Caixas, texto publicado n'O Diário do Norte do Paraná

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Sábado, 15 de novembro de 2014 CULTURA D4 “Sem dúvida, aquele era um caso da mais extrema gravidade, uma vez que Concheta havia ju- rado que jamais falaria comigo depois da fatídica última vez que havíamos nos visto em que ela havia tentado me beijar à força. Não que ela fosse uma mulher feia, pois apesar de seus 83 anos, ainda preservava algo de sua be- leza jovial. O problema é que eu detestava bigodes espessos e além do mais, quando tirava a dentadura Concheta ficava com um tremendo mau hálito.” O trecho acima representa um pouco do que o tradutor e mú- sico Iládio Davense, 47, traz em seu livro de estreia, a coletânea de contos“ODiárioSecretodeZigfri- eld Naaxtro” (edição do autor, R$ 25, 263 páginas), já lançado em SãoPauloeque,às19h30destesá- bado, será lançado em Jussara (a 65 quilômetros de Maringá), no JussaraCountryClub. Davense, que hoje mora em Guarulhos (SP), morou na déca- da de 1980 em Jussara, criou e preservou amizades por lá e, por isso, retorna à cidade para rever conhecidos e também para mos- trar um pouco da sua arte na lite- ratura. “O Diário Secreto de Zigfri- eld Naaxtro” traz quatro contos, sempre protagonizados pelo “Macunaíma pop”. “As referên- cias são diversas, o livro é re- pleto de citações do universo pop, o que não necessariamen- te compromete o entendimento de quem não tenha ligação com esse universo. Mas teve um livro que mexeu muito comigo que foi ‘Macunaíma’, a maneira como o texto flui e o personagem. Acho que o Zigfrield Naaxtro tem um tiquinho de Macunaíma, e mais a soma de uma série de outros anti-heróis do cinema e da litera- tura, como o Inspetor Clouseau, por exemplo”, diz o escritor. Wilame Prado [email protected] y Macunaíma pop em Jussara LITERATURA O Iládio Davense , tradutor paulista que morou na região, estreia com “O Diário Secreto de Zigfrield Naaxtro” O Ele, que mora em Guarulhos, faz lançamento do livro de contos neste sábado , no Country Club Jussara TAVARES y Sérgio Tavares Para a formatura, sobraram apenas oito graduandos. Maurício foi quem escreveu e proferiu o discurso. Três dias depois, meu pai acertou, com um amigo de um amigo, uma entrevista de emprego numa assessoria de comunicação de uma secretaria de Estado Caixas ornalismo não foi uma opção. Na verdade, nunca me pareceu uma má ideia estacionar num período da vida. Porém as convenções não permitem. E ser jornalista foi o que restou. Faculdade par- ticular, obviamente. Numa turma de ensino privado, 95% dos alu- nos não têm a menor ideia do porquê de esta- rem ali, 4% assistem as aulas e 1% tem chan- ce real de se tornar um bom profissional. Na minha sala, esse ínfimo percentual era o Mau- ricio. Desde o primeiro período, destacava-se dos demais. Debatia os conteúdos disciplina- res com os professores, cumpria todas as ta- refas, representava a classe. Nas ocasiões em que eram administradas atividades em grupo, era a quem os parasitas tentavam se congre- gar. Mauricio tinha uma bagagem provida fora dos muros da universidade. Estava sempre com um livro à mão ou paquerando as lombadas na biblioteca. Era bem articulado, decidido, suas reportagens experimentais nada perdi- am para as transmitidas pela tevê. Dizia que seu sonho era ganhar o prêmio Esso, embo- ra eu nunca tenha entendido porque desejasse um troféu de posto de gasolina. Para a formatura, sobraram apenas oito gradu- andos. Mauricio foi quem escreveu e proferiu o discurso. Três dias depois, meu pai acertou, com um amigo de um amigo, uma entrevista de emprego numa assessoria de comunicação de uma secretaria de Estado. Eu dormi além da conta e perdi a hora. Ele conseguiu que re- marcasse e estou lá faz três anos. Gosto do trabalho, pois não preciso me esfor- çar. Passo a maior parte do dia navegando pela internet. Às vezes, saio para cobrir uma sole- nidade ou uma palestra. Minha função é regis- trar a presença do secretário num breve texto colocado no quadro de informes na recepção do prédio. O salário é bom, o suficiente para cumprir com o aluguel do quarto-e-sala para onde me mudei. Há ainda muitas caixas por es- vaziar, coisas a serem postas em seus lugares. Fica sempre para depois, depois eu faço. A casa de um homem só, para ser funcional, precisa de uma tevê, um sofá, uma geladei- ra e um micro-ondas. Minhas refeições se re- sumem a congelados. Ontem eu fui acompa- nhar o lançamento de um programa social em outra cidade. Antes de retornar, entrei num su- permercado já para levar o jantar. Peguei uma lasanha e tomei a fila do caixa. Estava distraí- do, conectado apenas aos avisos de próximo. Quando chegou a minha vez, depositei o pro- duto sobre a esteira e, ao erguer a vista, um murro congelante acertou meu peito. Eu não podia acreditar: era o Mauricio. Ele pegou a embalagem, passou pelo leitor de códi- go e me informou o preço. Atordoado, saquei a carteira e lhe entreguei uma nota. Virou-se, conferiu o troco e ensacou a compra. Nesse instante, nossos olhos se encontraram. E, por um segundo, apesar da atitude impassível, eu soube que, por trás daquela expressão de nor- malidade, borbulhava o mais feio dos cons- trangimentos. Cheguei em casa e coloquei a lasanha no micro-ondas. Enquanto se esgotava o tempo de preparo, sentei no chão. Não conseguia me desviar da imagem do Mauricio naquele caixa de supermercado, vestindo o uniforme que não cai bem em ninguém. O que aconte- ceu? Ele sempre pensou no futuro. Para onde foram seus sonhos, em qual curva do caminho derrapou? O sinal soou, levantei-me e abri a porta, senti- do a quentura aromática. Fiquei embrulhado e joguei a lasanha no lixo. Em seguida, liguei a tevê e deitei no sofá. Passava o mesmo progra- ma em todos os canais. Ainda era cedo, mas acho que dormi. Não sei, não me lembro. Não me lembro se dormi. J ESTANTE A O DIÁRIO SECRETO DE ZIGFRIELD NAAXTRO Autor: Iládio Davense Edição independente Lançamento: sábado, 19h30 Onde: Jussara Country Club Preço do livro: R$ 25 ANTI-HERÓI. IIládio Davense ao lado da reprodução em papel do anti-herói Zigfrield Naaxtro: primeiro livro traz contos – FOTO: DIVULGAÇÃO

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Caixas, de Sérgio Tavares, publicado n'O Diário do Norte do Paraná, em 15 de novembro de 2014

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O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ Sábado, 15 de novembro de 2014CULTURAD4

“Sem dúvida, aquele era um caso da mais extrema gravidade, uma vez que Concheta havia ju-rado que jamais falaria comigo depois da fatídica última vez que havíamos nos visto em que ela havia tentado me beijar à força. Não que ela fosse uma mulher feia, pois apesar de seus 83 anos, ainda preservava algo de sua be-leza jovial. O problema é que eu detestava bigodes espessos e além do mais, quando tirava a dentadura Concheta ficava com um tremendo mau hálito.”

O trecho acima representa um pouco do que o tradutor e mú-sico Iládio Davense, 47, traz em seu livro de estreia, a coletânea de contos “O Diário Secreto de Zigfri-eld Naaxtro” (edição do autor, R$ 25, 263 páginas), já lançado em São Paulo e que, às 19h30 deste sá-bado, será lançado em Jussara (a 65 quilômetros de Maringá), no Jussara Country Club.

Davense, que hoje mora em Guarulhos (SP), morou na déca-da de 1980 em Jussara, criou e preservou amizades por lá e, por isso, retorna à cidade para rever conhecidos e também para mos-trar um pouco da sua arte na lite-ratura.

“O Diário Secreto de Zigfri-eld Naaxtro” traz quatro contos, sempre protagonizados pelo “Macunaíma pop”. “As referên-cias são diversas, o livro é re-pleto de citações do universo pop, o que não necessariamen-te compromete o entendimento de quem não tenha ligação com esse universo. Mas teve um livro que mexeu muito comigo que foi ‘Macunaíma’, a maneira como o texto flui e o personagem. Acho que o Zigfrield Naaxtro tem um tiquinho de Macunaíma, e mais a soma de uma série de outros anti-heróis do cinema e da litera-tura, como o Inspetor Clouseau, por exemplo”, diz o escritor.

Wilame Prado [email protected] y

Macunaíma pop em Jussara LITERATURA

Iládio Davense, tradutor paulista que morou na região, estreia com “O Diário Secreto de Zigfrield Naaxtro” Ele, que mora em Guarulhos, faz lançamento do livro de contos neste sábado, no Country Club Jussara

TAVARESySérgio Tavares

Para a formatura, sobraram apenas oito graduandos. Maurício foi quem escreveu e proferiu o discurso. Três dias depois, meu pai acertou, com um amigo de um amigo, uma entrevista de emprego numa assessoria de comunicação de uma secretaria de Estado

Caixas ornalismo não foi uma opção. Na verdade, nunca me pareceu uma má ideia estacionar num período da vida. Porém as convenções não permitem.

E ser jornalista foi o que restou. Faculdade par-ticular, obviamente. Numa turma de ensino privado, 95% dos alu-nos não têm a menor ideia do porquê de esta-rem ali, 4% assistem as aulas e 1% tem chan-ce real de se tornar um bom profissional. Na minha sala, esse ínfimo percentual era o Mau-ricio. Desde o primeiro período, destacava-se dos demais. Debatia os conteúdos disciplina-res com os professores, cumpria todas as ta-refas, representava a classe. Nas ocasiões em que eram administradas atividades em grupo, era a quem os parasitas tentavam se congre-gar. Mauricio tinha uma bagagem provida fora dos muros da universidade. Estava sempre com um livro à mão ou paquerando as lombadas

na biblioteca. Era bem articulado, decidido, suas reportagens experimentais nada perdi-am para as transmitidas pela tevê. Dizia que seu sonho era ganhar o prêmio Esso, embo-ra eu nunca tenha entendido porque desejasse um troféu de posto de gasolina. Para a formatura, sobraram apenas oito gradu-andos. Mauricio foi quem escreveu e proferiu o discurso. Três dias depois, meu pai acertou, com um amigo de um amigo, uma entrevista de emprego numa assessoria de comunicação de uma secretaria de Estado. Eu dormi além da conta e perdi a hora. Ele conseguiu que re-marcasse e estou lá faz três anos. Gosto do trabalho, pois não preciso me esfor-çar. Passo a maior parte do dia navegando pela internet. Às vezes, saio para cobrir uma sole-nidade ou uma palestra. Minha função é regis-trar a presença do secretário num breve texto colocado no quadro de informes na recepção do prédio. O salário é bom, o suficiente para

cumprir com o aluguel do quarto-e-sala para onde me mudei. Há ainda muitas caixas por es-vaziar, coisas a serem postas em seus lugares. Fica sempre para depois, depois eu faço. A casa de um homem só, para ser funcional, precisa de uma tevê, um sofá, uma geladei-ra e um micro-ondas. Minhas refeições se re-sumem a congelados. Ontem eu fui acompa-nhar o lançamento de um programa social em outra cidade. Antes de retornar, entrei num su-permercado já para levar o jantar. Peguei uma lasanha e tomei a fila do caixa. Estava distraí-do, conectado apenas aos avisos de próximo. Quando chegou a minha vez, depositei o pro-duto sobre a esteira e, ao erguer a vista, um murro congelante acertou meu peito. Eu não podia acreditar: era o Mauricio. Ele pegou a embalagem, passou pelo leitor de códi-go e me informou o preço. Atordoado, saquei a carteira e lhe entreguei uma nota. Virou-se, conferiu o troco e ensacou a compra. Nesse

instante, nossos olhos se encontraram. E, por um segundo, apesar da atitude impassível, eu soube que, por trás daquela expressão de nor-malidade, borbulhava o mais feio dos cons-trangimentos. Cheguei em casa e coloquei a lasanha no micro-ondas. Enquanto se esgotava o tempo de preparo, sentei no chão. Não conseguia me desviar da imagem do Mauricio naquele caixa de supermercado, vestindo o uniforme que não cai bem em ninguém. O que aconte-ceu? Ele sempre pensou no futuro. Para onde foram seus sonhos, em qual curva do caminho derrapou? O sinal soou, levantei-me e abri a porta, senti-do a quentura aromática. Fiquei embrulhado e joguei a lasanha no lixo. Em seguida, liguei a tevê e deitei no sofá. Passava o mesmo progra-ma em todos os canais. Ainda era cedo, mas acho que dormi. Não sei, não me lembro. Não me lembro se dormi.

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ESTANTE AO DIÁRIO SECRETO DE ZIGFRIELD NAAXTRO Autor: Iládio Davense Edição independente Lançamento: sábado, 19h30 Onde: Jussara Country Club Preço do livro: R$ 25

ANTI-HERÓI. IIládio Davense ao lado da reprodução em papel do anti-herói Zigfrield Naaxtro: primeiro livro traz contos – FOTO: DIVULGAÇÃO