Ento foi ele. J no lhe disse para vigi-lo? Voc complacente demais! Como que deixa esse menino sozinho, Emma, voc sabe muito bem que... ah... Por que simplesmente no pe dinheiro nas mos dele, para vermos se ele o rasga e destri todo, tambm? Da prxima vez ele pode querer brincar com facas!

Ela protestou, mas ento Jo j agarrara o Pequeno pelos ombros e sacudia-o.

Por que voc que no tem fora? Firmeza? O que preciso fazer para que seja um homem?

Emma segurou-o, tentando ganhar seu interesse.

Pare com isso!

Sou o pai dele! Voc o trata como se ele fosse uma menininha. Por isso que ele ficou delicado demais. Se voc no pode lhe ensinar, eu mesmo o fao!

Ele a empurrou e saiu puxando o Pequeno pela blusa. Mas a criana no tinha foras para acompanhar as passadas gigantescas que o maldito dava. Logo estava sendo arrastada pelo corredor.

Saltei da poltrona e segui os dois com os olhos. No me aproximaria de um homem naquele estado. Seu cheiro era to forte que me causava quase tanta repugnncia quanto sua prpria figura.

Jo no parou seno quando chegou ao quarto do filho. Abriu a porta e enfiou-o l dentro, trancando-o por fora.

J devia estar na cama. Ficar a dentro agora, para ver se no quebra mais nada!

Retornou sala, onde Emma se colocou sua frente.

Pelo amor de Deus, o que voc fez com ele?!

Fique quieta, droga. Ele meu filho! Acha que eu o machucaria?

E eu sou sua esposa! O que que tem feito comigo alm de me machucar?

Eu machuco voc? isso? Quando eu a machuco?

O tempo todo... seu bbado!

Ela estava desfeita em pranto. Ocultei-me nas sombras do corredor. Conseguia ouvir o Pequeno dentro do quarto, sacudindo dbil e inutilmente a maaneta da porta. Na sala, a voz de Emma parecia o miado de um filhote faminto. Por que s chorava? Se o menino fosse meu filhote, eu arrancaria a pele do rosto daquele homem.

S o que faz me machucar... me ofender... No tem um nico gesto de amor ou sequer de respeito para mim! Voc no o homem com quem me casei! No um bom pai e nem um bom marido. um louco, um monstro!

No poderia impedir minhas patas de dispararem a correr para longe quando eles comearam a vociferar juntos e ele a atingiu no rosto com a violncia de um inimigo declarado. Foi um nico tapa, mas bastou. Acho que o que caiu ali no foi o corpo de Emma, mas todo e qualquer orgulho que ela possa ter tido um dia, pois no ouvi mais nada na sala alm dos passos pesados de Jo no corredor, indo para seu quarto o esconderijo que eu infelizmente escolhera e o choro agudo de Emma, sentada no cho.

Ele adentrou o recinto. No me contive. De cima de sua prpria cama, rosnei para ele, cuspi-lhe, ofereci-lhe todo o meu desprezo. Eu o afrontava. Sua mo avanou, disposta a aplicar tambm a mim uma lio inesquecvel. Pulei de lado e minhas garras se eriaram tanto quanto puderam, desferindo-lhe um golpe pelo qual mereo congratulaes.

Coisa desgraada!

Mais astuto do que eu previra, ele me agarrou pelas costas com a mesma mo que sangrava, esticando-me a pele de modo que fiquei anulada e inteiramente indefesa, enquanto ele me carregava para a sala.

O quarto tambm possua uma janela. Mas penso que ele no resistiu idia de que sua maltratada companheira presenciasse o crime. Era pela janela da sala que ia me atirar, quando Emma, ainda em prantos, finalmente correu em meu socorro, barrando sua ao com um grito suplicante e colocando-se diante da janela.

No sei se isto o acalmou e fez com que repensasse seu intento. Talvez apenas o tenha desorientado. O certo que me valeu a vida. Morvamos no ltimo andar e jamais me ocorrera a idia de saltar daquela altura. Assim, ele a empurrou e me arrojou apenas pelos degraus da escada de incndio. Meu equilbrio no permitiu que eu me ferisse. Para mim, foi menos doloroso cair desse modo do que teria sido para ele se eu tivesse o poder de inverter nossas posies. Mas no menos humilhante.

Fugi sob a chuva. Ele ainda foi atrs de mim, tentando afugentar-me, at escorregar nos degraus molhados. Quase me senti vingada. Eu ento estava longe de suas vistas, correndo entre as poas de gua na rua, banida.

H muito tempo no tinha de me valer de minhas artimanhas. H muito desconhecia o ardor da competio pela sobrevivncia. Gatos no contam idade, mas eu sabia que j mo era jovem. Vivera muito e bem custa da bondade dos homens; agora, era repelida pela sua avareza.

Comeava a formular um conceito de ironia que me faria rir se no estivesse exemplificado justamente na minha condio. Mas l estava eu. De volta s vielas escuras e aos becos midos da vida bomia.

De bom grado retornaria antiga casa da famlia, ao conforto sobre as pernas de Pai, diligncia de Me e aos jogos com Van e Mar. Se eu me lembrasse de onde procur-los. Desconhecia qualquer caminho capaz de me conduzir sua morada. Aceitei que estava s. Que fazer? Contar com a piedade de quem se dispusesse a oferecer uma tigela de leite a um gato sua porta? Pr, ento, meu precioso couro merc dos caprichos de um estranho, que poderia apadrinhar-me ou oprimir-me? Misturar-me sarna e fome de irmos menos favorecidos, engalfinhando-me com eles pelos restos de carne numa coxa de frango que as moscas cobiavam? Deixar-me tiranizar pela fora dos maiores, prescindindo do melhor quinho do lixo ftido das casas?

Fiz de tudo um pouco. Ningum me pode acusar de repetir meus mtodos. Mantive-os variados e nem sempre eficientes. Tive de reaprender a contar com meus instintos para ser criativa em emergncias e a contentar-me com cantos rgidos e reservados como os melhores leitos disponveis. Acho que ento j no era metade da formosa gata que fora um dia. Estava magra e suja. Mesmo assim, no deixei de prover a mim mesma certa diverso que advm do perigo e, devo admitir, da desonestidade. J no primeiro dia que passei naquele retiro forado, roubei a um mendigo decrpito um naco de po com presunto que uma alma caridosa lhe haveria dado. Ele dormia profundamente e foi fcil apanhar-lho da mo. Mais tarde, saciada mal e mal a fome e com alguma investigao, descobri que ele estava morto.

A vida ali no era mesmo muito bela. Mas eu no pretendia ficar por tempo bastante para acostumar-me a ela.

Captulo 5 - Final

Todos os de nossa fraternidade felina, por domesticados e dceis que sejam, seguem um princpio que nos deu a fama de bons caadores, alm de incurveis ladres. Ele diz: se quer uma coisa, v peg-la agora mesmo.

E eu queria voltar para casa. Digo, para a casa de Emma e do imbecil. J que nunca seramos amigos, no seria possvel voltarmos a ser apenas adversrios silenciosos? Humanos no costumam ser to rancorosos. No comigo. Talvez ele houvesse pedido perdo a Emma e pudesse ao menos tolerar-me por ela. Poderia at estar com sua conscincia extremamente pesada por haver-nos tratado daquela forma e meu retorno poderia significar seu alvio embora eu no confiasse em nenhuma destas hipteses. Mas eu tambm queria ver como ela ia passando. Devia estar sentindo minha falta. Poderia at estar pensando que me perdera para sempre, a pobre.

Ento, reuni toda a minha coragem e desfaatez a caminho do apartamento.

Alcancei a escada de incndio. Tudo era silncio.

No tive de arranhar o vidro para que me fosse permitido entrar. A janela estava suficientemente aberta para que eu me esgueirasse por ela, saltando para o cho da sala. Seria possvel que tivessem sado e deixado a janela aberta? No isto o que chamam de imprudncia? Qui estivessem no quarto, dormindo cedo demais. Fui averiguar.

No gostei do que vi.

No quarto, somente Jo. Estava atirado sobre a cama, de braos abertos. A indispensvel garrafa estava ali ao seu lado. No havia outro som que no o de uma respirao muito fraca e sfrega, at doentia. Estava vivo, claro, mas no muito, penso eu. Alguns homens ficam semimortos quando bebem e penam demais. como estar doente o bastante para ver a morte chegando, mesmo que ela esteja muito longe.

O guarda-roupas estava com as portas escancaradas e as gavetas abertas. Havia algumas peas no cho, mas s o que sobrara ali dentro eram as roupas de Jo. As de sua mulher bem como as de seu filhote j no eram vistas. Eu s aspirava odores de lcool, suor, poeira, fezes sob os sapatos, rua, fumaa, desamparo, solido. Emma fora embora.

As situaes em que somos pegos so pouco mais do que o reflexo de nossas atitudes. Que fora pode obrigar a prostrar-se um ser livre, seno a do seu prprio arbtrio? o mesmo poder que o leva a reagir.

Vermes e abutres tendem a alimentar-se do que est morto. A conduta de uma nica pessoa forja inmeros papis a serem cumpridos pelos que esto sua volta, e a oportunidade um petisco fcil ao qual poucos resistem. A vontade de Emma estava morta. Jo tornara-se o seu verme. Da passividade, da tolerncia e da sujeio, porm, ela se erguera, protegendo a si e ao seu filho. Decidira-se pela mudana, tarde, mas no tarde demais. E nada, nem minha recordao, poderia t-la mantido na inrcia.

Decerto que esperara por mim... Decerto que me julgara perdida. Devo ter me ausentado por muito tempo, no sei quanto. No a culpo. No posso. Ela salvou o que lhe restava.

Mas bem que poderia ter-me esperado um pouco mais.

Hoje, subi ao telhado para observar as estrelas. Gatos viris, apaixonados por nada, entoavam seus cantos ao longe. Os ces enlouqueciam com o barulho e os mais tristonhos e velhos uivavam. Fechei meus olhos e apreciei aquela sinfonia dissonante. Logo eu j no estava sozinha no meu camarote.

Ora, veio disputar territrio?

Era o Velho alvacento que vinha me saudar. Agachou-se tambm junto calha do prdio, pouco distante de mim. Recebi-o em paz.

O meu... tem estado um pouco vazio.

Percebi.

Calamo-nos por um instante.

s vezes, partem antes de ns. Mas fui afortunada.

E no dissemos mais nada.

Tenho visto o Velho pelos telhados, mas no conto divid-los com ele por muito tempo. Este gato uma antigidade. Se fosse um objeto, os homens o louvariam em vez de desprez-lo. Logo ele partir de modo que jamais possa ser encontrado, se no for antes pego por um carro ou uma turma de delinqentes sedentos de violncia.

Eu? Ora. Essas coisas podem acontecer a mim tambm. Estou de volta s ruas. No creio que demorarei a esquecer-me do rosto de Emma, de seu nome, de seu perfume. Creio menos ainda que encontre novamente criana ou famlia que queira acolher-me em seu regao, mas quem sabe ao certo? No tenho compromissos e nem lugar onde depositar meu cadver. J sou velha. Faltam-me dentes. Dir algum que as beldades so eternas? No eu. Mas no me queixo. Fui agraciada com tudo o que algum como eu poderia pedir, exceto o sono final num leito macio. frente de uma lareira, sombra de uma rvore, nos crregos das sarjetas, em braos amveis que me importa onde encontre a morte? Se encontrei a vida nos melhores lugares que poderia imaginar!

No estou arrependida ou injustiada. No se diz que os gatos possuem muitas vidas? Eu vivi por todas elas.

Minha existncia de fidalga foi longa, invejvel e magnfica. Imite-me quem puder.