Calamandrei - Eles, Os Juízes, Vistos Por Um Advogado

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8/16/2019 Calamandrei - Eles, Os Juízes, Vistos Por Um Advogado http://slidepdf.com/reader/full/calamandrei-eles-os-juizes-vistos-por-um-advogado 1/1 CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado . Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1!. * “Um grande químico amigo meu, que passa o dia fechado no laboratório, explicava-me que o estímulo que guia o cientista nas suas pesquisas não é, como as pessoas crem, o !amor " humanidade#, mas antes seu gosto pessoal de arriscar uma hipótese e verificar, depois, através da experincia, se ela é bem fundada$ e a m%xima recompensa para o cientista é poder descobrir que a verdade imaginada coincide com a verdade experimentada& 'as como o (urista poderia aspirar a essa mesma alegria) ode acontecer que o (urista teórico, que estuda uma questão in vitro , deixando-se guiar por aquela espécie de intui+ão profissional que se chama !senso (urídico#, imagine que ela deva ser resolvida de certo modo e se alegre depois, ao descobrir nas leis um artigo de que não se recordava, que a resolve precisamente daquele mesmo modo, ou ao verificar, nas sucessivas pesquisas, que a (urisprudncia resolveu daquele modo antes dele& esses casos afortunados, pode também ocorrer que o (urista encontre uma confirma+ão da sua previsão que se assemelhe "quela recompensa que o cientista procura& 'as, quando o (urista baixa do campo da teoria científica ao da pr%tica (udici%ria, as coisas correm de outro modo& cientista, nas suas pesquisas, tem diante de si a nature.a, que é sempre a mesma, e utili.a, para interrog%-la, instrumentos de precisão que não mudam de humor$ entre a sua inteligncia e o fato não h% outro intermedi%rio além do seu microscópio& 'as entre a previsão do advogado e a verdade oficial, que por fim ser% escrita na senten+a, interp/e-se toda uma série de anteparos, através dos quais o fio da previsão se embara+a e freq0entemente se rompe - misteriosos interruptores psíquicos que desviam ou, até, impedem a passagem da corrente& 1nsina-se na escola que a verdade escrita na senten+a nada mais é que o fato filtrado através da mente do (ui.& 'as, na realidade, as coisas são bem mais complicadas& 2ntes de chegar " mente do (ui., o fato deve passar através da narra+ão que dele fa. cada litigante a seu defensor e, depois, na fase de instru+ão, através dos esquecimentos ou das reticncias das testemunhas, mais tarde ainda, no debate, através das reconstru+/es não imparciais dos defensores& 3inalmente, chega ao (ui. - não por um só caminho que corre " lu. do sol, mas por dois caminhos tortuosos diferentes, que em grande parte se desenrolam subterraneamente, pois devem atravessar os obscuros meandros d o espírito humano& 4omo o advogado pode prever, no momento em que o processo se inicia, de que modo sair% transformada ou deformada a verdade, através desses itiner%rios secretos pelos subterr5neos psíquicos das conscincias que participam do (ulgamento) 4ada homem reage de maneira diferente e imprevisível aos fatos externos$ cada um os v, ou os antev, a seu modo& 2 senten+a é o resultado dialético dessa sucessão de rea+/es individuais, cada uma das quais é, em si, misteriosa e imprevisível& a senten+a não h% apenas o mistério final da conscincia do (ui., mas também o concurso intermedi%rio de toda uma série de conscincias individuais, cada uma das quais é uma incógnita, diante da qual a previsão científica se detém, impotente& advogado que desde o primeiro colóquio garante ao cliente o resultado vitorioso da causa pode ser um h%bil profissional, mas por certo não é um grande cientista& 2ssemelha-se mais ao prestidigitador que garante saber adivinhar a carta que vai sair do baralho6 aqui não h% cincia, apenas destre.a manual&7 *".1#$1 & 8radu.ido do original italiano, em sua 9: edi+ão, de ;<=<6 Elogio dei giudici , onde 4alamandrei narra, através de anedotas, sua experincia como advogado entre os anos de ;<>= e ;<=? na @t%lia

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8/16/2019 Calamandrei - Eles, Os Juízes, Vistos Por Um Advogado

http://slidepdf.com/reader/full/calamandrei-eles-os-juizes-vistos-por-um-advogado 1/1

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado . Trad. Eduardo Brandão. SãoPaulo: Martins Fontes, 1 !. *

“Um grande químico amigo meu, que passa o dia fechado no laboratório, explicava-meque o estímulo que guia o cientista nas suas pesquisas não é, como as pessoas cr em, o !amor "humanidade#, mas antes seu gosto pessoal de arriscar uma hipótese e verificar, depois, através daexperi ncia, se ela é bem fundada$ e a m%xima recompensa para o cientista é poder descobrir quea verdade imaginada coincide com a verdade experimentada&

'as como o (urista poderia aspirar a essa mesma alegria) ode acontecer que o (urista

teórico, que estuda uma questão in vitro , deixando-se guiar por aquela espécie de intui+ãoprofissional que se chama !senso (urídico#, imagine que ela deva ser resolvida de certo modo e sealegre depois, ao descobrir nas leis um artigo de que não se recordava, que a resolveprecisamente daquele mesmo modo, ou ao verificar, nas sucessivas pesquisas, que a

(urisprud ncia resolveu daquele modo antes dele& esses casos afortunados, pode tambémocorrer que o (urista encontre uma confirma+ão da sua previsão que se assemelhe "quelarecompensa que o cientista procura&

'as, quando o (urista baixa do campo da teoria científica ao da pr%tica (udici%ria, ascoisas correm de outro modo& cientista, nas suas pesquisas, tem diante de si a nature.a, que ésempre a mesma, e utili.a, para interrog%-la, instrumentos de precisão que não mudam de humor$entre a sua intelig ncia e o fato não h% outro intermedi%rio além do seu microscópio& 'as entre aprevisão do advogado e a verdade oficial, que por fim ser% escrita na senten+a, interp/e-se todauma série de anteparos, através dos quais o fio da previsão se embara+a e freq0entemente serompe - misteriosos interruptores psíquicos que desviam ou, até, impedem a passagem dacorrente&

1nsina-se na escola que a verdade escrita na senten+a nada mais é que o fato filtradoatravés da mente do (ui.& 'as, na realidade, as coisas são bem mais complicadas& 2ntes dechegar " mente do (ui., o fato deve passar através da narra+ão que dele fa. cada litigante a seudefensor e, depois, na fase de instru+ão, através dos esquecimentos ou das retic ncias dastestemunhas, mais tarde ainda, no debate, através das reconstru+/es não imparciais dosdefensores& 3inalmente, chega ao (ui. - não por um só caminho que corre " lu. do sol, mas por dois caminhos tortuosos diferentes, que em grande parte se desenrolam subterraneamente, poisdevem atravessar os obscuros meandros do espírito humano&

4omo o advogado pode prever, no momento em que o processo se inicia, de que modosair% transformada ou deformada a verdade, através desses itiner%rios secretos pelossubterr5neos psíquicos das consci ncias que participam do (ulgamento) 4ada homem reage demaneira diferente e imprevisível aos fatos externos$ cada um os v , ou os antev , a seu modo&

2 senten+a é o resultado dialético dessa sucessão de rea+/es individuais, cada uma dasquais é, em si, misteriosa e imprevisível& a senten+a não h% apenas o mistério final daconsci ncia do (ui., mas também o concurso intermedi%rio de toda uma série de consci nciasindividuais, cada uma das quais é uma incógnita, diante da qual a previsão científica se detém,impotente&

advogado que desde o primeiro colóquio garante ao cliente o resultado vitorioso dacausa pode ser um h%bil profissional, mas por certo não é um grande cientista& 2ssemelha-se maisao prestidigitador que garante saber adivinhar a carta que vai sair do baralho6 aqui não h% ci ncia,apenas destre.a manual&7

*".1#$1 & 8radu.ido do original italiano, em sua 9: edi+ão, de ;<=<6 Elogio dei giudici , onde4alamandrei narra, através de anedotas, sua experi ncia como advogado entre os anos de ;<>= e;<=? na @t%lia