Caio Prado Junior - Formação do Brasil Contemporâneo

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Organizacao Social

Naturalmente 0 que antes de mais nada, e acima de tudo,caracteriza a sociedade brasileira de principios do sec. XIX, ea escravidao. Em todo lugar onde encontramos tal Instituicao,aqui como alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na inlluen-cia que exerce, no papel que representa em todos os setores davida social. Organizacao econornica, padroes materiais e morais,nada ha que a presen<;a do trabalho servil, quando alcanca asproporcoes de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de urnmodo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussoesremotas. Nao insistirei aqui sobre a influencia material e moralda eseravidao no seu carater geral, 0 que a Historia e a Sociologia

ja registraram tantas vezes, seja no tempo, seja no espa90' Aliteratura sobre 0 assunto e ampla, e nada the poderiamos acres-

.centar sem repisar materia fartamente debatida e conhecida.Ficarei aqui apenas no que e mais peculiar ao nosso caso. Porquea escravidao brasileira tern caracteristicos proprios, alias, os maissalientes, tern-nos em comum com todas as colonias dos tr6picosamericanos, nossas semelhantes, e sao tais caracteristicos, talvezrna i s ainda que outros comuns a escravidao em geral, que mode-laram a sociedade brasileira.

A escravidao americana nao se filia, no sentido historico, anenhuma das formas de trabalho servil que vern, na civilizacaoocidental, do mundo antigo ou dos seculos que 0 seguem; eluderiva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no sec.xv com os grandes descobrimentos ultramarinos, e pertence intei-ramente a ela. J A notei acima, incidentemente, que 0 trabalho

servil, tendo atingido no mundo antigo proporcoes consideraveis,declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foio servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quasetoda a civilizacao ocidental. Com 0 descobrimento da America,ele renasce das cinzas com urn vigor extraordinario, Esta circuns-tancia precis a ser particularmente notada. 0 fato de se tratar,no caso da escravidao americana, do renascimento de uma insti-tuicao que parecia para sempre abolida do Ocidente, tern umaimportancia capital. A ele se filia urn conjunto de conseqiienciasque farao do instituto servil, aqui na America, urn processo ori-

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ginaI e proprio, com repercuss6es que somente vistas de talangulo se poderao avaliar.

Ressalta isto da comparacao que podemos Iazer daqueles doismomentos historicos da escravidao: 0 do mundo antigo e domoderno. No primeiro, com 0 papel imenso que representa, 0

escravo nao e senao a resultante de urn processo evolutivo naturalcujas raizes se prendem a urn passado remote, e ele se entrosapor isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moralda sociedade antiga. Figura nela de modo tao espontaneo, aparece

mesmo tao necessario e justificavel como qualquer outro elementoconstituinte daquela sociedade. ~ nes te sentido que se compreende

a tao citada e debatida posicao escravista de urn fil6sofo comoAristoteles, que, pondo-se embora de parte a apreciacao que delese possa fazer como pensador, representa no entanto, nos seus

mais elevados padroes , 0 modo de sentir e de pensar de umaepoca, A escravidao na Crecia ou em Roma seria como 0 salariado

em nossos dias: embora discutida e seriamente contestada nasua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do con-junto como qualquer coisa de fatal, necessario e insubstituivel.

Coisa muito diferente se passara com a escravidao modema,que e a nossa. Ela nasce de chofre, nao se liga a passado outradicao alguma. Restaura apenas uma instituicao [ustamente

quando eIa ja perdera inteiramente sua razao de ser, e fora subs-tituida por outras formas de trabalho mais evoluidas. Surge assimcomo urn corpo estranho que se insinua na estrutura da civilizaeaoocidental, em que ja nao cabia. E vern contrariar-lhe todos ospadroes morais e materiais estabelecidos. Traz uma revolucao,mas nada a prepara. Como se explica entao? Nada mais particular,mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidao domundo antigo, de todo 0 conjunto da vida social, material e moral,ela nads mais sera que urn recurso de oportunidade de que lan-carao mao os paises da Europa a fim de explorar comercialmenteos vastos territories e riquezas do Novo Mundo. ~ certo que a

escravidao americana teve na peninsula seu precursor imediatono cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que

as primeiras expedicoes ultra marinas dos portugueses trouxerampara a metropole como presas de guerra ou £ruto de res g ates. Masnao foi isto mais que urn primeiro passo, preludio e preparaeaodo grande drama que se passaria na outra margem do Atlantico,~ ai que verdadeiramente renascera, em proporeoes que nem 0

mundo antigo conhecera, 0 instituto ja condenado e pra ticamenteabolido.

Por este recurso de que gananciosamente lancou mao, pagaraa Europa urn pesado tributo. Pod emos repetir 0 conceito que ex-

prime a prop6sito John Kellis Ingram: "Not long after the di8ap-

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pearance of serfdom in the most ad?anced commf!'niti~s, comesinto sight the modern system of colonial slavery, whtch, instead of

being the spontaneous outgrowth of social necessities, and subser-

ving Ltemporary needs of human development, 1fJas politically as

well as morally a monstmous aberration ( 1). Nao e num terrenode "moral absoluta" que precisamos ou devcmos nos colocar para

fazer 0 [uizo da escravidao moderna. Ja sem falar na devastacao

que provocara, tanto das populacoes indigenas 'da America, como

das do continente hegro, 0 que de mais grave deterrninara, entre

os povos colonizadores e sobretudo em suas colonias do NovoMundo, e 0 fato de vir a nova escravidao desacompanhada, aocontrario do que se passara no mundo antigo, de qualquer ele-

mento construtivo, a nao ser num aspecto restrito, puramentematerial, da realizacao de uma empresa de comercio: um neg6cio

apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores, E

por isto, para objetivo tao unilateral, puseram os povos da Europa

de Indo todos os principios e normas essenciais em que se fundavaa sua civilizacao e cultura. 0 que isto representou para eles, no

correr do tempo, de degradacao e dissolucao, com repercuss6es

que se VaG afinal manifestar no proprio terreno do progresso e da

prosperidade material, nao foi ainda bem apreciado e avaliado,nem cabe aqui abordar 0 assunto. Mas tera side este um dos

fatores, e dos de primeiro plano, do naufragio da civilizacao iberica,tanto de uma como de outra de suas duas nacoes. Foram elas

que rna i s se engajaram naquele caminho; serao elas tambem suas

principais vitimas (2) .

Muito mais grave, contudo, foi a escravidao para as nascentes

colonias americanas. Elas se formam neste ambiente deleterio

que ela determina; 0 trabalho servil sera mesmo a trave mestra

de sua estrutura, 0 cimento com que se [untarao as pec;as queas constituem. Oferecerao por is so um triste espetaculo humane:

e 0 exemplo do Brasil, que vamos retracar aqui, se repete maisou menos identico em todas elas.

Mas ha outra circunstancia que vem caracterizar ainda mais

desfavoravelmente a escravidao moderna: e 0 elemento de quese teve de lancar mao para alimenta-la, Foram eles os indigenasda America e 0 negro africano, povos de nivel cultural infimo,

(1) John Kellis Ingram, Slavery.(2) A Inglaterra tambern teve papel proeminente no restabelecimento

da escravidao, e sabe-se que durante seculos seus comerciantes t iveram 0

quase monopolio do trafico negreiro, pelo qual a nacao chegou ate a

tomar armas. Mas nao sofreu tao fundamente os efeitos danosos da escravidao,

porque seu papel foi sobretudo este de Interrnediario. 0 trabalho servil nunca

assentou p e na Inglaterra propriamente.

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comparado ao de seus dominadores. (3) "~qui ai~da, a comp~r~<i'~o;com 0 que ocorreu no mundo antigo e ilustrativa, ~este ultima,

a escravidao se forneceu de povos e ra<;as que muitas v_ez~s se

equiparam a seus conquist~dores, se na~ os superam. ContnbUl~amassim para estes com valores culturais de elevado teor. Romanao teria sido 0 que foi se nao contasse com 0 que lhe trouxerarn

seus escravos, recrutados em todas _as par~es do mundo conhecid,~"e que nela concentram o. que entao havia de .melhor e cuJtu~~d-mente mais elevado. MUlto lhes deveu e muito deles aprendeu

a civil izacao romana. 0 escravo nao foi nela a simples ma9ucinade trabalho bruto e inconsciente que e 0 seu sucessor amencano.

Na America, pelo contrario, a que assistimos? Ao recruta-

mento de povos bar~aros e semib~r~aros, arraI_lc.a?os _do. se~habitat natural e incluidos, sem transicao, numa civilizacao mter-ramente estranha. E ai que os esperava? A escravidao no seu

pior carater, o. homem ~edu~ido a"mais simples ~xpressao, p01.l_';?senao nada mais que 0 irracional: Instrumento VIVOde trabalho .,

o chamara Perdigao Malheiro ( 4). N ada mais se queria dele!. : enada mais se pediu e obteve que a sua forca bruta, material,Esforco muscular primario, sob a direcao e acoite do feitor. Damulher, mais a passividade da femea na c6pula. Num e noutrocaso, 0 ato fisico apenas, com exclusao de qualquer outro ele-

mento ou concurso moral. A "animalidade" do Homem, nao a sua"humanidade."

A contribuicao do escravo preto ou Indio para a fo:ma<;aobrasileira e alem daquela energia motriz quase nula. Nao que

deixasse de concorrer, e muito, para a nossa "cultura", no ;entidoamplo em que a antropologia emprega a. expressao, mas e antesuma contribuicao passiva, resultante do simples fato da presen<;adele e da consideravel difusao do seu sangue, que uma mterven-

csao ativa e construtora. 0 cabedal de cultura que traz ~onsig~da selva americana ou africana, e que nao quero subestimar, e

abafado, e se nao aniquilad?, detu~a-se pelo estatuto social,material e moral a que se ve reduzido seu portador. E apontapor isso apenas, muito timidamente, aqui e acola. Age mais comofermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se

lhe so brep6e ( 5) .

(3) Esta observacao nao seria tao exata com relaciio a certos in~i-genas am:rica~os, como os .d? ,Mexico e do al~iplano andino, se os conqUis-tadores nao tivessem, de imcio e com ferocidade quase sem precedents,fei to tabua-Tasa de todos seus valores cul tu ra is .

( 4) A escraoidiio no Brasil. 3,a parte, 126. .. .(5) Isto e, entre out~os, particulanne~ t.e 0 caso do ~ll lcretJsmo reli -

gioso que resultou do amalgama, ~e catolicismo e pagamsmo:, em ~o::svarias , que for rnaria 0 fun do religiose de boa parte do Brasil, Rehglao

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~ a esta passividade alias das culturas negras e indi~ena; no

Brasil que se deve 0 vigor com que a ~o bran co. se 11l1pO.S epredominou inconteste, embora fosse muito rcduzido, relativa-mente a das outras racas, a sua contribuicao demografica. 0 negroe 0 indio teriam tido ccrtamente outro papel na formacao brasi-leira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido 0 ~umodado a colonizacao, se se tivesse procurado neles, ou aceitadouma colaboracao menos unilateral e mais larga que a do simplescsforco fisico. Mas a colonizacao hrasileira se processa num plano

acanhado, outro objetivo nao houve que utilizar os recursos natu-rais do seu territ6rio para a producao extensiva e precipitada deurn pequeno nl1l11CrOde g€meros altamente remunerados no mer-cado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desdeo primeiro momenta da conquista; e parece que nao havia tempoa perder, nem sobravam atencoes para empresas rnais assentes,cstavcis, ponderadas. S6 se enxergava uma perspectiva: a remu-ncraciio Iarta do capital que a Europa aqui cmpatara. A terraera inexplorada, e seus recursos, acumulados durante seculos,[aziam a flor do solo. 0 trabalho para tira-los de la nao pedia

grandes planos nem impuI_lha lrobkmas cO~I?lexos: bastava 0

mais simples esforco matenal. 0 que se exigru de negro e deIndio que se incumbiriam da tarefa.

Correndo parelhas com est a contribuicao que se impos asra<;as dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidaolargarnente aprov~itado: as fa~eis caricias da e~crava para a satis-facao das necessidades sexuais do colono pnvado de mulheres

de sua ra<;a e categoria. Ambas as funcoes se valem do pontode vista moral c humano; e ambas excluem, pela fODDa com quese praticaram, tudoque 0 negro ou 0 indio poderiam ter trazidocomo valor positivo e construtor de cultura.

Uma ultima circunstancia diferencia e caracteriza a escra-vid.io americana: e a diferenca profunda de ra<;as que scpara osescravos de seus senhores. Em algumas partes da America, taldiferenca constituiu, como se sabe, obstaculo intransponivel aaproximacao das classes e dos individuos, e reforcou por is so

consideravelmente a rigidez de uma estrutura que 0 sistema social,em si, j{l tornava tao estanque internamente. Mas nao me ocupareidcstas colonias, porque entre n6s a aproximacao se realizou, e,como j{ l notei em outro capitulo, em escala apreciavel, Isto con-tudo dcntro de limites que apesar de tudo nao sao amplos, pelomenos ate 0 momenta hist6rieo que nos interessa aqui. Existiu

nc-o-nfricnna, mais que qualquer outra coisa, e que se yerdeu a grandeza edvv,\~':,() do crist ianisrno, tarnbem nao conservou a espontaneidade e r iquezade colorido das crcncas ncgras em seu estado native.

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sempre urn forte preconceito discriminador das racas, que \ s eera tolerante e muitas vezes se deixava iludir, fechando os olhosa sinais embora bern sensiveis da origem racial dos indivlduos

mesticos, nem por isso deixou de se manter, e de forma "bet't'l

marcada, criando obstaculos muito series a integracao da secfe-dade colonial num conjunto se nao racial, 0 que seria mais demo-morado, pelo menos moral mente homogeneo. Nao discutirei uqui

o preconceito de raca e de cor, nem sua origem; se ligad9 acertos caracteres psicol6gicos inatos de ordem estetica ou 6utra,

ou se fruto apenas de situacoes e condicoes sociais particulareg,o fato incontestavel, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista,e que a diferenca de raga, sobretudo quando se manifesta em

caracteres somaticos bern salientes, como a cor, vern, se naaprovocar - 0 que e passivel de duvidas bern funda~e~ta?as!_ ea meu ver incontestaveis -, pelo menos agravar uma discriminacaoja realizada no terreno social. E isto porque empresta uma maroainiludivel a esta diferenca social. Rotula 0 individuo, e contribui

assim para elevar e reforcar as barreiras que separam as classes.A aproximacao e fusao se tornam mais dificeis, acentua-se 0

predominio de uma sobre a outra.

Isto nao exclui, e sabemos que nao exclui entre n6s, uma

circulacao intra-social apreciavel, que permitiu aqui a eIevaC'aoa posicoes de destaque, e isto ainda na colonia, de individuo~.de indiscutivel origem negra. India rambem, esta clare, mas I)

caso e muitomenos de se destacar, porque 0 preconceito nao foi

ai excessivamente rigoroso, como no caso do africano. Mas, aeel-tando aquela elevacao, nao se eliminava 0 preconceito. Conter-nava-se com urn sofisma que ja lembrei acima, urn "branquea-mento" aceito e reconhecido. Aceitava-se uma situacao criadapela excepcional oapacidade de elevacao de um mestico particular-

mente bern dotado, mas 0 preconceito era respeitado. Alias est~elevacao social de individuos de origem negra so se admitia n0.5de tez mais clara, os brancarriies, em que 0 sofisma do branquea-mento nao fosse por demais grosseiro. 0 negro ou mulato escllro~,este nao podia abrigar quaisquer esperan<;as, pOI' melhores. quefossem suas aptidoes: inscrevia-se neIe, indelevelmente, 0 estIgITIa

de uma raca que a forca de. se manter n?s i~fimos "degr~us d~esc ala social, acabou confundmdo-se com eles. Negro ou pretosao na colonia, e se-Io-ao ainda por muito tempo, termos pejora-tivos; empregam-se ate como sinonimos de "escravo". E 0 indi-viduo daquela cor, mesmo quando nao 0 e, trata-se como tal.A este respeito, Luccock refere urn caso ilustrativo. Necessitando

certa vez do auxilio de dois pretos livres que se encontravam emcompanhia, forcou-os, diante de sua relutancia e com auxilio de

outras pessoa~, a ajuda pedida. Fe-lo, assim 0 afirma procurando

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justificar-se, levado por contingencias extremas, porem os seus

escnipulos nao Ioram partilhados pelos brasileiros que 0 ajudaram,e que agiram com a maior naturalidade, como se estivessem nouso de urn direito indiscutivel(6) ..

o papel da simples cor na discriminacao das classes e notratamento reciproco que elas se dispensam, reflete-se ate nosusos e costumes legais. Observou Perdigao Malheiro que nos leiloesde escravos, se os lances "a bern da liberdade" - que sao os feitossob promessa de aHorria - excluiam em regra qualquer outro.isto era no caso de escravos claros, uma norma absoluta(7).Acrescenta 0 mesmo autor que era not6ria a repugnancia contraa escravidao de gente de cor clara; e chega ate ao exagero deconcluir que se nao fora a cor escura dos escravos, os costumesbrasileiros nao tolerariam mais 0 cativeiro, £ verdade que eleescrevia isto em 1867, quando a escravidao ja perdera multo desua forca moral; e que os conceitos citados partem de um escritornotoriamente simpatico a causa da liberdade - seu grande livronao e alias senao um libelo a favor dela. 0 seu depoimento,

entretanto, conser va assim mesmo muito do seu valor, e comprovao quanto a simples cor atua no sentido de rebaixar os individuosda rac;a dominada, faz entrever tarnbem como seria mais dura easpera a escravidao quando, como se dava entre nos, a discrimi-

nacao social se acrescenta este carater marc ado e iniludivel.Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na

escravidao, tal como se estabelece na America, em particular noBrasil, de que trato aqui, concorrem circunstancias especiais queaeentuam seus caracteres negativos, agravando os fatores moral-mente corruptores e deprimentes que ela, por si so, ja encerra.Incorporou a colonia, ainda em seus primeiros instantes, e emproporcoes esmagadoras, um contingente estranho e heterogeneode racas que beiravam ainda 0 estado de barbarie, e que no con-

tacto com a cultura superior de seus dominadores, se abastarda-ram por completo. E 0 incorporaram de chofre, sem nenhumesta9.io preparatorio. No caso do indigena, ainda houve a educacao[esuitica e de outras Ordens, que com todos seus defeitos, trouxe

todavia um eomeco de preparacao de certo alcance. Mesmo depoisda expulsao dos jesuitas, 0 que desfalcou notavelmente a obramissionaria, pois as demais Ordens nao souberam ou nao puderamsuprir a falta, 0 estatuto dos indios, embora longe de corresponder

ao que deveria ter sido em face da legislacao vigente, e cujasintencoes erarn [ustamente de amparar e educar este selvagemque se queria integrar na colonizacao, ainda contribuiu para

(6) Notes, 203.(7) A escraoidiio no Brasil, 3.a Parte, 116.

Eormaci io do Brasil Contempordneo Z75

 

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manter 0 indigcna afastado nas f01111asmais dcpr imentcs da esera-dlLio; C sc nilo lh(~ proporeionou p'randcs vanta gens e proarGSSO!lmateriais, concedcu-lhe um minin\'o de protecao e de esnn~1ii'l~.Mas para 0 negro africano, nada disto ocorreu. As ordens feu-giosas, solicitas em defender 0 indio, foram as primeiras a aceitar,a promover mesmo a escravidao africana, a fim de que os COi011OS;

necessitados- de escravos , lhes deixassem livres os movimentos :11Q

setor indigena. 0 negro nao teve no Brasil a protec.io de ningl;l.ern',

Verdadeiro "paria" social, nenhum gesto se esbocou em seu f i ' l i l l . l ' or "

E se e certo que os costumes e a propria legislacao foram vomrelacao a ele mais benignos na sua brutalidade escravista r g jue '

em outras colonias americanas, tal nao impediu contudo q u e : < 0

negro fosse aqui tratado com 0 ultimo dos descasos no que dl~respeito a sua formacao moral e intelectual, e preparacao paraa sociedade em que a forca 0 incluiram. Estas nfio iam aleJftdo batismo e algumas rudimentares nocoes de religiao cat61ica,mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para f0rmar,com suas crencas e supersticoes nativas, este amalgama pitoreseo,mas profundamente corrompido, incoerente e infimo como valorcultural, que sob 0 nome de "catolicismo", mas que dele s6 terri

o nome, constitui a verdadeira religiao de milh6es de brasileiros;e que nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues, emais recentemente Artur Ramos, trouxeram a luz da sornbra emque urn hip6crita e absurdo pudor a tinham mantido.

As racas escravizadas e assim incluidas na sociedade colonial,mal preparadas e adaptadas, VaG formar nela urn corpo estranh~e incomodo. 0 processo de sua absorcao se prolongara ate nossosdias, e esta longe de terminado. Nao se trata apenas da eliminacao-etnica que preocupa tanto os "racistas" brasileiros, e que, se

demorada, se fez e ainda se faz normal e progressivamente semmaiores obstaculos. Nfio e este alias, 0 aspecto mais grave d~problema, aspccto mais de "fachada", estetico, se quiserem: CIl)-

si, a mistura de racas nao tern para 0 pais importancia alguma,e de certa forma ate podera ser considerada vantajosa, 0 qu epcsou muito mais na formacao brasileira e 0 baixo nivel destas

massas escravizadas que constituirao a imensa maioria da popu-lacao do pais. No memento que nos ocupa, a situacao era natural-mente muito mais grave. 0 trafico afr ica no se mantinha , ganhavaate em volume, dcspejando ininterrutamente na colonia contm-gentes macicos de populacoes semibarbaras, 0 que resul tara

dai nao poderia deixar de ser este aglomerado incoerente e des-

conexo, mal amalgam ado e repousando em bases precarias quee a sociedade colonial brasileira. Certas conseqiiencias serao maissalientes: assim 0 baixo teor moral nela reinante, que se verifica

entre outros sintomas na relaxacao geral de costumes, assinalada

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e deploradapor todos os observadores contemporaneos, nacionaise estrangeiros . Bern como 0 baixo nivel e ineficiencia do trabalhoe da producao, entregues como estavam a pretos bocais e indiosapaticos, 0 ritmo retardado da economia colonial tern ai uma desuas principais causas.

Este e outros resultados da escravidao e dos elementos quepara ela concorreram serao analisados, em conjunto com os demais

fa.tore~ da .vida colonial e de seus costumes, noutro, capitulo.Ficarei aqm apenas na estrutura da sociedade brasileira. No que

diz respeito ao escravo e seu estatuto juridico e social, nao creioque seja necessario insistir num assunto ja largamente desenvol-vido em outros trabalhos( 8). A colonia acompanhou neste terreno

o direito romano, para quem 0 escravo e uma "coisa" do seusenhor, que dela disp6e como melhor the aprouver. As restricoesa esta regra, e que trazem alguma protecao ao escravo, nao saonumerosas. Alias 0 "fato" e aqui mais forte que 0 "direito", emgeral fora do alcance do cativo; e se houve alguma atenuacaoaos rigores da escravidao, tal como resultaria da propriedade

absoluta e ilimitada, ela se deve muito mais aos costumes queforam entre nos, neste terreno, relativamente brandos. Nao tantocomo e hoje voz corrente, opiniao que se reporta mais ao ultimoperiodo da escravidao, pos ter ior a abolicao do trafico africano, e

quando a escassez e portanto 0 preC;Odos escravos tornavam antie-conomico urn tratamento excessivamente brutal e descuidado. Os

depo~mentos mais ant.i~os que possuimos desmentem, para epocaantenor, aquela tradicao de urn passado mais chegado a nos,ainda viva e por isso dominante. Nao encontramos neles nada quenos autorize a eonsiderar os senhores brasileiros de escravoshumanos e complacentes, e pelo contrario, 0 que sabemos delesnos leva a conclus6es bern diversas (9). 0 que ha em tudo istoe que 0 escravo brasileiro parece ter side melhor tratado que emalgumas outras colonias americanas, em particular nas inglesase francesas . Tera influido ai a indole por tuguesa, sobretudo quandoamaciada pelo contacto dos tropicos e a geral moleza que carac-

teriza. a vi~a br~sileira( ~O). Tarnbem ° regime patriarcal, de que

Ialarei abaixo, aorandara 0 contacto de senhores e escravos dandoaqueles urn que de paternal e de protetor dos seus servos, Istoparece tanto mais exato que e nas regi6es de formacao mais

( 8) Para isto, sera sempre principal a obra ja citada de Perdigao

Malheiro, A escravidao no Brasil, que e classica, e ate hoje nao foi igua-

lada por outra.

(9) Veja-se em particular 0 que diz Vilhena, Becopilaciio, passim.(10) Koster did. do proprietario brasileiro: "Seus habitos pacif icos

(' sua inclnJ(\nciaIarao dele urn .senhor brando, mas indiferente". Voyages,II, 312. Saint-Hilaire rcpetira mais ou menos a mesma coisa.

Formar iio do Bras il Conf empor(lneo 277

 

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recente, onde nao se tinham por isso constituido aquelas relact6~~

patriarcais, fruto de lent a sedimentacao, que vamos encontrar

um rigor mais acentuado no tratamento que se dispensa ;lOS

escravos. No momenta que nos ocupa, observamo-lo nas duas

regioes cu]a prosperidade, e pois grande afluxo de escravos,

datavam de pouco, segunda metade ou fins do sec. XVII1:~ '0

Maranhao e 0 Rio Grande do SuI; em oposicao as oapitanias

de colonizacao ou de progresso mais antigo: Bahia, Pernambuco"

Rio de Janeiro.

Quanto a funcao desempenhada pela escravidao, ela e, naIlpreciso acrescenta-lo, consideravel. Ao tratar da economia da 0 0 1 6 : -nia, ja vimos que praticamente todo 0 trabalho e entre nos servil,

Mas e preciso dist inguir nestas funcoes da escravidao dois setores

que tern caracteres e sobretudo consequencias distintas: a da~

atividades propriamente produtivas e as do service domestieo,

Apesar da amplidao e Importancia economica muito maiores .d q

primeiro setor, 0 ultimo nao pode ser esquecido ou subestimadoj

Nao s6 ele e numericamente volumoso - pols intervern, a par

das legitimas necessidades do service domestico, a vaidade ao.$senhores que se alimenta com numeros avultados de servos (II) icomo e grande a partlcipacao que tern na vida social da colonia

e na influencia que sobre ela exerce. Neste sentido, e excluide

o elemento economico, ele ultrapassa mesmo largamente 0 papeldo outro setor. 0 contacto que a escravo dornestico mantem com

seus senhores e com a sociedade branca em geral, e muito maier,

muito mais intimo. E e certamente por ele que se canalizou paraa vida brasileira a maior parte dos maleficios da escravidao, Do

pouco que ela trouxe de favoravel, tarnbem: a ternura e aJeti-

vidade da mae preta, e os saborosos quitutes da culinaria

afro-brasileira ( 12) .

Assim no campo como na cidade, no neg6cio como em casa,

o escravo e. onipresente. Torna-se muito restrito 0 terreno reser-

vado ao trabalho livre, tal 0 poder absorvente da escravidao, E

a utilizacao universal do escravo nos varies misteres da vida

econornica e social acaba reagindo sobre 0 conceito do trabalho,

que se torna ocupacao pejorativa e desabonadora. "Como todasas obras servis e artes mecanicas sao rnanuseadas por escravos,

( 11 ) Refere Vilhena que na Bahia chegavam algumas casas a ter 60

a 70 escravos, port as a dentro, servindo a maior parte, como logo se ve,

rna is para ostentacao de riqueza e poder dos senhores.

( 12) Gilberto Freyre, na sua Casa Grande e Senzala, embora nao

Iaca expressamente a devida dist incao entre estes dois setores diferentes do

trabalho escravo, refere-se sobretudo e quase exclusivamente a este ultimo. 0subti tulo da sua obra, "[ormaciio da familia brasileira", e 0 objetivo prin-cipal que tern em mira 0 indicaram claramente,

278 C aio Prado JUnior

dira urn observador perspicaz como Vilhena. poucos sao os mu-

latus, e raros os brancos que nelas se querem empregar, nem

aqueles mesmos. indigentes que em Portugal nunca passaram de

cnados de servir, de mocos de tabuat P ) e cavadores de enxa-

cia ... ; os criados (que vern de Porlugal) tern por melhor sorte

o ser vadio, 0 andar morrendo de fome, 0 vir parar. em sold ado

e a s vezes em ladrao, do que servir um arne honrado que lhes

. paga bem, que os sustenta, os estima, e isto por nao fazerem 0

que os negros faze~ em outras casas; as filhas do pais tern urn

hm~re tal, que a filha do homem mais pobre, do mais abjeto, amars desamparada mulatinha forra com mais facilidade irao para

o patibulo do que servir ainda a uma duquesa, se a terra as

houve.sse"( 13). No campo e a mesma coisa; nenhum homem livre

pegana da enxada sem desdouro, e por isso, did 0 mesmo Vilhena,

havendo embora terras abundantes carecem de propriedade ate

mesmo aqueles que poderiam ser proprietaries, pais nao tendo

150$000 para comprar cada urn negro que trabalhe 0 mesmo eser proprietario que 0 nao ser" (14).

Nestas_con~ic;oes, nao e de admirar que tao pequena margem

de ocupac;oes dignas se destine ao homem livre. Se nao e ou nao

pode ser proprietario OU fazendeiro, senhor de engenho ou lavra-

d~r, nao the sobrarao senao algumas raras ocupaeoes rurais -

feitor, m~s!re d_?sengenhos, etc. ( 15); algum oficio mecanico quea escravidao nao m~nopolizou e que n3.0 se torna indigno dele

pela ?r~ncura exc~s.slva de sua pele, as Iuncoes publioas, se, pelo

contrario, for suficienternante branco, as armas 0U 0 eomercio

negociante propriamente ou caixeiro. Nesta ultima profissao, ainda

esbarra .com outra restricao: 0 comercio e privilegio dos "reinois"

os nascidos no Reino. Os naturais da colonia encontram ai as

portas fechadas, nao por determinacoes legais ou preconceitos de

qua.lquer natureza, mas por urn usa estabelecido de longa data,

e ~l~~amente guardado pelos primeiros instalados, justamente os

r~mols, que P?~ convencao taci~a, mas rig~;osa, conservarn para

Sl e seus patricios urn monopolio de fato. Os vindos do Reino

escrevera 0 Marques do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro:

nao cuidam em nenhuma outra cousa que em se fazerem senhoresdo comercio que aqui ha e nao admitirem filho nenhum da terra

a caixeiros por donde poss~m algum dia serem negociantes; e

( 13) Recopila,,:iio, 140.'(14) Becopilaciio, 933.

. (15) Na ind rstria pastoril, em particular na dos sertoes do Nordeste

vnnos que 0 trabalho livre e mais comum, mas trata-se de um setor de

pouc~s_ ocupa<;:~es, em que a mao-de-obra e escassa. Alem disto, pelas

c?lldl<;:oeSRecu]Jares em que se realiza, esta mais au menos reservada exclu-

sivamente a populacao nativa local.

Forma9iio do Brasil COlltemporanen 279

 

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d~i. abrangerem em si tudo que e comercio" ( 1 6). Situacao muitosefl~ e prenhe das mais graves consequencias, sobre que voltareiabaixo,

. _Sob~am ~inda, para os individuos livres da colonia, as pro-fissoes liberais - advogados, cirurgi6es, etc. Sao naturalmenteocupacoes por natureza de acesso restr ito. Exigem aptidao especial,preparos e estudos que nao se podem fazer na colonia, e portanto

re~ursos de cert~ mon~a. Sao por is so muito poucos os profissio-nais: em 1792 nao havia no Rio de Janeiro senao 32 advogados e

24 solicit adores ( 17). Os medicos en tao eram excecao. Em todaa capitania de Sao Paulo, observava Martius em 1818, nao haviaestabelecido nenhum medico ou cirurgiao verdadeiro ( 18). 0

mesmo se dira dos engenheiros, de que a' colonia nao contavasenao com rams militares (19).

Hestara a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas.Os estudos se podiam fazer em grande parte no Brasil; e mesmo

completar, sobretudo com relacao aos seculares. Os seminaries

foram ?r~nolog~~amente os _primeiros institutos de ensino superiorda coloma. Aha~ _?s candidates ao estado eclesiastico que de-monstrassem aptidoes encontravam sempre amparo, e nao faltava

quem lhes :usteasse os est~dos,. aqui ~u na Europa. E certo queo preconceito de. cor tambem tinha ai 0 seu lugar, e quem nao

foss.e de pura or!gem branca, necessita va dispensa especial (20) .Mais uma questao de forma: 0 estudante com reais qualidadesacabava sempre vencendo. Nao foi este 0 caso de Luis Antonio

da S.ilva e So.usa, depois, poeta e historiador de algum nome,mestico de orIgem humihssima, e que apesar de ver fechadas

no Brasil as portas da Igrcja, acabou obtendo dispensa necessariaem Roma, e com 0 auxilio do proprio ministro portugues junto

( 16) Relat6rio, 452.

(17) Em 1794 os numeros era~ respectivamente de 33 e 22. Vejarn-se os Almanaques daqueles anos pub licados nos Anais da Biblioteca Nacio-na], 59.

(18) Trav~ls, ~_ook, J, 53. No Rio de Janeiro, os medicos eram em1794> 9, e os cirurgroes, 29. Almanaque cit.

(19) E para atender a esta. penuria de profissionais que 0 governometr?pohtano resolveu em 1799 ordenar que as Camaras concedcssernp~n.soes. para aquel~s que, tendo demonstrado habilidade, fossem cursar aL niversidade de Coimbra ou a Academia de Lisboa. Cada Camara deveriapagar os estudos de pelo menos 2 top6grafos, 2 engenheiros hidraulicos,urn. co~tador, ~m medico e urn cirurgiao, Veja-se circular as Carnaras dacapi tania de Sao ~a~lo , escri ta pelo governador. Reg. VII, 38l .

(20) A pr,?hssao no Ordem dos Carmelitas, por exemplo, se faziasob protosto de la?t;ar fora 0 professor logo quc sc provar que tern castade mouro, mulato, [uc lcu, ou outra infec: ta nacao." Fre i Caneca , Obras, 283.

2;;0 Caio Prado l unlor

ao Vaticano(21). Alias os mesticos sao numerosos no clero bra-

s ile iro. A Igreja sempre honrou no Bras il sua tradicao democratica,a maior forca com que contou para a conquista espiritual doOcidente. 0 que ocorreu na Europa medieval se repetiria nacolonizacao do Brasil: a batina se tornaria 0 refugio da inteli-gencia e cultura; e isto porque e sobretudo em tal base que sefa ria a selecao para 0 clero. Ele foi assim, durante a nossa fasecolonial, a carreira intelectual por exceleneia, e a unica de pers-pectivas amp las e gerais; e quando, realizada a Independencia,

se teve de recorrer aos nacionais para preencher os cargos poli-ticos do pais, e sobretudo nele que se recrutarao os candidatos(22).A Igreja tern assim na colonia urn papel importante como vazaopara colocacoes, Reconhecia-o, e nao so 0 proclamava, mas aindao justificava nos ultimos anos do sec. XVIII, uma autoridade

eclesiastica autorizada como 0 super ior da Provincia dos Capuchosdo Rio de Janeiro, Frei Antonio da Vit6ria: "Hoje nao ha verda-

deiras vocacoes para 0 estado religioso, quase todos 0 procurampor modo de vida, e principalmente no Brasil, onde faIt am em-pregos em que os pais arrumem seus filhos. Debaixo deste prin-cipio parece que se faz uma injustica aos brasileiros, privando-os

deste beneficio, quando seus pais sao os que sustentam e vestemtodos os religiosos daquele continente, e reparam os seus con-

ventos" (23) .Em suma, 0 que se verifica e que os meios de vida, para osdestituidos de recursos materiais, sao na colonia escassos. Abre-seassim urn vacuo imenso entre os extremos da escala social: ossenhores e os escravos, a pequena minoria dos primeiros e amultidao dos ultimos, Aqueles dois grupos sao os dos bern clas-

sificados da hierarquia e na estrutura social da colonia: os pri-meiros serao os dirigentes da colonizacao nos seus varies setores;os outros, a massa trabalhadora. Entre estas duas categorias niti-damente definidas e entrosadas na obra da colonizacao compri-

me-se 0 numero, que vai avultando com 0 tempo, dos desclassifi-cados, dos inuteis e inadaptados; individuos de ocupacoes maisou menos incertas e aleatorias ou sem ocupacao alguma. Aquele

contingente vultoso em que Couty mais tarde veria 0 "povobrasileiro", e que pela sua inutilidade daria como inexistente,resumindo a situacao social do pais com a9,uela sentenca queficaria famosa: "Le Bresil n'a pas de peuple' (24).

(21) J. M. P. de Alencastre, Biografia do Conego Luis Antonio daSilva e Sousa, 24l.

( 22) Nos cargos do Parlamento os eclesiasticos s6 passarao para urnplano inferior no segundo imperio.

(23 )Correspondencia de V!irias autoridades, 29l.(24) L'esclavage au Bresil.

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o numero deste elemcnto indcfinido socinlmcntr-, (. avun-

tajado. e cr('sce continua c inintcrrupturnente pOl'que as causus ljueprovocam scu aparccimento silo permanentes. No tempo de Couty,este 0 calcula, numa populacao total de 12 milhoes, em nadamenos que a mctude, 6 milhocs. Seria menor talvez a proporcao

nos tres milhoes de principios do seculo, mas ainda assim com-preenderia com certeza a grande, a irnensa maioria da populacao

livre da colonia. Cornpoe-se sobretudo de pretos e mulatos forrosou fugidos da escravidiio: indios destacados de seu habitat native,

mas ainda mal ajustados na nova sociedade .. em que os engloba-ram; mesticos de todos os matizes e categorias, que, nao sen doescravos e nao .podendo ser senhores, se veem repelidos de

qualquer situacao estavel, ou pelo preconceito ou pela falta deposicoes disponiveis , at~ brancos , br.ancos puros , e entre eles, como

ja referi anteriormente, ate rebentos de troncos portugueses ilus-tres, como estes Meneses, Barreto, Castro, Lacerda e outros que

Vilhena assinala em Cairu, arrastando-se na indigencia] 25); osnossos poor whites, detrito humano segregado pela colonizacao

escravocrata e dgida que os vitimou.

Uma parte desta subcategoria colonial e composta daqueles

que vegetam miserave1mente nalgum canto mais ou menos remotoe apartado da civilizacao, mantendo-se ao deus-dara, embrutecidos

e moralmente degradados. Assim uma grande parte da populacaoamazonica, estes tapuias que deixaram de ser silvicolas, e naochegaram a ser colonos (26); os caboclos, indios puros ou quasepuros de outras partes da colonia, em situacao mais ou menos

identica, isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita, ereconcentrados numa miseravel economia naturalista que nao vai

alem da satisfacao de suas mais imperiosas necessidades vitais.

A eles se equiparam negros e pardos que, excluidos da sociedadeativa, procuram imitar a vida daqueles filhos do continente -.

Quando fugidos da escravidao, sao osquilombolas, que as vezes

se agrupam e constituem concentracoes perigosas para a ordem

social, e sao a preocupacao constante das autoridades: os temiveis"quilornbos" (27). Numa tal situacao arredada da civilizacao en-

(25) Becop llaciio, 519.(26) Jose Verissimo os descreve, embora mais tarde, mas em con-

dicoes que teriam sido as mesmas, tres quartos de seculo antes, no seumagnifico trabalho: As populacbes indigenas da Amazonia.

(27) };: de se notar que 56 par uma questao de analogia da situacaodos quilombosrelativamente a ordem oficial da colonizacao e que pode-mos; em muitos casos, inclui-los nesta categoria inutil e vegetativa dapopulacao colonial. Os quilombos foram freqiientemente mais que -Isto, econsti tuern organizacoes notaveis, cheias de vigor e capacidade construtiva-Os Palmares, que ' sao 0 pr incipal e mais not6rio exemplo de qui lombv de.

282 Caio Prado Junior

contramos tambem brancos mais ou menos puros, que expelidosou fugidos dela aproveitam a vastidao do territ6rio para seabrigarem no deserto.

Uma segunda parte da populacao vegetativa da colonia ea daqueles que, nas cidades, mas sobretudo no campo, se encos-tam a algum senhor poderoso, e em troca de pequenos services,as vezes ate unicamente de sua simples presen9a, propria aaumentar a clientela do chefe e insuflar-lhe a vaidade, adquiremo direito de viver a sua sombra e receber dele protecao e

auxilio, Sao entao os chamados agregados, os moradores dos en-genhos, cujo dever de vassalos sera mais tarde rroclamado ejustificado, em Pernambuco, num momenta difici e de agudacrise politica (28) . .

Finalmente a ultima parte, a mais degradada, incomoda enociva e ados desocupados pernlanentes, vagando de leu em leua cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasiao, enve-redam franca mente pelo crime. : e : a casta numerosa dos "vadios",que nas cidades e no campo e tao numerosa, e de tal formacaracterizada por sua ociosidade e turbulencia, que se torna umadas preocupacoes constantes das autoridades e 0 leitmotiv de seus

relatorios; e nao se ocupam menos dela outros observadores con-temporaneos da vida colonial. 0 Vice-Rei Luis de Vasconcelos

se queixa deles amargamente, e urge providencias ao deixar 0

governo em 1789 ( 29). Vilhena lhes consagra longas paginas desuas cartas (30); 0 Brigadeiro Cunha Matos considera-os um dosmaiores flagelos da capitania de Colas ( 31), e 0 presidente da

Mesa de Inspecao do Rio de Janeiro, 0 Des. Rocha Cameiro,dissertando sobre a agricultura da colonia, indica os vadios comoum dos obstaculos ao seu desenvolvimento (32). Os vadios nao

escapam tambem a observacao dos viajantes estrangeiros: Saint-.-Hilaire e Martius referern-se a eles amiude, e sentiram mnito bem

vulto, estao longe de ser 0 unico. Estas aglomeracoes negras de escravosfugidos se Iormaram e dissolveram repetida e cont inuamente em todo cor rer

du nossa historia, e em todos os pontos do territorio; e muitas vezes mos-traram do que estariam capazes se lhes tivesse sido dada oportunidade de seestabilizarem.

(28) Durante a agitacao praieira, que teve seu des enlace na revoltade 1848, e quando se publicou em opusculo, A eleiciio para senadores,citado por Joaquim Nabuco, Um estadista do Imperio, I, 88, em que 0

assunto e tratado.( 29) Oiicio, 34.

( 30) Becopilaciio, 939.(31) Corografia historica, 290.(32) Carta de 28 de abril de 1797, in Corresporulencia de V(irias

auioridades, 279.

Forma~(io do Brasil Contemnorrineo 281

 

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que nao se trata de casos esporadicos, mas de uma verdadeiraendemia social (33) .

E entre estes desclassificados que se recrutam os bandosturbulentos que infestam os sertoes, e ao abrigo de uma autoridade

publica distante ou fraca hostilizam e depredam as populacoessedentarias e pactas, ou pondo-se a service de poderosos e man-

does locais, servem as seus caprichos e ambicoes na lutas decampana rio que eles entre si sustentam; como estes Feitosas doCeara, que durante anos levam 0 interior da capitania a ferroe fogo, e s6 foram dominados e presos grar;as a urn estratagemado Gov. Oeynhausen(34). Mas apesar de- casos extremos comoeste, 0 arrolamento dos individuos sem eira nem beira nas milicias

particulares dos grandes proprietaries e . .:~efes locais ainda CO?S-titui urn penhor de seguran<;a e tranquilidade, porque canahzasua natural turbulencia e lhes da um minimo de organizar;ao e

disciplina, Entregues a si mesmos, eles mant.eria.m 0 sert~o des-policiado em constante. p_olvorosa, e normahzana~ 0 cnme .. Eniio se veria nestas vastidoes desamparadas pela lei 0 que Samt-.Hilaire com surpresa constatava: uma relativa seguranca de que

scu caso pessoal era exemplo flagrante ..Nenhuma v~z, n~s ~ong~sanos em que perambulou pelo intenor do Brasil, fOI ]amalSlnr:omodado.

Nas cidades, os vadios sfio mais perigosos e nocivos, poisnao encontram, como no campo, a larga hospitalidade que la sepratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosi-dade. No Rio de Janeiro era perigo so transitar s6 e desarmado e~lugares ermos, ate em pleno dia. 0 primeiro intcndente de policiada cidade tornara medidas energicas contra tais elementos. Mas 0

mal se perpetuara, e s6 na Republica, ningucm 0 ignora, seraoos famosos "capoeiras", sucessores dos vadios da colonia, elimi-

nados da capital,

Como se ve, alem da sua massa, a subcategoria da populacaocolonial de que nos ocupamos fazia muito bern sentir sua pre-senr;a. Ainda 0 fad. mais nas agitacoes que preCede?l a Indepen-

dencia e vao ate meados do seeulo, man tendo 0 palS num estado

(33) Entre outras passagens, veja-se Voyage aux sources ... , I; 127,

para 0 primeiro; Viagem, II, 254, para 0 ?~tro. .(34) 0 govcrnador aprcsentou-se ?hctalmente em suas propnedad~s,

e fa zendo convocar, sob pretexto de revista, as ordenanfas de que 0 pfl~-cipal dos, Feitosas era comanda?te, dispensou-.as depois de um longo .dlade exercicio fatigantcs. Aproveitando-se dcpois de um momento de rna-tencao do Feitosa, para em sua casa e quando ole m?I?os ? esperavn, clnr-lho\-OZ de prisao c partir apressadamcnto COil) 0 sou pnslOnelro. Koster (VOI/a-

""S, I, 222) relata 0 fato, ocorrido pouco antes de sua estacla D<iCJudac-

capitania.

284 Caio Prado Junior

pre-anarquico permanente. No torvelinh» :1as pai"o('s e r~t'!~1~.dicucocs cnt.ro dcsoucadc.idas, pelt) lO! ll]1111H'ntoan l·(ll.llhb!ll)

social e politico que provoca a Irami~· :lo dc' colonia p.am: IflTlR'ri~

livre, aquela massa dcslocada, inddiIlida" . I J l : 1 J eflqua'dr.ad~. na.ordem social, c na realidade produto c vitima dela, se lanr;adina luta com toda a violcncia de instintos longamente refreados, ecom muitas tintas da barb.iric <limb tao pr6xima que lhe corrianas veins em grandes corrcntes, Niio resta a menor duvida que

as agitar;6es, anteriore~ c posteriorcs a .Ind.ependeAn~ia, as do tor-

mentoso penodo da mmondade c do pnmclTO ~ccemo do SegundoImperio, todas elas ainda tao mal cstudadns, sao ~ruto em grande

parte daquela situacao que acab~mos d~ .analisar. :f : naquel~elemcnto desenraizado da populacao brasilcira que se recrutara

a maior parte da Iorca a~l~lada p,ara a luta. ~as. fac20es politicasque se formam; e ela servira de ariete das reivindicacoes popularescontra a estrutura macica do Imperio, que apcsar da forca do

em~uxo, resistira ao~ seus golpes; T e m assim u,m grande interessehistorico acentuar ai a nos sa analise, porque e no momenta queprecede imediatamcnte aquelcs acontecimentos, que encontramos

uma situacao, embora madura, ainda nao perturbada pela luta.Tanto mais Iacil por isso e a tarefa do observador.

Vimos as condicoes gerais em que se constitui aquela massa

popular - a expressao nao e exagerada -, €jue vive mais oumenos a margem da ordem social: a carencia de ocupacoes nor-mais e estaveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura

de vi.da a grande maioria da populacao ~ivre da c?l0!lia. Est.asituacao tern causas profundas, de que vimos a principal marssaliente e imediata: a escravidao, que desloca os individuos livres

da maior parte das atividades e os forca para situacoes em que aociosidade e 0 crime se tornam imposicoes fatais. Mas alia-se,para 0 mesmo efeito, outro fator que se associ a alias intimamentca ela: 0 sistema economico da producao colonial. No ambienteasfixiante da grande lavoura, vimo-Io noutro capitulo, nao sobra

lugar para outras atividades de vulto. 0 que nao e producfioem larga escala de alguns generos de grande expressao eomercial

e destinados a exportacao, e fatalmente relegado a urn segundoplano mesquinho e rniseravel. Nao oferece, e nao po de ofere~er

campo para atividades remuneradoras e de nive~ ele~ado. E aS~l_n~

todo aquele que se conserva fora daquele estreito circulo tra:~adftpela grande lavoura, e sao quase todos alem do senhor e ~~escravo, nao encontra pela frente perspectiva alguma.

Urn ultimo fator, finalmente, traz a sua contribuicao, e eon-tribuiciio apreciavel de residues sociais inaproveitaveis: : e :1

instabilidade que caracteriza a economia e a producao brasileirse nao Ihes permite nunca assentarem-se salida e permaeentemente

Forma~iio do Brasil Contempo,dneo 28 5

 

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em bases scguras. Em capitulo anterior ja assinalei esta evolucf iopor arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no

espa90 , prosperidade e ruina, e que resume a hist6ria economicado Brasil-colonia. As repercussoes sociais de uma tal hist6riaforam nefastas: em cada fase desccndente, desfaz-se um pedaco

da estrutura colonial, desagrega-se a parte da socicdade atingidapela crise. Urn numero mais ou menos avultado de individuosinutiliza-se, perde suas raizes e base vital de subsistencia. Passaracnfio a vegetar a margem da ordern social. Ern nenhuma epoca

e lugar isto se torna mais catastr6fico e atinge mais profunda eextensamente a colonia, que no momento preciso em que aborda-mos a nossa hist6ria, enos distr itos da mineracao. Vamos encontrarat urn nurnero consideravel destes individuos desamparados, evi-dentemente deslocados, para quem nao existe 0 dia de amanha,

sem ocupacao normal fixa e decendente remuneradora; ou deso-cupados inteiramente, alternando 0 recurso a caridade com 0crime. 0 vadio na sua exprcssao mais pura. Os distritos auriferosde Minas Gerais, Colas, Mato Grosso ofcrecem tal espetaculo em

propor90es alarmantes que assustarao todos os contcmporaneos .

Vma. boa parte da ~opula9ao. destas capitanias estava. nestascondl90es, e 0 futuro nao pressaglava nada de menos sombno(35) .

Sao estas em suma as causas fundamentais daquelas formas

inorgilnicas da sociedade colonial brasi leira que passei em revista.Vejamos, a par delas, os seus aspectos organizados. E em talterreno, urn logo ocorre que, com a escravidao que the constituia base essencial, domina 0 cenario da vida na colonia: e 0 "clapatriarcal" - emprego uma expressao ja consagrada -, unidade

em que se agrupa a populacao de boa parte do pais, e que, nabase do grande dominio rural, reune 0 conjunto de individuosque participam das atividades dele ou se the agregam; des de 0proprietario que do alto domina e dirige soberanamente esta

pequena parcela de humanidade, ate 0 ultimo escravo e agregadoque entra para sua clientela. Unidade economica, social, adminis-tmtiva, e ate de certa forma religiosa. Quando me ocuparda orga-niz<l9iio administrativa da colonia, veremos como este poder ver-

dadeiramcntc soberano dos grandes proprietirios, com aquelasunidades sobre que se estende, se ajusta a estrutura da administra-

(35) Hi outro fator que teria tambern contribuido para 0 empo-hrccimcnto da populacao colonial, embora em proporcocs relativamentepC'IlIenas. Sao os dnculos, os de mao-morta e sobretudo os morgados.Estes ultimos Fazern ohjeto de conslderacocs interessantes de Vilhena, na{dt il l1c]de suas cartas incluidas na Recopilaciio, Os morgados existiram noBrasi l em revular numero, 0 mais notavel foi talvez 0 dos Viscondes deAsscca, nos Campos dos Coitacascs. Extinguiram-se os morgados pela lein." 56 de 5 de outubro de 1835.;

286 Caio Prado JUnior

98.0 colonial. Vejamos aqui antes os seus caracteres socia is ecconomicos quc servem de base ao mais.

Poderiamos retracar a origem remota desta unidade Singularde nossa estrutura social a suas raizes portuguesas, e ir busca-latanto na organiza9ao e nas s6lidas relacoes de familia do Reino,como no paternalismo da constituicao da monarq_uia. Mas nao .e

preciso ir tao longe.: porque sobrelevam, e .d~ muito, causas. mais

pr6ximas: as circunstancias do ~1ei~ ~r~sIlelro. Se 0 patnarc!-lismo se encontra em germe nas instituicoes portuguesas, questao

que prefiro deixar aberta, 0 que realmente determinou sua. e~-plendida floracao no Brasil e 0 meio local em q~e se constitui,

o cla patriarcal, na forma em que se apresenta, e algo de espe-cifico da nossa organiza9aO (36 ) . E do regime economico que elebrota, deste grande dominio que absorve a maior parcela da

producao e da riqueza colo~iais .. Em torno ~~queles que a pos-suem e senhoreiam, 0 proprietario e sua familia, vern agrupar-se

a populacao: uma parte por destino nat~r~l e inelut:i~rel, osescravos; a outra, pela atracao que exerce 0 uruco centro existente,real e efetivo, de poder e riqueza. 0 dominic e vasto, 0 que

nele se passa dihcilmente ultrapassa~a, s~us limites; Fi;a poris so intciramente na alcada do propnetano; esta ate Val alem,e se estende sobre a populacao vizinha que gira na 6rbita do

dominic pr6ximo. A autoridade publica e fraca, distante; nao s6nao pode contrabalancar 0 poder de fa to que en contra ja estabe-lecido pela £rente, mas precis a contar com ele se quer agir namaior parte do territ6rio de sua [urisdicao, onde s6 com suas

foreas chega ja muito apagada, se nao nula. Quem realmentepossui ai autoridade e presti!?io e 0 senhor rural, 0 grandeproprietario, A adrninistracao e obrigada a reconhece-lo, e, defato, como veremos, 0 reconhece.

A pr6pria Igreja e seu clero, que constituem a segunda esferaadministrativa da colonia, tambem estao, em parte pelo menos,na dependencia do grande dominio, Capela de engenho ou fa zen-da e seu capelao, igreja da freguesia pr6xima e seu paroco, queencontram no grande dominio a maior parte de sua clientela:

nao sao elas e eles acess6rios e servidores do grande dominic

(36) Como alias tambem de outras colonlas ibero-americanas, e mes-mo tambern dos Estados sulinos da Uniao norte-americana. Entre n6s, estu-dou-o Olivei ra Viana , que 0 batizou, nos seus aspectos economic?s. e pol i-ticos lPopulacoes meridionais do Brasil, Ecoluciio do Povo Brasileiro, Pe-quenos estudos de psicologia social); Gi!herto Freyre, . que descnv~l~cuconsidcravclmcnte 0 assunto, acentuou mars 0 lade SOCiale antropologico(C(Jsa Grande e Senzala, Sobrados e Mucamhos).

Formari io do Brasil COlltemporalleo 287

 

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que congrega quase todos seus fieis?( 37). Nada resta portanto,

como forca autonorna e desembaracada de peias, que estc ultimo.

'A sua sombra, larga e acolhedora, dispensadora unica dos meios

de subsistencia e de protecao, virao todos se abrigar.

Constituido assim numa s6lida base economica, e centrali-

zando a vida social da colonia, 0 grande dorninio adquirira aos

poucos os clcmais caracteres que 0 definirao, De simples unidade

produtiva, torna-se desde lo~o celula organica da sociedade colo-

nial; mais urn passo, e sera 0 berco do nosso "cla", da grande

familia patriarcal brasileira. Processo que nao vern de chofre,que se desenvolvera aos poucos, merce das condicoes peculiares

em que 0 numeroso grupo humano que habita 0 dorninio passa

a existencia nesta eornunhao forcada e estritamente circunscrita

a seus limites. Uma analise comparativa nos mostra estagios dife-

rentes da evolucao, coexistindo no momenta que nos ocupa e

refletindo a maior ou menor antiguidade das regi6es observadas.

Nos velhos e tradicionais centros do Norte, Bahia e Pernambuco,

ja com urn largo passado de sedimentacao, a floracao patriarcal

e esplendida e produz todos os seus frutos; menos no Rio

de Janeiro;e ainda muito pouco nestas regi6es novas da

segunda metade do sec. XVIII, 0 Maranhao e os Campos dos

Goitacases. E 0 contacto prolongado, que se repete ao longo de

gerac;6es sucessivas, que vai modelando as relacoes internas dodominio e vestindo-as de roupagens que disfarcam a crueza pri-

mitiva do dominio escravocrata. 0 senhor deixara de ser 0 simples

proprietario que explora comercialmente suas terras e seu pessoal;

o escravo tambem nao sera mais apenas a mfio-de-obra explorada.

Se trabalha para aquele, e ate forcado pelo acoite do feitor ou

o tronco da senzala, tambem conta com ele, e dele depende

para os demais atos e necessidade de sua existencia; toda ela

se desenrola, do nascimento a morte, freqiientemente por gerac;6es

sucessivas, na 6rbita do senhor e do seu dominic, pequeno mundo

fechado em funcao do qual se sofre e se goza. Multiplicam-se

assim os laces que apesar das distancias vao at ando uma a outro.

o mesmo se da com os trabalhadores livres ou agregados; liber-

dade relativa que nao vai alem da de trocar urn senhor par

outro igual; e isto mesmo nem sempre. Urn pouco mais afastados

e autonornos, os rendeiros e lavradores mais modestos, os obri-

gados: nas relacoes com estes haven't mais crises, uma friccao

(37) "No Brasil, a catedral, ou igreja mais pod eros a que 0 pr6priorei, seria substituida pela casa-grande do engenho ... ; a igreja que age naformacao brasilei ra, a rt iculando-a , nao e a catedral com 0 seu bispo ...nem a igreja isolada e so, ou de mosteiro ou abadia... E a capela deengenho . .. ' Gi lber to Freyre , Casa Grande e Senzala, 20.

288 Caio Prado JUnior

maior: mas 0 contacto permanente, diuturno, de anos a fio, . ! i C !

nao c1c-cxistencias sucessivas, acabara aproximaudo-os c tlipl~t:i-

nan do as arestas mais vivas.

Constitui-se assim no grande dominio urn conjUifi~@'e rela-c;6esdifercntes das de simples propriedade escravista e expleml~ao

economica, Relacoes mais amenas, mais humanas, que envolvem

toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas-novas

relacoes abrandam e atenuam 0 poder absoluto e .0 x;igor da

autoridade do proprietario, doutro elas a reforc;~m, potque.,a

torn am mais consentida e aceita por todos. Ele Ja sera 9)lVId~

como urn protetor, quase urn pai. I-Ia mesmo urn rito cat6Ii~ gtiese aproveitara para sancionar a situacao e as novas rela~Q~s:

o testemunho nas cerimonias religiosas do batismo e do (1:3!5a·

mento, que criarao titulos oficiais para elas: padrinho, afilJind:o,

compadres.Colocado assim no centro da vida social da colonia, 0 grande

proprietario se aristocratiza. Reune para ist? os el.emen~os que

constituem a base e origem de todas as aristocracias: nquez,'ts,

poder, autoridade. A que se unira a tradic;ao,. qu~ a familia

patriarcal, com a autoridade absoluta do chefe, dmgmdo e esee-lhendo as casamentos, assegura. Esta aristocratizacao nao e apena~

de nome, fruto da vaidade e da presuncao dos intitulados. Cens-

titui um fato real e efetivo; os grandes proprietaries rurais f - G r -

marao uma classe a parte e privilegiada. Cercam-nos 0 respeito

e prestigio, 0 reconhecimento universal daposicao que ocupam.

Urn contemporaneo, que nao e urn bajulador qualquer, mas espi-

rito esclarecido e critico nota v el da vida baiana de fins do sec.

XVIII, dira deles: "Formao em aquella Comarca hU1)1Corpo

respeitavel de per si, e tao nobre por nature.za, que em nenhuma

outra corporacao, e em r.enhum outro Paiz se encontra outra

igual a ella: em si comprehende as melhores familias deste, e

de todo mais Continente; sao as pessoas que mais hondo a

Patria, que a fazem mais rica, mais brilhante, mais poderosa

pelo solido dos seus estabelecimentos e mais naturaes posses-

soes" (38). Quase urn seculo antes, Antonil dissera coisa semelhante.

Assim constituida, a aristocracia colonial tornara os caracteres

de todas as aristocracias: 0 orgulho, a tradicao, pelo menos de

familia e do sangue que the corre nas veias (39). Mas isto nao

(38) Discurso pre liminar, 290. 0 pais e 0 continente a que se refereo autor, nao sao 0 Brasil ou a America, como interpretariamos com nossaterminologia geografica atual; mas regioes e possessoes portuguesas naAmerica, como era en tao corrente dizer- se.

(39) A tradicao do sangue nao e contudo muito antiga. Borges daFonseca, meio seculo arenas antes do momenta qne nos ocupa, encontrouem Pernambuco, que e 0 mais antigo centro de tradicao aristocratica do

Eormaci io do Brasil ContemfJoraneo 289

 

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a hua arrogante: 0 tom geral da vida brasileira, a sua molrva c

macicz nos contactos humanos nao dnriam marge'll para islo.

Tera contudo 0 fraco de todas as castas privilcgiadas de curto

passado: 0 de querer entroncar-se em outras mais antigas. Vilhena

satirizara por isso os aristocratas da colonia, e S8 referira aos

escudos de armas "que por vinte e tantos mil rcis mandan vir

da Corte ... "( 40).

Tudo isto e particularmente 0 casu da grande Iavoura nos

principais centros da colonia: a do acucar ou do tabaco na Bahia,

Pernambuco, Rio de Janeiro, ou a do algoclao no Maranhao.

Nas minas repete-se, mutatis mutandis, 0 caso. E fato semelhante

se passa tambem nos dominies pastoris, embora ai se altere algo

a fisionomia da vida social, subordinando-se as condicoes peculia-

res em que se realiza esta atividade. Em particular nos sert6es

do Nordeste. 0 pessoal reduzido, a pequena proporcao de escra-

vos, as relacoes de trabalho em que se destaca a grande autono-

mia e independencia do vaqueiro, bern como a maior e geral

liberdade de movimentos do pessoal empregado, a dispcrsao das

fazendas e currais que constituem 0 dominic, limitam a autoridade

absoluta do proprietario e cerceiam 0 seu poder, cornparado ao

que exerce sobre seu humilde pessoal 0 senhor de engenho do

litoral. Acresce ainda 0 absentismo dele, mais acentuado e pro-

longado que na agricultura, 0 que alheia mais as classes e dificulta

aquela comunhao que encontramos noutros setores (41). Contudo,

os mesmos caracteres patriarcais e aristocraticos, embora com as-

pectos pr6prios, estao ai presentes. Na pecuaria do suI de Minas, no

entanto, 0 quadro se modifica mais. J a citei em outro lugar a

observacao de Saint-Hilaire, que encontrou ai uma certa democra-

tizacao dos habitos e dos costumes nas classes superiores, e isto

apesar da presenc;a numerosa de escravos: 0 proprietario e sua

familia sao mais rudes e menos altaneios; assemelham-se antes

ao campones europeu abastado que ao nobre, como se da nos dis-

tritos mineradores. 0 fazendeiro e seus filhos participam ativamen-

te do manejo da propriedade, tratam do gada e ocupam-se com as

culturas; conduzem ate, eles pr6prios, as boiadas ou tropas de

bestas que se destinam aos mercados consumidores. 0 trabalho

Brasi l, grande .<; di ficuldades para escrever a sua Nobiliarquia porque, comoele proprio declara, encontrou "sujeitos dos mais nobres da terra que nemsabiam dar noticia da naturalidade de seus avos." Nobiliarquia Pernam-bucanas Notfcia preliminar.

(40) Becopilacdo, 44.(41) 0 retrato que Jose de Alencar faz cm 0 Sertaneio do grande

dominio pastoril do Nordeste, embora laruamcntc Fantasista, e em linhasgerai5 uma reeonsti tuicao que nos proporc iona alguns indices ace itaveis .

290 Caio Prado ]UlIior

e tido por isso em melhor conceito, e nao humilha ou desabona(42)

Nos campos do Extremo-Sul 0 teor de vida tambem comporta

este tom mais democratico, ha uma igualdade maior, menos

absentismo, maior comunhao entre estancieiros e pe6es. Notemos

contudo que, como no Nordeste, os escravos sao ai raros, e tudo

isto sem contar 0 carater e generos de vida dos habitantes, tao

especiais e peculiares.

Mas com todas estas diferencas e atenuacoes, as distincoes

sociais e predominio absoluto e patriarcal do proprietario e senhor

sao elementos que se associam de uma forma geral a todos os

gran des dominies da colonia. E, mais ou menos caracterizadamente,

o grupo social que neles se constitui exerce as mesmas funcoes

e ocupa 0mesmo lugar na vida economica, social e administrat iva

da colonia, descritos acima no seu estado mais puro e completo.

o mesmo ja nao se da, esta visto, neste outro setor da

economia colonial que e 0 das lavouras e propriedades de pe-

queno vulto. Para uma parte delas, nao ha novidade: os modestos

lavradores ou plantadores de cana; as pequenas culturas de

tabaco ou de algodao, que como vimos sao numerosas; as pr6prias

culturas alimentares, que se distribuem em tomo dos gran d es

centros de permeio com a grande lavoura; tudo isto vive como

que nos poros desta ultima e gira na sua 6rbita. Nao tem por

si, cada qual daquelas pequenas unidades, vulto suficiente para

adotar os caracteres do grande dorninio; mas nao 0 tem tambem

para ser completamente autonoma, e sofre da vizinhanca avas-

saladora do grande proprietario, participa assim do regime que

ele estabelece quase pelo mesmo titulo que os simples rendeiros

e agregados.

A situacao nao sera a mesma naquelas regi6es em que nao

se constituiu ou nao se manteve por um ou outro motivo a pro-

priedade e dominio tipicos da grande lavoura. E 0 casu que

ja vimos do litoral sul da Bahia, do Espirito Santo e de outros

setores da colonia. Incluem-se tambem ai, embora em circunstan-

cias especiais, os distritos de colonizacao acoriana de' Santa

Catarina. Os do Rio Grande do SuI nao precis am ser lembrados

porque se encontram ja em franca evolucao e deslocamento para

a pecuaria e outras atividades desta derivadas: a industria do

charque.

Em tais regi6es, ou boa parte delas, a maioria da populacao

cabe antes naquela subcategoria vegetativa e inorganica da socie-

dade colonial 9-ue acima analisei. A agricultura que pratica erudimentar, mars pr6xima do tipo caboclo. Se contribuiu para 0

comercio com algum excesso, e em proporcces relativamente

(42) Voyage aux sources ... , I, 77.

Fonuaciio do Brasil Contemporaneo 291

 

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pequcnas; as vezcs ate esporadicamcnte apenas. As relacoes sociais

que' se estabelecem nestas rcgiocs de baixo nivel economico scdistinguem por isso profundamente das da grande lavoura, frutoque sao estas ultimas de uma atividade realizada em condicdesmuito diversas. Nada ha que lembre ai 0 grande senhor patriarcal,aristocrata e poderoso, dominando seu vasto circulo de escravose clientes.· Urna uniformidade e igualdadc maiores, e portantorna is independencia e menos hierarquia. Mas caracteres estesnegativos e resultantes; antes reflexos da inorganizacao que de

instituicoes sociais distintas e pr6prias.Devemos fazer aqui urn lugar a parte a colonizacao aooriana

de Santa Catarina. Encontra-se aqui qualquer coisa de inteira-mente diverso e singular na fisionomia do Brasil. Nao precisorepetir 0 que ja lembrei acima: a pequena propriedade dominainteiramente, 0 escravo e muito raro, a populacao e etnicamentehomogenea. Nenhum predominio de grupos ou castas, nenhumahierarquia marcada de classes. Trata-se em suma de uma comu-

nidade cujo paralelo encontraremos apenas nas colonias tempe-radas da America, e foge inteiramente as normas da colonizacaotropical, formando uma ilha neste Brasil de grandes dominiesescravocratas ou seus derivados( 43).

Tudo isto que acabamos de ver e em particular a situacao

do campo; mas se nele se origina e estabelece, transporta-se talqual para os centros urban os. A maior parte destes nao e senaourn apendice rural, urn puro reflexo do campo. Em torno da

igreja paroquial e de urn pequeno comercio, a venda e a loja,eles se constituem ( 44). A quase totalidade de seus moradoressera de lavradores que vivem normalrnente dispersos na vizinhanca,

as vezes ate mcsmo muito afastados, e que os procuram so aosdomingos e dias de Festa. Quem os visita nestes ou nos demaisdias os encontrara alternadamente animados, ativos, ruidosos, ouentfio vazios de gente, em silencio, mortos. E que a ropula9ao,entregue nos dias comuns aos seus afazeres rurais, so concorrenos outros, para cumprir seus deveres religiosos, fazer compras,

(43) Saint-Hilai re esereve porrncnorizadamente as condicocs de vidanesta regiao que visi tou. (Voyage aux prot:inces de Saint-Paul ... , II.) E

interessante destacar, para Iazer-lhe 0 paralelo com os grandes centros escra-

vocratas da colonia, a observacao do naturalista sobre a posicao social rela-

t iva da mulher e do homern, com prceminencia marcada daquela, enquanto

e 0 contrario, como sabernos, que se passa no resto do pais, e constitui

mesrno urn dos tracos mais salientes e caracteristicos do pntriarcalismo, Ha

('0:11 certeza relacao direta entre tal fato e as circunst lncias particulares

da formacao social daqucla rcgiao.

(44) Em muitas partes do interior do Brasil , os povoudos hojc ainda

se dc~ignal11 localmcntc por "corncrcio". Isto muitas vezes ate quando se

trata de cidadcs de maiorcs vulto, sedcs de municipio e de comarca,

292 Caio Prado }Unior

entabular negocia9oes, avistar-se com amigos, assistir as festas.Viver a "vida social", enfim, depois dos longos dias de segrega-

mento na r09a. De populacao fixa, os pequenos centros urbanosnao con tam senao com raros cornerciantes - e mesmo estes saofreqiientemente fazendeiros da vizinhanca que acrescentam assimo neg6cio as suas atividades rurais; excepcionalmente algum arti-fice: quem precisara deles, quando as fazendas tern tudo e satis-fazem suas necessidades com 0 pr6pr io pessoal? Mais numerososos vadios e as prostitutas. Tao disseminadas ambas as categorias,

ate nos menores povoados e arraiais, que os chefes de tropas,boiada~ e comboios procuravam 0 qua~to .possivel passar ao largodeles, mdo pousar no mato de preferencia, ao risco do debochee dissipacao entre seus empregados. Nem mesmo 0 padre e sempreum morador fixo do povoado, Comumente acrescenta as suasfuncoes sacerdotais outras mais terrenas de fazendeiro ou mine-rador, coisa que espantava e horrorizava 0 piedoso Saint-Hilaire,que via 0 abandono espiritual em que deixava 0 seu rebanhode fieis,

Na medida da importancia da aglomera9ao, a populacao fixacresce. As funcoes se tornam mais diferenciadas e excIusivas:o comerciante e so comerciante, e nao apenas nas horas disponiveis

da lavoura; as artes e oficios ja comecaram a se destacar das

atividades rurais, e aparecem nos centros urbanos os primeirosartifices autonomos. Vao surgindo algumas autoridades fixas e

permanentes, como 0 juiz que nfio e 0 mais simples fazendeiroa exercer 0 cargo nas horas vagas: nos iulgados mais importantes,hayed urn juiz letrado, que nfio e do lugar, que vern de fora;donde sua designacao, Havera rna i s os servcntuarios que se podem

manter so com os proventos do cargo: escrivaes, meirinhos, etc.,e nao precis am completar 0 orcamento com outras ocupacoes,

Mesmo contudo nos grandes, nos maio res centros da colonia,a populacao de origem e raizes rurais predomina, se nao em

numero, pelo menos em categoria e riqueza. Sao os fazendeiros,senhores de engenho, grandes lavradores que formam a sua natasocial. Dividirao 0 tempo, alternando a residencia: na estaciio

da safra e de maiores trabalhos rurais, permanccorho, quandomuito diligentes, 0 que nem sempre e 0 caso, nas suas fazendas e

engenhos. No mais preferirao os prazeres e distracoes da cidade.o absentismo enos grandes proprietaries a regra; e cste habitoe deplorado por todos aqueles que desejnrlam ver mclhor paradesos trabalhos da lavoura, abandonados como ficam aos cuidados

d,e..prepostos ~ouco dilig~ntes ou capazes. "Os ~.ra~des propr ie-tarios do Brasil, escrevcra 0 Cons. Veloso de Oliveira cm 1810principalmcnte da parte maritima, vivem qunso toclos concentra~GOS nas cidades e vilas, ab.mdonnndo a cultura e direcao inteira

's

Fonnw;iio do Brasil Contcmpordnco S;J:l

 

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-nas suas fuzcndas a mais crassa igllorancia e as scm-razoes dosrusticos ilhcus dos As;orcs e de pobres cmigrados das provincias

do norte de portugal ... " (4,5). E 0 presidente da Mesa de Inspecao

do Rio de Janeiro, 0 Desembargador Rocha Gameiro, descrevendo

em 1798 ad ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho 0 estado da

agricultura da colonia, aponta 0 absentismo como um dos prin-

cipais males de que ela sofria (46) .

Sao assim os centros urbanos um reflexo das condicoes domi-

nantes no campo. Os senhores rurais formam, ai tambem, a classe

superior. Mas ja nao estao s6s: ombreiam com eles e gozam

mesmo de preerninencia social e protocolar, as altas autoridades

da administracao mili tar, civil, e eclesiast ica: vice-reis, c~Ritaes-

-generais, governadores, comandantes e altas patentes militares,

desembargadores, bispos... Ha tambem os profissionais, advo-

gados sobretudo e solicitadores, que se integram como partes

efetivas na ordem [udiciaria (47).

o comercio forma nestes gran des centros uma classe bern

diferenciada e def inida. Ja me referi a sua qualidade predominan-

temente "reinol", isto e, nativa do Reino. Mas, mesrno sem contar

os pequenos comerciantes de retalho e de g€meros de primeira

necessidade, que segundo Vilhena sao na Bahia "multidoes" (48),

e que naturalmente nao tern relevo social algum, 0 que propria-

mente seria 0 grande comercio, nfio pareee'ter sido de envergadura.Distinguiam-se entao dois ramos de atividades comerciais: 0 nego-

ciante propriamente, "dispensado" e "ma.tJ:iculado" regularmente,

e 0 simples comissdrio, com direitos e atividades limitadas. Seria

o que e hoje um consignatario ou agente eamercial, agindo sempre

por conta e em nome alheios. Os prirociros sao em reduzido

numero, E 0 que nos iriforma 0 Marques do Lavradio, falando

embora da principal pracsa da colonia, 0 Rio de Janeiro: "A

maior parte das pes s oas a que aqui se da 0 nome de comerciantes,

nada mais sao que uns simples comissarios ... ; a unica cas a que

ainda se conserva na regra de comerciantes e a de que se acha

senhor dela Francisco de Araujo Pereira, com sociedade de seus

primos e de alguns s6cios em Europa. Aqueles negociantes que

aqui passam por mais ricos, como Bras Carneiro Leao, Manuel

(45) Mem6ria sobre a agricultura, 93.(46) Oficio de 28 de abril de 1798, in Gorrespondencia de varias

autoridades, 227.(47) 0 advogado colonial nao e 0 simples profissional de nossos dias,

tern a categoria de urn alto serventuario da [ustica, e e urna parte, urn

verdadeiro orgao da [ustica publica. Vestigio deste passado encontrarnos

ainda nas formulas de praxe que os advogados eontemporaneos ern:pregam

nos seus discursos oficiais.

(48) Becopilaciio, 50.

2 94 G aio P ra do JU nio r

da Costa Cardoso, Jose Caetano Alves e alguns outros, tell cons-

tituido a sua riqueza e 0 seu fundo no maior eomercio de eomissoes

que tern tido, isto e, de fazendas e navios que lhes tern. sido

consignados. .. Estes homens, ainda que tern de fundo, e sao

honrados e verdadeiros, nao posso considerar as suas casas como

casas de comercio porque e preciso saber que eles ignoram 0

o que e esta profissao, que eles nem conhecem os livros que lhes sao

necessaries, nem sabem 0 modo regular da sua escri turacao" (49).

Apesar disto, 0 comercio tern na vida social da colonia uma

posicao importante, Nao que goze de grande consideracao, pelocontrario, 0 trato de neg6cios nao se via com bons olhos, e trazia

mesmo urn certo desabono aos individuos nele metidos. Fruto

de urn velho preconceito feudal que nos veio da Europa, e que

se mantera no Brasil ate epoca muito recente(50). Muitas pessoas

abonadas da colonia escondiam por isso seus interesses e ativi-

dades comerciais sob a capa de testas-de-Ierro que ~parecem

por elas manejando seus capitais (51). Mas com tudo isto, 0 co-

mercio e uma classe credora, e quem financia a grande lavoura.

Senhores de engenho, lavradores, fazendeiros sao seus devedores;

e tanto rna is presos as dividas que sua posicao social, vaidade e

educacao perdularia os levam a gastos excessivos e superfluos,

que nos momentos de crise, os poem em dificuldades e apertos

muito serios(52). Oficialmente tambem, 0 negociante nao sofrerestricao alguma e esta em pe de igualdade com as demais classes

possuidoras. A antiga legislacao portuguesa que the impunha

algumas diminulcoes, como a de nao poder ocupar os cargos dos

Senados das Camaras (Camaras Municipais), caira em desuso

no Brasil, e encontramos mercadores nas Camaras de todas as

(49) Relaiorio, 453. "No Brasil, ha comerciantes de cabedal qua

nem ler sabem." GOTr B r as . J an . 1813. X, 89.

(50) "As colocacoes comerciais mais altas, escrevera Oliveira Lima,

so para 0 f im do reinado deixaram de ser consideradas mesalliaces" (0

Imperio brasileiro, 247.) As atribulacoes de um Mana, incompreendido e

antipatizado, nao tiveram outra origem; para os bachareis e proprietaries

manejavam 0 Imperio, ele e apenas 0 "comerciante", 0 homem de negccios.

(51) Vilhena, Becopilaciio, 49.

(52) Vejam-se a respeito disto e das relacoes pouco amistosas de

senhores de engenho e lavradores, devedores cronicos sempre pouco fol-

gados, e comerciantes, credores exigentes, as interessantissimas observacoes

relativas it Bahia da segunda metade do sec. XVIII do autor anomimo da

Descriyiio preliminar . .. , 27. 0 autor e francamente simpatico aos agricul-

tores, e acusa amargamente 0 comercio, que "engrossa com 0 suco, leite

e sangue da agricultura ... " (como se ve, a canti~a e velha ), mas reco-

nhece a "indiscricao e bern conhecida irregularidade' dos gastos de senhores

e lavradores.

E orm aciio do B ras il C on te mp ord ne o 29 5

 

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cidades e vilas c1a colonia (53). Formavam mesmo uma categoriareconhecida e oficialmente prezada, e nesta qualidade partici-pavam dos conselhos da adrninistracao publica. Assim nas Mesasde Inspecao, criadas em 1751 nas principais prar;as da colonia

para superintenderem 0 comercio do acucar e do tabaco, entra-yam os negociantes com do is representantes, ao lado de doisdos senhores de engenho e outros dois dos lavradores de tabaco.

Nestas condicoes 0 comercio, apesar da prevencao que contrade havia, ocupa uma posicao de relevo. Pode fazer frente aoutra c1asse possuidora da colonia , os proprietaries, e disputar- lhes

a primazia. E 0 que efetivamente 5e deu, e as hostilidades quedai resultam sao de grande repercussao politica. Teremos aquino Brasil W11a replica da tradicional rivalidade de nobres e

burgueses que enche a hist6ria da Europa. E se tomarfio entren6s tanto mais vivas e acirradas que trazem um cunho nacional,pois como vimos, sao nativos do Reino aqueles ultimos, enquantoos outros vern dos primeiros ocupantes e desbravadores da terra.Com mais direitos, portanto, entenderao eles.

A administracao e a politica metropolitana tinham natural-mente que contemporizar com ambas as faccoes, igualmentefortes. As suas simpatias intimas, no entanto, pelo menos a pessoaldos seus representantes e Iuncionarios na colonia, tambern rein6is

por via de regra, tin ham de ser, esta claro, por seus patricios, Etudo isto vai num crescendo sensivel, na medida em que os

caracteres "nacionais" das classes em luta se vao definindo. Adistincao entre nativos do Reino e da colonia, a principio amorfaapenas sentida,e mais uma simples questao secundaria, de "fa t o"

e nao de "dire ito", se tornara com 0 tempo um assunto palpitante

e essencial. J a comeca no momenta que ora nos ocupa a seexprimir em termos pr6prios: brasileiros, em oposicao a portu-

gueses, quando "portugueses" tinham sido ate entao todos, nas-

cidos aqui ou acola, e "brasileiros" os residentes na colonia ou

(53) Afirma Gayozo que em Sao LUIS do Maranhao se recomecou aexcluir os negociantes do Senado, em 1792. (Compendio hist6rico, 132.)

J .F. Lisboa duvida desta informacao i Obras, II, 52.) Realmente, ja entao

tinham caido em desuso eompleto as determinacoes legais a respeito, e queeste ul timo autor ei tado sumaria ( loc . cit. II, 169), sendo a ultima de 1947.

Ate na vila fronteira a Sao LUIS, Alcantara, a menos de 3 leguas de dis-tancia, havia ofieiais da Camara mercadores de profissao. Mas J. F. Lisboanao fundamenta a sua duvida, e e de erer que Gayozo, contemporaneo doque refere, falasse verdade. Em todo easo, 0 que se passaria em Sao Luise no momento que nos ocupa uma excecao {mica. - Confirmando a afir-macae de Gayozo eneontramos a Provisao da Mesa do Desembargo de 17

de julho de 1813, on de se determina que podiam Gcupar os cargos daCamara de Sao LUIS todos os domiciliados na cidade, mesmo que nfio fossemnaturais dela.

;!D6 Gaia Prado /tln:!)1

que aqui tivessem Ieito fortuna, fossem embora de origem metro-politana.

A luta de proprietarios e comerciantes, reforcada assim ~mfundamento na naturalidade dos oponentes, se manifesta na C o , 1 4 -nia, como se sabe, de longa data; e sai mesmo para 0 terrene

da violencia em agitar;oes que se tornaram notaveis, a revoltade Beckmann, no Maranhao, e a guerra dos Mascates em Pernam-buco. Com 0 tempo ela se aprofundara, e se alastra com a

participacao deoutros grupos. A monopolizacao das posicoescomerciais praticada em beneficio dos rein6is, vai atingir outras

classes da populacao nativa da colonia, fechando-lhes as portaspara possiveis colocacoes, ja de si tao escassas. A luta acabaraenvolvendo todo mundo, levant an d o contra os "mas cates", "pes-

-de-chumbo" ou "marinheiros", (e como pejorativamente se desig-

nam os portugueses) a oposicao geral dos colonos nativos do Brasil.

Sera nas agitacoes da Independencia e no periodo que asegue, prolongando-se alias por muito tempo, que tal situacao

se definira claramente, degenerando nao raro em lutas armadas

de grande intensidade ( 54) .

(54) Analisei a materia, no eon junto da hist6ria brasileira, emboraresumidamente, em meu trabalho, Eooluc iio pol itica do Brasil , Sao Paulo1933. - Mas adiante, no ul timo capi tulo, vol ta re i sobre este aspecto pol it icoda oposicao de eomereiantes, proprietaries e demais classes da populacaoentre si.

Eormaciio do Brasil Gontemporaneo 297

 

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Administraciio

Para se compreendcr a administracao colonial e preciso antes

de rna is nada desfazer-se de muitas nocoes que ja se tomaram

em nossos dias verdadeiros prejuizos, mas que no momenta 9 u eora nos ocupa comecavam apenas a fazer caminho nas ideias

conternporaneas e nos sistemas juridicos em vigor; e em parti-

cular, ignorava-as por complete a adrninistracao portuguesa. Assim

a de "funcoes" ou "poderes" do Estado, separados e substancial-

mente distintos - legislat ivo, executivo, [udiciario; assim tarnbem

esferas paralela~ e di~erentes das ativi~ades ~st~tais: ~era.l" pro-

vincial, local. Ainda, finalmente, uma diferenciacao, no indivlduo,

de dois pIanos distintos, de origem diferente e regulados diver-

samente: 0 das suas relacoes extemas e juridicas, que cabem no

Direito, e 0 do seu foro intimo - a crenca religiosa com seu

complexo de praticas e normas a que ela obriga: 0 c6digo moral

e sacramental -, regulado pela Heliziao. A divisao do Romem,

como dizia Lacerda de Almeida, em dois seres distintos, 0 cidadao

na Republica e 0 fiel na Igreja" (1). Todas estas nocoes se con-

sideram hoje "principios cientificos", 0 que quer dizer, dados

absolutos, universais. Rejeita-Ios na pratica, na regulamentac;;ao

juridica de uma sociedade, naquilo que se chamou direito positivo,constitui perante a "ciencia juridica" mcderna, urn "erro", da

mesma natureza e tao grave como seria 0 do arquiteto que

planejasse uma construcao sem atencao as leis da gravidade. Mas

o fato e que nao era assim entendido entao, naquela monarquia

portuguesa do sec. XVIII de que faziamos parte. Considere-se

isto hoje urn "erro", fruto da ignorancia ou do atraso, como did

o progressismo; ou, como julgo pessoalmente mais verdadeiro,

urn certo "memento historico", nfio e meu objetivo discutir aqui

( 1) A lgreia e 0 Estado, 29. Lacerda de Alme ida nat\,r aImente :om;bate esta distincao, como crente que e, mas no terreno te6nco, que nao eaquele em que me coloco aqui; e que alias nao interessa, Cito apenas apassagem para f risar duas concepcoes dif erentes, ambas tao acer tadas ur:nacomo a outra, porque sao fatos hist6ricos ~ ~ao da?os absolutes, e que. ~-teressa trazer para aqui porque, com as Ide las hoje er:n vigor, a ~dmmls-tracao colonial, em muitos de seus aspectos, se torn a incompreensivel sema uevida dist;n<;;iioentre clas,

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este ponto. 0 que interessa e que no momento que nos ocupa,

a adminlstracao portuguesa, e com ela a da colonia, orientava-se

por prindpios diversos, em que aquelas noeoes citadas nao tern

IU!7ar; 0 Estado aparece como unidade inteirica que funciona

n;m todo unico, e abrange 0 individuo, conjuntamente, em todos

seus aspectos e manifestacoes. Ha, esta claro, urna divisao de

trabalho, po is os mesmos 6rgaos e pessoas representantes do

Estado nao poderiam desenvolver sua atividade, simultaneamente,

em todos os terrenos; e nem convinha aurnentar excessivamente

o poder de cada qual. Expressao integral deste poder, e sintesecompleta do Estado, s6 0 rei; das delegacoes que necessariamente

faz do seu poder, nasce a divisao dasfuncoes, Mas uma tal d~visao

e mais formal que funcional; corresponde antes a uma necessidade

pratica que a uma ,distinc;;ao que ~stivesse ~a essencia ~as ~oi.s~s,

na naturez~ especifica das funcoes esta~al~. A p'r~pna dlVlS~O

marcada, mtida e absoluta, entre urn direito pubheo, que diz

respeito as relacoes coletivas, e prioado, as individuais,. d~stinc;;ao

fundamental em que assenta toda estrutura do nosso direito mo-

demo, deve ser entendida entao, 'e entre n6s, de uma forma bern

diversa da dos nossos dias.

Nao e possivel aventurar-me aqui no desenvolvimento te6rico

destas questoes, po is seria isto entrar para 0 terreno de uma

filosofia hist6rica do direito que nos levaria longe, exigindo trata-mento a parte e alheio ao nosso assunto. Se fiz a observaeao

acima, observacao apenas e nao afirmacao de principios, foi

unicamente para definir a posicao que devemos tomar ao abordar

a analise hist6rica, e puramente hist6rica, como e esta aqui, da

administracao colonial; preparar 0 espirito do leitor, mais dado

a nocoes de que precis amos aqui fazer taboo-rasa; e para adotar

urn ponto de partida que facilite a analise que segue, e que

e unicamente a nocao ampla e geral em que efetivamente assenta

e err que se entrosa a administracao colonial: a da monarquia

portuguesa, organismo imenso que vai do rei e sua cabeca, chefe,

pai, representante de Deus na terra, supremo dispensador de

todas as graC;;as e regulador nato de todas as atividades, mais

que isto, de todas as "ex~ressoes" pessoais e individuais de seussuditos e vassalos, ate 0 ultimo destes, mas ainda assim com seu

papel e sua funeao, modestos embora, mas afetivos ereconhecidos

no conjunto do organismo politico da monarquia. Despidos assim

de todas as outras nocoes que sao para n6s de data receute

que a do periodo ora em vista, nao correm 0 risco de anacronismos

berrantes, tao freqiientes nesta materia e que tanto a obscurecem,

Ainda ha uma coisa que devemos manter presente. J! que

a administracao colonial nada ou muito pouco apresenta daquela

uniforrnidade e simetria que estamos hoje habituados a ver nas

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administracoes contemporaneas. Isto e ,' funcoes bem discrimi-nadas , eompetencias bem definidas, disposicao ordenada, segundoJIm principio unifonne de hierarquia e simetria, dos diferentes

orgaos administrativos. Nao existern, ou existem muito poucasnormas gerais que no dire ito publico da monarquia portuguesare"gula~sem de uma forma completa e definitiva, a feic;ao moder-

na, atribuicoes e eompetencia, a estrutura da administracao e

de seus varies departamentos. Percorra-se a legislat;ao adminis-trativa da colonia: encontrar-se-a um amontoado que nos parecera

inteiramente desconexo, de determinacoes particulares e casuit icas,de regras que se acrescentam umas as outras sem obedecerema plano algum de conjunto. Um cipoal em que nosso entendimen-to [nridico moderno, habituado a clareza e nitidez de principiosgerais, de que decorrem com uma l6gica "aristotelica" todas as

regms especiais e aplicacoes concretas com um rigor absoluto,se confunde e se perde. Depois das Ordenacoes, as ultimas, asf~lipiTias de 1643, e que formam a base da legislac;ao portuguesa,deeorreram, ate 0 memento que nos ocupa, seculo e meio de

cartas de lei, alvaras, cartas e provisoes regias, ordens, acordaos,assentos e que mais, formando tudo 0 conjunto embaralhado eeopioso da chamada legis larao extracegante. Mas nem mesmo alegislac;ao anterior as Ordenacoes foi por elas toda revogada;

em particular naquilo que diz respeito a administracao colonial,o direito das Ordenacoes e omisso, e continuaram em vigor depoisdelas e ate a Independencia (e quantas mesmo ate rriais tarde?),

disposicoes inclusive do primeiro seculo da colonizacao, E aspr6pria Ordenacoes, embora fonnem c6digo, estao muito longedaquela generalidade, 16gica, metodo e precisao dos nossos c6digos

modernos. £ todo este caos imenso de leis que constitui 0 direitoadministrativo da colonia. Orientar-nos nele e tarefa ardua. Orgaos

e funcoes que existem num lugar, faltam noutros, ou neles apa-recem sob forma e designacao diferentes; os delegados do poderrecebem muitas vezes instrucoes especiais, incluidas em simplescorrespondencia epistolar, que fazem lei e freqiientemente esta-belecem nonnas originais, distribuieao de funt;6es e competencias

diferentes da anterionnente em vigor. Quando se cria urn novo6rgao ou funcao, a lei nao cogita nunca de entrosa-los harmoni-camente no que ja se acha estabelecido: regula minuciosa ecasuisticamente a materia presente, tendo em vista unicamentedS necessidades imediatas. Mesmo quando urn destes 6rgaos ou

Iuncoes, ou coisa semelhante, ja se encontra noutro lugar, a novaregulamentacao nao se preocupa com isto, e estabelece novase especiais determinacoes. E tudo isto com a pratica de acres-

centar 0 revigoramento, de urn modo geral, de todas as ordensanteriores, ou apelar para "0 que se pratica no Heino", como e300 Caio Prado 1unio,

freqiiente, gera uma confusao tao inextricavel que os proprioscontemporaneos mais versados em leis nunca sabiam ao certoem que pe se achavam. Como result ado, as leis nao s6 eram uni-

formemente aplicadas no tempo e no espa<;o, como freqiiente-ncntese desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso fosse neces-

sario, urn ou outro motivo justificado para a desobediencia. Edai, a relacao que encontramos entre aquilo que lemos !lOS textoslegais e 0 que efetivamente se pratica e muitas vezes remotae vaga, se nao redondamente contradit6ria. Sendo assim, e comoe esta pratica que mais nos interessa aqui, e nao a teoria, temosque recorrer com a maior cautela agueles textos legais,e procurarde preferencia outras fontes para Iixarrnos a vida administrativa

da colonia, tal como realmente ela se apresentava. Para isto,infelizmente, estamos ainda mal aparelhados. Se e verdade queja possuimos regular c6pia de documentos oficiais publicados,

eles 0 foram apenas em poucas circunscricoes do pais: Rio deJaneiro, Sao Paulo; muito menos em Minas Gerais, na Bahia,Pernambuco; quase nada nas outras. E dado 0 sistema assimetricoda adrninistracao colonial, ficamos, mesmo com 0 conhecimento

daquelas fontes, numa grande incerteza do resto, e portanto doconjunto.

Por todas estas razoes, devemos abordar a analise da adrni-

nistracao colonial com 0 espirito preparado para toda sorte deIncongruencias. E sobretudo, nao procurar nela esta ordem eharmonia arquitetonica das instituicoes que observamos na admi-nistracao moderna, eque em VaG se tentara projetar num passadoca6tico por natureza. De urn modo geral, pode-se : afirmar quea adrninistracao portuguesa estendeu ao Brasil sua organizacaoe seu sistema, e nao criou nada de original para a colonia. As"donatarias" 0 foram; mas os donatarios desapareceram cedo,

substituidos pelos governadores e capitaes-generais. As Iuncoesdestes ainda guardarao um cunho proprio e caracteristico, ine-

xistente em Portugal. Mas elas confirmam, menos que invalidarn,a observacao da falta de originalidade da metr6pole no organizaradministrativamente a colonia, a incapacidade por ela demons-

trada em criar 6rgaos diferentes e adaptados a condicoes peculiaresque nao se encontravam no Reino. 0 "gove:Tlador" e uma figurahibrida, em que se reuniram as funcoes do "Covernador dasarmas" das provincias metropolitanas, urn pouco das de outros

6rgaos, como do "Covernador da Justi<;a", do proprio rei. Contudo,

nunca se caracterizou nitidamente, e sua cornpctencia e jurisdicaovariaram sempre com 0 tempo, de um governador para outro,de uma para outra capitania, varia ram sobrctudo em funcao da

personalidade, carater e tendencias dos individuos revestidos docargo. E como 0 unico modelo mais aproximado que se tinha

Formarao do Brasil Contemporaneo 301

 

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dele no Reino era 0 do citado govemador das ([rWIS, ele s(~mprc

foi, acima de tudo, militar, com prejuizo consideravel para 0 bomfuncionamento da administracao colonial.

Afora isto, as inovacoes sao insignificantes e nao alteram 0

sistema e carater da administracao que sera na colonia urn simileperfeito da do Reino. 0 que se enoontrara de diferente se deveramais as condicoes particulares, tao profundamente divers as dasda metr6pole, a que tal organizacao administrativa teve de seajustar; ajustamento que se processara de "faro", e nao regulado

por normas legais; espontaneo e forcado pelas circunstancias:ditado quase sempre pelo arbitrio das autoridades coloniais.Originalidade deliberada, compreensao das diferencas e capaci-dade para concretiza-la em normas adaptadas as necessidadcspeculiares da colonia, isto a metr6pole raramente fez, e nuncade uma forma sistematica e geral. J! s6 no regime fiscal, quandose tratava de tributos e a melhor forma de arrecada-Ios, que aadministracao portuguesa procurava sair urn pouco da sua rotina.Mas ainda ai, que [alta de imaginacao! A hist6ria acidentada dacobranca dos quintos esta ai para comprova-lo. Mas a parteisto, praticamente todas as instituicoes que vamos encontrar noBrasil nao sao mais que repeticao pura e simples das similaresmetropolitanas. Nos melhores casos, nos de maior originalidade,

nao passam de plagios ou arremedos muito mal disfarcados.Poderiamos multiplicar os exemplos neste sentido: seria aliasmais Iacil e sumario enumerar as criacoes propriamente origi-

nais(2). Mas para nao alongar demasiado 0 assunto, lembremosaqui apenas 0 caso rna is flagrante, e de todos talvez' 0 de efeitosmais nefastos daquela norma de copiar servilmente aqui sistemasdo Reino. Foi 0 de centralizar 0 poder e concentrar as autoridades;reuni-las todas nas capitais e sedes, deixando 0 resto do territ6riopraticamente desgovemado e a centenas de Ieguas muitas vezes

da autoridade rna is pr6xima. N aturalmente a extensao do pais, adispersao do povoamento, a deficiencia de recursos tomavamdificil a solucso do problema de fazer chegar a administracao,numa forma eficiente, a todos os recantos de tao vasto territ6rio.

Mas em vez de obviar aqueles inconvenientes com uma dispersiiomaxima de agentes, a administracao metropolitana, repetindo fiel-mente 0 qu~ se praticava no minuscule Heino, deixava-as todas,ou a maior parte delas, nos centros principais onde sua acao se

(2) Foi somente a administracao de Pombal que procurou criar na

colonia alguma coisa de novo. Sua intencao em todo caso era esta. Se fra-

cassou na maior parte dos casos, e que nao contava com outra coisa que a

rotina e incapacidade da burocracia portuguesa, contra a qual nada pede

fazer,

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tornava quase inuti] pela distancia em que ficavam de seus admi-nistrados. Veja-se por cxemplo 0 que se da com as Bclacoes doHio de Janeiro e cia Bahia, que contava cada qual para rna is de30 pessoas, entre desernbargadores e funcionarios, todos larga-mente remunerados, enquanto na maior parte da colonia a adrni-nistracao e [ustica nao tinham autoridade alguma presente ouacessivel, ou entao se entregavam, nos melhores casos, it incom-

petencia e ignorancia de leigos como eram os juizes ordinaries,simples cidadaos escolhidos par eleieao popular e que serviam

gratuitamente. Coisa semelhante se repete na divisao territorialadministrativa. J! nas vilas, sedes dos termos e das comarcas, que

se concentram as autoridades: ouvidores, [uizes, camaras e asdemais. Era este 0 modelo do Reino, e ninguem pen sou em modi-

fica-lo. Ou se tratava de uma vila, entao todas aquelas autoridades

deviam estar presentes, ou nao era vila, e nao tinha nada. Assistimospor isso aos dois extremos igualmente absurdos e altamente pre-judiciais: vilas com termos imensos, de territ6rio inacessivel, na

sua maior parte, aos agentes da administracao con c entrad os nasede, e vilas apenas nominais, em que nem havia gente suficientee capaz para preencher 0 numero, elevado demais para elas, de

cargos publicos] 3). Entre estes extremos nao havia meio termo,Obviou-se em parte ao mal de [urisdicoes em territories imensos

com a pratica das correicoes e oisitacoes, isto e, especie de excnr-sees administrativas em que as autoridades percorriam as suasjurisdicoes, mas isto que, dado aquele sistema de concentracaodeveria ser qualquer coisa de permanente, constituia aconteci-mento excepcional, e s6 as autoridades mais dirigentes 0 pratica-

yam com alguma assiduidade. Mas mesmo quando e este 0 caso,

~quelas excursaes. administrativas na~ tinha~ a.maior parte da uti-hdade qu~ podenam ter, dadas as circunstancias em que se reali-zavam; e IStO porque, sempre de acordo com as similares do Rei-

~o, .seu objetivo era mais de fiscalizacao, supervisao geral ou audi-en CIa de recursos; e na verdade muito menos havia que fiscalizar,superver ou tomar conhecimento de recursos, que agir e adrninis-trar efetiva e diretamente.

Mas deixemos estas criticas a administracao colonial, que re-servo para analisar em conjunto mais adiante, para nos ocuparmos

propriamente com a organizacao da colonia, 0Brasil nao constitui

para os efeitos da administracao metropolitana, uma unidade. 0que havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram varias

(3) Isto se verificou particularmente com relaeao as antigas aldeias

de indios, elevadas a vilas, pela lei de 6 de junho de 1755. Em poucas

delas a Camara e demais 6rgaos administrativos puderam se organizar efuncionar normalmente.

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colonias ou provincias, ate mesmo "paises", se dizia as vezes, que,sob 0 nome oficial de capiianias, se integravam no conjunto damonarquia portuguesa, e a constituiam de par ceria com as demais

partes dela: as provincias do Reino de Portugal e as do de Algarve,os estabelecimentos da Africa e do Oriente. A monarquia forma

urn complexo heterogeneo de reinos, estados, provincias europciase ultramarinas, capitanias e outras circunscricoes sem titulo certo,qualquer coisa de semelhante ao Imperio Britanico de nossos dias,o que hoje designamos por Brasil, reunia um grupo daquelas cir-cunscricoes; e s6 assim, para os efeitos da analise da administra-

«ao colonial, que 0 devemos entender. A nossa unidade, emboraexistisse na geografia e mesmo no consenso de todos, aparecia of i-cialmente apenas nos titulos honorificos do Vice-Rei do Brasil (queassim mesmo era correntemente mais conhecido por Vice-Rei doRio de Janeiro, onde tinha sua sede), e no do Principe do Brasil,

que traziam os J?rimogenitos da dinastia de Braganca e herdeirosda coroa. Tambem se encontra no chamado Estado do Brasil, que

reunia, mas s6 nominalmente, as capitanias meridionais, em opo-

si<;ao ao Estado do Para e Maranhao, que compreendia, tambems6 nominalmente em nossa epoca, estas capitanias e mais as subal-temas do Piau! e Sao Jose do Rio Negro. Mas estas designacoesja tinham perdido, fazia muito tempo, qualquer significa«ao pra-

tiea. A confusao entre estes dois pseudo-estados e mesmo tamanha,que no texto de uma lei importante como 0 alvara de 17 de agostode 1758 que aprovou 0 Diret6rio dos Indios, encontramos a dcsig-

naeao Estados do Brasil empregada nos dois sentidos: geral para 0

Brasil todo, e especial no sentido acima. De fato, restava aindacomo sinal da antiga divisao, no momenta que nos ocupa, unica-mente a [urisdicao da Casa de Suplicacao de Lisboa, que funcio-nava como tribunal de segunda instancia para as capitanias do

Estado do Para e Maranhao, cabendo tal [urisdicao, nas demaiscapitanias, as Relacoes da Bahia e do Rio de Janeiro. Tambern nadivisao eclesiastica, pois as dioceses do Para e do Maranhao cramsufraganeas do Arcebispado de Lisboa, e as outras, do Primaz daBahia.

Para a administracao geral das capitanias (bem como de todasas demais possess6es portuguesas da Africa e Oriente) havia 0

Conselho Ultramarino, que se subordinava a um dos quatro Secre-

tarios de Estado do Governo (Secretario de Estado dos Neg6ciosda Marinha e Dominies Ultramarinos). Pelo Conselho transita vamtodos os neg6cios da colonia, salvo unicamente os da competenciada Mesa de Consciencia e Ordens, outro departamento da admi-

n.istra«ao portuguesa, e que se ocupava com os ~ssuntos eclesias-tlCOS, bens de defuntos e ausentes, e com os negocios das Ordens

Militares (as de Cristo, Avis e S. Tiago); estas ordens estavam

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organizadas no Brasil, embora seu papel fosse aqui praticarnentenulo( 4).

_As funcoes do Conselho nao se limitavam a umasimples di-recao gera!. Entrava no conhecimento de todos os assuntos colo-

niais, por menos. im~ort;antes que fossem, e cabia-lhe resolve-los nao:s6 em segunda instancia, mas quase sempre diretamente. Os dele-gados regios, por mais elevada que fosse sua categoria, nao da-

yam um passo se~ sua ordem ou consentimento expresso. A ex-tens.a e pormen\onzada correspondencia dos govemadores, as mi-nuciosas .ordens e cart as regias que de hi se expediam, mostram a

que particulares e .?et~lhes ,mi?imos desciam as providencias dire-t~s da me~r?pole. A l~gerencla da metr6pole nos minimos neg6-CIOScolonials, escrever~ J .. F . Lisboa, to cava a extremos quase fa-bulosos. Empregados semi-subalternos iam pres tar suas contas acorte; na corte deviam justificar-se todas as dividas de ausentesexcedentes a uma alcada infima; cornecadas na Bahia na corte eque iam concluir-se as arrematacoes de certas rendas. Era da

corte fina!men~e q~e se expediam licencas para advogar, pass a-P?rtes, baixas, isencoes de recrutamento e divers as outras providen-ciassobre foguetes, marca e qualidade das madeiras das caixas deacucar, e custa a cre-lo, ate sobre as saias, adornos, excurs6es no-

tu.mas e lascivia das ~scravas" (5). De tudo se queria saber emLisboa, e por tudo se mteressava 0 Conselho. Pelo menos teorica-

mente, pois na realidade, a impossibilidade material de atender atamanho acumulo de service nao s6 atrasava ccnsideravelmente 0

expediente, de dezenas de anos as vezes, mas deixava grande nu-

me.ro de casos a dormir 0 so no da etemidade nas gavetas dos ar-qUlVOS.

. .As capitanias que formavam 0Brasil sao de duas ordens: prin-CIP~lS e subaltemas. ~stas sao mais ou menos sujeitas aquelas,muito, como as do RIO Grande do SuI e Santa Catarina ao Riode Janeiro, ou a do Rio Negro ao Para; pouco, como a do Cearae outras subaltemas de Pernambuco. Mas em conjunto e de uma

forma geral, os poderes dos govemos sao os mesmos em ambas as

, ~4). . !inham-se tornado com 0 tempo puramente honor if icas, e seus"habitos , isto e , 0 ti tulo de par ticipacao, eram franca e abertamente ven-

didos. Assim 0 p~i do Visconde Nogueira da Gama, futuro mordorno do

In;'perador, adqumu 0 titulo para 0 seu filho, que contava en tao apenasseis anos (1806), por 10.000 cruzados. Elogio historico do Visconde., em

sessao do Instituto Hist6rico e~ 1887. - Na Gazeta ,do Rio de 25 de julho

de 1810 encontra-se 0 amincio da venda de urn Habito de Cristo.

(5) Obras, II 75. vol. I das Publicacoes do Arquivo Nacional, se

encontrara. 0 Catdlogo das cartas regias, provisoes, alvaras, avisos, portarias,etc. expedidas ao governador e mais tarde Vice-Rei do Rio de Janeiro de

1662 a 1821. Vale a pena passar por ele os olhos para ver os assunto~ deque se ocupava a adminlstracao em Lisboa.

Forma~iio do Brasil Contempordneo 305

 

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categorias provinciais. S6 0 t itulo do govemador diteria: ca~ita~--general e governador, nas principais, capittio-mor ~e capitania

(nao confundir com capitao-mor de ordenancas ), o~ slmplesme~lt('

governador, nas demais. Ocapitao-.gene.ral do ,RIO de. Janerro,aepois de 1763 (dantes era 0 'da Bahia) tmha 0 titulo .alt~ss.onan!e

mais oco de Vice-Rei do Brasil. Seus poderes, em prmclplo, nao

eram maiores que os de seus colegas de outras capitanias, e nao

se estendiam, alem da sua [urisdicao terri torial de simples capitao-

-general ( 6). .

. A capitania forma po is a maior unidade administrativa da

colonia. Divide-se seu territ6rio em eomarcas, sempre em pequeno

numerot I).A comarca compoe-se de iermos, com s~~e nas vilas

ou cidades respectivas (8). Os termos, por sua vez dlvl,de~-se em

freguesias, eircunscricao eclesiast ica que forma a paroqUl~, .sede

de uma igreja paroquial, e que ~ervi~ tambem 'p~ra a admm~stra-

93.0 civil . Finalmente as £reguesH~s.amd~ s~ dividem em bairtos,eircunscricao mais imprecisa, e ,euJo principal papel aparece na

organizacao das ordenan(:as, eomoveremos abaixo.

Passemos sumariamente em revista as autoridades e hierar-

quia administra!iva destas varias .circl:l~scri<;?:s. Na capitani~:. 0

chefe supremo e 0 govemador (vice-rei, _capI~ao-~~neral, ~ap~tao-

-mor, govemador simplesmente). A .sua. fun<;a~, ]a 0 notei, : .es-

sencialmente militar. Nao que ele .seja necessanamente urn militarde profissao, 0 que alias nao e comurn. Mas ~ 0 c;omandante supre-

mo de todas as forcas armadas ·de suacapltama, bern como das

subaltemas. E nao apenas nominal ou para certas ocasioes, mas

(6) Numa controversia entre 0 Vice-Rei do Rio de Janei .ro.e 0 Capi-

tao-General de Sao Paulo, Bernardo Jose de Lorena, sobre 0 limite das ca-

pitanias respectivas, em que alias 0 segundo a~abou vencendo, ambo,s apa:

recem no mesmo plano. Veja-se como se rerere ao assunto 0 Vlce-l)-el

interessado no seu Of icw de 1789 ao entregar 0 governo ao .sucessor, J?ag.38. Ha uma certa [urisdicao do Vice-Rei do Rio de Janeiro em Minas

Gerais embora fosse esta capitania principal.(7) Minas Gerais, 4; Bahia, 4 (uma delas Sergipe);. ~ao Paulo. 3

(com Pararul., que formava a comarca de Paranaeud e Cuntlba; em 1811

criou-se mais a comarca de Itu ); Pernambuco, 3 ('Alagoas era uma debs).

Colas, 2 (depots da divisao de 1809.) - As demais capitanias s6 tinham

uma comarca. .(8) 0 t itulo de cidade era puramente honorifico, e nao tr~zia pr ivi-

Iegio algum. Havia as seguintes cidades nos primeiros. anos do seculo. pas-

sado: Sao Paulo, Mariana, Rio de Janeiro, Cabo Fno, Salvador, Olinda,

Paraiba, Natal, Sao Luis do Maranhao, e Belem do Para. As c,idades sedcs

de bispado se chamavam episcopais (Bahia, arquiepiscopal), _Ma!lana,embora

cidade episcopal, nao era nem sede de comarca, e pertencla a comarca ~eVila Rica (Ouro Preto). Cabo Frio era cidade porque desde sua fundac;ao

adotou este titulo, nao se sabe' bern por que. As demais sao de criacao

expressa, e se originam de antigas vilas.

306 Caio Prado /UniOl'

efetivo e permanente: trata de todos os neg6cios mili tares pessoal-

mente, c nao existc na capitania outra patente que se ocupe deles

em conjunto: os varies comandantes sao todos seus subordinados,

tern funcoes restritas a seus corpos ou comiss6es respectivas (9).

Nesta qualidade de militar, 0 governador e grandemente absorvido

pelas suas Juncoes, a que deve dedicar 0 melhor das suas aten-

<;oes.Sobretudo quando e 0 caso de capitanias onde os assuntos

dcsta natureza sao prementes, como e 0 caso do Rio de Janeiro,

cuias subalternas de Santa Catarina e Rio Grande do SuI se acha-

vam nas fronteiras dc vizinhos com que viviamos em dificuldades

e atritos. 0 carater essencialmente militar das Iuncoes do gover-

nador aparece entao claramente, basta observar 0 lugar de desta-

que e 0 espa<;o que os assuntos desta natureza ocupam na corres-

pondencia enos relat6rios dos vice-reis do Rio de Janeiro: sobra-

-lhes pouco para tratar de outras materias (10).

Mas embora participe deste carater militar, 0 governador ea cabeca de toda administracao em geral. Nao entrarei no porme-

nor da sua cornpetencia, enumerando suas atribuicoes, porque egeral e ampla, em todos os setores, com relativamente poucas ex-

cecoes e restricoes (11). Com isto, nao e de admirar que seja

levado aquele poder absoluto que tern sido a maior critica feita itadrninistracao colonial, sobretudo pelos historiadores do seculo

passado, tao pr6ximos ainda do tempo em que sua figura temida

se projetava sobre 0 pais. Crit ica muitas vezes exagerada, porque

aquela figura de regulete com que se apresenta, e aparecia efeti-

vamente aos contemporaneos, encobre na realidade fraquezas que

s6 hoje, passadas as paixoes do momento e devassados os segredos

dos arquivos, podemos avaliar com mais seguran<;a. Em primeiro

lugar, acima do govemador, vigilante, ativo c estorvante, la se

encontrava 0 governo central da metr6pole. Vimos ate que ponto

ele levava sua ingerencia na vida da colonia; 0 governador ficava

por isso, em regra, adstrito a normas muito precis as e rigorosas,

( 9) A pretensfio de alguns comandantes em se sobreporem nos neg6-

cios militares IIautoridade do governador, ou agirem paralelamente, nao era

regular; ocorreu sem duvida, mas, quando encontrava pela frente urn gover-

nador energico e consciente de suas funcoes, restabelecia-se 100 a verda-

deira hierarquia. Veja-se a respeito 0 que refere 0 Marques do Lavradio

no seu Relat6rw, 413. As vezes, I I sua qualidade de comandante-chefe, 0

govern~dor alia ainda a de comandante nato de alguma unidade, como do

1.0 reglmento ou terco auxiliar na Bahia e outras capitanlas.

(10) 0 Cons. Veloso de Oliveira, escrevendo em 1822 sobre a ne-

cessidade da reforma da administraeao brasileira, critica sobretudo 0 caratcr

militar da administracao colonial. Mem6ria sobre 0 melhoramento da capi-tania de Siio Paulo, 103.

(11) Para uma ideia rnais concreta, veja-se a enumeraeao dos poderes

e das limitacoes em Pereira da Si lva, Eundaciio do Imperio Brasileiro, I, 173.

Forma9iio do Brasil Contemportineo 307

 

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tracadas com mmucias ate extravagantes, e na feitura das qna!s

era previamente ponco se nao nada ouvido. Se en.contramos h?]c

ordens em abundancia, poucas sao as consultas vmdas do Heino

(12) .AMm disso, devia 0 governador prestar contas ~ormeno-

rizadas cia sua gestae, sobretudo a, s~u termo, qt;a~do. ate _se ~us-

pendia 0 pagamento do soldo do ultimo ana ate hqm?ac;ao fm~l

e aprovacao daquelas contas. E 0 govern? metrol?~htano abna

largamente os ouvidos a toda sorte de queI_Xase cnt~c~s que lhe

chegassem, fosse qual fosse sua origem. Se ISto beneficiava I?ou~o

a populacao, e que s6 0 interessavam realmente assuntos fiscais,

rendimentos, fraudes, contrabandos ...

Ha ainda a considerar as demais autoridades da colonia, que

embora de categoria inferior, funcionavam como contrapesos mui-

to sensiveis a autoridade do governador. Isto se deve em grande

parte ao curioso sistema de hierar~uia que domina eIl_1~uitos

setores. Aquelas autoridades, em muitos casos, e dos mars lmpor-

tantes nao formam propriamente degraus inferiores da escala

adrninistrativa, no sentido que hoje damos a esta nocao; nao se

subordinam inteiramente a autoridade superior do governador

como simples cumpridores de ordens. Assim nas Belacoes, que sao

6rgaos [udiciarios e administrativos ao mesmo te~po, 0 gover-

nador e um simples participante, embora na quahdade nata de

presidente; e os demais membros nao 'Sao seus subordinados. _0mesmo se repete nos orgaos fazendarios, as Juntas de Arrecadacao.

Tambem 0 fato de constitulrem estes e outros 6rgaos da admi-

nistracao entidades coletivas, organizadas em forma colegial, nao

e fator menos ponderavel na limitacao do poder do governador.

Nao e preciso insistir sobre a impessoalidade e dimi~uic;ao de res-

ponsabilidade individual que resulta. de um tal sistema, e que

atuam como os outros tantos fatores de autonomia e independencia

de seus membros. E sendo 0 caso, nada se presta melhor a obstru-

c;aoda march a dos neg6cios. Avalie-se como atravessaria amorteci-

da a acao do govemador, transitando por uma coletividade hostil

ou pouco tolerante para com ele, 0 que muitas vezes se deu.

Finalmente ha alguns 6rgaos e neg6cios importantes da admi-

nistracao colonial em que nao existe interferencia alguma do go-

vemador; pelo menos legal. Assim n_asIntendenci~ d? aura. e d~sdiamanies, e nas Mesas de Inspeciio, de que alias l a falei mars

acima. Todas estas limitacoes da autoridade do governador sao

(12) Percebe-se muito bern 0 sistema na correspondencia dos gover-

nadores.· A regra e eles exporem os objetos da administracao e pedirem

instrucoes. Sugestoes muito humildes e reticentes, muito menos conselhos,

encontram-se ~penas nos governadores de maior envergadura e persona-

lidade.

308 Caio Prado Junio,

conseqiiencia do sistema geral da administracao portuguesa: res-

tricao de poderes, estreito controle, fiscalizacao opressiva das ati-

vidades funcionais. Sistema que nao e ditado por um espirito su-

perior de ordem e metodo, mas reflexo da atividade de deseonfian-

c;a generalizada que 0 governo central assume com relacao a todos

seus agentes, com presuncao muito mal disfarcada de desleixo,

incapacidade, desonestidade mesmo em todos eles. A confianca

com outorga de autonomia, contrabalancadas embora por uma res-

ponsabilidade efetiva, e coisa que nao penetrou nunca nos pro-

cessos da administracao portuguesa.

Ainda ha uma circunstancia, de ordem mais geral, que apara

muito as asas governamentais do Brasil-colonia: e 0 espirito de

indisciplina que reina por toda parte e em todos os setores. Fruto

de condicoes geograficas e da forma com que se constituiu 0 pais:

imensidade do territ6rio, dispersao da populacao, constituicao cao-

tica e heterogenea dela, falta de sedimentacao social, de educacao

e preparo para um regime policiado. Sao fatores profundos e ge-

rais que me reservo para rever em conjunto noutro capitulo. Mas

a sua conseqiiencia mais flagrante, e que se reflete diretamente

no terreno da administracao, e a do solapamento da autoridade

publica, a dissolucao de seus poderes que se anulam muitas vezes

diante de uma desobediencia e indisciplina sistematicas.

Mas com tudo isto, nao quero subestimar 0 poder e a autori-dade dos governadores, nem mesmo reduzir-Ihes a expressao na

vida administrativa da colonia. Nao somente suas atribuicoes sao

consideraveis - nenhuma outra autoridade da colonia se lhes em-

parelha, e nenhuma dispoe como ele do conjunto das forcas anna-

das, - como ainda 0 simples fato de representarem e encarnarem,

a pessoa do rei, e terem a faculdade de se manifestar como se fos-

sem 0 pr6prio monarca, e circunstancia que basta, no sistema

politico da monarquia absoluta de Portugal, para dar a medida

do papel de relevo que ocupam( 13). Acresce ainda a grande dis-

tan cia em que se acha a metr6pole e a morosidade com que se

(13) Nas cerirndnias publicas e homenagens ao trono, como porocasi1iode acontecimentos notaveis na dinastia reinante - nascimentos, casa-

mentos, aniversarios, etc. -, 0 governador recebia 0 beija-mao como se

fora 0 proprio rei (Atas da Cdmara de Siio Paulo, XX, 210). Em muitos

casos, 0 governador edi tava ordens falando diretamcnte em nome do sobe-

rano, c encabecando-as com a formula de praxe: D.-, Rei ou Rainha, etc.

(Registro da Cdmara de Siio Paulo, XII 588). - Observo que nestas como

em outras citacfies da Atas da Cdmara de S ilo Paulo (Act.) e Registro da

mesma (Reg.) trata-se, salvo declaracao expressa em contrar io, de casos

que recorrem constantemente na fonte citada; refiro urn ou outro apenas,

para nao alongar a citacao, procurando selecionar os mais tipicos e refe-

centes ao memento que nos interessa em part icular.

Formacao do Brasil Contemporaneo 309

 

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man~festa sua ac;ao(I~) .. Sobra assim boa margem para a auto-norrua e mesmo 0 arbitrio dos govern adores, se nao do abuso. Enao faltaram capitaes-generais deste naipe (15). Mas tarnbem, pe-los relat6rios e correspondencia que possuimos, sabemos das difi-culdades com que Iutavam mesmo os mais energicos, e os obsta-culos encontrados a cad a passo para se fazerem obedecer e reali-

zareI?, as provide~cias do seu gO,verno. Entre outros, 0 longo eadmiravel Relat6no que 0 Marques do Lavradio, urn dos maiores

administrad?res que 0 Brasil colonial teve, apres~ntou ao seu su-

cessor depots de dez anos do governo (1769-19), e urn documentoa este respeito dos mais convincentes.

Passemos aos demais 6rgaos da administracao. Podemos agru-pa-los em tres setores: militar, geral, Iazendario. Alern destes,alguns outros de natureza especial que analisarei em ultimo lugar.As foreas armadas das capitanias compunharn-se da tropa de linha,

das milicias e dos corpas de ordenancas. A primeira representa atropa regular e pro fissional, permanentemente sob as armas. Eraquase sempre composta de regimentos portugueses que conserva-yam mesmo seu nome do lugar onde tinham sido Iormados, comoos de Braganca e Moura, estacionados em fins do seculo no Rio de

Janeiro, e 0 de Estremoz, em Santa Catarina, Parati e Angra dosReis ( 16). Para completar os efetivos que vinham do Reino, pro-

cedia-se ao engajamento para a tropa na pr6pria colonia. Em prin-cipio, s6 brancos deviam ser alistados, norma impossivel de seguiraqui, dado 0 carater da populacao. Ravia por is so grande tole-rancia com relacao a cor, os pretos contudo, e os mulatos muitoescuros, eram excluidos (17). Para 0 alistamento concorriam, alemdos voluntaries, que eram poucos, os Iorcados a sen tar prac;a -criminosos, vadios e outros elementos incomodos de que as auto-ridades queriam livrar-se, Quando isto nao bastava, Iancava-se mao

do recrutamento,o recrutamento para as tropas constitui, durante a fase colo-

nial da hist6ria brasileira, como depois ainda no Imperio, 0 maiorespantalho da populacao, e a tradicao oral ainda conscrva emalguns lugares bern viva a Iembranca deste temor. E nao e para

(14) Calculava-se num minimo de quase dois anos 0 tempo necessario

para a solucao de qualquer neg6cio. Consulta do Cons. Ultramarino de

1732. Em principle de sec. XIX a situacao continuava a mesma, porque

nem se t inham aperfelcoado sensivelmente os meios de comunicacao, nem

a burocracia portuguesa se tornara mais expedita.(15) Como arnostra, no momenta que nos ocupa, veja-se 0 que Saint-

Hilaire observou pessoalmentc em suas viagens; em particular, Voyage auxprovinces de Rio de Janeiro, I, 356.

(16) Alnwnaques do Rio de Janeiro.( 17) Nas instrucoes para 0 recrutamento no Rio, de 16 de agosto de

1816, incluem-se os "pardos cuja cor seja mui fusca,"

310 Gaio Prado JUnior

menos. Nao havia criterio quase nenhum para 0 recrutamento,nem organizacao regular dele. Tudo dependia das necessidadesdo momenta e do arbitrio das autoridades, Fazia-se geralmenteassim: fixadas as necessidades dos quadros, os agentes recruta-dores saiarn a cata das vitimas; nao havia hora ou lugar que lhesfosse defeso e entravarn pelas casas a dentro, Iorcando portas ejanelas, ate pelas escolas e aulas para arrancar delas os estudantes( 18 ) . Quem fosse en contra do e julgado em condicoes de tomar asarmas, era incontinenti, sem atencao a coisa alguma, arrebanhadoe leva do a~s postos. R.efere Vilhena que muitas vezes se espalha-

ram pela cidade (Bahia) os soldados de urn rezimento todo, que,em hor~ de antemao fixada, tinham ordem de deter quantas pes-soas estivessern ao seu alcance, com as unicas Iimitaeoes de serembrancas e nao militares. Todos os detidos eram conduzidos a ca-deia e aos corpos da gtIarda, e somente la se fazia a selecao doscapazes para 0 service militar. Ravia casos em. que de centenasde presos se apuravam apenas poucas dezenas de aptos. Ate ecle-siasticos sofriam destas violencias, 0 que nao e pouco num meioem que a batina merecia urn respeito geral e profundo(19).

. Explica-se ~ssim porque, ao menor sinal de recrutamento pr6-ximo, a populacao desertasse os lugares habitados indo refugiar-seno mato. 0mesmo Vilhena refete que na Bahia, logo que se co-mecavam a fazer recrutas, era infalivel a carestia dos g€merosde

primeira necessidade, porque os lavradores abandonavam as rocas,Em 1797, vemos em Sao Paulo despovoarem-se as regi6es de Ati-

baia e Nazare porq~e nelas s~ assinalara a presenc;a de agentesrec~tadores; e a Camara paulistana alarmada, pais era naquelas

reglOes que se abastecia a capital, pedia providencias ao governador

(Reg. X, 148). Exemplos entre mil outros da verdadeira convulsaoperi6dica que provo cava 0 recrutamento em todos os setores dacolonia.

As milicias sao tropas auxiliares: como as de linha, organi-

z~~-s_e em regr~, la pelos fins do seculo, em regimentos (em subs-tI!Ulc;aOaos antigos tercos], e se recrutam por service obrigat6rio e

na.o . r~munera,do, na populac;ao da colonia. Eram comandadas por

00clals tan:bem e~c~lhldos n~ pop~la9ao civil, e que igualmentenao se podmm exirmr ao servico nao remunerado que prestavam;

e ta.mbem .por a!gumas patentes regulares destacadas para as or-gamzar e instruir. 0 enquadramento das milicias se Iazia numa

bas~ territorial (freguesias), bern como e, sobretudo, pelas catc-gonas da populacao, Nao hi, a este respeito, muita uniformidade

(18) Vilhena, Becopilacao, 287. Vilhena era professor regio, e assis-tiu a muitas destas cenas.

(19) Vilhena, Becopilaciio, 256.

Forma,iio d o Brasil Gontemporanea 311

 

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entre as vanas capitanias. Na Bahia, por exemplo, eram as ~ili-cias conhecidas por tropes urbanas, compunham-se dos segumtesrezimentos: dos Uteis, formado pelos comerciantes e seus caixeiros;deblnfantaria, em que entravam os artifices , vendeiros , taberneirose outros, mas todos brancos; 0 de Henrique Dias, compos to depretos forros(20); finalmente 0 Quarto Regto. Auxiliar de Arti-[haria, formado de pardos e mulatos. Ravia ainda algumas com-

panhias indep~ndentes C?~l miss6es especiais: uma de familiares,

duas companhias de capiiiies de assalio, formadas de pretos e de-

signadas para, em tempo de_guerra, explo~ar a campa~ha, _trans-

mitir ordens e mensa (Tens (sao as companhias de. comumcacoes dehoje); e em tempo debpaz, dar caca aos escravos e criminosos for~-

gidos. Estes ultimos corpos, que tam bern se enco~t:am nas demais

capitanias, sao os d~ :,ulganne~te chamad?s capltaes-d~-rru.:.to, detao tenebrosa memona. No R IO de [aneiro, a orgamzacao das

milicias difere bastante: sell quadro ainda e 0 terco, antiga unidadeportuguesa substituida na segunda metade do sec. XVIII pelos

regimentos, de inspiracao francesa; e sao divididas em tres tercosque tom am 0 nome das freguesias em que se formavam; C?ande-

ldria, Sao Jose e Santa Rita, e mais um dos hom ens pardos hbertos

(21).

A ultima categoria das forcas armadas, a 3.a linha, para em-

pregar uma designacao atual, eramas ordenancas, forma~as P?r

todo 0 res to da populacao masculina entre 18 e 60 anos, nao alis-tad a ainda na tropa de linha ou nas milicias, e nao dispensada doservice militar por algum motivo especial; os eclesiasticos, porexemplo. Ao contra rio das milicias, as ordenancas constituem umaforca loca l, isto e, que nao podia ser afastada do lugar em que seformava e em que residiam seus efetivos. Nao havia recrutamento

para as ordenancas, mas s6 urn arrolamento, po i s toda a p~pulac;:aol

dentro dos limites fixados, considerava-se como automaticamenteengajada nelas. Limitava-se sua atividade militar a convocacoes

e exercicios peri6dicos, e, eventualmente, acorrer quando chama ..

das para services locais: comocao intestina, defesa, etc. A

A organizacao das ordenancas conservava em toda coloma, econservara ate sua extincao em pleno Imperio (1&'31) , os antigos

tercos divididos em companhias, Incluia-se em cad a terce, cujocomandante supremo e 0 capitao-mor, toda a populacao do termo

(20) Tarnbem chamado dos Henriques, designacao de muitos corpospretos da colonia e cuja t radicao vinha dos corpos de escravos libertosorganizados por Henriq uc Dias nas gl le rras holandesas,

(21) Para pormenores da organizacao militar, vejam-se, relativamente11Bahia as Cartas VI e VII da Becopilaciia de Vilhena; para 0 Rio deJaneiro,' em particular os Almanaques de 1792 e 1794, e 0 Relat6rio doMarques do Lavradio.

312 Caio Prado Junior

respectivo. As companhias, comandadas por urn capitao, urn te-nente e um sargento ou alferes, compunham-se de 250 hornens, ese dividiam em esquadras de 25 homens cada uma, comandadas

por urn cabo. Naturalmente estes efetivos sao os legais, havendona realidade muitas variacoes que a propria lei alias autorizavaatenta a s circunstancias (22). As patentes superiores das ordenan-cas conservavam tambem as antigas denominacoes: capiuio-mor,

que corresponde ao coronel na organizacao em regimento,e sar-gento-mor 0 major da organizacao regimental, ou antes, 0 te-nente-eoronel, pois nao havia nos tercos 0 "cornandante de bata-

lhao", unidade inexistente. AMm das suas funcoes militares, quesao, dada sua eonstituicao, necessariamente restritas, as ordenan-c;:as tern urn papel consideravel na administracao geral da colonia.);: 0 que veremos adiante, pois quero antes passar em revista 0

resto da organizacao administrat iva.

Vejamos, depois dos militares, os orgaos da administracao ge-ral e civil. Incluem-se at tanto funcoes propriamente administra-

tivas (em nossa terminologia modema), como de iustiga. Encon-tramos aqui urn caso concreto da observacao ja feita no inicio

deste capitulo: a confusao de poderes e. atribuicoes que hoje nos

parecem substancialmente distintos. Nao so se ocupam dos ne-

gocios de ambos os setores as mesmas autoridades, como nao hadiferenca substancial no seu modo de agir num e noutro terreno.Na aplicacao da lei nao se distinguia quando era caso de simples

ac;:ao administrativa dos agentes do poder, ou quando se trata-va do restabelecimento de direitos entre partes em litigio. Se qual-quer ato de uma autoridade, Fosse ela qual fosse, envolvesse of ensade direitos ou interesse (no funcionamento da administracao nao

se distinguia urn caso do outro), nao cabia ao of en d ido instauraruma ac;:ao, mas unicamente recorrer do ato a autoridade superiorcompetente. Quando nao se tratava de atos de autoridades, mas desimples particulares, cabia entao ao of en dido provo car a acao da-

quelas: estariamos entao no caso tipico da acao judiciaria em nos-

so processo atual. Mas percebe-seque entre as duas hip?teses n.aoha distincao substancial alguma, pelo menos no que diz respeito

ao funcionamento da administracao, que e 0 q~e mais nos inte-ressa aqui.

Nao posso evidentemente entrar no pormenor de urn ass unto

de excess iva especializacao, e que trouxe a baila unicamente para'que se faca uma ideia do sistema administrativo da colonia, bern

(22) As Ordenancas foram criadas em Portugal por lei de dezembrode 1569, sendo regulumentudns pela de 10 de dczembro do auo segui:lte.

depois de algumas modilicacocs, foi a materia codificada no Regimentodas Ordenancas de 30 de abril de 1758, que inclui varias disposicoes espo-ciais refercntes ao Brasil.

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diverso do de nossos dias, e sem a qual nfio sc comprccmleria 0

assunto que estamos analisando. Nao nos deixemos pOl'isso ilu-dir, entre outros casos, com a designa~ao que trazem os cargosadministrativos da colonia, e que se empregam ho]e numa acep-~ao diferente e mais restrita. Particularmente a de "juiz", 0 [uizcolonia l - seja 0 de fora, 0 ordinario, 0 almotace ou 0 vintenario

ou de v intena, - tern nao s6as funcoes dos nossos[uizesmodernos,julgando, dando sentenca, resolvendo litigios entre partes desavin-das, mas tambem os dos nossos simples agentes administrativos:executam medidas de administracao, providenciam a realizacao dedisposicoes legals. " E isto sem distinguir absolutamente, na pra-tica, a duplicidade (duplicidade para n6s), das funcoes que estaoexercendo. Compete-lhe de um modo geral executar a.lei e as obri-ga~oes do sell cargo: que esta execucao ou acao seja espontanea,provocada por seus jurisdicionados ou simples ato deles, desavin-dos entre si ou nao, a diferenca nao importa: eles agirao sempreda mesma forma.

Para se apanhar melhor 0 sistema geral da administracao co-lonial, comecemos pelos 6rgaos inferiores, pois os superiores naofuncionam, por via de regra, senao CO~10nstanclas de recursos.

o mais importante e 0 Senado da Cdmara(23) que tem sua sedenas vilas ou cidades, e estende sua jurisdicao sobre 0 termo res-pectivo. Ha de se estranhar que falando da administracao geraldas oapitanias, comece pelas Camaras, que sao orgaos tipicos daadministracao local. Mas aqui, mais uma vez, devernospor de ladonossas concepcoes atuais. No sistema administrative da colonia,ja 0 assinalei, nao existem administracoes distintas e paralelas, ca-da uma com esfera propria de atribuicoes: uma geraf, outra local.A administracao e uma s6 e ver-se-a, pelo desenvolvimento doassunto, que competem as Camaras atribuicoes que segundo nossaclassificacao modernasao tanto de ordem gera! como local. Elasfuncionam efetivamente como 6rgaos inferiores da adrninistracaogeral das capitanias.

Comnoe-se 0 Senado da Camara de um [uiz presidente, quepode serletrado, diriamos hoje "togado", de nomeacao regia, e e

entao 0 chamado juiz-de-fora; mais frequentemente e um cidadaoleigo, eleito comoos demais membros da Camara: sera 0 i ui z o rd i-. drio. Os [uizes ordinaries eram sempre dois, exercendo alterna-damente suas funcoes em cada mes do ano para 0 qual tinhamsido eleitos. Ao contraries dos [uizes-de-fora, serviam sem remu-neracao, como os demais membros da Camara. Estes outros mem-

(23) "Senado" e titulo honorifico e especial que as C&mara da co-lonia se arrogaram abusivamente, 56 em raros casos 0 t itulo sera conf lr -m.ido Ilg,\l:r'~;'tc.

314 Caio Pmdo Junior

bros sao os ojiciais: tres oereadotes e um procurador. As eleic;oes

sao popuhres, isto e, vota 0 povo; ou antes, 0 povo qualificado, oshomens bons, na expressao das leis. Sao as pessoas gradas do ter-mo e da vila, que figuram em listas especialmente feitas para estefim: chamam-se tambem as vezes de republicanos(24). J a vimoscomoesta questao do dlrcito de voto, que inclui 0 de participar daCamara, tomou em certos lugares uma forma politica, pomo dedisc6rdia, ou antes arma de luta entre Iaccoes adversas: 'proprie-

tarios e nativos da colonia, de urn lado, comerciantes e reinois,do outro. Aseleicoes eram em principio indiretas (25). Os votantes

congregados na casa do Senado da Camara, indicavam pOl'maio-ria seus eleitores, que apartados em tres pares, organizavam, cadaqual a sua, tres listas triplices, isto e, contendo tres nomes dosque escolhem para os cargos da Camara. 0 presidente, que seriao ouvidor, e na sua falta, 0 juiz mais velho em exercicio, "con-certava" (conferia) as Iistas, e formava com os nomes mais votadostres r6is definitivos que se encerravam em bolas de cera, os pe-louros. Pela "primeira oitava de Natal" (8 de dezembro) de cada

ano, e com assistencia do povo, em "vereanca" especial, compa-recia um rnenino de sete anos, e metendo a mao por um cofreonde se guardavam os tres pelouros. tirava um, cuja lista servirano ana seguinte. Assim em tres anos consecutivos, depois do que,esgotados os pelouros e as listas, procedia-se a nova eleicao. Esta

forma de eleieao se chamava de pelouro; mas quando um dos as-sim eleitos, impedido por qualquer motivo, tinha de ser substituldo,procedia-se mais sumariamente, escolhendo entao a propria Ca-mara 0 substituto: chamava-se entao eleicao de barrete. Conformeocorresse urn ou outro caso, dizia-se do juiz, dos vereadores ou doprocurador, que eram "de pelouro" ou "de barrete", 0 juiz e 0

procurador, eleitos de uma ou outra forma, deviam ser confirma-dospelo ouvidor com as chamadas c ar ta s d e usanya. Osvereadores,pelo contrario, empossavam-seIogo que se iniciava seu mandato,sem outra formalidade que 0 juramento de bem servir 0 cargo.

(24) Vejam-se as.listas organizadas .por ocasiao da 'cna911o das vilasde Sao Carlos (Campinas) e Porto Feliz, em Sao Paulo, nos Docs. Lnte-ressantes, III, 3 e 32. Nas vilas em que havia [uiz-de-fora os oficiais daCamara nao eram eleitos, mas nomeados pelo poder central. Esta nao erauma regra absoluta, e nao esta .contida em nenhum texto legal, a nao serexcepdonalmente e sem carater geral (como no Regimento da Relacao doRio de Janeiro de 13 de out. de 1751). Representa uma das mais impor-

tantes invas6es do Poder Real nas atrfbuieoes locals e municipais caracte-risticas no Portugal do sec. XVII.

- (25) Digo em principio porque e Isto que geralmeute se pratica: masna referenda acima feita nos Docs. Int., Figura 0 termo de eleicao da pri-meira Camara, e a elei~o foi ai direta.

F011OO!(i io do BrasiJ Contempordnco 315

 

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Ja vemos, em tudo isto, a intervencfio direta na Camara de auto-ridades estranhas a ela.

o povo, sempre na acepcao restrita que indiquei acima, naoparticipa das deliberacoes da Camara unicamente por ocasiaodas eleicoes, Quando se tratava de assunto de muita importanciae relevante interesse publico, tarnbem era convocado para, em

comum com 0 Senado, assentar medidas e tomar decis6es (Reg·XII, 99; e Act., XX, 179).

Organizado assim 0 Senado da Camara, e reunindo-se ordi-nariamente em "vereanea" ou "vereacao" duas vezes por semana,

nas quartas e sabados, vejamos do que se ocupava. Nos primeirostempos da colonia, sabe-se que muito grande fora 0 seu raio deacao. Algumas camaras, sobretudo as de Sao Luis do Maranhao,

do Rio de Janeiro, e tambem a de Sao Paulo, tomaram-se de fato,num certo momento, a principal autoridade das capitanias res-pectivas, sobrepondo-se aos pr6prios governadores, e cbegando atea destitui-Ios do seu posto(26). Mas no momenta que nos ocupa

isto ja passara fazia bern seculo e meio, vejamos pois 0 que faziamnaquele momento, e 0 que efetivamente representava sua funcao,nos termos da legislaeao em vigor, mas sobretudo na pratica daadministracao publica. Elas tinbam patrimcnio e financas pro-

prias, independentes do Real Erario, isto e, das capitanias res-pectivas a que pertenciam. 0 patrimonio compunha-se das terrasque lhes eram concedidas no ato da criacao da vila; constituiamestas terras 0 rossio, destinado para edificacoes e logradouros epara a formacao de pastos publicos(27)_ A Camara podia cederparte destas terras aos particulares ou afora-lasfZd). Constituiamainda 0 patrimonio municipal as ruas, pra~s, caminhos, pontes,chafarizes, etc.

As financas do Senado se formavam com os reditos que lhecompetia arrecadar: foros (renda dos chaos aforados) e tributosautorizados em lei geral ou especialmente concedidos pelo sobe-rano(29). Dois teroos da renda municipal pertenciam a Camara;o ultimo revertia para 0 Real Erario da capitania.

• (26 ) T . F. Lisboa anal isa em pormenor este grande poder passado dasCamara. Obras, II, 46. -

(27) Vejam-se os autos de erecao, ja ci tados, das vi las de Sao Carlos

e Porto Feliz, em Sao Paulo (Docs. Int., III, 3 e 32), e da vila de Mon-

temor-o-novo, no Para. (Autos de crla~iio ... )( 28 ) Esta materia sempre foi largarnente controvert ida para se fixar

ate 9ue p~nto iam os direitos da Camara de doar as terras do seu patri-momo. Veja-se sobre este assunto, entre outros, Lima Pereira, Da proprie-dade flO Brasil.

(29) Recaiam os tributos municipais nas reses entradas nos ac;ougues

-came. abatida, ~axa das balaneas e~ qu; ~e pesavam todos :os generos d~

prlmeira neeessidade, taxa do celeiro publico (mercado). Havia ainda as

316 Caw Prado Jun ior

AMmda questao do seu patrimonlo e das suas financas, cabiarna Camara varias nomeacoes: do ; ui z a lm o ta ee l a quem competiafiscalizar 0 comercio dos generos de primeira necessidade e zelarpela higiene e limpeza publicas, dos ;u£zes v interuir ios ou de vin-tena, com [urisdicao nas freguesias (havia urn vintenario para cadauma), e com iguais atribuicoes que os juizes-de-fora ou ordinaries,mas de aleada menor, alias muito pequena; alem destas autorida-

des, nomeava a Camara seus Iuncionarios intemos: e sc rio io , S £n -dico, etc.

Competia ainda a Camara editar posturas; processar e julgar

os crimes de injurias verbais, pequenos furtos e as infraeoes deseus editos, chamadas causas de a lm o ta ca ri a ( Or de na r; oe s, liv. Itit. 66 § 5 e tit. 65 § 25); resolver questoes entre partes litigantesque versassem sobre servidoes publicas - caminhos, aguas, etc.(R eg ., X II, 393); e terras do seu patrimenio, (Reg. XII 275).

Mas em tudo isto e sempre dificil precisar 0 que e da compe-tencia privativa da Camara. Em todos os seus negocios vemos a

intervencao de outras autoridades, sobrepondo-se a ela ou eorren-do-lhe parelhas. 0 ouvidor e corregedor da comarca intervem a

todo propcsito em quest6es de pura administracao municipal. :£assim que the cabe tomar as contas das Camaras, resolver sobre aforma de arrematacao dos reditos (R eg ., X II, 194); autorizar Im-posicoes (Reg., XII 477) e despesas (Reg., XII 199); consentir

em abatimentos nos seus credites (Reg. xn, 206); prover sobre aforma de alienacao das terras do patrimonio municipal (A ct., X X,4(6). Ate na constituicao das Camaras 0 ouvidor intervem: nao so,

como vimos, passando as cartas de usanya aos [uizes ordinaries eprocurador, sem0que nao podem exercer seus cargos, mas tambem

resolvendo sabre impedimentos e Iicenca dos seus membros, po-dendo ou nao, a pedido deles, dispensa-los (Reg. XII, II). Parti-

cipa ainda das "vereancas" em que se elegem as listas de candi-datos ao posto de capitao-mor das ordenancas, como veremos abai-xo, e prove alguns cargos municipais: v in te ru ir io (R eg ., X II, 4 10 ).

o govemador tambem se imiscui nos assuntos municipals. Ha

cargos que, embora de nomeaeao da Camara, e ele quem prove,como 0 de escrivao, mandando [uramenta-lo e dar-lhe posse (Act.,

XX , 264). Casos ate ocorrem em que 0 govemador prorroga 0

mandato do juiz ordinarlo e de todos os demais membros da Ca-mara alem do prazo para 0 qual foram eleitos, como se deu emSao Paulo em 1799,quando todos os novos eleitos pediram e con-

aferi<;;6esde pesos e medidas, 0 produto das multas por infrac;iio de pos-

turas municipals, e finalmente 0 aluguel das "casinhas" - em certos lugares,

como na Bahia, chamavam-se as "cabanas" -, onde erarn comerciados gll -

neros de primeira necessidade.

Forma~iio do Bf08il Contempordneo 311

 

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segulram isencao, estava-se para proceder a e le i< ;i io d e b a rr e te ,que como vimos era indicada nestes casos, quando interveio a de-cisao, a ordem do governador (Act., XX, 153). Ocupa-se 0 go-vernador de assuntos puramente locais, realizando obras publicas

e ordenando a Camara que colabore com ele; assim na construcaode bicas em Sao Paulo, em 1800 (Reg., XII, 601); estabelece pro-videncias sobre 0 comercio de generos de primcira necessidades(Reg., XII, 248), e medidas relativamente a administracao das"casinhas". (Reg., XII, 601).

Em compensact..i, vemos a Camara tratar de assuntos que

nada tern de local, como a norneacao dos fiscais da Intendencia doOuro. Em suma, nao se encontra na administracao colonial, re-pito, uma divisao marcada e nitida entre govemo geral e local.Acresce ainda para comprova-lo, que de todos os atos da Camaraha recurso para alguma autoridade superior: ouvidor, governador,Relacao, ate mesmo a corte. Doutro lado, as Camaras agem comoverdadeiros 6rgaos locais da administracao geral. E assim que 0

govemador se di.rige a elas, sob a forma de ordens, para a reali-zacao de providencias gerais do seu governo (Reg. XII, 248 e 25(3).A Camara funciona ai como simples departamento executivo, su-bordinado a autoridade do governador; e seu papel, neste terreno,tern grande amplitude, po i s 0 contacto direto que ela mantem corna populacao permite as autoridades superiores, rna is distantes e

nao dispondo de outros 6rgaos apropriados, executarem atravesdela suas decisoes, Ate para a publicacao de editais emanados dogovernador com determinacoes dirigidas ao povo, e a Camaraque incumbe faze- lo (Reg., XII, 483). As Juntas da Fazenda, porintermedio da Camara, tambem fazem afixar editais de prar;a doscontratos e oficios (Reg., XII, 589); e e por via del a que arreca-dam alguns tributos (Reg., XII, 508; e A ct., X X, 4Z7).

- Este carater de mero departamento administrativo, subordi-nado ao governo geral e nele entrosado mtimamente, aparece aindabern claro .na forma e termos com que se referem ao Senado daCamara os relat6r ios dos governadoi-es . Assim 0 Vice-Rei do Riode Janeiro, dando contas da sua adrninistracao, trata da Camaralocal e de seus neg6cios indiscriminadamente com os demais 6rgaos

da adminstraoao, e referindo-se as suas funcoes e atos como sefossem assunto do "seu" governo (Relat6rio do Marques do La-vradio, entre outros). Coisa semelhante faz Vilhena quando enu-mera e ana lisa 0 departamento da administracao publica da Bahia,em que nao da destaque algum ao Senado da C'trnara, tratandodele como dos demais 6rgaos e sob a epigrafe geral de "empregosde [ustica e Fazenda", (RecopilaQiio, Carta 10).

Assim, embora as Camaras tenham uma caracteristica espe-cial que se revela sobretudo no fa to de possuirem patrlrnonio e

318 Caio Prado }tInior

[;'lanr;as proprias, e estarern revestidas de uma quase person~l-lidade juridica, 0 que nao se encontra nos demais 6rgaos da admi-nistracao colonial, elas funcionam como verdadeiros departamentosdo governo geral, e entram normalmente na organizar;ao e hierar-quia administrativa dele. Mas dada aquela sua caracterfstica, eainda mais a forma popular com que se constituem e funcionam,

cste contacto intimo que man tern com govern adores e adminis-trados, as Camaras assumcm urn papel especial. "Cabeca do povo",designa-se a si 0 Senado de Sao Paulo numa representacao dirigi-da em 1798 ao bispo (Reg., XII, 291); e e por ele que transita a

maior parte das queixas e solicitacoes do povo (Reg., XI I 289).Sera esta a origem da forca com que contarao mais tarde as Ca-maras para agir efetivamente, como de fato agiram, e intervir,muitas vezes decisivamente, nos sucessos da const itucionalizacao,

independencia e fundacao do Imperio. Sera 0 unico 6rgao da adrni-nistracao que na derrocada geral das instituicoes coloniais, sobre-

vivera com todo seu poder, quir ;a ate engrandecido.

o juiz ordinario ou de fora, alem de suas funcoes ~mo me~-bro do Senado e seu presidente, tem uma esfera pr6pna que alemde [udiciaria, e igualmente administrativa. Reporto-me ao que aci-rna ja foi dito a tal respeito: alem de julgar e dar sentencas, is to e,resolver litigios entre partes desavindas, ele e urn agente da admi-nistracao e urn executor de suas providencias ( 30). Em ambos os

casos, reprcsenta uma instancia superior aos [uizes vintenarios,e inferior do ouvidor da comarca.

Este ultimo, que em regra acumula as funcoes de corregedor,- isto e, "fiscal" da administracao, - vem logo acima, na hierar-quia administrativa, dos 6rgaos que acabamos de ver. Cabe-lhejurisdir;iio nas comarcas e todos os term os respectivos. Nao e pre-ciso especificar suas atribuicoes, que sao as da administracao emgeral, embora em instancia superior aos 6rgaos ja analisados: Ca-mara e [uizes. J a vimos alias varies casos particulares de sua com-petencla] 31). Os ouvidores sao nomeados pelo soberano, e provi-dos por tres anos. Nas comarcas muito importantes, Bahia e Rio

de Janeiro, havia, alem do ouvidor do civel, urn do crime. Urn coutro faziam parte das Relacoes daqueJas cidades. Estes orgaos

colegia is tinham [urisdicao, respectivamente, sobre as capitaniassetentrionais (menos Para, Maranhao, Piau! e Rio Negro, que es-

(30) Falando de suns atribuicoes, assim se exprirne 0 Marques doLavradio: "procurar e promover 0adiantarnento e felicidade dos povos,assirn para 0 sossego em que os deve conservar, como para os animar noseu comercio e agricultura e nfio lhes consentir preguica e errados pre-juizos." Relat6l'io, 442.

(31) Pela Carta Regia de 22 de julho de 1766 0 Ouvidor exerciatarnbem a funcao de Intendente de Policia.

Formacao do Brasil COlltemporaneo 319

 

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tavam subordinados, como ja referi, a Cas a de Suplicacao de Lis-

ho~); ~ me~idionais: Espir~to Sant~ para 0 SuI, inclusive A as capi-tamas interiores. As Relacoes funcionavam sob a presidencia doGovemador (0 Vice-Rei no Rio de Janeiro), e contavam, alem dosouvidores referidos, com varies outros membros: agravistas, pro-

cura~?r, juiz .da. c?roa, etc., t~dos com 0 titulo de "desembarga-dores . As atribuicoes da Relacao, sempre a mesma observacao, saojudiciarias e administrativas; mas como funciona unicamente comotribunal de recursos e instancia superior , nao the cabendo nenhumaa9ao direta, 0 seu papel na administracao se reduz muito, e asse-melha-se mais aos modemos tribunais judiciarios (32).

Passemos aos 6rgaos fazendarios, Para gerir 0 Real Erarionas capitanias do Brasil (33), ar recadar tr ibutos e efetuar despesas ,ha uma serie de 6rgaos paralelos com funcoes mais ou menos espe-cializadas. Eles nao se subordinam uns aos outros, nem ao gover-,nador, no sentido em que hoje entendemos a hierarquia adminis-

trativa. It neste terreno que a falta de simetria e organiza9ao hierar-quica regular, que ja assinalei como urn dos traces caracteristicosdo govemo colonial, aparece de modo mais flagrante. 0 6rgaoprincipal da administracao fazendaria e a Junta da Fazenda( 34),

que tern forma colegial e e presidida pelo govemador. Cabem aJunta de uma forma geral as atribuicoes que seu nome indica;

mas as execucoes sao numerosas, particularmente nas capitaniasde maior importancia, e cabem na competencia de 6rgaos para-lelos: Junta de Arrecadaciio do Subsidio Voluntario( 35), tambem

pre~idida pe!o gover~ador; a Alfdndega: que arrecada os direitosde irnportacao; 0 Tribunal da Prooedoria da Eazenda, que e naos6 0 que hoje sao as procuradorias fiscais, mas exerce tambern

(32) Entre os recurs os administrativos de que torna conhecimento -e cito apenas urn caso entre muitos outros -, estao os relativos aos impe-dimentos para exercicio dos cargos do Senado da Camara, decididos. emprimeira instancia pelo ouvidor (Reg., XII , l l) .

(33) 0 Erario das capitanias nfio era distinto, como 0 das Camaras,

do da monarquia em geral. As capitanias nao tinham fazenda ou patrlmoniopr6prios, e eles se confundiam com os do rei.

(34) A designacao varia: Tribunal da Junta da Real Fazenda noRio de Janeiro; Junta da Real Fazenda, em Sao Paulo; Real Junt~ daArrecadacao da Real Fazenda, na Bahia; Junta de Arrecadaeao e Adrni-nistraeao da Real Fazenda, no Maranhao, etc.

(35) Este subsidio especial foi instituido em 1756, por dez anos,para custear a reedificacao de Lisboa destruida pelo terremoto; apesar doseu prazo limitado, e da reclamacao dos contribuintes, 0 subsidio se per-petuou, continuando a ser arrecadado ainda em pleno Imperio. E nomi-nalmente, sempre destinando-se a reconstrucao de Lisboa. 0 caso e dignode se registrar, como amostra das financas da colonia 6 do Imperio.

320 Caio Prado JUnior

outras funcoes fazendariasf Sd). Segue 0 [uizo da Conservat6ria

dos varies contratos: diziamos, azeite, sal; [uizo da Coroa e Exe-cucoes; [uizo do Fisco, das Despesas, etc. E todos esses 6rgaos,

como sempre, exercem cumulativamente funcoes que hoie dis-

tinguiriamos em [udiciarias e administrativas.

o principal tributo e 0 dizimo, que constitui urn antigo di-reito eclesiastico, cedido pela Igreja, nas conquistas portuguesas,a Ordem de Cristo, e que se 'confundiu mais tarde com os do rei,que se tomou, como se sabe, Grao-Mestre da Ordem. Como 0 nomeindica, 0 dizimo recaia sobre a decima parte de qualquer pro-ducao, Seguiam-se os direitos de alfandega; as passagens dos r iose registos (alfandegas secas); as entradas (em Minas Gerais);. imposieoes especiais sobre bestas que vinham do SuI e se cobra-yam em Sorocaba (Sao Paulo). Havia ainda os donativos, tercas

partes e novos direi tos, que se pagavam pelas serventias dos oficiosde [ustica (escrivaes, meirinhos, solicitadores, etc.); bern comoemolumentos de prooisoee e patentes (nomeacoes para cargos pu-blicos). Alem destes tributos ordinarios, ha 0 subsidio fiterario

criado em 1772 em todas as capitanias, bern como no Reino, paraatender as despesas com a instrucao publica; e os subsidios extra-

ordincf~ios: que se estabeleciam de vez. e~ quando pa~a .atender aemergencia do Estado (37). Estes dois ultimos SUbSldlOS cobra-varn-se com tmposfcoes especiais e varias sobre aguardente, gada

entrado nos a<;:ougues, outros generos de consumo, tambem capi-tacao dos escravos.

A arrecadacao dos tributos - e isto vai tanto para os do RealErario como das Camaras que referi acima, - se fazia em regrapor "contrato", isto e , entregava-se a particulares por urn certoprazo, geralmente tres anos, e por uma determinada soma globalque 0 contratador se obrigava a pagar ao Erario, em troca dostributos que arrecadaria por sua conta. Os "contratos" eram pos-

tos em hasta publica, e entregues a quem mais desse. Quando 0

Erario fazia a arrecadacao por sua conta - 0 que acontec ia rara-mente, pois ele nao estava aparelhado para isto, - dizia-se queele a "administrava", que 0 contra to estava sob "administracao",

Tal sistema de arrecadaeao constitui uma das mais maleficaspratic~s do govemo colonial. Justificava-se alias porque estava nosmetodos fiscais de todas as nacoes contemporaneas, e tinha atras

(36) Assim no Rio de Janeiro, a Provedoria expedia gulas para 0

pagamento de alguns tributos, como os de "passagem" para Minas Gerais.(37) Em principios do seculo passado, aehava-se em vigor, alem do

subsfdio para a reedtitcacso de Lisboa, acima referido, 0 estabelecimentopela Carta Regia de 6 de abril de 1804 em virtude da "aflitiva situacaodo Reino em conseqiiencia da perturbaeao da Europa."

Eormaciio do Brasil Contempordneo 321,

 

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de si uma tradiefio de seculcs que vinha desde 0 Imperio Romano.

Mas esta respeitavel vetustez do sistema nao era consolo para a

populacao colonial, quc muito sofreu dele. Os avidos _cOl:trata-

dores, sem outra consideracao que 0 neg6cio em vista, nao tinham

contemplacao nem tolerancia, 0 poder publico, que tern, ou deve

ter errr mira circunstancias c interesses que nao 0 de, simples arre-

cadador de rendas, nao e 0 particular cujo unico objetivo e cobrir-

-se, do que pagou pelo contra to, e ainda 'embols.ar ~m lucr~ apr_e-

chive! ' E as \verdadeiras extors6es que 0 contnbumte sofna nao

eram nem ao menos compensadas pOl'vantagem apreciavel alguma

para 0 Erario; pois se 0 processo simplificava a cobranca, doutro

lado nao era pouco freqiiente 0 caso de contratadores insolvaveis,

incapazes de pagar 0 pr-e~o do contrato. Isto porque, no afa de

arrebata-los, pois constituiam em prindpio urn dos melhores ne-

g6cios da epoca, os licitantes iam freqiientemente ~lem, do que ?

contrato podia render em tributos arrecadados, e n2.0 so se arrui-

navarn, mas deixava a fazenda de receber seus creditos. Isto sem

contar 0 favoritisrno e as vistas gordas dos agentes do poder com

relacao a' contratadores amigos ou comparsas que nunca satisfa-

ziam suas dividas para com a .fazenda publica. Situacao esta que

e quase nonnal( 38),

o "dizimo" sempre correu parelhas, entre os gr~nde~ fla.gelos

da administracao da colonia, com 0 seu rival que acima J a vimos:o recrutamento. 0 que dele sofreu a populacao nao e f£tcil~escre-

ver. Ja por si, trata-se de urn tributo pesado: 10%da producao bru-

tao Mas isto ainda e 0 de menos, muito pior foi a forma com que

se cobrava, em especie, em vez de ser in natura, como se devia en-

tende-lo e como fora efetivamente no passado remoto da monar-

quia. Obrigava-s~ 0 produtor a satisfaz~r em ~inheir? 0 valor de

urn parte apreciavel de urn produto am~a nao reah,7a?~, e. q~~era mais ou menos arbitrariamente avahado pelos dizimeiros",

Compreende-se 0 efeito catastrofico desta cobranca numa e~o~o-

mia como a da colonia, em que a moeda escasseava e 0 credito

era praticarnente inexistente, pelo menos para a maior parte das

necessidades edas pessoas. Salvo 0 caso das gran des lavouras alta-

mente remuneradoras e bastante seguras, ninguern ousava pro-

duzir mais que 0 estritamente necessario para 0 consumo proprio

ou para urn mercado absolutamente garantido e conhecido de ante-

(38) Nas InstrUfijes ao govemador de Minas Gerais, Marques de

Barbacena, encontram-se observacdes e relaeoes de fatos, muitos interessa,ntes

sobre abusos de contratadores e prejuizos da fazenda dai resultantes. Yel,aI_IJ-

-se em particular os §§ 109 e seg~, destas Instruciies. Entre, os funciOnano~

negligentes e acumpliciados com os ,contratadores faltosos a,~a,cusados, estao Ouvidor de Vila Rica, Tomas Antonio Gonzaga, 0 suave Dlrceu de Ma-

rilia",

'322 Caio Prado Junior

IUrlo. Mas 0 abuse des dizimeiros nab parava at A hm de se [ur-tarem ao incomodo de viagens penosas, ele deixavarn de cobrar

seus dizimos anualrnente, e faziam-no de uma so vez calculando

o valor global do tribute durante 0 pcriodo inteiro do seu contrato.

Este calculo se fazia na base cia prorlucao e dos pre<;os do ana da

cobranca, bastava por isso, e era naturalmentc 0 que aco~tecia

sempre, que tal ana fosse de pre~os rnais alto,S q~e os dernais, ou

de producao mais volumosa, para que 0 cont.nbull1te pagasse, uma

proporcao media para todos os anos, supenor aos 10 % legals do

tributo. .

Por estas e por outras, as "excursoes" ~o~ dizimeiros ,a c_atadeseus dizimos iam semeando na sua rota sinistra a desolacao e a

ruina, As execucoes, realizadas com penhora incontinenti dos bens

do devedor, quantos bastassem para largamente assegurar 0 paga-

mento do debito e as consideraveis despesas [udiciais, iam pelo

seu caminho arruinando os lavradores e paralisando a producao,

Saint-Hilaire, que observou 0 fato de perto, e assistiu pessoalmente

a acao dos dizimeiros, lhes atribuia uma das principals responsa-

bilidades pela dispersao da populacao rural, que se afastava, para

retiros quasc inacessiveis em que se condenava a vegetar misera-velmente, mas onde contava escapar a a~ao nefasta e aniquila-

dora do fisco (39) ,

Depois desta tao triste incursao pelo regime fiscal da. c~loni~,

vejamos, para finalizar, a analise dos departamentos administrati-vos, 0 ult imo grupo de 6rgaos que assinalei como sendo ?e natureza

especial. AIgu~s. ja fo!'am re£eri?os e tr~tad~s ~m capitulos ante-

riores: a Administracik: dos IndIOS, a lntendencia do aura e ados

diamantes. Os demais sao: a Intendencia da Marinha, que nas

capitanias maritimas se ocupa~a com a ~olitic~ dos por~os e 9 0litoral, bem como com armazens c estaleiros, Mesa de msper;ao,

tambem citada anterionnente, e que superintendia 0 eomercio do

acucar e do tabaco; havia Mesas na Bahia, Rio de Janeiro e em

Pernambuco. Finalmente, restam as Conseroatorias de cortes de

madeira, criadas em Alagoas e Paraiba pela Carta Regia de 13 de

maio de 1797, e em Ilheus (Bahia), pela de 11 de julho de 1799;dirigiram·nas os ouvidores das comarcas respectivas, e se destina-

yam a regular 0 corte de madeiras destinadas a construcao naval.Alem dos seus quadros regulares, a administracao colonial ai~:

da conta no seu funcionamento com os corpos de ordenanca, Ja

referidos acima, e que, embora nao destinados a isto, acabaram

exercendo papel do maior relevo em tal terreno. ~ilit~nnen~e,

vimos que as ordenancas pouco valem: forcas estacionarias, nao

se podem deslocar de suas sedes respectivas; em regra mal equipa-

(39) Voyage aux sources, , . , I, 343.

Formacao do Brasil Contempordneo 323

 

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das e instruidas, elas sao, como tropa, de valor infimo. Em prin-cipio, serviam como auxiliares locais das outras forcas, de linha ou

milicias, nos casos de agressao extern a ou comocao intestina. Mas

salvo num passado ja remoto no momenta que nos ocupa, nada

disto tivemos. Acontecimentos militares de vulto mais recentes,

ocorreram apenas nas fronteiras do SuI; e outros atritos de menor

importancia no Mato Grosso. Mas ai as ordenancas nao represen-

taram nenhum papel: trata-se de regioes pouco povoadas, e onde

portanto nao existiam; os socorros vieram todos de fora, e as forcasque lutaram naqueles pontos sao ou as de linha, ou as milicias re-

crutadas ern outras capitanias.Mas se como forca armada as ordenancas ocupam ern nossa

hist6ria urn plano obscuro, noutro setor, alias nao previsto pelas

leis que as criaram, elas tern uma funcao frnpar. Sem exagero, pode-

-se afirmar que sao elas que tornaram possivel a ordem legal e

administrativa neste territ6rio imenso, de populacao dispersa e

escassez de funcionarios regulares. Estenderam-se com elas, sobre

todo aquele terri t6rio, as malhas da administracao, cujos elos teria

sido incapaz de atar, por si s6, 0 parco funcionalismo oficial que

possuiamos, concentra+o ainda mais como estava nas capitais e

maiores centros.

A ideia de aproveitar 0 sistema de ordenancas para este fim

pode ser retraeada ao terceiro quartel do sec. XVIII; e creio fazer

[ustica atribuindo-a a clarividencia de urn dos maiores adminis-tradores que 0 Brasil-colonia [amais teve: 0 ja tantas vezes cit a-

do Marques do Lavradio. E no precioso e inesgotavel manancial

de informacoes que e. 0 seu Relat6rio ao Vice-Rei que 0 vinha

substituir no governo em 1779, que encontramos, pela primeira

vez, referencia expressa e clara ao assunto. 0 Marques demonstra

ai como compreendera a util idade, a necessidade mesmo de arrolar

toda a populacao colonial em corpos organizados, a fim de te-la

assim facilmente ao alcance da administracao, sujeita a ela e go-

vernavel. A passagem em que ele se refere a questao e longa, mas

merece ser transcrita porque elucida completamente a materia, e

a esgota; pouco the poderia ser acrescentado: "Para mim e forte

"razao formar com todos os povos, assim os tereos auxiliares (mi-

"licias'[, corn todos aquelles individuos que estao em edade, forcas"e agilidade para poderem tomar armas, como as das ordenancas,

"com aquelles que estao mais impossibili tados; e vern a ser a razao

"que e reduzir todos estes povos ern pequenas divisoes e estarem

sujeitos a um certo numero de pessoas, que se devem escolher,

"sempre dos mais capazes para officiais, e que estes gradualmente

"se vao pondo no costume da subordinacao, ate chegarem a co-

nhece-la todos na pessoa que S. M. tern determinado para os go-

"vernar. Estes povos ern um paiz tao dilatado, tao abundante, tao

324 Caw Prado Junior

"rico, compondo-se a maior parte dos mesmos povos de gentes

"da pior educacao, de caracter 0 mais libertino, como sao negros,

"mulatos, cabras, mesticos, e outras gentes semelhantes, nao sen-

"do sujeitos mais que ao Governador e aos magistrados, sem serem

)rimeiro separados e costumados a conhecerem mais junto, assim

'outros superiores que gradualmente vao dando exemplo uns aos

"outros da obediencia e respeito, que sao depositarios das leis e

"ordem do Soberano, fica sendo impossivel 0 governar sem socego

"e sujeieao a uns povos semelhantes. A experiencia 0 tern mostrado,

"porque ern todas as partes aonde tern havido de (faltado) reduzir

"os povos a esta ordem, tern sido as desordens e inquietacoes im-"mensas, e ainda depois de caneado 0 executor da alta [ustica de

"fazer execucoes no a quem a lei tem condemnado pelos seus de-

"lictos, nem isto tem bastado para elles se diminuirem, e pelo

"contrario se tern vis to que naquellas partes aonde os povos estao

"reduzidos a esta ordem, tudo se conserva corn multo maior so-

"cego, e sao menos frequentes as desordens, e sao mais respeitaveis

"as leis" (40).

As ideias do Marques, ai esbocadas, sao no que se refere as

milicias (que ele chama, segundo 0 costume do seu tempo, de

"tereos auxiliares"), menos praticaveis, Isto porque tais corpos,

como forcas de segunda linha e auxiliares imediatos da tropa re-

gular, tem uma funcao militar importante; e por isso deviam ser

bastante bem instruidas, exercitadas e equipadas, alem disto, nelass6 se alistavam os individuos perfeitamente aptos para 0 service.

Em consequencia, nao tiveram e nao podiam ter a universalidade

das ordenancas, que se organizam em todo 0 territ6rio da colonia,

enquanto as miH~ias nao passaram ,de ~m numer~ limit~do de uni-

dades. Para os fins que 0 Marques tmha ern VIsta, sao as orde-

nancas que mais se prestam (41) .

Isto, que no tempo daquele Vice-Rei, embora ja se praticasse

sem uma consciencia nitida do seu alcance, e fosse ainda apenas 0

fruto da intuicao de urn politico nota vel como 0 Marques, tornar-

-se-ia depois urn processo de administraeao perfeitamente esta-

belecido em regular funcionamento. E 0 que verificamos pelas

referencias que se fazem as ordenancas la pelos fins do seculo, Nao

as procuremos em opiniocs ou dissertacoes te6ricas, onde os pon-

tos de vista pessoais do autor podem ter influido, mas nos documen-

tos banais da administracao, nos de mero expediente, em que os

(40) Relat6rio, 424.( 41) Mas isto nao exc1ui bern entendido, a utilizacao das milicias com

° mesmo objetivo, embora sem a mesma generalidade; as milicias semprt:foram, ao contrario das ordenancas, corpos propriamente mil itares .

Formacao do Brasil Contempordneo 325

 

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redatores nao fazem mais (lue repetir conceitos vulgares e indis-

cutiveis.

Os oficiais super iores das ordenancas - capitao-mor, sargento-

-rnor e capitao -, eram escolhidos pelo governac1or, de uma lissatriplice 'organizadapel0 Senado da Camara do terrno respective.

Vejamos pois como 0 governador se dir igc as Camarassolicltando--lhes a organizac;:ao de tais listas, Num oficio do governador de

Sao Paulo, em que tendo resolvido forrnar novos corp os numa dasfreguesias da capital, pede a indicacao dos candidatos a oficial,

ele assim se exprime: "0 grande numero de povo que existe nasobredita freguesia nao pode ser bern govemado, nem melhor dis-

ciplinado para ocorrencia do Real service, scm advirem mais duascompanhias porque assim possam os respectivos oficiais delas

acautelar as necessarias providencias a bem do' mesmo Real servi-90". (Reg. XTl, 35). Nas cartas patentes dos oficiais de ordenancas

emprega-se lingua gem semelhante: " . .. fonnar uma companhiapara melhor auxiliar e conter na devida obediencia os moradores

(R eg . X II, 54) . Sao exemplos entre mil outros, que, pela banali-dade da materia nelas contida, encerram f6rmulas de praxe que

por isso mesmo exprimem, nao opini6es, mas fatos correntes eestabelecidos.

As atribuicoes adminis trativas dos ofic iais de ordenancas apa-

recem a cada passo na rotina da administracao. Ilespiguemo-las aoacaso no Iarto material do Regist1 'O da Camara de sao Paulo.Numa carta em que 0 governador, dirigindo-se a Camara, discutevar ias questoes de [urisdicao das diversas autor idades (tratava-se

em especie da competencia das autoridades eclesiasticas ), ele afir-

rna que s6 podem "obrigar" os moradores "paisanos" (sic), os jui-

zes de direito e os oficiais de ordenanca ( Re g. , X II , 473). Tratando-

-se da construcao de urn aterrado no rio Pinheiros, a Camara, por

determinacao do govemador, ordena ao canitao local de ordenan-

cas que, em dia e hora designados, mande g'fmte da sua companhia,

com cabos suficientes, apresentar-se nas obras para a realizacao

do service necessario sob a inspecao de urn diretor escolhido por

ela ( Re g., X II , 175). Vemos noutras passagens os capitaes de orde-

nancas encarregados de coletar na respcctiva frcguesia a quotade seus moradores para as obras de uma ponte (R eg ., X II, 2:17 ).Ainda em outro texto do Registro, lemos uma ordem do gov.emador

mandan do os oficiais da freguesia de Atibaia retercm os moradoresque estavam abandonando suas lavouras com receio do recruta-

rnento, e ameacando com isto 0 abastecimento da capital (Reg.,X II, 1 50 ). Urn ultimo excmplo das Juncoes exercidas pelos oficiais

de ordenancas: num casode interesse publico da freguesia de

Sant'Ana, scmpre em Sao Paulo, vemos 0 capitao das ordenancas

326 Caio Prad» JUliior

locais dirigir-se oficialmente ao p,ovemador solicitando providen-cias (R eg ., X II, 252 e 2 57 ).

Note-se que tudo isto nao e determinado por nenhuma lei:nasceu das circunstancias imperiosas que a vastidao do territorioe a dispersao da populacao, impunham a urna administracao muitomal aparelhada para a tarefa. 1 1 : uma simples situaeao de fato enao de direito, mas grac;:as a ela, a colonia se tornou governavel.o que facilitou a tarefa das ordenancas, dando forca efetiva ahierarquia que representam, e permitindo-lhes 0 exercicio das fun-c;:6esque nelas encontramos foi a preexistencla na sociedade colo-

nial de uma hierarquia social ja estabelecida e universalmente re-conhecida. Assinalei noutro capitulo este aspecto da organizacaoda colonia, disposta em "chis" que se agrupam em tomo dos pode-rosos senhores e mandoes locais, os gran des proprietaries, senho-res de engenho ou fazendeiros. Tal estrutura social abriu caminho

pa.'a 0 estabelecimento das ordenancas: nao houve mais que ofi-cializar esta situacao de fato, constituir com aqueles "clas" os cor-'pos destas ultirnas, E foi 0 que se fez colocando chefes e mandoeslocais nos postos de comando das ordenancas. Revestidos de paten-

tes e de uma parcela de autoridade publica, eles nao s6 ganharamem prestigio e forca, mas se tomaram em guardas da ordem e dalei que lhes vinham ao encontro; e a administracao, amputando-setalvez com esta delegacao mais ou menos forcada de poderes, ga-

nhava no entanto uma anna de grande alcance: punha a seu ser-V I C ; : O uma Iorca que nao podia contrabalancar, e que de outra formateria sido incontrolavel. E com ela penetraria a fundo na massa

da populacao, e teria efetivamente a direcao da colonia (42).

Tambern noutro terreno vieram as ordenancas em auxilio daadministracao: no dos indlos.. esta populacao mal assimilada que

se agrega a colonizacao, e que depois da legislac;:ao pombalina setomara em cidadaos pelo mesmo titulo que os de rna is colonos.Nao era facil a tarefa de goverml-los, mante-los numa obediencia

e sujeicao que somente foram capazes de conseguir, inteira e es-pontaneamente, a paclencia ilimitada e a dedicacao extrema dos

missionaries; e sobretudo 0 conhecimento que eles tinham da na-tureza humana, e 0 tacto e habilidade com que a manejavam;qualidades que. naturalmente faltaram tanto aos colonos leigos co-mo aos burocratas rein6is. 0 sistema de ordenancas substituiu, em-bora em parcela pequena, a autoridade dos padres, e dispensou umpouco a forca bruta com que ordinariamente se lidou com os indios

( 42) Revendo os nomes que encontramos nos postos de comando dos

corpos de oldenant;a, vamos descobr ir neles a nata da populacao colonial ,

os sells expoentes economicos e sociais. Esta regra e Invariavel iem todos

os setores do pals.

 

para manto-los em- obediencia, Aproveitara.m-se uns r~sto~ de hie-

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rarquia, consideracao ou respeito que havl~ ~ntre o~ ~ndlge~as: .e

que apesar da dissolucao de s:u_:,la9~s. s~clals e PO~lhC~Spn~~lh-

vos por efeito da longa persegUl9ao, SUjC19a?e escr,avl~a9ao sofrida,

ainda sobravam em estado latente. E nas vilas de indios, que tanto

abundaram depois das leis de Pombal, concederam-se os postos das

ordenancas aqueles dentre eles que gozasse.m ~e r.:al ascend~n.ci .a

e prestigio entre seus semelhantes. Koster iromzana estes oficiais

seminus, com seus bastoes encastoados de ouro, simbolo da auto-

ridade mas nao veria 0 sistema que representavam, e que cons-

tituia a base mais salida em que se ap6ia a ordem politica e admi-nistrat iva da colonia (43).

Os quadros mili tares e civis que vimos an~lisando ate. aqui na?

esgotam este assunto da administracao colomal. Por mars m~e.~l-

da que a primeira vista pare9a sua inclusao neste lugar, a Religlao

e 0 clero a ele pertencem por todos os titulos, A : posicao da Igreja

e do seu culto e entao muito diferente da de hoje, E para compre-

ende-la na sua intimidade, nao nos basta assinala-la tracando pa-

ralelos. Precisamos transportar-nos com urn esforco ?: imaginacaopara ambiente inteiramente diverso, procurar participar d.aquela

atmosfera clerical e de religiosidade em que mergulha a vida co-

lonial. Nao que haja entao urn sentimento religioso mais agudo,

mais profundo e elevadamente. senti~o. Ou se h~~ve,. nao e isso

que mais importa aqui. De muito maiores conseq';lencIas e o.fat?da onipresenca de urn conjunto de crencas e praticas que o_mdl;

viduo ja encontra dominantes ao nascer, e que_0 acompanharao ate

o fim, mantendo-o dentro do raio de uma acao constante e pode-

rosa. Ele part icipara dos atos da Re!ig~ao, das cerimo~ias do culto,

com a mesma naturalidade e conviccao que de qualsquer outros

aeontecimentos banais e diutumos da sua existencia terrena; e

contra eles nao pensaria urn momenta em reagir. Sera batizado,

confessara e comungara nas epocas pr6prias, casar-se-a perante urn

sacerdote, praticara os demais sacramentos e freqiientara festas e

cerimonias religiosas com 0 mesmo espirito com que intervem nos

fates que chamariamos hoje, em oposieao, da sua vida civil. Uma

coisa necessaria e fatal, como vestir-se, comer a certas horas, se-

zuir urn regime de vida geral para todo 0 mundo. 0 cidadao da~olonia atravessara seus anos de. existencia s~m que Ihe a~lore amente urn instante sequer a mais leve suspeita de que tais atos

noderiam ser dispensados, Havera increus e ceticos - e a epoca

~o momenta que nos ocupa era propicia a sua multiplicacao -

mas a incredulidade deles ficara restrita a seus pequenos, fechados

c insulados circulos de macons e Iivres-pensadores que escondem

(43) Koster, Voyages, I, 210,

32 8 Caio frado J U n i o r

cuidadosamente sua descrenca: mais que criminosos, =. aI_>are-ceriam aos olhos do mundo que os cerca como loucos temrveis. A

Religiao nao era ainda admitida, ela "era" simplesmente.

Decorre dai que as ~ecessidade~ es~iI;ituais se .C?lo~ .no

mesmo plano que as exigencias da Vida CIvil. A partlClpac;ao nas

atividades religiosas nao e menos importante que nas ~a(w:la

ultima. Poder freqiientar os sacramentos, 0 culto, as cenmomas

da Igreja, constitui urgencia que nada fica a dev.er ao qu~ se.pede

noutro setor: a [ustica, a seguranca, ou as demais providencias da

administracao publica. 0Estado, ~ao s~ podia furtar a ela. E. nem

[amais cogitou disto ..~elo contran?, ~ISpUtOUse~I?re a Ig~eja deRoma 0 direito de ministrar ele propno, a seus suditos, 0 alimento

espiritual que reclamavam. Nunca the escapou a importancia po-

litica disto( 44):

Mas nao e s6 inconcebivel e inconcebida uma existencia amar~em da Religiao e da Igreja: eIa e im~ratic;avel mes~o para 0

increu convicto e relutante. Atos de que nmguem se podia passar,

mesmo pondo de parte qualquer sentimento r~ligioso, s6 ~e pratica-

yam por intermedio da Igreja: a consta~a9ao do nasclmen.to se

fazia pelo batismo, 0 casamento s6.se .reali_zava.pe~a~t~ auto.nd~de

clerical. Alem disto, 0 poder eclesiastico tmha [urisdicao pnvativa

em muitos assuntos de fundamental importancia, como nas ques-

toes relacionadas com 0 casamento: div6rcio (ou se preferirem,

o "repudio"), separacao de corpos, anulacao. Tambem ~os as~untos

que envolvessem materia de pecado (~5). ~~am as estIp,!la90e~ ~o

Concilio de Trento, que Portugal foi a uruca das na90es cnst~s

a aprovar sem restricoes, e ~ue se mantiveram em vigor no Brasil,

em seus traces essenciais, ate a Republica (46). .

Se juridicamente, perante 0 direito positivo, :ra esta a posi-

9ao da Igreja, nao era ela de menor. relevo na rotina de todos os

dias. Aceitava-a 0 senso comum, e universalrnente, como uma auto-

(44) A irreligiosidade e urn fato moderno. Na s~cular di. sR~ta entre

o Estado e a 19reja nao se trata em absoluto de excluir a Rehglao, como

se fez modemamente; mas sim afastar a interferencia da Igreja de Roma

em assuntos de transcendente importancia poli tica entao, e de que 0 Estado

ja nao se preocupa mais: provimento dos ministros da religiao, questoes de

doutrina religiosa, etc. .., . .,( 45) Assim nos contratos {urados, pOlS0 pefjuno ~onstitUia pecll:do:B

por isso que as Ordenacoes proibiam os contratos com [uramento, pOlSIStO

seria transferir para a [urisdicao eclesia~tica a .competencia par.a c?nhec~rde seu nao cumprimento (Ordenal;;6es, liv, 4. tit. 73). Competia ainda ~s

autoridades eclesiasticas a abertura dos testamentos, por causa dos eventuais

legados em favor da Igreja. Sobre [urisdicao eclesiastica em geral na colonia,

veja-se Lacerda de Almeida, A Egr~ia e 0 Estado.. . .( 46) As disposicoes do Concilio foram confmnadasno Brasil inde-

pendente pelo Dec. de 3 de nov. de 1827.

Formacao do Brasil Contempordneo 329

 

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ridade; eln e seus ministros. Nao s6 se participava inteiramente cia

sua atividade e do seu culto extemo, mas para ela se sujeitavam

os individuos mesmo em assuntos de sua vida privada e intima.

Nao e 0 caso de abordar aqui a secular controversia sobre as atri-

buicoes respectivas da Igreja e do Estado, 0 "Papa e 0 Rei", como

se dizia, e que s6 muito recentemente perdeu seu sentido e sua

razao de ser. Mas, de fato, e particularmente na sociedade colo-

niai que ora nos interessa, a intervencao da Igreja e de seus rni-

nistros e consideravel. Nao s6 pelo respeito e deferencia que me-

recem, 0 que lhes outorga uma ascendencia geral e marcada em

qualquer materia; mas ainda pelo direito reconhecido de se imis-cuirem em muitos assuntos especificos e particulares. Assim na

vida domestica dDScasais, zelando pela sua boa conduta, pela sua

existencia em comum; podendo e devendo mesmo chama-los even-

tualmente a ordem e riar parte dos renitentes as autoridades reli-

giosas superiores; tambem na educacao dos filhos, em que lhes

compete de pleno direito intervir efiscalizar a acao dos pais. De

um modo geral, consideram-se os religiosos como zeladores dos

bons costumes; e con tam para isto como sancoes que vao desde

as repreens6es, expondo os faltosos a reprovacao publica, ate as

penalidades mais especificas, inclusive a maior delas, a excomu-

nhao, que exclui 0 individuo do gremio cia Igreja. Isto fara sorrir

os ceticos de hoje, mas nao assim os seus antepassados de urn se-

culo apenas. 0 anatema religioso isolava 0 atingido por ele numcirculo distante de repulsa geral; fazia dele um banido da socie-

dade de seus semelhantes. Mesmo que 0 seu intimo nao fosse afe-

tado, sofria cruelrnente a sancao cia opiniao publica que os sacer-

dotes facilmente manejavam e alarmavam. E is to sem contar que

ficava, nos casos extremos, excluido da participacao de atos indis-

pensaveis a sua vida normal( 47).

Ainda ha muitos setores em que a atividade administrativa

da Igreja teve nao s6 a participacao notavel, mas ainda, em muitos

casos importantes, exclusiva. Assim em tudo que hoje charnaria-

mos de assistencia social ao pauperismo e indigencia; a velhice e

infancia desamparadas, aos enfermos, etc. 0 mesmo podemos dizer

do ensino. Tambem da catequese e civilizacao dos indios, em que,

(47) Sobre as atribuicoes eclesiasticas, alem do que se conhece dateor ia do dire ito canon ico, e interessante consul ta r as prov isoes de cargoseclesiasticos que encerram em regra muitas delas, e naturalmente as rnais. nteressantes para a historiador par serem as mais atuais e irnportantes noperiodo em qucstao. Encontram-se algumas provisoes nos documentos jf l

publicados da colonia, como por exemplo no Begi st ro da CU11Ulrade S iio Pau lo ;

entre outras, ve ja-se para amostra , Reg. XII, 361. £; pena que os arquivoseclesiasticos ainda nao estejam, na sua maior parte, ao alcance do grandepubl ico, Eles dei ta riam grande luz sobre a vida int ima da sociedade colonial .

330 Caio Prado JUnior

apesar de excluida do terr~no temp?ral pela leg~sl~<;aopornbalina,

continuava a acao da IgreJa, atraves de suas rrussoes regulares, e

mesmo em alvuns casos seculares. E ainda, finalmente, nao deve-

mos esque:er b 0 pap~l que rep~esenta no setor ?~S divers6~s P~-

blicas, sabido como e que a mawr parte das Festividades e diverti-

mentos populares se realizava sob seus auspicios ou direcao] 48).

A Igreja for~a assim uma esfera ,de gr~n~e im_port~n.cia d~

administracao publica. Emparelha-se a administracao CIVIl, e e

mesmo muito dificil, se nao Impossivel distinguir na pratica uma

da outra em muitos correntes casos. Dai os atritos, que sao fre-

qiientes, entre aut,oridades civis e eclesiasti:as (~9),. ~orem. m~iscomum e normal e a colaboracao, colaboracao tao intima e indis-

pensavel ao funcionamento regular da adrninistracao em geral que

nada ha que lembre 0 que se pass a n~ ,atualida?e. :It um ana.cr?-

nismo berrante projetar relacoes de hoje da IW'eja com a ad~~n.ls-

tracao civil, naquele passado, procurando analisa-las com cntenos

semelhantes. Mais que simples relacoes, 0 que havia era uma ver-

dadeira oomunhao, uma identidade de prop6sitos animados pelo

mesmo espirito,

Nao entrarei nos pormenores da organizacao eclesiastica da

colonia, tanto do clero secular como do regular, nao nos esque-

cendo tambem das ordens terceiras e outras irmandades leigas que

sempre tiveram no Brasil papel saliente nas .atividade~ re}igiosa.s.

Nada ha de particular, neste terreno, que dlga respeito a IgreJ3

da colonia. Aqui como alhures, no passado como no presente, a

organiza<;ao clerical e em substancia a mesma. Lembremos unica-

mente 0 padroado, concedido ao rei de Portugal e nas suas pos-

sess6es ultramarinas, 0 que the permitia larga ingerencia nos ne-

g6cios eclesiasticos, inclusive e sobretudo a criacao e provimento

dos bispados, erecao de igrejas e d~limita<;ao de jurisdi<;6e~ ~erri-

toriais; autorizacao para estabelecirnento de Ordens rehglOs~s,

conventos ou mosteiros. Cabia ainda ao monarca, por concessao

como vimos a Ordem de Cristo, a percepcao dos dizlmos, que e

urn tributo eelesiastico destinado originalmente a manutencao do

clero. Em cornpensacao, competia a coroa prover a esta manu ten-

( 48) Notemos que em todos estes setores cabe ainda hoje em dia aIgreja urn papel consideravel entre nos. Mas entre o. presente e 0 passad.oha uma diferenca a tal respeito essencial, porque hoje ela age como enti-dade privada, e nao se distingue,. s.enao quantit.ati.vament~, de o~tr~ comobjetivos iguais; enquanto na coloma, cia constItu~ autondade t:ub!lca .

(49) Veja-se, entre outros, urn caso de conflito de competencia ocor-rido em Sao Paulo nos ultimos anos do seculo XVIII, e que e particular-mente interessante porque 0 encerra 0 governador com urn longo oficiodirigido ao. bispo em que discute e procura discriminar cuidadosamenteas esferas respect ivas , ec lesiastica e civi l (Reg., XII , 473).

Forma{;ao do Brasil Contempordneo 331

 

cao, e tal e 0 objetivo das c6ngruas, isto e , subvencoes pecuniarias da administracfio portuguesa, e 0 clero secular e regular, seu

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aos membros do clero(50).

A par desta fonte de renda, tinha 0 clero outras. Assim os

e~o!ume~tos por atos religiosos ou da [urisdicao eclesiastica _~ml~tra<;ao dos sacramentos, dispensas, custas em processos ecle-siast icos, . :tc.; e sobretud_o a desobriga da Quaresma que se pagavapor oc.aslao da comunhao pascal e a que estavam sujeitos todos

os mal~res d~ _sete anos o.brig~dos a c~munhao. A maior parted~stas Impo~l<;oes da Igr~Ja amda subsiste, mas enquanto hoje

ten: urn carat~r de ?OnahVO, e contribuicao graciosa, constituem

entao verdadeiros tnbutos publicos, impostos ou taxas em nossaterminologia modema, pois ninguem se podia regular e normal-mente furtar a elas.

. P or efeit? ~o padroado, ~ Igreja n~o gozou nunca, no Brasil,d~ independencia e autonomia. Os negocios eclesiasticos da colo-ma sempre est!veram inteiramente nas maos do rei, que deles se

oc~pava atraves do depa~an:ento de sua adrninistraojio ja citadoacirna, a Mesa de Consciencia e Ordens. Mas a Igreja de Romaexerceu sobre eles uma influencia indireta e decisiva atraves da

preponderancta d~ que gozou por muito tempo na corte portu-guesa a Companhia de J.esus, que teve 0 Reino, ate a epoca de

Pom?al, enfeudado a 51 e ao Papa. Depois da expulsao dosJesuitas (1759), desaparece aquela influencia e 0 clero e nezocios

eclesiasticos do Brasil ficam inteiramente entregues ao poderbsobe-rano da coroa. Isto mesmo depois da reacao ultramontana dorein a do de D. Maria, que nada modificou em essencia na materia

~pesa.r do seu clericalismo e devocao de fanatica em vesperas da

~~sam~ade mental em que terminaria seus dias, Alias 0 Papado,Ja muito e.nf~aquecido e com as atencfies ocupadas em outros~etores mais importantes, nao assume, relativamente ao Brasil ea sua metr6pole, nenhuma atitude reivindicat6ria de seus direitos:abandona inteiramente nas maos do Rei Fidelissimo os assuntos

religiosos da coloni~. ~astara para. nos certificarmos dis to per-correr a correspondencia das autondades, tanto civis, como reli-

gio~as, relativamente. atais neg6cios, e se percebera claramentea hberdade de movirnentos do govemo metropolitano da mate-

ria ( 51). A Igreja no Brasil se tomara em simples departamento

(~O) So?re 0 Padroado da Coroa, veja-se a Alegayiio juridica, etc., deD. Jose [oaquim de Azeredo Coutinho.

(51) Veja-se par ti cu larmente a longa e minuciosa informacao do Vice --Rei LUIS de Vasconcelos, prestada em 1783 ao Secretario de Estado do~over~1O.portugu,e~: Neg6~ios eclcsidsticos. -; Ta.mbem a coleoa r- Corres-7.o~~encw de va~ur.s autoridades, em que ha muitas cartas de antoridadesreligiosas da coloma, sobre materia de sua jurisdicao, ao governo metro-politano,

332 Caio Prado Junior

fundonalismo.

Esta ai, em suma, 0 esboco da organizacao administrativada colonia. Uma boa parte das criticas que the podemos fazerja esta contida nessa analise. Vimos ai a falta de organiza<;ao,

cficiencia e presteza do seu funcionamento, Isto sem contar osprocessos brutais empregados, de que 0 recrutamento e a cobranca

dos tributos sao exemplos . maximos e indice destacados dosistema geral em vigor. A complexidade dos 6rgaos, a confusaode Iuncoes e competeneia: a auseneia de metodo e c1areza na

confeccao das leis, a regulamentacao esparsa, desencontrada econtradit6ria que a caracteriza, acrescida e complicada I,J0r umaverborragia abundante em que nao faltam as vezes ate disser-

. tacoes literarias, 0 excesso de burocracia dos 6rgaos centrais em

que se acumula urn funcionalismo imitil e numeroso, de caratermais deliberativo, enquanto os agentes efetivos, os executores,rareiam; a centralizacao administrativa que faz de Lisboa a cabeca

pens ante unica em neg6cios passados a centenas de Ieguas quese percorrem em lentos barcos a vela; tudo isto, que vimos acima,nao poderia resultar noutra coisa senao naquela monstruosa, em-perrada e ineficiente maquina burocratica que e a administracao

colonial. E com toda aquela complexidade e variedade de 6rgaose funcoes, nao ha, pode-se dizer, nenhuma especializacao, Todos

eles .abrangem sempre 0 conjunto dos neg6cios relativos a deter-minado setor, confundindo assuntos os rnais variados e que asmesmas pessoas nab podiam por natureza exercer com eficiencia.o que mais se assemelharia a departamentos especializados, comoas Intendencias do Ouro, ados Diamantes, as Mesas de Inspecaoe alguns outros, nada sao disto na realidade. Acumulam atrlbuicocscompletarnente distintas, ocupando-se das simples providenciasadministrativas e de politica, como do fornento da producao, dadirecao tecnica, arrecadacao de tributos e solucao de contendas

entre partes. E e por isso que raramente se encontram neles

tecnieos especializados. Nas varias Intendencias do Ouro, porexemplo, nunca se viu urn ge610go, urn mineralogista, urn simplesengenheiro. Eram individuos inteiramente leigos em ciencias

naturals e conhecimentos tecnicos que se ocupavam com osassuntqs de mineracao. E isto porque deviam ser, ao mesmotempo, e sobretudo, burocratas, [uristas, [uizes,

Mas nao precis amos ir procurarfuncoes especializadas paradescobrir as fraquezas da administracao colonial. Nas pr6priasatividades essenciais do Estado, ela e lamentavel , Justi<;a cara,moro~a e complicada; Inacessivel mesmo 'a grande maioria dapopulacao, Os [uizes escasseavam, grande parte deles nao passava

de juizes leigos e incompetentes; os processos, iniciados ai,

Format;iio do Brasi l Contemporaneo 333

 

Janeiro (54). Hospitals nao ha via senao uns rarfs~imos n;iI~tares,

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subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relacao, Supli-cacao de Lisboa, as vezes ate Mesa do Desernbargo do Paco,ar rastando-se sem solucao par dezenas de anos. A seguran<;a publi-ca era precaria. Ja vimos os recursos e adaptacoes a que aadministracao teve de recorrer para suprir _sua incapacidade nesteterre no da ordem legal, delegando poderes que darao nestesquistos de mandonismo que se perpetuarao pelo Imperio a dentro,se nao a Republica, e tomando tao dificil em muitos casos aacao legal e politica da autoridade. Mas mesmo com esta adapta-

<;ao Iorcada, nao se conseguiu Iazer predominar a ordem; ainseguranca foi sempre a regra, nao s6 nestes ser toes despoliciadosque constituem a maior parte da colonia, mas nos pr6prios grandese maiores centros, a sombra das principais autoridades. Se 0

banditismo e 0 crime permanente nao assolaram a colonia exces-sivamente, tsto se deveu muito mais a indole da populacao, enao a s providencias de uma adrninistracao inexistente na maiorparte do territ6rio da colonia (52).

As financas nao estao em rnelhor postura; alguma eoisa, ebastante ilustrativa, ja foi dita acima com respeito a arrecadacaodas rendas publicas. 0 manejo delas nao e de melhor qualidade.Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujasfinancas temos noticias, senao em regime permanente de deficit.

E urn deficit "desorganizado" , se podemos sern pleonasmo acres-centar este qualificativo para caracterizar 0 sistema financeiroda colonia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesasse resolvia sumariamente com 0 calote, nao se pagando, nem

com boas intencoes, os credo res que nao fossem protegidos dasautoridades. Nem 0 soldo das tropas se satisfazia regularmente,

e 0 espetaculo de soldados mendigando pelas ruas era comum.

Se nas suas funcoes essenciais a administracao era isto, nas

outras e pior. A instrucao publica estava reduzida a umas poucasaulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principaiscentros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelasordens religiosas ( 53). Os services de higiene e saude publica seconstat am pelo estadodas principais cidades, Bahia e Rio de

(52) Sobre a [ustica e seguranca na colonia, veja-se a critica de Saint--Hilaire, que resume admiravelmente 0 assunto: Voyage a ux p ro vi nc es deRio de Janeiro ... , I, 364 e segs.

(53) Sobre 0 ensino da Bahia, consulte-se Vilhena, Recopilacoa, CartaVIII, que escreve com a autoridade pr6pria de professor regio que era.Para 0 Rio de Janeiro, vejam-se as inte ressantes eonsideracoes duma repre -sentacao dos professores regios em 1787, e publicada na Correspondeaciade varias autoridades, 215. - Urn resumo sumario, mas bern feito, damstrucao colonial, e 0 trabalho de Moreira de Azevedo, Ins tru ~iio n ostempos coloniais.

334 Caio Prado Junior

como 0 do Rio de Janeiro, que se instalou no antigo coleglO dos

Jesuitas(55), e as Santas Casas de Mis;ri:6r~ia, .q~e_ emb~rapoucas, constituem a r::ais bela e quase ~m?a mst~tUl<;a~, SOCIalde certo vulto da colonia. Das obras pubhcas, vimos J3 umaamostra nestes miseraveis caminhos e mais vias de comunicacao.E afora isto, legou-nos a coloni~ pouquissimas obras digna~ demencao: alzumas fortalezas mediocres e 0 aqueduto da Carioca,

no Rio' de Janeiro, quase esgotam a lista ( 56) .o fomento da producao estava inteiramente entregue a boa

vontade de urn ou outro administrador mais esforcado, e nuncapassou de pequenas e 1imitadas providencias (5~). A_lista poderia

ser alongada, mas inutilmente, neste m~sm? .~hal?asao: a ~:n;sn:afalta de esforco construtivo, a mesma ineficiencia e neghgencla

se encontrara por toda parte. Urn exe~plo b_astaria para carac-terizar a administracao colonial: a mmeracao. Durante quaseurn seculo, a exploracao do ouro e dos diamantes constituiu ~

maior riqueza da monarquia, a base em que as~ento~ a prospe.n-dade e ate mesmo a existencia do trono portugues. POlS nem assimela mereceu mals que a consideracao de urn bern tributavel,uma Fonte de renda que se tratava de explorar ao maximo.Afora isto nada se fez, e deixou-se toda a materia ao abandono.

A incapa;idade da administra!ao colon~al; a ~egligencia e. i~ercia

que demonstrou diante da irnensa dissipacao e destruicao deriqueza natur.al que se praticava ~a.s minas, e urn atestado que

dispensa qualsquer outros comentanos. .. _Se no terreno da eficiencia e este 0 retrato da adrninistracao

colonial, nao e ele mais avantajado no da moralidade., De alt.oa baixo da escala administrativa, com raras excecoes, e a mars

grosseira imoralidade e corrupcao que d~n:ina. desbragadaI_nente.Poder-se-ia repetir aqui, sem nenhuma injustica, 0 conceito doSoldado Prdtico: "Na India nao ha cousa sa: tudo esta podree afistulado, e muito perto de herpes ... " Os rnais honestos e

(54) Para a Bahia: Vilhena, Recopilac,:ilo; para 0 "&io de Janeiro,·sobretudo Oliveira Lima D. lotio VI no Brasi l_ Inscrevia-se no ativo da

adminlstracao a introdu~ao da vacina nos primeiros anos do sec. XI~.(55) Sobre este hospital : Pedro Curio de Carvalho , Historico do hospi-

ta liz at;iio m ilita r no B ras il.(56) Ha ainda os edificios publicos, poucos alem ?as ig~ejas; 0 ,v~lor

dessas tem sido conside ravelmente exage rado. Algumas tem, nao ha duvida,valor artistico; mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade que se lhes querempresta r. Ao lado dos monu~entos re ligiosos ~as col_onia s hispano-ame-ricanas, Mexico e Peru em particular, fazem mediocre flgura.

(57) Lembremos aqui a administracao, unica sob este aspecto, doMarques do Lavradio no Rio de Janeiro. Tambem a de Lobo de Almada na

Capitania do Rio Negro.

Forma"iio do Brasil Contempordneo 33~

 

dignos delegados da adminlstracao regia s~o aqueles que nfio raramente foram alem dos proveitcs Imediatos que sob a forma

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embolsam sumariamente os bens publicos, ou nao usam dos cargospara especulacoes privadas; porque de diligencia e born cumpri-mento dos deveres, nem se pode cogitar. Alias 0 proprio sistemavigente de negociar os cargos publicos abria naturalmente portaslargas a corrupcao, Eles eram obtidos e vendidos como a maisvulgar mercadoria. Mas isto ainda e 0 de menos, porque estava nosmetodos aceitos e reconhecidos. 0 que fazia Vieira, ja seculoe meio antes, conjugar no Brasil 0 verbo "rapio" (no sermao doBorn Ladrao ) em todos os modos, tempos e pessoas, era esta

geral e universal pratica, que ja passara para a essencia daadministracao colonial, do peculato, do suborno e de todas asdemais formas de corrupcao administ- ativa. Se fos-e alinhar aquitestemunhos, seria um nao acabar rnmca. E mesr ,o fazendo neleso desconto da maledicencia, a adrninistracao :1a<:sairia mais rea-bilitada: isto porque, salvo er.i discursos la datorios e de ordempessoal (que pela sua freqiiencia ja nao co.isti tuem nenhum bomsintoma), nao se encorr ra nos depoimentos eontemporaneosn_en~umconceito, ja nao .d~go elogioso, mas de tolerancia e justi-ficativa para com a administracao. Parta de onde partir a criticaou observacao, dos simples cidadaos nascidos na colonia ou dosr~~n6is, ~mo dos mesmos delegados do poder, a opiniao e inva-navel e 19ualmente severa. Aorescente-se a isto 0 que referem os

viajantes est rangeiros que nos visi taram em principios do seeulopass ado, quase todos eles da maior consciencia e honestidade esem motivo especial algum para nao dizerem a verdade e ter-se-auma colecao de dados tais que, a nao ser que se conteste apr6pria hip6tese fundamental de toda pesquisa historiea e quee a "possibilidade de reconstruir 0 passado", levam com segurancaabsoluta ao que ficou dito acima.

Tern uma larga responsabilidade em tudo isto, afora 0 vicioque e g~ral na ad~.inistra9~0 portuguesa. desde 0 tempo longinquodas Indias, 0 espmto particular que amma 0 governo metropoli-tano no gerir a sua colonia. Se se justifica 0 conceito do autoranonimo do Roteiro do Maranhao que "as eolonias sao estabe-lecidas em utilidade da metr6pole" ou daquele outro con tem-

poraneo para quem "seu efeito primario e comum e certamenteo de enriquecer a metropole e aumentar-Ihe 0 poder"] 58) -confiss6es em que ha ao menos franqueza em materia onde ahipocrisia tern hoje assento inconteste - Portugal no entantosempre interpretou mesquinhamente este objet ivo primordial elatente em todas as colonizacoes de carater oficial. Suas vistas

(58) Roteiro, 102; e Rodrigues Barata, Mem6ria da Capitania deCoids, 337.

336 Caio Prado JUnior

de tributos podia auferir da colonia. Um governador do RioGrande do SuI alias um dos mais notaveis, Silva Gama, resumiaem 1805 este pensamento numa confissao crua e nua: "Nada meinteressa com mais fervor, escrevia ele ao governoqo Reino, doque a fiscalizacao da Real Fazenda. Diminuir as suas despesaso quanto e possivel, fazer arrecadar ansiosamente tudoque possapertencer-lhe sem dana dos vassalos, e esquadrinhar novos recur-sos para aumenta-la, sao os objetivos do meu maior desve10"(59).Urn obje~ivo_fiscal,nad~ mais que isto, e 0 que anima a met::r6polena eolonizacao do Brasil. Raros sao os atos da administracao ouos administradores que fazem excecao a regra. Pombal, cnjogoverno e 0 unico talvez, depois do periodo heroico da historiaportuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo nao conseguiudesvencilhar-se inteiramente do que estava no fundo da cons-ciencia nacional, ou antes da politica da monarquia. 0 ouro eos diamantes, entfio, fizeram perder 0 resto da cabeca e bom-sensoq~e sobravam a metr6pole. Com uma ansia sem paralelo, ela seatira sobre 0 metal e as pedras como urn cao esfaimado sobre 0osso que aflora na terra cavada. S6 que nao tinha sido ela quemo escavara ... Durante urn seculo quase, nao havera outrapreocupacao seria e de conseqiiencia que a cobranca dosdireitos regios, 0 quinto; a historia administrativa do Brasil secontara em funcao dela.

Assente numa tal base, a adrninistracao colonial nao podias:r outra ;oisa que foi. NAegl~gencia-seudo que nao seja percep-cao de tnbutos; e a ganancIa da coroa, tao crua e cinicamenteafirma~a, a mercantilizacao brutal dos objetivos da colonizacao,contamma~a todo mundo. Sera 0 arrojo entao geral para 0 lucro,para as migalhas 9ue sobravam do banquete real. 0 construtivoda adrninistracao e relegado para urn segundo plano obscuro emque s6 idealistas deslocados debateram em vao,

Tudo isto se refere, em particular, a administracao civil. Aeclesiastica, nada ou quase nada the fica a dever. Admitamoscontudo, de inicio, uma restricao que e de [ustica salientar. Senao muito pouco ao nivel moral, pelo menos no da capacidade,

o clero da colonia e nitidamente superior ao funcionalismo civil,como alias a qualquer outra categoria particular da populacaocolonial. Nao seria por simples eoincidencia que boa parte dosindividuos, de formacao intelectual acima do comum extrema-mente bai~~ com que t~m~~ contacto os viajantes estrangeirosque nos visitararn em pnnclplOs do seculo passado, seja de ecle-

(59) Docs. relativos d historic da capiiania de Silo Pedro do RioCrande do Sui , 285.

Formaciio do Brasil Coniempordneo 337

 

siasticos, Em Colas, Saint-Hilaire chega a afinnar que as {micas os Superiores des Carmeiitas coos Capuchos (66). Mas nao e

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pessoas com "alguns conhecimentos" sao os padres (60). Tambem

nao sera tida como fmto do acaso a circunstancia da tamanha

proporcao de membros do clero aparecerem entre aqueles que

se destacaram nas letras e ciencias da colonia; e de terem sairam

dele os expoentes de seus principais ramos (61). Alias ja referi no '

capitulo anterior a razao por que 0 clero se tornou a carreira

intelectual por excelencia na colonia: e a unica que abre as portas

a todos sem distincao de categoria. Refugiar-se-ao nele todos ou

quase todos a quem a inteligencia faz c6cegas.

Mas noutro terreno, no seu teor moral medic, a massa do

clero nao se destaca muito acima de seus colegas da administracao

leiga, A mercantilizacao das funcoes sacerdotais tornara-se pela

epoca em que nos acharnos urn fato consumado. Citei ja a obser-

vacao de uma autoridade eclesiastica, que reconhece ter-se tornado

a batina urn simples "modo de vida", um e~rego, parecendo

alias perfeitamente confonnado com 0 fato( 62). Que se podia

esperar dai? A geral e persistente grita dos povos contra os

tributos eclesiast icos e alias urn sintoma bern sensivel do caminho

que tornara 0 clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun-

cionario da adrninistracao, expondo ao Vice-Rei os assuntos de

suas atribuicoes, assim rematava as consideracoes que faz sobre

o clero: "Eles s6 querem dinheiro, e nao se embaracam que

tenham bom titulo" (63). Noutro oficio do ana seguinte repeteconceito semelhante(64). Para se ter uma ideia do que ia pelos

conventos do Brasil em materia de costumes e COrmP9aO, Ieia-se

a longa exposicao que a respeito faz 0 Vice-Rei Luis de Vascon-

celos ao Secretario de Estado, e que repete resumidamente no

relat6rio com que entrega 0 governo ao sucessor que 0 vinha

substituir(65); se se desejar um depoimento ainda mais autorizado

e insurpeito, veja-se 0 que dizem de seus conventos respectivos

(60) Voyage aux sources, r, 347.

(~1) Jose Mariano da Conceicao Veloso, nas ciencias naturais; Jose

Joaqunn da Cunha Azeredo Coutinho nas ciencias economicas, Jose de

Sousa Azevedo Pizarro e Gaspar da Madre de Deus, na historiografia;

Jose Mauricio Nunes Garcia, na musica. E isto para nao falar senao doscontemporaneos do momenta que nos ocupa. Note-se ainda que 0 genero

Iiterario unico ell) que a colonia produziu alguma coisa de mais destaque

foi a orat6ria sacra. A nossa poesia nao pode ter a pretensao de ultrapassaro consumo interno e da erudicao literaria.

(62) Frei Ant6nio da Vitoria, superior dos Capuchos do Rio de J a-

neiro, Correspondencia de varias autoridades, 291.

(63) Carta de 20 de outubro de 1787. Correspotulencia de variasautoridades, 226.

(64) Loc. cit., 228.(65) Neg6cios eclesidsticos, e Oficio, 33.

338 Caio Prado JUnior

de um bispo, Frei Antonio do Dssterro, do Rio de Janeir~, e

em correspondencia oficial ao Secretario d: Estado, 0 segulI~te

texto tao elucidative da compreensao que tmha 0 clero colomal

de suas funcces sacerdotais? "Como premio e remunera~a~ do

trabalho, escreve ele, que estimula fortemente a todos, principal-

mente neste Brasil onde se cuida mais no interesse do que na

boa fama e gl6ria do nome, me parecia mais preciso e justa que

sua Majestade remunerasse enefectiva~en~e a este~ p~rocos

(aqueles que tivessem servido com os l?dlOS) com. 19r~Jas .de

Minas dando a cada um tantos anos de parocos nas ditas Igre)aS,po~ s~rem pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos

indios" (67). Poderiam ser alongados estes testemunhos, encon-

tradicos nos documentos da epoca, e que se nao abundam ta_nto

como os relativos a administracao leiga, nao sao menos precisos

ou convincentes. Mas bastara para supri-los todos, 0 que Saint-

-Hilaire cat6lica e crente convicto, deplorando-o embora e pro-

curando consolar 0 leitor cristae de tantos golpes vibrados a sua

sensibilidade, descreve com minucias em seu longo capitulo dedi-

cado ao clero brasileiro (68).

Nestas condicoes, nao e de esperar do clero colonial, animado

de tal espirito, grande diligencia no cumprimeI_Itodos seus dever~s.

E de fato, e 0 que se verifica. E.I: ex~rcera ahvam~nt<'; sua Iuncao

de satisfazer as necessidades espiri tuais da populacao la onde podeser e e bern remunerado por ela: nas par6quias "pingues" a que se

refere 0 bispo acima citado; nas capelas de engenhos abastados. _0resto da populacao fica ao desamparo. Para ela, os padres .rezarao

no maximo as missas e ministrarao a eomunhao da desobnga que

constitui 0 melhor de seus rendimentos. °resto do tempo, ocupar-

-se-ao em afazeres bern distanciados de suas obrigacoes: muitos sao

fazendeiros: era eclesiastico 0 melhor farmaceutico de Sao [oao del-

-Rei, e preparava e vendia ele proprio suas drogas; urn outro sacer-

dote vendia tecidos no balcao de sua loja ... ( 69) .

(66) Corre spondencia de varis autoridades, 168 e 285.(67) Correspondencia d o bispo do Rio de Janei ro (1754-1800), 42. 0

grifo e rneu,(68) Voyage aux provinces de Ri? de Janeiro,. r, cap. VIII. Ap~sar

de suas afirmacoes, que constituem 0 mm~ vcemente .h?el?, acrescenta Saint-

-Hilai re que neste assunto poderao acusa-lo de .re~lcenclas, mas. nunca ~e

exageros. Em outras muitas passagens de seus diaries, 0 naturah~ta fra?~es

abunda em observacoes sobre os padres e seus costumes no Brasil. Catohco

fervoroso, 0 assunto the despertava naturalmente a atencao, 0 maior e

unico elogio que lhes faz, em conjunto, e relativamente ~o cl~ro da cornarcade Minas Novas, onde afirma parecer -lhe haver menos snnonta que no resto

da capitania. rd. II, 256.(69) Saint-Hilaire, Voyage aux sources ... , I, 132.

ForTTWf(aOdo Brasil Contempordneo 339

 

E se assim cumpriam, ou deixavam de cumprir seus deveres

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fundamentais, que dizer dos de assistencia e amparo social quea tradicao, como seus estatutos e a divisiio estabelecida das

funcoes publicas lhes impunham? Algumas Ordens, aiguns deseus membros pelo menos, ocupavam-se ainda com a catequesedos Indios, e citei em capitulos anteriores alguns destes rarissimos

exemplos. Em certos conventos ministravam-se educacao e ensino:mas s6 nas maiores capitals, e para grupos reduzidos da populacao.Algumas irmandades leigas dedioavam-se aos enfermos, expostose indigentes, como os sempre lembrados com [ustica Irmaos da

Misericordia, Ha exemplo de dedicacao e trabalho, e nao querosubestima-los, mas infelizmente excecoes , casos raros num oceanode necessidades nao atendidas e de que ninguern se preocupava.A grande maioria do clero, secular e regular, des d e os mais altosdignatarios ate os mais modestos coadjutores, deixava-se ficarnuma indiferenca completa de tais assuntos, usufruindo placida-mente suas congruas e demais rendimentos, ou suprindo a defi-ciencia deles com atividades e neg6cios privados.

Que parcela de responsabilidade cabera disto, diretamente, apolitica metropolitana? Com a expulsao dos [esuitas, desfalcara-sea colonia do quase unico elemento que promovera em largaesc a la uma atividade social apreciavel, Mas os efeitos nocivos da

medida de Pombal, neste terreno de que nos ocupamos, nao

devem ser exagerados. Ja passara, fazia muito, 0 tempo dosN6bregas e Anchietas, e a Companhia de Jesus decaira conside-ravelmente. 0 que seria no futuro, e dificil se nao impossivelassentar com seguranc;:a. Mas avaliar a perda pela bitola daquelesprimeiros missionarios, seria anacronismo lamentavel,

A ineficiencia do clero no momenta que nos ocupa temcausas mais profundas que esta ou aquela medida singular dapolitic a metropolitana ou da pr6pria Igreja de Roma. Umas decarater geral, e que atingem 0 conjunto da estrutura eelesiasticauniversal nos tempos que precedem a nossa epoca, Nao me cabeaqui aborda-las, Outras locais, pr6prias da colonia. E estas seresumern na resposta a ser dada a uma questao fundamental:

estava a sociedade colonial apta a produzir um clero capaz, de

eleva do teor moral e na altura de suas funcoes? Havia nelaambiente social e moral para isto, e para a manutencao e floresci-mcnto de um clero daquele naipe? As conclusoes gerais sobre asociedade colonial em principles do seculo passado, e que meesforcarei por esbocar no proximo capitulo, fornecerao talvezalguns elementos para a resposta pedida.

340 Caio Prado Junior

Vida Social e Politica

Temos os elementos agora para concluirmos sobre a vida

social da colonia, conc1us6es que nos darao 0 tom geral desta

vida e 0 aspecto de conjunto que apresenta a obra da colonizacaoportuguesa no Brasil. Observamos nos seus difere~tes _a spect~sesse aglomerado heterogeneo de ragas que a colonizacao reumu

aqui ao acaso, sem outro objeti~o que realizar uma .vasta ~mI?resacomercial, e para. que contribmram conforme as clrcunsta~cIas eas exigencias daque1a empresa, bran cos europeus, negros af~lcanos,

indigenas do contine~te. Tres racas e culturas ~argameD:te dls~ar_es,de que duas, semi-barbaras em seu estado nativo, e cUlas aptidoes

culturais originar ias ainda se sufocara~, Iomecerao 0 con~n&en~emaior; racas arrebanhadas pela forca e incorporadas pela violencia

na colonizacao, sem que para isso se lhes dispensasse 0menor pre-paro e educacao para 0 convivio em uma sociedade tao estranhapara elas; cuja escola unica foi quase sempre 0 eito e a senzala.

Numa populacao assim constituida originariamente e em quetal processo da formacao se perpetuava e se mantinha ainda nomomenta que nos ocupa, 0 primeiro traco que e de esperar, eque de fa t o nao falhara a expectativa, e a ausencia de nexo moral.Racas e individuos mal se unem, nao se fundem num todo coeso:justap6e-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e gruposincoerentes que apenas coexistem e se tocam. Os mais fortesla<;os que lhes mantem a integridade social nao serao senao osprimaries e mais rudimentares vinculos human os, os res,:ltantesdireta e imediatamente das relacoes de trabalho e produc;:ao: emparticular, a subordinaeao do escravo ou do semi-escravo ao seusenhor. Muito poucos elementos novos se incorporarao a estecimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficara assim

reduzida quase exclusivamente aos tenues e sumarios laces queresultam do trabalho servil. E neste sentido que nao faltaria razaoa Alberto Torres, quando num aparente paradoxo que escandali-zaria seus contemporaneos, ele levanta a voz para fazer a apologia,nao como escravocrata, mas pela primeira vez como sociologo,

do regime servil ( 1) .

( 1 ) "A escravidao foi urna das poucas coisas com visos de organiza<;aoque este pais [arnais possuiu... Social e econornicamente, a' escravidao

Forma!;iio do Brasil Contempordneo 341

 

Para constatar 0 acerto da observacao, basta-nos comparar osestado primitivo. As relacoes servis sao e permanecer5.o relacoes

puramente materiais de trabalho e produ<;ao,. e nada ou quase

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setores da vida colonial em que respectivamente domina uma eoutra forma de trabalho, escravo ou livre. A . organiza<;ao doprimeiro, a sua solida e acabada estruturacao e coesao, corres-pondera a dipersao e incoerencia do outro. Vimos estes do isaspectos da sociedade colonial: de urn lado 0 escravo ligado aoseu senhor, e integrados ambos nesta celula organica que e 0

"cla" patriarcal de que aquele laco forma a textura principal;doutro, 0 setor imenso e inorgdnico de populacoes desenraizadas ,flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada;

chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, ea~quirindo assim os unicos visos de organizacao que apresentam.Fica-se em suma na tentacao de generalizar ainda mais 0 conceitode Alberto Torres, e nao ver na servidao senao 0 unico elementoreal e solido de organiza<;ao que a colonia possui.

Mas seja como for, a analise da sociedade colonial obriga

a urn desdobramento de pesquisa., Qualquer generaliza<;ao queabranja as duas situacoes tao diversas que nela se encontramcorrera 0 risco de erros consideraveis de apreciacao, Para com-preendennos, no seu conjunto, 0$ lacos que the mantem a coesaoe de que se forma a sua trarna, temos que ve-la como de fatoela se constitui: de urn nucleo central organizado, cujo elementoprincipal e a escravidao; e envolvendo este nucleo, ou dispondo-se

nos largos vacuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, emmuitos casos, a influencia da proximidade, uma nebulosa socialincoerente e desconexa.

Nao preciso acentuar mais uma vez 0 papel que a escravidaotern naquele primeiro setor, 0 organico da sociedade colonial.

Ma~ .devemos acrescentar aqui 0 carater primario das relacoesSOCIalS que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu.Primario no sentido em que nao se destacam do terreno puramentematerial em que se formam; ausencia quase completa de superes-

t~tura, dir-se-ia para empregar uma expressao que ja se vulga-nzou, Realmente a escravidao, nas duas funcoes que exercerana sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, nao determi-nara senao relacoes elementares e muito Simples. 0 trabalho

escravo nunca ira alem do seu ponto de partida: 0 esforco fisicoconstrangido; nao educara 0 individuo, nao 0 preparara paraurn plano de vida humana mais elevado. Nao lhes acrescentaraelementos morais; e pelo contrario, degrada-lo-a, eliminando mesmonele 0 conteudo cultural que porventura tivesse trazido do seu

deu-nos, por longos anos, todo 0 esforco de toda a ordem que entao

possuimos, e fundou toda a producao material que ainda temos." 0

Problema Nacional, 11.

342 Caio Prado Junior

nada mais acrescentarao ao complexo cultural da colonia.

A outra funcao do escravo, ou antes da mulher escrava,instrumento de satisfacao das necessidades sexuais de seus senhorese dominadores, nao tern urn feito menos elementar. Nao ultra-passara tambem 0 nivel primario e puramente animal do contactosexual, nao se aproximando senao muito remotamente da esferapropriamente humana do amor, em que 0 ato sexual se envolvede to do urn complexo de emocoes e sentimentos tao amplos que

chegam ate a fazer passar para 0 segundo plano aquele atoque afinal the deu origem (2) .

Em alguns outros setores, a escravidao foi mais fecunda.

Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressao e deGilberto Freyre, - que cerca 0 berco da crianca brasileira deuma atmosfera de bondade e temura que nao e fator de menorImportancia nesta florescencia de sentimentalismo, tao caracte-

ristica da indole brasileira, e que se de urn lado amolece 0 indi-viduo e 0 desampara nos embates da vida - nao padece duvidaque boa parte da deficiente educacao brasileira tern ai sua origem,- doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade pr6priasde uma sociedade nascente. Mas neste,como em muitos casossemelhantes, e preciso distinguir entre 0 papel de escravo e do

negro, 0 que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. Adistincao e dificil: ambas as figuras eonfundem-se no mesmo indi-

viduo, e a contribuicao do segundo se realiza quase sempre atravesdo primeiro. Mas nao e impossivel, e de uma forma geral, 0 quese conclui e que se 0 negro traz algo de positivo, isto se anulou

na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. 0escravo enche 0 cenario, e perinitiu ao negro apenas que apontasseem raras oportunidades. Ja notei acima que outro teria sido 0

papel do africano na formacao cultural da colonia se the tivessem

pennitido se nao 0 pleno, ao menos urn minimo de oportunidadepara 0 desenvolvimento de suas aptidoes naturais. Mas a escra-

vidao, como se praticou na colonia, 0 esterilizou, e ao mesrnotempo que the amputava a maior parte. de suas qualidades,

agu<;ou nele 0 que era portador de elementos corruptores ouque se tornaram tal por efeito dela mesma. E 0 baixo nivel de

sua cultura, em oposicao ao da raca dominante, impediu-lhe de

(2) "Le miracle de l'amour l1Umain, c'est que, sur un instinct tressimple, Ie desir, il construit les edifices de sentiments les plus complexeset les plus delicate" (Andre Maurois.) E este milagre que 0 amor da

senzala nao realizou e nao podia realizar no Brasil-colonia.

Eormaciio do Brasil Contempordneo 343

 

se afirmar com vigor e sobrepor-se a sua miseravel condicao, 110 daquilo que sai do circulo estreito desta forma particular de

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contrario do que em tantas instancias ocorreu no mundo antigo.

Em suma,. a escravidao e as relacoes que dela derivam, se

bern que constituam a base do unico setor organizado da sociedade

colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen-

volver, nao ultrapassam contudo urn plano muito inferior, e nao

frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas

para momentaneamente conservar 0 nexo social da colonia. No

o.utro setor dela, 0 que se mantem a margem da escravidao, a

sI,tuar;ao se apresenta: em cert~ sentido, pior. A ~norganizar;ao eai a regra. 0 que alias sua ongem faz preyer; vimo-lo anterior-~lente: aquela. parte d~ p0I:ula,r;ao 9ue 0 co~stitui e que vegeta

a margem da vida colomal, nao e senao urn den vado da escravidao,

ou diretamente, ou substituindo-a Ii onde urn sistema organizado

de vida economica e social-nao pede constituir-se ou se manter.

Para este setor nao se pode nem ao menos falar em "estrutura"

social, porque e a instabilidade e incoerencia que a caracterizam,

tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa-

gregar;ao social , tao salientes e caracteristicas da vida brasi leira,

e que notei em outro capitulo: a vadiagem e a caboclizacaof S).

E isto, em resumo, que 0 observador encontrara de essencial

na sociedade da colonia: de urn lado uma organizacao esteril no

que diz respeito a relacoes socials de myel superior; doutro, um

estado, ou antes urn processo de desagregacao mais ou menos

adiantado, conforme 0 caso, resultante ou reflexo do primeiro, e

que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos

adiante, e repisando urn assunto ja ventilado, que tais aspectos

correspondem grosseiramente, no terreno economico aos dois

setores que ai fomos ~nco~~ar: a grande la~oura e a'minerar;ao

de ;tm lado: as dema~s ~ti~I~ades que reum na catego~a getal

de eeonorrua de'subsistenCIa , do outro. A observacao e impor-

tante porque vern confirmar mais uma vez 0 que ji foi dito

sobre a caracterizacao da economia brasileira, votada essencial-

mente a producao de alguns g€meros exportaveis, este seu carater

unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade

(3) Hi! exeecoes a assinalar, exceeoes em que vemos se constituiremneste setor da vida colonial formas sociais mais aperfeicoadas. Mas saorara~, como a mais interessante e conhecida delas, 0 "mut irao" , que aindasubsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comume auxi lio mutuo na lavoura . Saint -Hi lai re teve ocasiao de observar 0 mutiriio

numa regiao do hoje Triangulo Mineiro. Voyage aux sources ... , II, 269.Parece contudo que se trata antes de uma sobrevlvencia indigena, e 0

exemplo de Saint-Hilaire refere-se alias a populacoes com alta dose desangne mestico, Nao se trataria entao de uma criacao, mas de um tracecultural que sobrou da vida cornunitaria do indio.

344 Caio Prado JUnior

atividade produtora.

A luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a sociedade

colonial, toma-se possivel compreender a maior parte dos seus

traces e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria

na observacao geral feita de inicio: a falta de nexo moral que

define a vida brasileira em principios do seculo passado, a po-

breza de seus vinculos sociais. Torno aquela expressao "nexo

moral", no seu sentido amplo de conjunto de forcas de aglutinacao,

complexo de relacoes humanas que man tern ligados e unidos os

individuos de uma sociedadee os fundem num todo coeso ecompacto . .A sociedade colonial se definira antes pela desagregacao,

pelas forcas dispersivas; mas elas sao em nosso caso as da inercia;

e esta inercia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa

estabilidade da estrutura colonial: para contraria-la e manter a

precaria integridade do conjunto, bastaram os tenues laces mate-

riais primaries, economicos e sexuais, ainda nao destacados de

seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul-

tado imediato da a?roximar;ao de individuos, raeas, grupos dis-

pares, e nao vao alem deste contacto elementar. E fundada nisto,

e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra

da colonizacao pode progredir.

Poderiamos acrescentar a pressao exterior que 0 poder, a

autoridade e ar;ao soberana da metr6pole exerceram sobre asociedade colonial, contribuindo assim para congrega-Ia. Nao ede desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten-

sao e penetracao - ja 0 vimos ao falar da administracao publica

na colonia, -. contou por muito na subsistencia e manutencao da

estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que

precedem imediatamente a Independencia e a seguem, estao ai

para demonstra-lo. 0 enfraquecimento daquele poder levou 0

pais, durante muito tempo, para a iminencia da anarquia, que

alias muitas vezes, e em varies setores, embora restritos, se tomou

efetiva; e s6 se conteve com a constituicao de urn Estado que,

embora nacional de nome e formacao, reproduziu quase integral-

mente a monarquia portuguesa que viera substituir; que nao

brotou do intimo da sociedade brasileira, incapaz de tal criacao,mas the e imposta do exterior, continuando a exercer sobre ela

o mesmo tipode pressao que 0 daquela( 4).

( 4 ) Nfio se caracterizara isto unieamente pelo fato d.a perpetuacao daorgnniza<;ao monarquica no Estado nacional brasileiro, investida alias namrxmn dinastia: 0 que por si ja e uma prova clo artif icialismo da constituicao'Ill" adot.unos. Nao havia no Brasil, afora 0 habito do passaclo, basealguma para 0 trono. Mas nao If : somente nisto que se assinala a persistencia

U U regime politico anterior, embora sob vestimenta nacional; e 0 pro-

Forma<;iio do Brasil Contempordnec 34S

 

" . Ha ~inda que levar em conta uma certa uniformidade de

ah~des , em~reguemos es~a expressao ampla, que identifica 0

ociosidade que para os senhores resulta do 'b"abalhQ ,efifr~gtie' ,int,e[..ramente a escravos. E esta uma atitude ~,ieole.gica POt d~mais:

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conjunto colonial e suas varias partes. Uniformidade de senti-

rnentos, ?~usos, de crencas, de lingua. De cultura, numa palavra.

E l: servI~Ia, e de f~to serviu de base moral e psicol6gica ara

a 1~rma9~,0 do .BrasII como na9ao, e the proporcionou a uniJade

nacional !a rea~Izada na geografia e na tradicao, Mas neste sentido

ela se ,afmnara post_:riormente, em oposicao a metr6pole e mais

tar~e as outras nacoes estrangeiras. E antes urn fardo politico,

e na~ tr~: no mo~ento e no assunto particular que nos ocupa,

cont~I~UJ9a.oapre:lClvel para trama da sociedade colonial. Aquela0posI~a.o amda nao representa papel social, mas comeca apenaso polftico,

<?aracterizemos agora, mais de perto, a vida colonial e as

rclacoes qu.e ?e]a vamos encontrar, Tod~ sociedade organizada

s~ f~nda pIeclp~amente na regulamenta9ao, nao importa a com-

plexidade postenor 9u~ dela resultara, dos dois instintos primarios

do }-!omem: 0 econorrnco e 0 sexual. Isto nao vai aqui como afir-

m~9ao de principio, incablvel em nosso assunto mas servira

umcamente de fio condutor a analise que vamos empreendsr das

relac;6es fundamentais que se estabelecem no seio da sociedade

colonial. Na primeira categoria, 0 elernento que definira, e na

bas~ do qua! se forrnarao aquelas relacoes, e 0 trabalho, tornado

aqu~ n~ ~entldo amp]o. e mais geral de atividade que proporcionaao individuo seus meios de subsistencla. Na outra 0 conteudo

seI;ftoas relacoes que se estabelecem entre sexos opostos e as que

dai resultam: as relacoes de familia, em suma.

.R,elativamente ao. trabalho, ja se viu acima alguma coisa que

ser':'Ira par~ caracterizar os laces que dele derivam. Assim 0

efeIt.o depnmente que· exerce sobre sua conceituacao 0 regime

servil. Ha outro de quase igual importancia: 0 estimulo para a

longam~n.to ?e. urn situacao politica e institucional de conjunto, que s6se mO~lflcar~ de uma forma substancial em periodo muito adiantado daevolucao _nac lOnal d.o p.a is. E aquilo era tao bern sentido, que as revolucoese agl tac;oe,~ cia pnmeira parte do Imperio tomam 0 carater de reacoes

c~:1tra 0 govern? do Rio de Janeiro", tal como fariam contra 0 deLI,~bo~. 0 federahsmo ,b~asileiro tern ai a sua essencia, pelo menos 0 dapnrncira 'pa.rt~ do I,~peno. - ~ pobreza da vida social brasileira encontran ,a , cons t~ tUlc;ao pohtl~a do pals indcpendente uma. confi rrnacao flagrante .~ e!a a, causa das ,cilhculdades e problemas de orgamzac;ao e funcionamentomstttu~~~?al gue ~l~emos de enfr entar , e q~e leva ram a te aque le esd ruxulo~ art if~e!al Imperio constltuclOnal que tivemos, Compare-so isto paraIlustrac;,IO, com 0 que ocorreu nas colonias inglesas da America do' Norteque, separando-se cia nictropole, criaram UlU sistema nao s o original degov,e~no, mas que, fez epoca e laneou urn marco saliente na evolucaopolit ica da Humamdade.

346 Ccio Prado JUnior

conhecida para nelanos demorarmos. Urn e 6Utro e f e i t ! , ' ) 1 llaescravidao se sornarao para fazer ou evitar qua isql !l~ ' a : .t iv idad¢s ,_A indolencia, 0 6cio dos casos extremos, mas sempre uma ati-

vidade retardada, uma geral moleza e um minimo de dispendio

de energia resultarao dai para 0 conjunto da sociedade cokmia1.

Tudo repousara exclusivamente no trabalho forcado e nao con-

sentido imposto pela servidao; fora disto, a atividade colonial e

quase nula. Onde falta a obrigaC;ao sancionada pelo acoite, 0

tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a vontadehumana, ela desaparece. Os, libcrtos que se fazem }lor via de

regra vadios, apesar da escola em que se formaram, edisto uma

das provas.

Isto, para as atividades de natureza fisica, e regra pratica-

mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar

os musculos no trabalho, E de Luccock uma anedota bern ilus-

trativa do caso: tendo ido buscar urn serralheiro de cujos services

precisava, este 0 fez esperar longamente na expectativa de um

negro de servi{;o para transportar sua ferramenta de trabalho,

pois carrega-la pelas ruas da cidade nao era ocupacao digna de

urn homem livre (5). As outras funcoes se praticam sempre com

urn minimo de energia. Uma lentidao e economia de esforcos

que faziam a cada passo 0 desespero dos energicos europeusque nos visitavam.

Somente num setor encontramos mais atividade: e no dos

colonos recentes ainda nao contaminados pelo exemplo do pais;

destes reinois que. vinham para ca "fazer a America", avidos de

ganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho e

arnbicao muito diferente da dos brasi leiros. Eles representam, com

os escravos, os unicos elementos verdadeiramente ativos da colonia.

Num interessante ensaio sobre as causas da Independencia, escri to

em 1823 e dedicado ao soberano portugues, Francisco Sierra yMariscal analisa com muita clareza este abismo de concepcao

e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.

Enquanto esses ultimos, chegados ao Brasil de maos abanando,

escrevera Mariscal, "nao ha nada a que se nao sujeitem, e comeconomia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", 0 brasileiro,

nascido na abastanca, "0 orgulho se apodera dele, e este e sempre

maior que os meios de 0 sustentar... nao conhece 0 trabalho

nern a economia , .. e quando chcga ao estado viril, ja esta pobre",

(5) Notes, 17.

Eormaci io do Brasil Contempordueo 347

 

porque, conclui com muita 16gica 0 nosso autor, "nao ha cabedal

que chegue a quem gasta muito, e nao ganha nada" (6).

Mas seja como for, 0 indio e com ele seus descendentes ma~sou menos mesticados, mas formados na sua escola, e que consti-

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Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da

colonia relativa ao trabalho, de generalizada que e, e mantida

at raves do tempo, acabara naturalmente por. se integrar na psico-

logia coletiva como um trace profundo e inerraigavel do carater

brasileiro. A pregui<;a e 0 6cio, aqui n~ Brasil, "ate se pega

como vis go", did Vilhena. Mas se a escravidao, nas suas varias

repercuss6es, e a responsavel principal por isto, ha outros fatures

de segundo plano que nao deixam de ter 0 seu papel. 0 principal

deles e a contribuicao do sangue indigena, consideravel comosabemos. A indolencia do indio brasileiro tomou-se proverbial,

e de certo modo a observacao e exata. Onde se erra e atribuindo-a

a nao se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vida

nativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas que

conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, 0 selva gem brasi-

leiro e tao ativo como os individuos de qualquer outra ra<;a. Sera

indolente, e s6 ai 0 colona interessado 0 enxergava e julgava,

quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso do

seu, onde e forcado a uma atividade met6dica, sedentaria e or-

ganizada segundo padr6es que nao compreende. Em que ate os

estimulos nada dizem a seus instintos: a ganancia, a participacao

em bens, os prazeres que para ele nao sao nem bens nem prazeres.

Nada houve de mais ridiculo nos sistemas de educacao dos indiosque isto de ten t ar leva-los por tais incentivos, modelados por

figurinos europeus e estranhos a seus gostos (7) .

(6) Ideias gerais sabre a reooluciio do Brasil, 55. Esta diferenca ede tal forma produto do meio, que os proprios filhos do portugues enrique-cido, brasileiros de nascimento e educacao, observa 0 mesmo Mariscal,nao seguem 0 exemplo dos pais, e "entrarao na ordem geral, he dizer,cahem na pobreza."

(7) Ate urn homem profundamente conhecedor das racas de sua terranatal, 0 Para, e muito Simpatico a elas, como Jose Verissimo, nao enxergouinteiramente esta situacao paradoxal dos indios perante a civilizacao. Aindolencia, a falta de ambicao que se observam no indio nao sao senao

fruto de sua completa ind ifercnca, quando nao de hosti lidade , relat ivamentea uma civilizacao que se Ihe irnpos, e cujo valor, com todos os atrativosque tern para nos, e para ele nulo. Enxergar no indigena brasileiro, ouem outras racas de cultura diferente da nos sa, falhas de carater onde naoha senao atitudes proprias de urn inadaptado ou revoltado, e 0 vczosobretudo dos anglo-amer icanos. Mas qual seria, perguntamos nos, a reacaode urn destcs energicos anglo-saxoes a qucm Ihe pedisse um dia de trabalhoa ser pago com um [antar de piriio de arai all de 1Handioca puba? Mutati s

mutandis, e a mesma coisa que S0 passa com a indigena. 0 unico cstimulocivilizado que 0 indio compreendeu foi a aguanlenle, que por isso acolonizacao empregou largamente.

348 Colo Prado Jun ior

tuem parte tao apreciavel d~ populacao .colo_nia~:tem por fei<;ao

dominante, para todos os efeitos da colonizacao, a falta completa

e absoluta de energia e acao" (8 ). E esta seria uma. das princip~is

raz6es por que as regioes onde eles formam contmgentes muito

grandes nunca fizeram mais que vegetar. 0 govemadoc do Para,

D. Francisco de Sousa Coutinho, escrevia desalentado a metr6pole

depois de tres anos de governo : "0 poderoso inimigo destes

habitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de seu

atraso

ea pregui<;a deles" (9) .

. Ao influxo do sangue indigena como fator de indolencia,

ainda ha que acrescentar esta causa geral que e 0 sistema ec~no-

mico da colonia, tao acanhado de oportunidades e de perspectivas

tao mesquinhas. Nao seria um tal ambiente propicio a estimular

as energias e atividades dos individuos, uma escola muito favoravel

de trabalho.

De tudo isto resultara para a colonia, em conjunto, um

tom geral de inercia, Paira r;a atmos~~ra em 9-ue a popu~a<;ao

colonial se move, ou antes descansa, um VIruS generahzado

de preguica, de moleza que a todos, com raras excecoes, atinge.

o aspecto do Brasil e de estagnacao, ASai~t-~ilaire, d~pois de lon-

gas peregrina<;oes e de uma permanencla Ja de muitos an.os ~m

contaeto intimo com a vida do pais, nao escondera sua admiracao,e por isso elogiara ealorosamente os moradores de Itu e Sorocaba

(Sao Paulo), porque encontrou ai .. , urn jogo de bola; no est~do

de espfrito em que se achava, e tendo em vista 0 que presen;:tara

ate entao, constituia isto ja uma "pro va" de energi~ (10) . .Ate nos

seus prazeres e folguedos, a populacao ~olon~aI e apatica (~l).A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir ~~tre os fat~res

da tristeza brasileira, que nao vem somente da luxuna e da cobica,

mas sobretudo de uma inatividade sistematica, que acaba sc ~po-

(8) Jose Verissimo, Populaciie« indigenas da Amazonia, 308 ..(9 ) InfOf'171aYoes,66.( 10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ... , I, 378. . .

(11) Ser ia mui to interessante estudar 0 folclore brasllelro sob est" ,aspecto em paralelo com 0_de o_utrospaises, Pelo que 9-u.alquer urn ja poderapor si observar a conclusao nao oferece a menor duvida, Compare-so 11mfestejo popular' brasilei ro com 0 de qualquer das popula~6~s da Europ~,por exemplo: 1 1 apatia e tristeza daquele, corresponde 0 entusiasmo e alegriadestes ultimos. 0 proprio Camaval, para quem 0 tiver observado comatencao niio escapa 1 1 regra. Afora as expans6es de carater acentuadamenteorgiaco ou de cultos de crencas ancestrais que nos dias comuns lev am 0

individ~o 1 1 policia, nada mais ~a nele. - Note-se ainda .q~e .a elementobrasileiro mais ativo neste setor e 0 negro, que tern a tradicao do trabalho

escravo.

Eormaciio do Brasil Contempordneo 349

 

derando do individuo todo, tirando-lhe ate a energia de rir efolgar( 12).

raro Se eterniza, p6rque o novo colono, mesmo estabilizado: aca-bara preferindo a facilidade de costumes que the proporeionam

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Que dizer, nestas condicoes, do teor economico da colonia?Nao .pode deixar de ser, e nao foi efetivamente, mais qUe limaIastima, Porque afora 0 trabalho constrangido e mal executa.lodo escravo, nao se vai alem do estritamente necessario para n;'operecer a mingua. E isto explica suficientemente, a par das condi-c;6es gerais da economia que ja assinalei, e que sao afinal a causaindireta de tudo is to que estamos vendo, 0 baixo, 0 infimo padraode vida da populacao colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo

as classes mais favorecidas. Do Brasil em conjunto, dira Vilhenaque, apesar dos recursos naturais dele, e a "morada da pobreza."E aos habitantes da Bahia, a segunda, se nao a primeira cidade

da colonia em riqueza, com excecao dos gran des comerciantes ede alguns senhores de engenho e lavradores "aparatosos", que

alias nada mais tern de seu que esta aparencia de ricos, chamarade "congregacao de pobres" (13).

Vejamos 0 segundo grupo de relacoes sociais.a que me referiacima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsossexuais dos individuos. Sobre os costumes do Brasil-colonia, nesteparticular, ha uma documentacao abundante que s6 faz 0 desa-

nimo do pesquisador obrigado a escolher. 0 desregramento atingetais proporcoes e se dis semina de tal forma, que volta debaixo

da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve-nido que seja, A causa primeira e mais profunda de urn tal estadode coisas e com certeza, e ja toquei incidentemente no assunto,

a forma pela qual se processou, na maior parte dos casos, aemigrac;iio para 0 Brasil. Ela nao se faz senao excepcionalmentepor grupos familiares constituidos, mas quase sempre por indi-viduos isolados que vern ten tar uma aventura, e que mesmo tendofamilia, deixarn-na atras a espera de uma situacao mais definidae segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e nao

(12) Paulo Prado, Retrato do Brasil. A tristeza brasileira foi observadapor Saint-Hilaire, que a opoe a alegria do camponio frances (Voyage (lUX

sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diaries.

Em particular no que diz respeito a s criancas, em que deplora a faltade espontaneidade e contentamento, id., I, 374. De tudo is so poderiamostalvez excetuar 0 Rio Grande do SuI, de formacao alias tao dlferente doresto do pais.

(13) Becopilaciio, 926 e 927. - A pobreza da populacao colonial etestemunha.da nao s6 pelo depoimento de todos os observadores con tern-poraneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseraveis vestigios que noslegou. Onde as construeoes, os objetos, todo este aparelhamento que urnasociedade mesmo mediocre deixa sempre atras de si? Nada ou quasenada possuimos de uma epoca que nao esta ainda a seculo e meio den6s; e 0 que ficou e em regra urn pobre testemunbo,

350 Caio Prado Junior

mulheres submissas de rac;as dominadas que encontra aqui, asrestricoes que a familia the trara, E quando nao, ja estara taohabituado a tal vida que 0 freio da mulher e dos filhos nao

atuara nele senao muito pouco( 14).Lancadas nesta base nao familiar, outras circunstancias vern

reforcar a irregularidade dos costumes sexuais da colonia. A escra-vidao, a instabilidade e inseguranca economicas ... ; tudo contri-buiria tara se opor a eonstituicao da familia, na sua expressao

integra, em bases s6lidas e estaveis. A formacao brasileira, aocontrario do que se afirma correntemente, nao se processou, salvono casu limitado e como veremos, deficiente, das classes superioresda "casa-grande", num ambiente de familia. Nao e isto que ocorrecom a massa da populacao: nem com 0 colono recem-chegado,. nem com 0 escravo, escusado acrescenta-Io, talvez ainda menoscom esta parte da populacao livre, economioa e socialmente ins-

tavel que temos ja visto sob outros aspectos, e a qual falta basesolida em que assentar a constituicao da familia ( 15).

Quanto a casa-grande, se e certo que 0 seu nucleo e a familia,ou antes, a familia do senhor, e s6 ele (da pequena, da minusculaminoria portanto, e isto se esquece freqiientemente); ese, nestesentido, e urn ambiente familiar que cerca 0 filho-rico da socie-

dade colonial, excecao, no conjunto, quase unica; ha que abrirlarga margem para restricoes se pelo conceito de familia naoentendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com-plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede a familia,

nas sociedades da nossa civilizacao, 0 grande papel de formadordos individuos e do seu carater, Neste sentido, a cas a-grandeficou muito aquem de sua missao, 0 sistema de vida a que dalugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baixo

teor moral, as facilidades que proporciona as relacoes sexuaisirregulares e desbragadas, a indisciplina que neIa reina, maldisfarcada por uma hip6crita submissao, puramente formal, aopai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola devicio e desregramento, apanhando a crianea desde 0 berco, que

de formacao moral( 16). A familia perde ai inteiramente, ou quase,

(14) Ainda hoje isto se verifica, e a cada passo topamos com imi-grantes casados na Europa e amancebados no Brasil.

( 15)ll: talvez por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origemfamiliar Esta orige~ eleva e. distingu~ os in~i~i~uos, porque e p~6p~ia s6de umaclasse supenor reduzida, Ser de familia entre n6s, constituia urndist int ivode superioridade, de quase nobreza.

(16) "SDbr e este assunto, Vilhena nos fomece uma sintese admlravelde observacoes a s ' quais nao precisamos acrescentar nada. Recopilat;;ao. 138 e

Form~iio do Brasil COfltempordfleo 351

 

lis suas virtudes, e em vez de set 0 que the concede razfio moralbasica de existencia e que e de disciplinadora da vida sexual

tor e de c1asse que impedia a regularizacao de muitas situacoes'extramatrimoniais; preconceito tao forte. que pode levar ate adesenlaces extremos como este caso traglco de urn ex-governador

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dos individuos, torna-se pelo contrario campo aberto e amplo parao mais desenfreado sexualismo. Advirta-se que nao e no terrenodos sentimentos que me eoloco aqui; nao sao as reacoes emotivase afetivas nas relacoes reciprocas de homem para mulher, ou depais para filhos que procuro negar, au mesmo subestimar. Atepelo contrario, destas s6 se poderiam recriminar os excessos, der-ramando-se ern condescendencias e tolerancias sem limite quenao foram pouco responsaveis pela rna educacao que receberamas gera90es coloniais (17). Mas nao e por este lado somente quedevemos analisar a familia; 0 seu conteiido e mais amplo queo da simples esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou afamilia brasileira pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente.

Reduzido assim, extensiva e intensivamente, 0 papel da familiana vida colonial, ficou aberta larga margem a indisciplina sexual.Nao podemos aqui limitar nossas observacoes ao fato da maiorou menor freqiiencia do casamento, pois este nao s6 nao e, por siapenas, uma garantia de regularidade e disciplina sexuais, COmoesta regularidade, entendida em termos sociologicos, nao e exclu-siva das relacoes legalmente sancionadas. Precisamos por issodirigir nossas atencoes sobretudo para 0 grau de estabilidade queapresentam as relacoes sexuais, sejam ou nao sancionadas legal-

mente pelo casamento. E isto e em nos so caso, e para os fins quetemos aqui em vista, particularmente importante, porque segundoo que se colige dos depoimentos eontemporaneos, quase se podeafirmar que, fora 0 caso das classes superiores, 0 casamentoconstitui uma situacao excepcional. Mas e preciso reconhecer quemuitas das situacdes legalmente irregulares se explicam por outrosmotivos que a simples indisciplina sexual. Assim, em muitos casos,a dificuldade da realiza9aO do casarnento pela distancia em quefica 0 sacerdote celebrante nestas par6quias imensas, onde urnpadre s6, e quase sempre pouco diligente, tem de atenderpopulacoes esparsas por dezenas de Ieguas de raio. Maior obs-taculo a realizacao do casamento, e mais freqi.iente, e 0 seu custo;a este respeito, as queixas eontemporaneas abundam, e esta-se

sempre as voltas com a questao (18). Ainda ha 0 preconceito de

segs. E lembremos que ele e urn professor, urn educador, que fala portanto

com autoridade e experiencia postas a service de uma Inteligencia criticanotavel,

(17) Veja-se 0 que a respeito escreve 0 mesmo autor ja citado acima:Sierra y Mariscal, Ideias gerais sabre a revalw;ao do Brasil.

(18) Para nao deixar de. citar urn depoimento entre os muitos que

possuimos, remeto 0 leitor para 0 que diz a respeito urn dos espiritos mais

esclarecidos de principios do seculo passado: 0 Cons. Veloso de Oliveira

3 52 Ca io Pr ad o Junior

de duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que,. apaixona?opor uma mulher de condicao humilde, de quem tivera variesfilhos, preferiu suicidar-se a leva-la, casada com ele, para 0 Reino,de onde 0 chamavam(19).

Como se ve, seriam freqiientes os casos da vida em com~mextra conjugal que nao se poderiam s6 por isso, e pa~a ? ~fe.ltoque temos em vista, considerar como exemplos de indisciplinasexual, Alias, de tao freqiientes que eram, acabam nem. se notando,

e a opiniao publica os admitia sern 0menor constrangimentot zn).Mesmo contudo sem formar nosso [uizo sobre os costumes sexuaisda colonia com esta irregularidade aparente e tao generalizada,temos outros elementos seguros para nos fixar sobre eles. "Osbrasileiros" escrevera Hercules Florence em 1828, relatando aexpedicao Langsdorff que acompanhou na CJu~lidadede desen~ist~,"cujas amaveis qualidades sao tao caracteristicas e?con.t~~m, incli-nados como sao aos prazeres, nas mulheres do palS facilidade decostumes, e em geral nao pensam em se deixar prender nos laeos

( Me mO ria s ab re a a gr ic ult ur a, 123). Os emolumentos matrimoniais cobra-

dos 10 ' clero nao eram s6 pesados em confronto com a pobr~za da

popuk<;:1i.O;os abusos sao freqi ientes. ~ssim .no caso .das provisoes, h~enc;:aspara 0 casamento, cuja cobranea Foi eonsiderada ~eg~ por. ac6rdao d.a

Junta da Coroa de 28 de marco de 1791, 0 que nao impediu que. conti-

nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos pro!estos. VeJa-s~ a

este respei to a longa controversia entre 0 Senado da Camara e 0 blSPO

de Sao Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424

e outras passagens. - Esta questao do custo dos casamentos. e 0 ~b~t~culo

que oferecia a regularlzacao de situaedes ilegais, s '6 pela l~POSsl~lh~ade

material que detennina, tern no Brasil urn papel de c~rt~ tmportancia, .euinda -depois da Republica, achou 0 legislador consbtu~t~ _que devia

inclinar a obrigacao da sua gratuidade no texto da Constituicao d e 1891

(art. 72 § 4.°). Alias inutilmente; 0 mal era muito ant igo para desaparecer

s6 com isto.

( 19) Saint-Hilai re, que 0 conheceu pessoalmente quando governador

de COUlS,relata a tragedia ocorrida em 1821. V oyag e a ux so urce s ... , I I, 83.Sohre 0 preconceito, como obstaculo contra .0 ~s~ento, Cunha Matos

refere casos interessantes em Coias (CorografUl h i st 6 rICa_ ,_29~). ~ma d~smaiores pressoes contra as aliancas com m~lheres de ~on~c;:~o inferior partla

das innandades leigas, cujos estatut?s mcl~am_ disposi tivos e~pressos .a

respeito, cominando pena de exclusao aos irmaos que contraissern tais

casamentos.

(20) Saint-Hilaire, Vo ya ge a ux p ro vi nc es de R io d e ~ ane ir?: .. , II, .28.o citado Covernador Delgado de Castilho, quand.o em Coias, vrvia publica-

mente em palacio com a amante e os filhos. Ninguem 0 estranhava. :e 0

futo do casamento fora de sua classe, e nao a mancebia, livre com quem

se quisesse, que provocava repulsa.

• Forma~iio do Brasil ContemfJordneo 351

 

20 matrimonio." :8 acrescenta mais adiante que "as mocas Hlhns

de pais pobres nem sequer pensam em casamento., nao lhes passa

... t" di M d' d d ' .a,n~en os , .co~o A se. izra, as , ai para urn ver a eiro, e~pljl.toreligioso, val distancia consideravel. As festas religiosas indi'g-navam 0 piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes eeri-

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pela cabeca a possibilidade de arranjarem um marido sem 0

en go do do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poderviver do trabalho honesto e perseverante, sao facilmente arras tadas'~t,vida licenciosa" (21 ). Florence repete quase textualmente 0 queo Marques do Lavradio escrevia meio seculo antes: "As mulherespor se nao empregarem e por falta de meios para se sustentarem,se prosti tuem" (22).

Tocamos aqui um ponto que e 0 mais alarmante sintoma da

geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial:a larga disseminacao da prostituicao, Nao ha recanto da coloniaem que nao houvesse penetrado, e em larga escala. Nao falemosnaturalmente das grandes e medias aglorneracoes, onde 0 fatoe mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemosos pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a suapopulacao fixa e constituida, alem dos vadios, de prostitutas. Eurn depoimento este geral: "N6s mais humildes povoados, teste-munhara Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostracom uma imprudencia que nao se encontraria nas cidades mais

corrompidas da Europa." (23). Circunstancia alias que explica 0

destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu-lacao, cuja masculina ja vimos noutro capitulo: os desocupados e

vadios, vivendo de expedientes, com um pe na ociosidade e outrono crime.

Formava a Religiao, para 'tarnanha corrupcao, dique de

alguma eficacia? Que a crenca religiosa tem na vida colonialpapel consideravel, ja 0 notei em outro lugar. Esta aparece lite-ralmente entranhada por atos e cerimonias do culto. Folheando

as Atas da Camara de sao Paulo p. ex., nao se virara pagina quaseem que nao se encontre algum "termo de ajuntamento" para 0

fim de comparecer a Camara incorporada a missas importantesou de ac;ao de grac;a~ por isto ou aquilo, tedeuns, procissoes -

(21) Esboco da viagem de Langsdorff, 361 e 448.(22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit" p. Fernandes Pinheiro, Os

u l t i 1 7 U J S Vice-Reis do Brasil , 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidadeque os homens tern com 0 trato das mulheres se segue tambem os poucosque buscam 0 estado de casado."

(23) Voyage aux sources ... , I, 127. Saint-Hilaire e em materia destanatureza de uma reserva bern propr ia do seu fe it io profundamente re ligioso.Seus diarios sao todos de reticencias no assunto, e percebe-se a sua repug-nancia em tratar dele. Mas a fidelidade do observador nao pode escondero que tao escandalosamente se evidencia; e dai 0 interesse que apresentampara nos observacoes arrancadas a tamanhos escrupulos, Outros viajantesforam mais frances.

354 Caio Prado JUnio,

rnonias, em que ridiculas palhacadas se misturam aquilo que areligiao oat6lica apresenta de mais respeitavel" (24). Sobre 0

espirito ~eligios~ ?~ coloni~, 0 ~esmo at~tor endo,~sa a opiniaoque OUVlU do vIgano, de Sao Joao del-Rei, e que os brasileiroseram naturalmente religiosos, mas que sua religiao nao ia alemdos sentidos, e quanto aos pastores, este parecem considerar aof ens a e 0 perdao como simples funcoes maquinais" (25).

Nao e assim de esperar dos mandamentos religiosos um freioserio a corrupcao de costumes. 0 culto fica nos ritos externos,estes sim rigorosamente observados. Quanto a moral, era-se deuma tolerancia infinita. Coisa que nao e para admirar: afora ascausas gerais e mais profundas que numa sociedade como a nossada colonia, e cuja feic;ao ja ficou bastante caracterizada naspaginas acima, tornam in via vel uma eompreensao elevada daReligiao e do seu culto, cabe nisto ao clero, alias vitima tambem

d:s mesI?as circunstancias, um~ boa dose de res,Ponsabilidades.Nao COgltOUele nunca, em conjunto, de levar a serio a instrucaoreligiosa: 0 seu desleixo neste terreno e lamentavel, e parece que

os s~cerdotes nao te~ outra funcao na colonia que presidir oupraticar os atos extenores do culto e recolher os tributos eclesias-ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religiao se con-

~erva s6 por tradicao, pois ~s fieis, afastados de centros povoadoslmportantes, passavam a VIda num completo isolamento e semo menor socorro espiritual" (26). Nos outros lugares, embora pre-sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas

e com seus neg6cios, ja 0 vimos anterionnente. E a este abandonoem que deixa a populacao, acrescenta 0 clero 0 exemplo tao

freqiiente. de ~ma, vida escandalosa e desregrada. 0 resultado

de . ~_do ISto ~ao e de admirar porta~to que tenha sido aquelareh~Iao reduzida a um ~squeleto de praticas ex~eriores e maquinaisvazio de qualquer sentimento eleva do, e que e ao que se reduziuo catolicismo na colonia (27).

(24) Voyage aux sources I 102.(25) "Les pasteurs semblent considcrer comme un [eu l'offense et Ie

pardon" loc. cit.(26) Voyage aux sources, II, 238.

(27) . Ha, ql~e acrescentar as deturpaeoes da mais grossei ra supersticao,fruto da ignorancra e sobretudo da contaminacao de crencas e cultos estra-nhos ao, cr~st!anism~, t!azidos, pelos africanos e corrompidos pela escravidao.A contribuicao . do ,mdlgena e pequen.a pois em materia de crenca religiosa,su~ cu ltura ~atJva e como se.sabe rudimentar, - Somente os jesui tas, pode-seafinnar, realizaram obra mars intensa e sistematica de instrucao e educaciio

Format;iio do Brasil Contempordneo 355

 

subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor, Relacao, Supli-Janeiro (54). Hospitais nao havia s~nao uns rarfs~im9~ 'II?~I}tares';como 0 do Rio de Janeiro, que se instalou no antigo cQ.leglfJ~os

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ca<;l'io de Lisboa, as vezes ate Mesa do Desembargo do Paco,

arrastando-se sem solucao por dezenas de anos. A seguranca publi-

ca era precaria, Ja vimos os recursos e adaptacoes a que a

administracao teve de recorrer para suprir _sua incapacidade neste

terreno da ordem legal, delegando poderes que darao nestes

quistos de mandonismo que se perpetuarao pelo Imperio a dentro,

se nao a Republica, e tomando tao dificil em muitos casos a

acao ,legal e politica da autoridade. Mas mesmo com esta adapta-

<;ao forcada, nao se conseguiu fazer predorninar a ordem; a

inseguranca foi sempre a regra, nao s6 nestes sertoes despoliciados

que constituem a maior parte da colonia, mas nos pr6prios grandes

e maiores centros, a sornbra das principais autoridades. Se 0

bandit ismo e 0 crime permanente nao assolaram a colonia exces-

sivamente, isto se deveu muito mais a indole da populacao, e

nao as providencias de uma administracao inexistente na maior

parte do territorio da coIonia (52) .

As financas nao estao em melhor postura; alguma coisa, e

bastante ilustrativa, ja foi dita acima com respeito a arrecadacao

das rendas publicas. 0 manejo delas nao e de melhor qualidade.

Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas

financas temos noticias, senao em regime permanente de deficit.E urn deficit "desorganizado", se podemos sem pleonasmo acres-

centar estequalificativo para caracterizar 0 sistema financeiro

da colonia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas

se resolvia sumariamente com 0 calote, nao se pagando, nem

com boas intencoes, QScredores que nao fossem protegidos das

autoridades. Nem 0 soldo das tropas se satisfazia regu1armente,

e 0 espetaculo de soldados mendigando pelas ruas era comum.

Se nas suas Iuncoes essenciais a administracao era isto, nas

outras e pior. A instrucao publica estava reduzida a urnas poucas

aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais

centros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas

ordens religiosas( 53). Os services de higiene e saude publica se

constatam pelo estado das principais cidades, Bahia e Rio de

(52) Sobre a [ustica e seguran<;a na colonia, veja-se a cri tica de Saint-

-Hilaire, que resume admiravelmente 0 assunto: Voyage aux provinces deRio de Janeiro ... , I, 364 e segs.

(53) Sobre 0 ensino da Bahia, consulte-se Vilhena, Recopila~iio, CartaVIII, que escreve com a autoridade pr6pria de professor regio que era.

Para 0 Rio de Janeiro, vejam-se as interessantes consideracoes duma repre-

sentacao dos professores regios em 1787, e publ icada na Correspondenciade oorias autoridades, 215. - Urn resume sumario, mas bern feito, da

instru<;lio colonial, e 0 trabalho de Moreira de Azevedo, Ins tro~ao nostempos coloniais.

334 Caio Prado JUnior

Jesuitas(55), e as Santas Casas de Misericordia, que emb@ra,

poucas, constituem a mais bela e quase ~ni~a inst~fuic;a~, so~!alde certo vulto da colonia. Das obras publicas, vimos J 3 uma

amostra nestes miseraveis caminhos e mais vias de comunicaeao.

E afora isto, legou-nos a colonia pouquissimas obras dig:na,~'de

mencao; algumas fortalezas mediocres .e 0 aqueduto da ~a_flOCa,

no Rio de Janeiro, quase esgotam a hsta(56).

o fomento da producao estava inteiramente entregue a boa

vontade de um ou outro administrador mais esforcado, e nun~apassou de pequenas e limitadasprovidencias (5~). A_lista podena

ser alongada, mas inuti lmente, neste m~sm? .c:hal?asao: a ?l;Sn~a

falta de esforco construtivo, a mesma meficlCncla. e neghgenc13

se encontrara por toda parte. _Urn exe~plo b_astana para carac-

terizar a administracao colonial: a mmeracao. Durante. q~ase

um seculo, a exploracao do ouro e dos diamantes constituiu ~

maior riqueza da monarquia, a base em que as:ento~ a prOSpe!l-

dade e ate mesmo a existencia do trono portugues. POlSnem assim

ela mereceu mais que a consideracao de um bem trib~t~vel,

uma Fonte de rend a que se tratava de expl?~ar ao maximo.

Afora isto nada se fez, e deixou-se toda a matena ao abandono.

A incapacidade da administracao colon~al: a ~egligencia e.i~ercia

que demonstrou diante da imensa dissipacao e destruicao de

riqueza natural que se praticava r,t~s minas, e um at est ado que

dispensa quaisquer outros comentanos. .. _

Se no terreno da eficiencia e este 0 retrato da admlOlstrac;ao

colonial, nao e ele mais avantajado no da morali~ade., De alt.o

a baixo da escala administrativa, com Taras excecoes, e a mars

grosseira imoralidade e corrupcao que d~n~ina. desbragada~nente.

Poder-se-ia repetir aqui, sem nenh~ma mJus!lc;a, 0 conc,elto do

Soldado Prdtico, "Na India nao ha cousa sa: tudo esta podre

e afistulado, e muito perto de herpes ... " Os rna is honestos e

(54) Para a Bahia: Vilhena, RecOpila(ii~; para o. ilio de J,~f1eiro,,·

sobretudo Oliveira Lima, D. lotio VI no Brasil. Inscrevia-se no anvo ga

administracao a introducao da vacina, nos primeiros ano.s d? !{~c.Xl~,

(55) Sobre este hosr.ital : Pedro Curio de Carvalho, H ist6rico da hos~..,talizaciio militar no Brasi... ,. ,_, ._. ,_,

(56) Ha ainda os edificios publicos, poucos alem ?as .Lg!eJa~. ? ; . ..~~lfi'dessas tern sido consideravelmente exagerado. Algumas tera, 'mal ; ' Jill duy iHa .valor ar tlst ico: mas nenhuma a grandeza ou suntuosidade que se mes quer

emprestar. A~ lade dos monu~entos religiosos ~as co~t1fQiashispano-ame-

rieanas, Mexico e Peru em particular, fazem mediocre ftgtna.(57) Lernbremos aqui a admi.nistra<;iio"{mica sob> ~st~ nSIIe(.l1:e,. do:

Marques do Lavradio no Rio de [aneiro. Tambem a de Lobe de Almada na

Capitania do Rio Negro.

Eormaciio do Brasil ContempoTdneo 335

 

dl~$ delegados da adminlstracao regia sao aqueles que nfioembelsam sumariamente os bens publieos, ou nao usam dos cargospara especulacoes privadas; porque de diligencia e bom cumpri-

tara mente foram alem dos proveitcs Imediatos ,qiUe so~ a. tQnnll

de tributos podia auferir da colonia. Urn gO'!l.~ma:do1' ,do RioGrande do SuI alias urn dos mais notaveis, Silva Gama, a:esllfl\ia

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~h) dos deveres, nem se po de cogitar. Alias 0 pr6prio sistemaVlgente de negociar os cargos publicos abria naturalmente portaslargas a corrupcao. Eles eram obtidos e vendidos como a maisvu}gar mercadoria. Mas is to ainda e 0 de menos, porque estava nosmetodos aceitos e reconhecidos. 0 que fazia Vieira, ja seculoe meio antes, conjugar no Brasil 0 verbo "rapio" (no sermao do

Born Ladrao ) em todos os modos, tempos e pessoas, era estageral e universal pratica, que ja passara para a essencia daadministracao colonial, do peculato, do subomo e de todas asdemais formas de eorrupcao administ-ativa, Se fos-e alinhar aqui

testemunhos, seria um nao acabar r.unca. E mesr ,o fazendo neles

o desconto da maledicencia, a administracao :la0 sairia mais rea-bilitada: isto porque, salvo er.i discursos la dai:6rios e de ordempessoal (que pela sua freqiiencia ja nao ooistituem nenhum bornsintoma), nao se encon' ra nos depoimentos contemporaneos

n.enh.um conceito, ja nao digo elogioso, mas de tolerancia e justi-Iicativa para com a administracao. Parta de onde partir a criticaou observacao, dos simples cidadaos nascidos na colonia ou dos

r~!n6is, c:omo dos mesmos delegados do poder, a opiniao e inva-navel e 19ualmente severa. Acrescente-se a isto 0 que referem osviajantes estrangeiros que nos visitaram em principios do seculo

passado, quase todos eles da maior consciencia e honestidade esem motivo especial algum para nao dizerem a verdade e ter-se-a

uma ~ole!ao de dados tais que, a nao ser que se conteste aJ?r6pna hipotese fundamental de toda pesquisa hist6rica e quee a "possibilidade de reconstruir 0 passado", levam com segurangaabsoluta ao que ficou dito acima.

Tern uma larga responsabilidade em tudo isto, afora 0 vicio

que e g~ral na ad~.inistrag~o portuguesa des de 0 tempo longinquodas Indias, ? espmto particular que anima 0 govemo metropoli-

ta~o .no genr a s~a colonia. Se se justifica 0 conceito do autoranornmo do Boteiro do Maranhao que "as colonias sao estabe-lecidas em utilidade da metr6pole" ou daquele outro con tem-

poraneo para quem "seu efeito primario e comum e certamenteo d~ ~nriquecer a ~etr6pole e aumentar-lhe 0 poder" (58) -confissoes em que ha ao menos franqueza em materia onde ahipocrisi~ tern hoje assento inconteste - Portugal no entantosempre mterpretou mesquinhamente este objetivo primordial elatente em todas as colonizacoes de carater oficial. Suas vistas

(58) Roteiro, 102; e Rodrigues Barata, Mem6ria da Capitania deGoMs, 337.

336 Caio Prado Junia,

em 1805 este pensamento numa confissao crua e rma: "N'ad'a, me

interessa com mais fervor, escrevia ele ao govemodo Heino" e oque a fis~alizag~o da Real Fazenda. Diminuir as sli,as, desp,esa~o quanto e possivel, fazer arrecadar ansiosamente tudo \que Rqssa.pertencer-Ihe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos, 're(mr-sos para aumenta-la, sao os objetivos do meu maior des ...elQ"~Z.59).Urn objetivo fiscal, nada mais que isto, e 0 que anima a met'r6p:dena eolonizacao do Brasil. Raros sao os atos da administraelio .ou

os administradores que fazem excecao a regra. Pombal,. cujogovemo e 0 unico talvez, depois do periodo lier6ico da hlstori!t-portuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo nao eonse~l1

d~,sve.ncilha~-se inteiramente do q,u~ estava no fundoda o o i l s -clen~la nacional, ~ou ~ntes da politica da monarquia. 0 ouro ftos diamantes, entao, fizeram perder 0 resto da cabeca e oom..,sensqq~e sobravam a metr6pole. Com uma ansia sem paralelo eJa Sf l

atira sobre 0 metal e as pedras como urn cao esfaimado sobre ,0

osso que aflora na terra cavada. S6 que nao tinha sido ela g u e mo escavara... Durante urn seculo quase, nao havera out-rapreocupacao seria e de conseqiiencia que a cobranea desdireitos regios, 0 quinto; a hist6ria administrativa do~rasi1 , s e .contara em funcao dela.

Assente numa tal base, a adrninistracao colonial nao podias~r outra ~oisa que foi. N,egl~gencia-se tudo que nao seja percep-gao de tributes: e a ganancIa da coroa, tao crua e cinieamente

afirma~a, a, mercantilizacao b,rutal dos objetivos da colonizacao,contamma~a todo mundo. Sera 0 arrojo entao geral para -0 -lucro,para as migalhas 9ue sobravam do banquete real. 0 construtivoda administracao e relegado para urn segundo plano obscuro emque s6 idealistas deslocados debateram em vao,

Tudo isto se refere, em particular, a adrninis tracao civil. Aeclesiastica, nada ou quase nada the fica a dever. Admitamos

c~ntudo; de inicio, u~a restricao que e de justi!;a salient~li', Senao muito pouco ao myel moral, pelo menos no da eapaoiOllde.o clero da colonia e nitidamente superior ao Funcionalisrnc ciVil,

como alias a qualquer outra categoria particular da ~9pula~a0~ol~n!al. Nao seria po~ si~ples coincid~ncia que bO l l. ·p a rt e c osindividuos, de formacao mtelectual acima do conium ext i re,ma·

mente bai:<? com que t~m~~ contac!o os viajantes estrangeirosque nos visitaram em pnnclplOs do seculo passado, seja de ~cle-

(59) Docs. relativos d historic da cap itan ia d e ~iio P . . ' t r 1 f ' Q w I P ' , 4 1 9Grande do Sui , 285.

Eormaciio do Brasil Coniempordneo :3;'7

 

~:i~stieos. Em Colas, Saint-Hilaire chega a afirmar que as unicas

, 1 J e s s r , m : s com "alguns conhecimentos" sao os padres (60). Tambern

uii.() S6ta tida como froto do acaso a circunstancia da tamanha

os Superiores dGS Carmeiitas e dos Capuchos( 66). ~as naQ Iede urn bispo, Frei Antonio do Desterro, do Rio de Jan~irp, eem correspondencia oficial ao Secretario de Estado, '0 segpinte

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proporcao de membros do clero aparecerem entre aqueles que

se destacaram nas letras e ciencias da colonia; e de terem sairam

dele os expoentes de seus principals ramos (61). Alias ja referi no .

'Capitulo anterior a razao por que 0 clero se tornou a carreira

intelectual por excelencia na colonia: e a unica que abre as portas

a todos sem distincao de categoria. Refugtar-se-ao nele todos ou

quase todos a quem a inteligencia faz c6cegas.

Mas noutro terreno, no seu teor moral medic, a massa do

clero nao se destaca muito acima de seus colegas da adrninistracao

leiga. A mercantilizacao das funcdes sacerdotais tornara-se pela

epoca em que nos achamos urn fato consumado, Citei ja a obser-

vacao de uma autoridade eclesiastica, que reconhece ter-se tornado

a batina urn simples "modo de vida", urn em.~rego, parecendo

alias perfeitamente conformado com 0 fato (62). Que se podia

esperar dai? A geral e persistente grita dos povos contra os

tributos eclesiast icos e alias urn sintoma bern sensivel do caminho

que tomara 0 clero colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto fun-

oionario da adrninistracao, expondo ao Vice-Rei os assuntos de

suas atribuicoes, assim rematava as consideracoes que faz sobre

o clero: "Eles s6 querem dinheiro, e nao se embaracam que

tenham born titulo" (63). Noutro oficio do ano seguinte repete

conceito semelhante (64). Para se ter uma ideia do que ia pelos

conventos do Brasil em materia de costumes e corrupcao, leia-se

a longa exposicao que a respeito faz 0 Vice-Rei Luis de Vascon-

celos ao Secretario de Estado, e que repete resumidamente no

relat6rio com que entrega 0 governo ao sucessor que 0 vinha

substituir( 65); se se desejar urn depoimento ainda mais autorizado

e insuspeito, veja-se 0 que dizem de seus conventos respectivos

(60) Voyage aux sources, I, 347.

(61) Jose Mariano da Conceicao Veloso, nas ciencias naturals, JoseJoaquim da Cunha Azeredo Coutinho nas ciencias economicas; Jose deSousa Azevedo Pizarro e Gaspar da Madre de Deus, na historiografia;Jose Mauricio Nunes Garcia, na musica. E isto para nao falar senao dos

contemporaneos do momento que nos ocupa. Note-se ainda que 0 generoliterario unico ell) que a colonia produziu alguma coisa de mais destaquefoi a orat6ria sacra. A nossa poesia nao pode ter a pretensao de ultrapassaro consumo interno e da erudicfio literaria.

(62) Frei Antonio da Vitoria, superior dos Capuchos do Rio de J a-neiro, Corresporulencia de varias autoridades, 291.

(63) Carta de 20 de outubro de 1787. Correspotulencia de vuriasautoridades, 226.

(64) Loc. cit., 228.(65) Neg6cios eclesiasticos, e Ojicio, 33.

338 Caw Prado JUnior

texto tao elucidativo da compreensao que tinha 0 clero colonial

de suas funcces sacerdotais? "Como premio e reml1nerm;ao do

trabalho, escreve ele, que estimula fortemente a todos, principal-

mente neste Brasil onde se cuida mais no interesse do que na

boa fama e gl6ria do nome, me pare cia mais preciso e justa que

sua Majestade remunerasse enefectivamente a estes parocos

(aqueles que tivessem servido com os indios) com igrejas de

Minas, Dando a cada um tantos anos de parocos nas ditas igrejas,

po~ serem pingues, quantos tiverem servido nas freguesias dos

indios" (67). Poderiam ser alongados estes testemunhos, encon-

tradicos nos documentos da epoca, e que se nao abundam tanto

como os relativos a administracao leiga, nao sao menos precisos

ou convincentes. Mas bastara para supri-los todos, 0 que Saint-

-Hilaire, cat6lica e crente convicto, deplorando-o embora e pro-

curando consolar 0 leitor cristao de tantos golpes vibrados a sua

sensibilidade, descreve com minucias em seu lange capitulo dedi-

cado ao clero brasileiro (68) .

Nestas condicoes, nao e de esperar do clero colonial, anima do

de tal espirito, grande diligimcia no cumprimento dos seus deveres,

E de fato, e 0 que se verifica, Ele exercera ativamente sua funcao

de satisfazer as necessidades espiri tuais da populacao la onde pode

ser e e bern remunerado por ela: nas par6quias "pingues" a que se

refere 0 bispo acima citado; nas capelas de engenhos abastados. 0

resto da populacao fica ao desamparo. Para ela, os padres rezarao

no maximo as missas e ministrarao a comunhao da desobriga que

constitui 0 melhor de seus rendimentos. 0 resto do tempo, ocupar-

-se-ao em afazeres bern distanciados de suas obrigacoes: muitos sao

fazendeiros: era eclesiastico 0melhor farmaceutico de Sao [oao del-

-Rei, e preparava e vendia ele pr6prio suas drogas, urn outro sacer-

dote vendia tecidos no balcao de sua loja ... (69).

(66) Correspotulencia de veiris autoridades, 168 e 285. .(67) Correspondencia do bispo do Rio de Janeiro (1754-1800),42. a

grifo e meu. . _(68) Voyage aux provinces de Rio de Janeiro, I, cap. VII I. Ape! ia f '

de suas afirrnacoes, que constituem 0 mais veemente libelo, aerescenta .sa·nt~-Hilaire que neste assunto poderao acusa-lo de reticencias, mas nunca deexazeros. Em outras muitas passagens de seus diaries, 0 naturalfsta franresabunda em observacoes sobre os padres e seus costumes no BrJls i: l. Catbli .ao :fervoroso, 0 ass unto the despertava natural mente a aten~1iQ. O. .maior eun ico elogio que lhes faz, em conjunto, e relativamente ao deDQ da comarcade Minas Novas, onde afirma parecer-lhe haver menos sirru;mia,q ue . ne · r ea te ·c ia capitania. Id. II, 256.

(69) Saint-Hilaire, Voyage aux sources ... , I, 132.

Forma~iio ck Brasil Co~temf?Ptdtle_Q, 33~

 

E se assim cumpriam, ou deixavam de cumprir seus deveresfundamentais, que dizer dos de assistencia e amparo social que

a tradicao, como seus estatutos e a divisao estabelecida das

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funcoes publicas lhes impunham? Algumas Ordens, aiguns de

seus membros pelo menos, ocupavam-se ainda com a catequese

dos indios, e citei em capitulos anteriores alguns destes rarissimos

exemplos. Em certos conventos ministravam-se educacao e ensino;

mas s6 nas maiores capitais, e para grupos reduzidos da populacao.

Algumas irmandades leigas dedioavam-se aos enfermos, expostos

e indigentes, como os sempre lembrados com [ustiea Irmaos da

Misericordia, Ha exemplo de dedicacao e trabalho, e nao quero

subestima-los, mas infelizmente excecoes, casos raros num oceano

de necessidades nao atendidas e de que ninguem se preocupava.

A grande maioria do clero, secular e regular, desde os mais altos

dignatarios ate os mais modestos coadjutores, deixava-se ficar

numa indiferenca completa de tais assuntos, usufruindo placida-

mente suas congruas e demais rendimentos, ou suprindo a defi-

ciencia deles com atividades e neg6cios privados.

Que parcela de responsabil idade cabera disto, diretamente, apolitica metropolitana? Com a expulsao dos [esuitas, desfalcara-se

a colonia do quase unico elemento que promovera em larga

escala uma atividade social apreciavel, Mas os efeitos nocivos da

medida de Pombal, neste terreno de que nos ocupamos, nao

devem ser exagerados, Ja passara, fazia muito, 0 tempo dosN6bregas e Anchietas, e a Companhia de Jesus decaira conside-

ravelmente. 0 que seria no futuro, e dificil se nao impossivel

assentar com seguran<;a. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles

primeiros missionaries, seria anacronismo Iamentavel,

A ineficiencia do clero no momento que nos ocupa tern

causas mais profundas que esta ou aquela medida singular da

politica metropolitan a ou da pr6pria Igreja de Roma. Umas de

carater geral, e que atingem 0 conjunto da estrutura eclesiastica

universal nos tempos que precedem a nossa epoca, Nao me cabe

aqui aborda-las, Outras locais, pr6prias da colonia. E estas se

resumem na resposta a ser dada a uma questao f:undamental:

estava a sociedade colonial apta a produzir urn clero capaz, de

elevado teor moral e na altura de suas funcoes? Ravia nelaambiente social e moral para isto, e para a manutencao e floresci-

mento de urn clero daquele naipe? As conclus6es gerais sobre a

sociedade colonial em principles do seculo passado, e que me

esforcarei por esbocar no pr6ximo capitulo, fornecerao talvez

alguns elementos para a resposta pedida,

340 Caio Prado Junior

Vida Social e Politica

Temos os elementos agora para concluirmossobre .~ ' - v , i o : : asocial da colonia, conclusoes que nos darao 0 torn g~raI t¥est\l!

vida e 0 aspecto de conjunto que apresenta a obra o a 'C Q lo "n il la - ~~portuguesa no Brasil. Observamos nos seus diferentes aspecto'sesse aglomerado heterogeneo de racas que a colonizacao reuni t laqui ao acaso, sem outro objetivo que realizar uma vasta ~rffpresacomercial, e para. que contribuiram conforme as c rr :cuf ls t: a:nc ia s I eas exigencias daquela empresa, bran cos europeus, negros a f T i ! e a : n o S i

indigenas do continente. Tres racas e culturas largamente dis,pares,

de que duas, semi-barbaras em seu estado nativo, e cujas apt<ido,es

culturais originarias ainda se sufocaram, fomecerao 0 contingen~~

maior; ra<;asarrebanhadas pela forea e incorporadas pela vioU\od;l

na oolonizacao, sem que para isso se lhes dispensasse 0menor l ? : t : e ·paro e educacao para 0 convivio em uma sociedade tao estranha

para elas; cuja escola unica foi quase sempre 0 eito e a se~a1i.

Numa populacao assim constituida originariam~nte e .em. g ;u rtal processo da formacao se perpetuava e se mantinha ainda :00

momenta que nos ocupa, 0 primeiro traco que e de esperae, eque de fato nao Ialhara a expectativa, e a ausencia de nexo [(;tOtal.Racas e individuos mal se unem, nao se fundem num todo e e e so :[ustapoe-se antes uns aos outros; constituem-se unidades e g r u . p o sincoerentes que apenas coexistem e se tocam. Os mais £ortes

laces que lhes man t ern a integridade social nao serao senao es

primaries e mais rudimentares vinculos humanos, os resultanresdireta e imediatamente das relacoes de trabalho e produ<;a.o;:em

particular, a subordinacao do escravo ou do semi-escravo ::10 sen

senhor. Muito poucos elementos novos se incorporarao a e~e

cimento original da sociedade brasileira, cuja tram a ficara..assim

reduzida quase exclusivamente aos tenues e sumarios lagos, qu eresultam do trabalho servil. E neste sentido que nao faltariarazjie

a Alberto Torres, quando num aparente paradoxo que escandall-

zaria seus contemporaneos, ele levanta a voz para fazer a apobgia,

niio como escravocrata, mas pela primeira vez como sod6log0,

do regime servil( 1).

(1) "A escravidao foi uma das poucas coisas com visos de organiza~.ao

que este pais [amais possuiu... Social e economicamente, a' es~ravidiio

Formacao do Brasil Contemportineo 341

 

, Para constatar 0 acerto da observacao, basta-nos comparar ossetores da vida colonial em que respectivamente domina uma eeutra forma de trabalho, escravo ou livre. A organizac;:ao do

estado primitivo. As relaeoes servis sao e pennaneceriie rc1a~c5puramente materials de trabalho e produc;:ao,. e nad .9u l1uascnada mais acrescentarao ao eomplexo cultural da ,~I6ni3i

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primeiro, a sua s6lida e acabada estruturacao e coesao, corres-ponded. a dipersao e incoerencia do outro. Vim os estes doisaspectos da sociedade colonial: de urn lado 0 escravo ligado aoseu senhor, e integrados ambos nesta celula orgi'mica que e 0

"cla" patriarcal de que aquele laco forma a textura principal;doutro, 0 setor imenso e lnorganico de populacoes desenraizadas,flutuando sem base em tomo da sociedade colonial organizada;chegando apenas, em parcelas pequenas a se agregar a ela, e

a~quirindo assim os unicos visos de organizacao que apresentam.Fica-se em suma na tentacao de generalizar ainda mais 0 conceitode Alberto Torres, e nao ver na servidao senao 0 unico elementoreal e s6lido de organizac;:ao que a colonia possui.

Mas seja como for, a analise da sociedade colonial obriga

a urn desdobramento de pesquisa., Qualquer generalizac;:ao queabranja as duas situacoes tao divers as que nela se encontramcorrera 0 risco de erros consideraveis de apreciacao, Para com-

preendermos, no seu conjunto, of' laces que lhe mantern a coesaoe de que se forma a sua trama, temos que ve-la como de fatoela se constitui: de urn nucleo central organizado, cujo elementoprincipal e a escravidao, e envolvendo este nucleo, ou dispondo-se

nos largos vacuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, emmuitos casos, a influencia da proximidade, uma nebulosa socialincoerente e desconexa.

Nao preciso acentuar mais uma vez 0 papel que a escravidaotern naquele primeiro setor, 0 organico da sociedade colonial.Mas devemos acrescentar aqui 0 carater primario das relacoessociais que dela resultam, e daquilo que com ela se constituiu.Primario no sentido em que nao se destacam do terreno puramentematerial em que se formam; ausencia quase completa de superes-t~tura, dir-se-ia para empregar uma expressao que ja se vulga-nzou. Realmente a escravidao, nas duas funcoes que exercerana sociedade colonial, fator trabalho e fator sexual, nao determi-nara senao relacoes elementares e muito simples. 0 trabalho

escravo nunca ira alem do seu ponto de partida: 0 esforco fisicoconstrangido; nao educara 0 individuo, nao 0 preparara paraurn plano de vida humana mais elevado. Nao lhes acrescentaraelementos morais, e pelo contrar io, degrada- lo-a, eliminando mesmonele 0 conteudo cultural que porventura tivesse trazido do seu

deu-nos, por longos anos, to do 0 esforco de toda a ordem que entaopossuimos, e fundou toda a producao material que ainda temos." aProblema Nacional, 11.

342 Caio Prado JUnior

A outra funcao do escravo, ou antes da mu lH e r e $ C 1'a va .instrumento de satis facao das necessidades sexuais de sees sennorese dorninadores, nao tern urn feito menos elementar, Nao uftra.-

passara tarnbem 0 nivel primario e puramente animal d o oontactosexual, nao se aproximando senao muito remotamente da esfera

propriamente humana do amor, em que 0 ato sexual se envolvede to do urn complexo de emocoes e sentimentos tao amplos qU'echegam ate a fazer passar para 0 segundo plano aquele ate

que afinal the deu origem(2).

Em alguns outros setores, a escravidao foi mais fecunda.Destaquemos a "figura boa da ama negra" - a expressao e de

Gilberto Freyre, - que cerca 0 berco da crianca brasileira deuma atmosfera de bondade e temura que nao e fator de menorimportancla nesta florescencia de sentirnentalismo, tao caracte-ristica da indole brasileira, e que se de urn lado amolece 0 indi-

viduo e 0 desampara nos embates da vida - nao padece duvidaque boa parte da deficiente educacao brasileira tern ai sua origem,- doutro contribui para quebrar a rudeza e brutalidade pr6p:riasde uma sociedade nascente. Mas neste, como em muitos easessemelhantes, e preciso distinguir entre 0 papel de escravo e donegro, 0 que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerb). Adistincao e difieil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indi-

viduo, e a contribuicao do segundo se realiza quase sempre atravesdo primeiro. Mas nao e impossivel, e de uma forma geraI, 0 .quese conelui e que se 0 negro traz algo de positivo, isto se anulouna maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo maiS. 0escravo enche 0 cenario, e permitiu ao negro apenas que apontasseem raras oportunidades. Ja notei acima que outro teria sido 0

papel do africano na formacao cultural da colonia se the fhtessem

permitido se nao 0 pleno, ao menos urn minimo de oportllillida:de>-.para 0 desenvolvimento de suas aptidoes naturais. Mas a esesa-vidao, como se praticou na colonia, 0 esterilizou, e a o - mesmotempo que the amputava a maior parte. de suas qualidades,

aguc;:ou nele0

que era portador de elementos corruptores1QU,

que se tornaram tal por efeito dela mesma. E 0 baix:o·-.ntMeI~e'sua cultura, em oposicao ao da rac;:a dominante, impedlu-lhe d e

(2) "Le miracle de l' amour humain, c'est que, sur un tnstJnctt"~~s imple , le desir , i l construi t les edi fices de sentiments W$· ·pll ilS:(;Q.nI1J}eut,et les pl~s delicate" (Andre Maurois.) E este mtlagre que' e amol'- d.senzala nao realizou e nao podia realizar no Brasil-colonia.

For~ao do Brasil COfl((I~pO~' 3(3

 

'~~ ~'t' rom vigor e sobrepor-se a sua miseravel eondicao, &.0

eont l 'k\r lo do que em tantas instancias ocorreu no mundo antigo.

Em suma, a escravidao e as relaeoes que dela derivam, se

daquilo gue sai do circulo estreito desta forma particular ,d eatividade produtora.

A . luz desta vista d'olhos preliminar por sobre a soeiedade

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bern que constituam a base do unico setor organizado da sociedade

colonial, e tivesse por isso permitido a esta manter-se e se desen-

volver, nao ultrapassam contudo urn plano muito inferior, e nao

frutificam numa superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas

para momentaneamente conservar 0 nexo social da colonia. No

outro setor dela, 0 que se mantem a margem da escravidao, a

situacao se apresenta, em certo sentido, pior. A inorganizacao e

ai a regra. 0 que alias sua origem faz preyer; vimo-lo anterior-mente: aquela parte da f.0pula~ao que 0 constitui e que vegeta

a margem da vida colonia, nao e senao urn derivado da escravidao,

ou diretamente, ou substituindo-a 130onde urn sistema organizado

de vida economica e social-nao pede constituir-se ou se manter.

Para este setor nao se pode nem ao menos falar em "estrutura"

social, porque e a instabilidade e incoerencia que a caracterizam,

tendendo em todos os casos para estas formas extremas de desa-

grega~ao social, tao salientes e caracteristicas da vida brasileira,

e que notei em outro capitulo: a vadiagem e a caboclizacao (3).

E isto, em resumo, que 0 observador encontrara de essencial

na sociedade da colonia: de urn lado uma organizacao esteril no

que diz respeito a relacoes socials de nivel superior; doutro, urn

estado, ou antes urn processo de desagregacao mais ou menosadiantado, conforme 0 caso, resultante ou reflexo do primeiro, e

que se alastra progressivamente. E note-se, antes de seguirmos

adiante, e repisando urn assunto j30ventilado, que tais aspectos

correspondem grosseiramente, no terreno economico, aos dois

setores que ai fomos encontrar: a grande lavoura e a mineracao

de urn lado, as demais atividades que reuni na categoria geral

de "economia de subsistencia", do outro. A observacao e impor-

tante porque vern confirmar mais uma vez 0 que ja foi dito

sobre a caracterizacao da economia brasileira, votada essencial-

mente a producao de alguns generos exportaveis, este seu carater

unilateral se revela aqui sensivelmente, mostrando a precariedade

(3) Ha excecoes a assinalar, excecoes em que vemos se constituiremneste setor da vida colonial form a s sociais mais aperfeicoadas. Mas saoraras, como a mais interessante e conhecida delas, 0 "muti rao" , que aindasubsiste em certas partes do Brasil, e que consiste no trabalho em comume auxi lio mutuo na lavoura . Saint -Hi lai re teve ocasiao de observar 0 mutiriionuma regiao do hoje Triangulo Mineiro. Voyage aux sources ... , II, 269.Parece contudo que se trata antes de uma sobrevivencia indigena, e 0

exemplo de Saint-Hilaire refere-se alias a populacoes com alta dose desangue mestico. Nao se trataria enUIO de uma criacao, mas de urn tracecultural que sobrou da vida cornunitaria do indio.

344 Caio Prado JUnior

colonial, toma-se possivel compreender a maior parte dQS 'Seus

traces e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sinnaria

na observacao geral feita de inicio: a falta de nexo moral que

define a vida brasileira em prindpios do seculo passado, a po-

breza de seus vinculos sociais. Torno aquela expressao "nexo

moral", no seu sentido amplo de conjunto de forcas de aglutinacao,

complexo de relacoes humanas que mantern ligados e unidos os

individuos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e

compacto. A sociedade colonial se definira antes pela desagregacao,

pelas forcas dispersivas, mas elas sao em nosso easo as da inercia;

e esta inercia, embora infecunda, explica suficientemente a relativa

estabilidade da estrutura colonial: para contraria-la e manter a

precaria integridade do conjunto, bastaram os tenues laces mate-

riais primaries, economicos e sexuais, ainda nao destacados de

seu plano original e mais inferior, que se estabelecem como resul-

tado imed!ato _da a'proxima~ao de individuos, racas, grupos dis-

pares, e nao vao alem deste contacto elementar. E fundada nisto,

e somente nisto, que a sociedade brasileira se manteve, e a obra

da colonizacao pode progredir.

Poderiamos acrescentar a pressao exterior que 0 poder, a

autoridade e a~ao soberana da metr6pole exerceram sobre a

sociedade colonial, contribuindo assim para congrega-la, Nao ede desprezar este fator, que apesar do raio limitado de sua exten-

sao e penetracao - j300 vimos ao falar da administracao publica

na colonia, -- contou por muito na subsistencia e manutencao da

estrutura social brasileira. Os acontecimentos posteriores, que

precedem imediatamente a Independencia e a seguem, esfaQ' aipara demonstra-lo, 0 enfraquecimento daquele poder levou 0

pais, durante muito tempo, para a iminencia da anarquia, que

alias muitas vezes, e em varies setores, embora restritos, se tomou

efetiva; e s6 se conteve com a constituicao de urn Estado 'que,embora nacional de nome e formacao, reproduziu quase integ~al.

mente a monarquia portuguesa que viera substituir;que na(tbrotou do intimo da sociedade brasileira, incapaz de tal.eri3!Qao,

mas lhe e imposta do exterior, continuando a exercer ,sobH.~ela

o mesmo tipo de pressao que 0 daquela (4) .

( 4 ) Nao se caracterizara isto unicamente pelo fato da ~taa~n'e daorganizacao monarquica no Estado nacional brasileiro, investiilll alias na1\1("111<1 dinastia, 0 CJuepor si j :i e uma prova do artif icialismo ~ GQn~tJtui~·iio.'1"e adot.unos. Nao havia _no, Brasil, afora 0 habito d Q : passailo" hlull'

alguma para 0 trono. Mas nao e somente nisto que se assina la a persis 't~Ilc'indo regime politico anterior, embora sob vestimenta naefonal, e 0 lVO"

Formafi io do Brasil ~t8m~~rre-~ : u . : s

 

'k "., Ii a ;;inda que levar em conta uma certa uniformidade de,ati~des , em~reguemos es~a expressao ampla, que identifica 0eonjunto colomal e suas varias partes. Unifonnidade de senti-

ociosidade que para os senhores resulta do trabalho entte;~ue intel-ramente a escravos. E esta uma atitude psicologica po.r q,emaisconhecida para nelanos demorannos. Urn e outro-efeito d a

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,mentos, ?~ usos, de crencas, de lingua. De cultura, numa palavra.

EI: servI~la, e d~ f~to serviu ~e base moral e pSicol6gica araa l~rma~~,o do .Blasll como nacao, e the proporcionou a uniaadenaclOnalla rea!lzada n~ geografia e na tradicao, Mas neste sentidoela se ,afu'll1ara postenormente, em oposicao a metr6pole e maistard_e as outras nacoes estrangeiras. E antes urn fardo politico,

e na~ tr~: no mo~ento e no assunto particular que nos ocupa,cont~I~Ul~a.o apre:lavel para trama da sociedade colonial. Aquela0posl~a.o amda nao representa papel social, mas comeca apenaso pOlItICO.

<?aracterizemos agora, mais de perto, a vida colonial e asrolacoes que ~ela vamos encontrar. Toda sociedade organizadas~ f~nda preclp~amente na regulamenta~ao, nao importa a com-p,ex!dade postenor .9u~ dela resultara, dos dois ins tintos primar ies

do l!0mem: o. eC?~Oml?O e ? sexual. Isto nao vai aqui como afir-m~~ao de pnn~lplO, Incabiva] em nosso assunto, mas serviraumca_mente de Iio c~ndutor a analise que vamos empreender dasrelacoes fundamentals que se estabelecem no seio da sociedadecolonial. Na primeira categor ia, 0 elernento que definira e na

bas~ do qual se formarao aquelas relacces, e 0 trabalho, tornado

aqu~ n~ ~entido amplo. e mais geral. de atividade que proporcionaao individuo seus mews de subsivtencia. Na outra, 0 conteudo

sez;ao as relacoes que 5 : estabelec~m entre sexes opostos e as quedai resultam: as relacoes de [amilia, em suma.

.R,elativamente ao. trabalho, ja se viu acima alguma coisa queser;lra par~ caractenzar os laces que dele derivam. Assim 0

efelt.o depnmente que, exe~ce so?re su~ conceituacao 0 regimeservi], Ha outro de quase 19ual importancia: 0 estimulo para a

longam~n"to de. urn situacao politica e institucional de conjunto, que 56se. mo~hflcar~ de uma !orma su~stancial em periodo multo adiantado dae\ 'olu?ao _naclOnal d.o P!lI s. E aqul lo era tao bern sent ido, que as revolucoese a~:ta90e,~ d~ pnmeira parte do I~~rio tomam 0 carater de reacoesC~:1tlu 0 governo do RIO de Janet TO , tal como Fariarn contra 0 deL!~'bo~.0federalismo ,b:asileiro tern al a sua essencia; pelo menus 0 dapnrncira parte do Impeno. - A pobreza da vida social brasileira encontran,a consti tuicao poIi ti?a do pals independente uma confi rmaeao flagrante.~ c~a a. causa das .dlf Ic :uldades e problemas de organlzacao e funeionamentomstJtu(; lO?al que ~l~emos d~ en .frentar, e que levaram ate aquele esdruxulo~ artiI :cIaI Imperio constztuc!Onal que tivemos. Compare-so isto parailustracao, com 0 que ccorreu nas colonias inglesas da America do' Norteque, separando-se da m~tr6pole, eriaram urn sistema nao 56 original degov,e~no, mas que, fez epoca e lancou urn marco salienle na evolucaopolitica da Humanidade,

3 46 Cdo P ra do JUn io r

escravidao se somarao para fazer ou evitar quaisquer atividades.A indolencia, 0 6cio dos casos extremos, mas sempre tuna ati-

vidade r~tardada, ~ma &eral moleza .e urn mInin~o :de. ,dis~n~ibde energla resultarao dal para 0 conjunto da sociedade ,(!91Qmai.

Tudo repousara exclusivamente no trabalho forcado e nao eon-sentido imposto pela servidao; fora disto, a atividade coloniale

quase nula. Onde falta a obrigacao sancionada pelo a~oi~e, 0

tronco e demais instrumentos inventados para dobrar a von ta de

humana, ela desaparece, Oa libertos que se fazem ,P0r via deregra vadios, apesar da escola em que se formaram, edisto uma

das provas.

Isto, para as atividades de natureza Hsica, e regra pratioa-mente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregaros rmisculos no trabalho. E de Luceock uma anedota bern ilus-trativa do caso: tendo ido buscar urn serralheiro de cujos servicesprecisava, este 0 fez esperar longamente na expectativa de urnnegro de seroico para transportar sua ferramenta de trabalho,pois carrega-la pelas ruas da cidade nao era ocupacao digna deurn homem livre ( 5). As outras funcoes se praticam sempre comurn minimo de energia. Uma lentidao e economia de esforcos

que faziam a cad a passo 0 desespero dos energicos europeusque nos visitavam.

Somente num setor encontramos mais atividade: e no doscolonos recentes ainda nao contaminados pelo exemplo do pals;destes rein6is que. vinham para ca "fazer a America", avidos deganho, dispostos a tudo e educados numa escola de trabalho eambicao muito diferente da dos brasileiros. Eles representam, comos escravos , os unicos elementos verdadeiramente ativos da colonia.

Num interessante ensaio sobre as causas da Independencia, escrito

em 1823 e dedicado ao soberano portugues, Francisco Sierra yMariscal analisa com muita clareza este abismo de concepcao

e atitudes que separa brasileiros de portugueses imigrantes.Enquanto esses ultimos, chegados ao Brasil de maos abanando,

escrevera Mariscal, "nao ha nada a que se nao sujeitem, e comeconomia e trabalho chegam a ter grandes cabedais", 0 brasileiro,

nascido na abastanca, "0 orgulho se apodera dele, e este e sempre

maior que os meios de ° sustentar... nao conhece 0 trabalhonem a cconomia ... e quando chcga ao estado viril, ja esta pobre",

(5) Notes , 17.

FomUl~ao do Brasil Confempordn(!o 34 1

 

porque, conclui com muita 16gica0 nosso autor, "niio ha cabedal

que chegue a quem gasta muito, e nao ganha nada"(6).

Urna tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da

Mas seja como for, 0 indio e COmele se\ls.,de~qendentes'ma:~~ou menos mesticados, mas formados na sua eseota, e,·gllec~ns~~tuem parte tao apreciavel d~ populacao .colo_nia~:.t~m,.·pl!:!rei~~o

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colonia relativa ao trabaIho, de generalizada que e, e mantidaatraves do tempo, acabara naturalmente por.se integrar na psico-logia coletiva como urn traco profundo e inerraigavel do caraterbrasileiro. A preguica e 0 6cio, aqui nC?Brasil, "ate se pegacomo visgo", dira Vilhena. Mas se a escravidao, nas suas variasrepercuss6es, e a responsavel principal por isto, ha outros Iatoresde segundo plano que nao deixam de ter 0 seu papel, 0 principal

deles e a contribuicao do sangue indigena, consideravel como

sabemos. A Indolencia do indio brasileiro tomou-se proverbial,e de certo modo a observacao e exata. Onde se erra e atribuindo-aa nao se sabe que "caracteres inatos" do selvagem. Na sua vidanativa, mesmo na civilizada quando se empenha em tarefas queconhece, e sobretudo cujo alcance compreende, 0 selvagem brasi-leiro e tao ativo como os individuos de qualquer outra raca, Seraindolente, e s6 ai 0 colona interessado 0 enxergava e julgava,quando metido num meio estranho, fundamentalmente diverso doseu, onde e forcado a uma atividade met6dica, sedentaria e or-ganizada segundo padr6es que nao compreende. Em que ate osestimulos nada dizem a seus instintos: a ganancia, a participacaoem bens, os prazeres que para ele nao sao nem bens nem prazeres.Nada houve de mais ridicule nos sistemas de educacao dos indios

que isto de tentar leva-los por tais incentivos, modelados porfigurinos europeus e estranhos a seus gostos(7).

(6) Ideias gerais sobre a reooluciio do Brasil, 55. Esta diferenca ede tal forma produto do meio, que os pr6prios I ilhos do por tugues enrique-

cido, brasileiros de nascimento e educacao, observa 0 mesmo Mariscal,

nao seguem 0 exemplo dos pais, e "entrarao na ordem geral, he dizer,

cahem na pobreza."

(7 ) Ate um homem profundamente conhecedor das racas de sua terra

natal, 0 Para, e muito simpatico a elas, como Jose Verissimo, nao enxergou

inteiramente esta situacao paradoxal dos indios perante a civilizacao. A

indolencia, a falta de arubicao que se observam no indio nao sao senao

fruto de sua cornpleta indiferenca, quando nao de hostilidade, relativarnente

a uma civilizacao que se the irnpOs, e cujo valor, com todos os atrativosque tern para n6s, e para ele nulo. Enxergar no indigena brasileiro, ou

ern outras racas de cultura dtferente da nossa, falhas de carater onde nao

ha senao atitudes pr6prias de urn inadaptado ou revoltado, e 0 vczo

sobretudo dos anglo-americanos. Mas qual seria, perguntamos n6s, a reacao

de urn destes energicos anglo-saxocs a quem the pedisse um dia de trabalho

a ser pago corn um jantar de piriio de ofai ou de mandioca puba? Mutat is

mutandis, e a mesma coisa que se passa com 0 indigena. 0 unico cstimulo

civilizado que 0 indio compreendeu foi a aguanlcnte, que por isso a

colonizacao empregou largamente.

348 Caio Prado JUnior

dominante, para todos os e!e~tosda colomza~ao, a £alt~'~mJ;'lle~.ae absoluta de energia e a~ao (8). E esta sena uma.das p~CIP~IS

raz6es por que as regi6es onde eles formam contingen.tes Il1J . i l tQi

grandes nunca fizeram mais que vegetar. 0 govemadoc do Para,D. Francisco de Sousa Coutinho, escrevia desalentado a meqppoledepois de tres anos de govemo: "0 poderoso inimigo .a.esteshabitantes e a mais poderosa causa entre muitas outras de sen

atraso e a pregui~a deles"(9).

. Ao influxo do sangue indigena como fator de indolencia,ainda ha que acrescentar esta causa geral que e 0 sistema e~n6-mico da colonia, tao acanhado de oportunidades e de perspectivastao mesquinhas. Nao seria urn tal ambiente propicio a estimularas energias e atividades dos Individuos, uma escola muito Iavoravel

de trabalho.De tudo isto resultara para a colonia, em conjunto, um

tom geral de inercia. Paira ~a atmos~~ra em 9ue a popu~a~aocolonial se move, ou antes descansa , urn VHUS generalizadode pregui<;a,de moleza que a todos, com raras excecoes, atinge.

o aspecto do Brasil e de estagnacao. ASai~t-~ilaire,d~pois de lon-

gas peregrina~6es e de uma pe~ane_ncla Ja de muitos an?s ~mcontacto intimo com a vida do pals, nao escondera sua adrniracao,

e por isso elogiara calorosamente·,osmora~ores de ltu e Sorocaba(Sao Paulo), porque encontrou at. .. urn logo de bola; no estado

de espirito em que se achava, e tendo em vista 0 que presenciaraate entao, constituia isto ja uma "prova" de energia( 10). Ate nosseus prazeres e folguedos, a populacao :olon~al e apatioa(~l).

A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir ~~tre os fat~resda tristeza brasileira, que nao vern somente da luxuna e da cobioa,mas sobretudo de uma inatividade sistematica, que acaba se apo-

(8) Jose Verissimo, Populaciies indigenas do A11Wz6nia, 308..

( 9) In f0 1" TT UJf oe s, 66.(10) Voyage aux provinces de Saint-Paul ... , I, 378. . . .( 11 ) Seria muito interessante estudar 0 folclore brasileiro SQ b este

aspecto ern paralelo com 0 de outros paises. Pelo que 9u.alquer urn i~??d~r{(por si observar, a conclusao nao oferece a menor duvlda. 9 0 1 l l . p a I : f ; l " s : _ .I~mfestejo popular brasileiro corn 0 de qualquer das popula~o~s. .~ E'UT~~,por exernplo: it apatia e tristeza daquele, corresponde 0 .entusl~smo ·e:ale~r!a

destes ultimos. 0 pr6prio Camaval, para quem 0 tiver ol1s~rva.aQcom

atencao nao escapa it regra. Afora as expans6es de carater a[:en~uadament! '

orgiaco, ou de cultos de cre~~as anc~strais que nos ~ias comuns 1~lIJIloindividuo it policia, nada mars hi nete, - Note-se ainda .q~e .0 elemplto

brasileiro rnais ativo neste setor e 0 negro, que tern a tradwa~ do trab:illhoescravo.

 

derando do individuo todo, tirando-lhe ate a energia de rir efolgar( 12).

Que dizer, nestas condicoes, do teor economico da coloni:tr

raro se eterniza, porque 0 novo colono, mesmo estabilizado, aca-

bara preferindo a facilidade de co:~tumes que the proporclO.na~mulheres submissas de racas dominadas que encontra aqUl, as

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: r - ; a ~ .pode deixar de ser, e nao foi efetivamente, mais qUe urualastima. Porque afora 0 trabalho constrangido e mal execura.lodo escravo, nfio se vai alem do estritamente necessario para n.ioperecer a mingua. E isto explica suficientemente, a par das eondi-<;oes gerais da economia que ja assinalel, e que sao afinal a causaindireta de tudo is to que estamos vendo, 0 baixo, 0 infimo padraode vida da populacao colonial, a sua pobreza, sem excetuar mesmo

as classes maisfavorecidas,

Do Brasil em conjunto, dira Vilhenaque, apesar dos recursos naturais dele, e a "morada da pobreza."E aos nabitantes da Bahia, a segunda, se nao a primeira cidade

da colonia em riqueza, com excecao dos grandes comerciantes ede alguns senhores de engenho e lavradores "aparatosos", que

alias nada mais tern de seu que esta aparencia de ricos, chamarade "congregacao de pobres" (13).

Vejamos 0 segundo grupo de relacoes sociais .a que me referiacima, as que derivam mediata ou imediatamente dos impulsossexuais dos individuos. Sobre os costumes do Brasil-colonia, nesteparticular, ha uma docurnentacao abundante que s6 faz 0 desa-

nimo do pesquisador obrigado a escolher. 0 desregramento atingetais proporcoes e se dissemina de tal forma, que volta debaixo

da pena de cada observador da vida colonial, por mais despreve-nido que seja. A causa primeira e mais profunda de urn tal estadode coisas e com certeza, e ja toquei incidentemente no assunto,

a forma pel a qual se processou, na maior parte dos casos, aemigra<;ao para 0 Brasil. Ela nao se faz senao excepcionalmentepor grupos familiares constituidos, mas quase sempre por indi-viduos isolados que vern tentar uma aventura, e que mesmo tendofamilia, deixam-na atras a espera de uma situacao mais definidae segura do chefe que emigrou. Espera que se prolonga e nao

( 12) Paulo Prado, B et ra to d o B ra si l. A tristeza brasileira foi observada

por Saint-Hilaire, que a opoe a alegria do camponio frances (Voyage aux

sources, I, 124); e a ela se refere ainda em outras passagens de seus diaries.

Em particular no que diz respeito a s criancas, em que deplora a falta

de espontaneidade e contentamento, id., I, 374. De tudo isso poderiamos

talvez excetuar 0 Rio Grande do SuI, de formacao alias tiio diferente do

resto do pais.

(13) Becopilaciio, 926 e 927. - A pobreza da populacao colonial etestemunhada niio s6 pelo depoimento de todos os observadores contern-poraneos, mas hoje ainda pelos escassos e miseraveis vestigios que nos

legou. Onde as construcoes, os objetos, todo este aparelhamento que uma

sociedade mesmo mediocre deixa sempre atras de si? Nada ou quase

nada possuimos de uma epoca que niio esta ainda a seculo e rneio de

nos, e 0 que Hcou e em regra um pobre testemunho,

350 eaio Prado Junior

restricoes que a familia lhe trara. E quando nao, ja estara taohabituado a tal vida que 0 freio da mulher e dos filhos nao

atuara nele senao muito pouco(14).. Lancadas nesta base nao familiar, outras circunstancias vern

reforcar a irregularidade dos costumes sexuais. da colonia. A escr~-vidao, a instabilidade e inseguranca economwas ... ; tudo contn-buiria para se opor a eonstituicao da familia, na sua expressaointegral, em bases s6lidas e estaveis, A formacao brasileira, aocontrario do que se afirma correntemente, nao se processou, salvono caso limitado e como veremos, deficiente, das classes superioresda "cas a-grande", num ambiente de familia. Nao e isto que ocorrecom a massa da populacao: nem com 0 colona rsoem-chegado,. nem com 0 escravo, escusado acrescenta-lo; talvez ainda menoscom esta parte da populacao livre, economioa e socialmente ins-

tavel que temos ja visto sob outros aspectos, e a qual falta bases6lida em que ass en tar a constituicao da familia ( 15) .

Quanto a casa -grande, se e certo que 0 seu micleo e a familia,ou antes, a familia do senhor, e s6 ele (da pequena, da rninuseulaminoria portanto, e isto se esquece freqiientemente); ese, nestesentido, e urn ambiente familiar que cerca 0 filho-rico da socie-

dade colonial, exeecao, no conjunto, quase unica; ha que abrirlarga margem para restricoes se pelo conceito de familia naoentendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo aquele com-plexo de normas, de "atmosfera" mesmo, que concede a familia,nas sociedades da nossa civilizacao, 0 grande papel de formadordos individuos e do seu carater. Neste sentido, a casa-grandeficou muito aquem de sua missao, 0 sistema de vida a que dalugar, a promiscuidade com escravos, e escravos do mais baix?teor moral, as facilidades que proporciona as relacoes sexuaisirregulares e desbragadas, a indisciplina que nela reina, maldisfarcada por uma hip6crita submissao, puramente formal, aopai e chefe, tudo isto faz a casa-grande, antes uma escola devicio e desregramento, apanhando a crianea desde 0 berco, quede formacao moral (16). A familia perde ai inteiramente, ou quase,

(14) Ainda hoje isto se veri£ica, e a cada passo topamos com Imi-

grantes casados na Europa e amancebados no Brasi l.(15)11: talve:z por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem

familiar. Esta origem eleva e. distingue os individuos, porque e pr6pria s6

de umaclasse super ior reduzida. Ser "de familia" entre n6s , const ituia um

distintivodesuperioridade, de quase nobreza.(16)SDbre este assunto, Vilhena nos Iornece urna sintese admlravel

de observa~sas' quais niio precisamos acrescentar nada. Recopila,.:iio, 138 e

Eormaciio do Brasil COfitempordneo 351

 

:1\5,~U~ virtudes; e em vez de ser 0 que lhe concede razfio moral

basi~ r~e existencia e que e de disciplinadora da vida sexualdos~dividllOS, torna-se pelo contrario campo aberto e amplo para

tor e de c1asseque impedia a regularizagao de muitas situagoei;

extramatrimoniais; preconceito tao forte que pode levar ate adesenlaces extremos, como este caso tragico de urn ex-governadorde duas capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado

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o maIs~esenfreado sexualismo. Advirta-se que nao e no terrenodos se!,hmentos qu: me ~loco aqui; nao sao as reacoes emotivase ~ehvas n~s relacoes reclprocas de homem para mulher, ou depals para filhos que procuro negar, ou mesmo subestimar. Atepelo eontrario, destas s6 se poderiam recriminar os excessos, der-

r~mando-se em condescendencias e tolerancias sem limite que

nao fora~ pouco .r~sponsaveis pe~a I?a educacao que receberamas geragoes c~lomaIs(17 ~'.Mas nao e pot, este lado somente quedevem~s analisar a familia, 0 seu conteudo e mais amplo que

o d~. slmpl~s.esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou afamilia brasileira pelo excesso,nos demais falhou lamentavelmente.

~eduzido. assiI?, extensiva e intensivamente, 0 papel da familia

n~ VIdacolomal, fl~~ ~berta larga margem a indisciplina sexual.Nao podemos .~,qUl.imitar nossas observacoes ao fato da maiorou menor frequencI~ do casamento, pois este nao s6 nao e , por siapenas, um~ garantia de. regularidade e disciplina sexuais, comoe~ta regulanda~e, entendida em termos sociologicos, nao e exclu-

Sl~~ .das relaeoes legalmente sancionadas. Precisamos por isso

dirigir nossas ateng6~s sobret~do p~ra 0 grau de estabilidade queapresentam as relacoes se~uals, sepm ou nao sancionadas legal-

mente pel~ casa~ento. E .1StO em nosso caso, e para os fins quetemos aqm e!ll vista, partieularmente importante, porque segundoo 9.ue se cohge dos depoimentos eontemporaneos, quase se pode

aflrm~r .que, f?ra ~ caso das classes superiores, 0 casamentocon~htUlum~ sl~agao excepcion.al.Mas e preciso reconhecer que

mUl!asdas sltua.goesle~ah:ne?t~irregulares se explicam pOl'outrosmot~~osque a slmple~m~lsclplma sexual. Assim,em muitos casos,a.dificuldade da realizacao do casamento pela distancia em quefica 0 sacerdote celebrante nestas par6quias imensas, onde urn

padre s~, e quase sempre pouco diligente, tern de atender

p?pula~oes ~spa~saspor dezenas de leguas de raio. Maior obs-taculo a real~zagaodo casamento, e mais freqiiente, e 0 seu custo;a este r~spelto, as queixas conternporaneas abundam, e esta-se

sempre as voltas com a questaof 18), Ainda ha 0 preconceito dc

segs. E le~bremos que ~le ~ urn professor, urn educador, que fala portantocom autondade e expenenCla post as a service de uma inteligencia criticanotavel.. (17) V~ja-se 0 9-~e a respeito escreve 0 mesmo autor jn ci tado acima:

Sierra y Manscal, Idews gerats sobre a revoluyiio do Brasil.(,18) Para nao d,eixar de. citar urn depoimento entre os muitos que

possUlm,os, remeto ,0 ~Cl,torpara ,0 quc diz a respeito urn dos esplritos maisesclarccidos de prmclplOs do seculo passado: o eons, Veloso de Oliveira

352 Caio Prado Junior

por uma .mulher de condicao humilde, de quem tivera variesfilhos, preferiu suicidar-se a leva-la, casada com ele, para 0 Reino,

de onde 0 chamavam(19).

Como se ve, seriam freqiientes os casos da vida em comumextraconjugal que nao se poderiam s6 por isso, e para 0 efeitoque temos em vista, considerar como exemplos de indisciplinasexual. Alias,de tao freqiientes que eram, acabam nem se notando,

e a opiniao publica os admitia sem 0menor constrangimento(20).Mesmo contudo sem formar nosso jufzo sobre os costumes sexuaisda colonia com esta irregularidade aparente e tao generalizada,

temos outros elementos seguros para nos fixar sobre eles. "Osbrasileiros", escrevera Hercules Florence em 1828, relatando aexpedicao Langsdorff que acompanhou na qualidade de desenhista,"cujas amaveis qualidades sao tao caracteristicas encontram, incli-

nados como sao aos prazeres, nas mulheres do pais facilidade de

costumes, e em geral nao pensam em se deixar prender nos laeos

(Mem6ria sobre a agricul tura, 123). Os emolumentos matrimoniais cobra-dos pelo clero nao eram 56 pesados em confronto com a pobreza dapopulacao, os abusos sao freqiientes. Assim no caso das provisoes, lieencas

para 0 casamento, cuja cobranca foi considerada ilegal por acordao daJunta da Coroa de 28 de marco de 1791, 0 que nao impediu que conti-nuassem como dantes a serem exigidas, apesar dos protestos. Veja-se aeste respeito a longa controversia entre 0 Senado da Camara e obispode Sao Paulo, e que se encontra no Registro daquela, XII, 289, 317, 424

e outras passagens, - Esta questao do custo dos casamentos e 0 obstaculoque oferecia a regulariza<;ao de situaeoes ilegais, 5 '6 pela impossibilidadematerial que determina, tern no Brasil urn papel de certa Importancla, ,eainda -depois da Republica, achou 0 Iegislador constituinte que devi;tinclinar a obrigacao da sua gratuidade no texto da Constituicao de 1891

(art . 72 § 4.°) . Al ias inut ilmente, 0 mal era mui to ant igo para desaparecer

56 com isto,

( 19) Saint-Hilaire, que 0 conheceu pessoalmente ql,lando ·governa4qrde Colas, relata a tragedia ocorrida em 1821. Voyage aux SQf .I r ce&-. .• ; II;, :83.Sobre 0 preconceito, como obstaculo contra 0 casamento, Cunha MatG's

refere casos interessantes em Colas (Corografia hist6rica, 298,) . U~a 0&smaiores press6es contra as a liancas com mulheres de condiQao inferior parua.das innandades Ieigas, cujos estatutos incluiam dispositivos expresso.s arespeito, eominando pena de exclusao aos irmaos que contraissem tais

casamentos.(20) Saint-Hilaire, Voy ag e a ux p ro vi nc es de Rio de l C 1 r t i r l ro : • • . • . n, 28.

o ci tado Governador Delgado de Castilho, quando em ~GQ l ~ ,Viv,iapublica-mente em palac io icom a amante e os filhos. Ninguem ,Q esti'it@ll:\la. ,t'ofato do casamento fora de sua classe, e nao a mancebia, livre ·com 'quemse quisesse , que provocava repulsa .

Forma,ao do Brasil Contempordneo 35 J

 

do matrimonio." :8 acrescenta mais adiante que "as mocas Hlhasde pais pobres nem sequer pens am em casamento., nao lhes passa

pela cabeca a possibilidade de arranjarem um marido sem 0

engodo do dote, e como ignoram os meios de uma mulher poder

"saimentos", como se dizia. Mas dai para urn verdadeiro espirito

religioso, ~ai distancia consideravel. As festas religiosas indig-

navam 0 piedoso Saint-Hilaire, que as chama de "irreverentes ceri-

monias, em que ridiculas palhacadas se misturam aquilo que a

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viver do trabalho honesto e perseverante, sao facilmente arrastadas

a.vida licenciosa" (21). Florence repete quase textualmente 0 que

o Marques do Lavradio escrevia meio seculo antes: "As mulheres

por se nao empregarem e por falta de meios para se sustentarem,

se prostituem" (22) .

Tocamos aqui um ponto que e 0 mais alarmante sintoma da

geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial:

a larga disseminacao da prostituicao, Nao ha recanto da coloniaem que nao houvesse penetrado, e em larga escala. Nao falemos

naturalmente das grandes e medias aglomeraC;6es, onde 0 fato

e mais natural, e sempre se encontrou em toda parte. Observemos

os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a sua

populacao fixa e constituida, alern dos vadios, de prostitutas. E

um depoimento este geral: "Nos mais humildes povoados, teste-

munhara Saint-Hilaire, a mais vergonhosa libidinagem se mostra

com uma imprudencia que nao se encontraria nas cidades mais

corrompidas da Europa." (23). Circunstancia alias que explica 0

destino da parte feminina deste numeroso contingente da popu-

lacao, cuja masculina ja vimos noutro capitulo: os desocupados e

vadios, vivendo de expedientes, com um pe na ociosidade e outro

no crime.

Formava a Religiao, para 'tamanha corrupcao, dique de

alguma eficacia? Que a crenca religiosa tem na vida colonial

papel consideravel, ja 0 notei em outro lugar, Esta aparece lite-

ralmente entranhada por atos e cerimonias do culto. Folheando

as Atas da Camara de Sao Paulo p. ex., nao se virara pagina quase

em que nfio se encontre algum "termo de ajuntamento" para 0

fim de comparecer a Camara incorporada a missas importantes

ou de acao de grac;a~ por isto ou aquilo, tedeuns, prociss6es -

(21) Esboco da viagem de Langsdorff, 361 e 448.(22) Carta de 12 de janeiro de 1778, cit., p. Fernandes Pinheiro, Os

ultimos Vice-Reis d o Brasil, 244. Logo adiante acrescenta: "Na facilidadeque os homens tern com 0 trato das rnulheres se segue tarnbern os poucosque buscam 0 estado de casado."

(23) Voyage aux sources ... , I, 127. Saint-Hilaire e em materia destanatureza de uma reserva bern propr ia do seu fei tio profundamente re ligioso.Seus diarios sao todos de reticencias no assunto, e percebe-se a sua repug-nan cia em tratar dele. Mas a fidelidade do observador nao pode escondero que tao escandalosarnente se evidencia, e dai 0 interesse que apresentampara nos observacoes arrancadas a tamanhos escrupulos. Outros viajantesforam mais francos.

354 Caio Prado /t'mior

reli~~ao ca~o~ica aprese1}t~ de mais respeitavel'{Sd ). Sobre 0

espmto religioso da coloma, 0 mesmo autor endossa a opiniao

que ouviu do vigario de Sao [oao del-Rei, e que "os brasileiros

eram na~uralmente religiosos, mas que sua religiao nao ia alem

dos sentidos; e quanto aos pastores, este parecem considerar a

of ens a e 0 perdao como simples funcoes maquinais" (25).

Nao e assim de esperar dos mandamentos religiosos um freio

serio a corrupcao de costumes. 0 culto fica nos ritos extemos,estes sim rigorosamente observados. Quanto a moral, era-se de

uma tolerancia infinita. Coisa que nao e para admirar: afora as

causas gerais e mais profundas que numa sociedade como a nossa

da colonia, e cuja feic;ao ja ficou bastante caracterizada nas

pag.in.~s acima, tomam inviavel uma compreensao elevada da

Religlao e do seu culto, cabe nisto ao clero, alias vitima tambem

d~s mes,?as circunstanoias, um~ boa dose de responsabilidades.

Nao COgltOUele nunca, em con]unto, de levar a serio a instrucao

religiosa: 0 seu desleixo neste terreno e lamentavel, e parece que

os s~cerdotes nao te~ outra funcao na colonia que presidir ou

pratioar os atos extenores do culto e recolher os tributos eclesias-

ticos. "Em muitos lugares,a firma Saint-Hilaire, a religiao se con-

~erva so por tradicao, pois os fieis, afastados de centros povoadosimportantes, passavam a vida num completo isolamento e sem

o menor socorro espiritual"(26). Nos outros lugares, embora pre-

sentes, os padres se ocupavam muito mais em atividades privadas

e com seus negocios, ja 0 vimos anteriormente. E a este abandono

em que deixa a populaeao, acrescenta 0 clero 0 exemplo tao

freqiiente de uma vida escandalosa e desregrada. 0 resultado

de .~_do isto !lao e de admirar porta;tto que tenha sido aquela

reh~lao reduzida a um ~squeleto de praticas ex!eriores e maquinais

vazio de qualquer sentimento elevado, e que e ao que se reduziu

o catolicismo na colonia (27).

(24) Voyage aux sources, I, 102.(25) "Les pasteurs semblent considerer comme un jeu l'offense f! t le

pardon" loc. cit.

(26) Voyage aux sources, II, 238.

(27). Ha, q~e acre~centar as deturpa<;?es da mais grossei ra sl!persti<;~Q"fruto da ignorancia e sobretudo da contaminacao de crencas e cultes '!1stcrll-'nhos ao. cr~s~anism~, t~azidos pelos africanos e corrompidos pela e;(trAiVicla! 'J,A contnbUl<;ao. do ,mdlgena e pequen~ pois em materia de cren<;a.Fel i~ios~.su~ cultura ~atlva e como se. sa.be rudimentar, - Somente os je suita's,.p,011'e.s(jafirrnar, realizaram obra mars intensa e sistematica de instruli'aq e . " i I ; : l u c l l S ' i L I l

Forma~iio do Brasil Contemporilrreo· : 3 5 3

 

Numa palavra, e para sintetizar 0 panorama da socierladecolonial: incoerencia e instabilidade no povoarncnto, pobrcza cmiseria na economia; dissolucao nos costumes; inercia e corrllpc,': to

nos dirigentes leigos e eclesiasticos, Neste verdadeiro descalahro,

Mas por baixo palpita uma outra vida, uma transformaeaoque se esboca. Nao e evidentemente possivel, em terreno destanatureza, essencialmente dinamico e nao estatico, fixar ngorcsa-mente "mementos"; trata-se de uma situacao que ainda nao existe,

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ruina em que chafurdava a colonia e sua variegada populacao,que encontramos da vitalidade, capacidade renovadora?

Naquela tremenda desordem colonial esbocava-se uma reacao,Fruto das mais variadas situacoes, como todas as reaeoes quevern das profundezas, e levada por outros tantos impulsos diversos,ela se esbocava e ia precisando os seus contornos. Urn denorni-nador comum sornara e identiflcara todas aquelas situacoes: 0

mal-estar generalizado que de alto a baixo perpassa a sociedadecolonial e the tira estabilidade e equilibrio, MaL-estar economlcoe social de raizes profundas. que no caso particular de cadaindividuo ou grupo se explicara por esta ouaquela circunstanciaespecial e imediata, mas que em ultima analise derivara dequalquer coisa de mais fundamental e geral: 0 pr6prio sistema dacolonizacao brasileira.

A colonizacao produziu seus Irutos quando reuniu neste terri-t6rio imenso e quase deserto, em 300 anos de esforcos, umapopulacao catada em tres continentes, e com ela forrnou; bemou mal, um conjunto social que se caracteriza e identifica portraces pr6prios e inconfundiveis; quando devassou a terra, e~plo-rou 0 territ6rio e nele instalou aquela populacao: quando final-

mente rerneteu por cima do oceano, para os mercados da Europa,caixas de acucar, rolos de tabaco, fardos de algodao, barras deouro e pedras preciosas. Ate at construiu; mas ao mesmo tempo, ea par desta construcao, foi acumulado um rassivo consideravel.Nao por "erros", seja a nossa apreciacao moral ou de capacidade,mas por contingencias que nao poderia ter obviado, e que s6com 0 tempo se revelariam vicios profundos e orgfmicos: a incor-poracao apressada de racas e culturas tao diferentes entre si, 0trabalho servil, a dispersao do povoamento, tantos outros elementosque caracterizam a colonizacao e a constituem. Tudo isto quefora em seu tempo inevitavel, necessario e por isso mesmo"acertado", revelava agora bern clararnente, tres seculos depoisdo in.cio da colonizacao, seu lado negativo. E e isto que vernos

no memento em que abordamos aqui a nossa hist6ria: dai 0

nspecto de decomfosic;ao em que se aprcsenta entao a nossos olhoso sistema colonia brasileiro.

reli"'in~~ na colonia. A sua influencia neste terreno e consideravel, e a des

se cleve com certeza, em boa parte, esta "mecanizacao" do culto rel igioso,

que e urn dos traces rnais sal ientes do catolicismo brasilei ro: aval le-se 0

efeito do sistema de educacao inspirado em seus famosos "exercieios espi-

ri tuals", caindo em cheio nesta sociedade colonial ignorante e primit iva!

:356Caio Prado lunior

que nao tern conteudo pr6prio, mas e apenas um estado latenteque se revela por alguns precursores, sintomatieos mas isolados.Tais fatos vern de longe, des de 0 inicio da colonizacao, sequiserem. E em rigor, poderiamos ir apanha-los em qualqueraltura de nos sa evoluC;ao hist6rica. Divertimento a que se terndedicado muitos historiadores. Mas limitando nossa atencaoaquele periodo que cavalga os dois seculos que precedem imedia-tamente 0 atual, e que alias escolhi por isso mesmo, vamos en-contra-los mais salientes, mais caros e precisos. A decomposicsodo sistema colonial esta entao mais adiantada, os germes deautodestruicao que eontem, desde 0 inicio embora, se definementao com mais nitidez. E ao mesmo tempo, as Iorcas renovadorasque laboram em seu seio, e que sao aqueles mesmos germesvistos de urn outro angulo, comecam a apontar com mais frequen-cia e ja podem ser apanhados mais facihnente.

Elas entao ja indicam uma situacao de conjunto nova, dife-rente e contraria ao sistema colonial ainda dominante; e que,embora ainda nao exista, comeca a se desenhar . : e muito dificil,se nao impossivel, caraeteriza-la nesta fase anterior a sua eclosao,

ela nao passa de reacao informe, incoerente e desconexa quese revela apenas por sintomas, circunstancias exteriores diversas,as vezes ate contradit6rias entre si. 0 historiador, ao ocupar-sedela, enfrenta 0 risco de tratar 0 assunto anacronicamente, isto e ,conhecedor que e da fase posterior, em que ocorre seu desenlace,em que ela se define, projetar esta fase no passado. 0 que naoraro tern sido feito. Como 0 processo que ora DOS ocupa vai darna separacao da colOnia de sua metr6pole, na .Independencta,sao as manifestacoes neste sentido que se procuram. Simplismolamentavel, que nao somente restringe consideravelmente €I oQj,~~oda pesquisa, como a desvia de seu verdadeiro sentido. 0 filial dacena, ou antes, 0 primeiro grande acontecimento de conjunte- q~evamos presenciar sera, nao ha duvida, a independencia .PQU~i~

da colonia. Mas este final nao existe ainda antes dela, nero. · e s t a ."imanente" no passado; ele sera apenas a resultante de urnconcurso ocasional -de foreas que estao longe, todas elas; detenderem, cada qual s6 por si, para aquele fim. Algumas, , p o s s i -velrnente; todas certamente nao, Mas como concorrem sem exee~,iiO.c tern cada qual seu papel, nenhuma pode ser desprezada, Alcmdisto, e sobretudo, sao elas e nao 0 seu desenlace que nos, deveminicialmente ocupar.

 

: t ; ; esta a unica atitude legitima de uma pesquisa ebjetiva,e que esta muito lonze do que freqiientemente se faz; :e queconsiste, depois de con~ecida a evolucao de uma situac;1io h'fstor icaadrniti-la a priori como. contida e imanente nela desde seus

fcs tam exter iormente sobretudo por aquele mal-estar generalizadoque assinalei acirna e que atinge toda a colonia, e a mesmainfra-estrutura econornica descrita nos primeiros capitulos destetrabalho. Achamo-nos ar, vamos repeti-lo, em presenc;a de uma

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primeiros passos. Partir da presuncao, no casu vertente, que 0

fim fatal e necessario de uma colonia e tornar-se politicamenteindependente da metr6pole, e que isto ja estava incluido em 110SS0

destino quando Cabral avistou os primeiros paus que boiavam nomar e faziam suspeitar da proximidade de terras; e procurar,dai por diante, todos os sinais remotos de uma "independencia"futura, necessaria e fatal.

Esta claro que a previsao da separacao da metropole, a Ideiade .que 0 Brasil seria um dia nacao independente, ja aparece

~u~t~ antes da realizacao do fato, e esta no pensamento de algunsID~hvl~UOS,qu~, o~ por intuicao, ou no mais das vezes por simplesmirnetismo e ilacao de exernplos semelhantes ocorridos noutras

pa~es, es~eravam, ~ mesmo. as vezes trabalhavam pela sua reali-z~c;ao. E IS to tambem preclsa ser leva do em consideracao. Masnao esgota 0 assunto, e sobretudo nao 0 explica, porque nao seraesta ou aquela ideia, de um ou de muitos individuos - alias, nocaso vertente, de poucos relativamente, - que sera a "causa" daIndependencia. Muitas outras ideias, ate opostas aquela, e espo-

sadas por urn n~mero incomparavelmente maior de pessoas, inter-pretavam as coisas de outra torma. Ideias sao materia que nunca

falta: ha-as sempre de todos os naipes e para. todos os gostos.E se paramos nelas sem procurar diretamente os fatos que asInspiram, ficamos na impossibilidade de explicar porque, de um

momen.to para outro, uma destas ideias e nao outra qualquer,ganha impulse, se alastra, vence e acaba se realizando. As ideiaspor si, nao fazem nada, e para 0 historiador nfio devem servir

senao de sinais, express6es ou sintomas aparentes de uma reali-

dade que vai por baixo, nos fatos concretos, e que as provoca.

Abstraiamos portant? aqui, e inic!almente, do que se passaria

~um ~~ro que r=ora .lgn~ramos, e mdaguemos apenas daquelasforcas a que me refen acima, e que sao 0 motor de uma trans-formacao, cujo sentido e direcao nao podemos ainda conhecer,

mas que trab~lhaT contra 0 sist~m~ col_?nial. Note-~e que emprego

esra expressao, sistema colonial", nao no sentido restrito doregime de colonia, de subordinacao politica e administrativa ametr6pole; mas no de con j unto de caracteres e elementos econo-micos, sociais e politicos que constituem a obra aqui realizadapela colonizacao, e que deram no Brasil.

o fio condutor que na complex ida de dos fates com quetemos de lidar nos conduzira ao mais intimo da sociedade colonialpara nele descobrirmos a origem de tais "foreas", que se mani-

~38 Caio Prado Junior

economia constituida na base da exploracao, e exploraeao preci-pitada e extensiva dos recursos naturais de urn territ6rio virgem,para abastecer 0 cornercio intemacional de alguns generos tropicaise meta is preciosos de grande valor comercial. It esta, em ultimaanalise, a' substancia da nossa economia colonial, a pr6pria expli-cacao e definicao da obra colonizadora que Portugal aqui realizou.Tal base, com 0 desenvolvimento da populacao, com 0 concurso

de outros fatores varies, se toma, atraves do tempo, restrito eincapaz de sustentar a estrutura que sobre ela se formara, Sufi-

ciente de inicio, e ainda por muito tempo para prover aos finsprecipuos da colonizacao - a ocupacao do territ6rio, 0 aproveita-mento dele com urn relativo equilibrio economico e social; parapromover, enfim, 0 progresso das forcas produtivas -, aquelabase acabou por se tornar insuficiente para manter a estruturasocial que sobre ela se constituira e desenvolvera; e a isto sechegou sem que Fosse preciso a intervencao de fatores estra-nhos, mas pelo .simples desdobramento natural do processo

da colonizacao.

Tal insuficiencia se verifica pelos resultados a que tevaraaquele desdobramento, e que acumulados, tomavam iminente,

na fase que nos ocupa, uma desagregacao completa, se nao aJ;>aralisaC;iioda vida do pais. 0 mais saliente dele, 0 mais sensivel,

e ° estado a que se reduzira 0 acervo material do territ6rio,. comque se contara ate en tao para manter aquela vida. Tinham-se jaquase esterilizado as Fontes mais acessiveis de riqueza: terras esgo-tadas por processos barbaros de cultura ou por devasta~impensadas, dep6sitos minerais exauridos .. , Note-se que nao v~

aqui recr iminacao alguma aos metodos de exploracao empregadas;,e que eram, dadas as circunstancias, os unicos possiveis, Eles

sao fruto do sistema geral que se adotou na colonizaeao ~ ~~'rit6rio brasileiro, fazem parte integrante dele; e tal sistema , n @ Q '

poderia ter sido evitado e substituido por outro na fa:sepreU.minar da colonizacao, ~

H a ainda outro resultado fundamental que se pted: sa de:sta:car.e a que levara 0 processo de colonizacao, COITc la to aua~! e ,intimamente ligado aquele primeiro, e sempre aQ mesmo Sistema

colonial. It a proporcao consideravel de poPu1a9Qes que eom (2

tempo vao ficando a margem da atividade pradativa 'nOrmal' dacolonizacao, 0 circulo desta atividade se encer~ g_:'Qaseexelg$iVa~.mente com os doi s termos fundamentais da o~ga.niga,ao e(lOl1~fc:ae social da colonia: senhores e escravos; os primei(Qs, Pltl lDOtotes

Formafiio do BraijJ CO lJ :l e~ ~,... :: t S9

 

e dirigentes da colonizacao, os outros, seus agentes. Enquantohouve apenas senhores e escravos, e e 0 que se da no inicio da

colonizacao, tudo ia bern. Todos os povoadores do territ6rio bra-sileiro tinham seu lugar proprio na estrutura social da colonia,

anteriores, e que foi sern duvida urn espirito brilhante, de larga

cultura, e profundo conhecedor da colonia. .Outros, de Ieitio menos conservador, enxergavam mais longe,

ja falam em re£ormas substanciais. 0 nosso ta? ~onheci~o e lern-

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e podiam normalmente desenvolver suas atividades. Mas forma-ram-se aos poucos outras categorias, que nao eram de escravos

nem podiam ser de senhores. Para elas nao havia lugar no sistemaprodutivo da colonia. Apesar disto, seus contingentes foram cres-

cendo, crescimento que tambem era fatal, e resultava do mesmo

sistema da colonizacao. Acabaram constituindo uma parte consi-

deravel da populacao e tendendo sempre para 0 aumento. 0

desequilibrio era fatal.A tais fei~6esmais salientes e fundamentais do processo evo-

lutivo da colonizacao, agregam-se outras derivadas delas ou com

elas intimamente relacionadas. Dispenso-me de enumera-las aqui,

porque isto seria recapitular toda a materia deste livro, nela se

encontram, embora vistas de urn angulo estatico, em vez do

dinamico que ora nos interessa. 0 que em suma se verifica, e

que 0 sistema de eolonizaeao adotado no Brasil, 0 nosso "sistemacolonial", depois de ter produzido durante tres seculos frutos

apreciaveis que contrabalancavarn 0 negativo da sua feicao, tocarao extremo de sua evolucao, pelo menos em alguns e principais

de seus aspectos; e a .curva que desenhara na Historia comecava

a infletir decididamente para baixo, para sua consumacao, Esgo-

tara suas possibilidades, e seria necessariamente substituidopor outro.

o fato alias se tomara tao sensivel e patente que nao houveentre os contemporaneos esclarecidos e que nos legaram seus

pensamentos, quem nao 0 enxergasse. La pelos fins do sec. XVIII

comecam a aparecer e se multiplicar os "reformadores" e seus

projetos. No curso deste trabalho tenho recorrido a muitos deles,

nao pelos pIanos que apresentam, 0 que nao tern hoje interesse

pratico, mas pela lucidez com que muitos enxergavam a situacao,

fornecendo-nos por isso dados precisos para a reconstrucao de

urn passado que era para eles urn "presente" tao bern compreen-dido. Uns, a maioria,pregavam uma especie de cristalizacao das

condicoes vigentes, uma perpetuacao, em arnbiente de estu£a,do sistema colonial tal como tinha sido e ainda era praticado. Os

,males, que enxergavam muito bern, nao os atribuiam ao sistema

propriamente, mas ao modo pelo qual se praticava, e sobretudo

aos desvios que nele se tinham introduzido. Em surna, 0 que

prop6em e 0 restabelecimento dele em sua pureza original. 0

exemplo mais tipico deste modo de pensar e 0 do uutor uuonirno

do Roteiro do Maranhao, que utilizei largamente nos capitulos

360 Caw Prado JUnior

brado Luis dos Santos Vilhena, professor regio na cidade do

Salvador, e autor da Becopdaciio de Noticias Soteropolitanas e

Brasilicas, os representa(28).

o govemometropolitano nao fica a margem destas cogita~6es.

o final do s~c~lo XVIII ~ primeir?s anos ~o,se~uinte se carac-terizam por mumeras medidas legalS e providencias que revelammuito bern a oompreensao em que se estava da necessidade de

reformas; ou pelo menos, de que alguma coisa tinha de ser feita.Na realidade, contudo, nada se fez de verdadeiramente eficaz( 29).As medidas mais bern intencionadas, e aparentemente revolu-

cionarias do sistema colonial, como por exernplo a liberdade parao estabelecimento de manufaturas de ferro em 1795,ou a reformado regime da mineracao em 1803, bern como outras semelhantes,se frustraram na pratica, e isto porque, sobretudo, nao se tocou

nos elementos substanciais do sistema.

Por que esta incapacidade, que nao se explica unicamente

pelos vicios da administracao portuguesa e a profunda decadenciada dinastia reinante, de realizar reformas efetivas? Precisariamos

aqui, para esclarecer bern a questao, remontar muito longe, eperscrutar intimamente a pr6pria hist6ria portuguesa. Nao temos

espa~opara isto, que foge ao assunto que diretamente nos interessa.Mas nao podemos passar-lhe inteiramente ao largo, porque muitas

circunstancias da materia que nos ocupa nao se compreenderiamsem ele. Assinalemos portanto, sumariamente, 0 que de modomais direto se liga ao nosso assunto, e que explica muita coisa

dos fatos que se seguem.

Trata-se da atitude geral do govemo :p<>Itu:gU€S'om relacaoa sua colonia americana. A monarquia PQ,rtu~1;1esae tomaradesde 0 sec. XV, de urn pequeno e insigniHeante r e m o continentaleuropeu, em grande imperio maritimo e colonlal, e na base deste

(28) Veja-se sobretudo, para 0 que nos interessa aqui, a 24.a e Ultima

de suas car tas,(29) Destaquemos aqui 0 nome de D. Rodrigo de ~ousa Coutinho,

depois Conde de Linhares, que em 1796 assume a Secretaria do Ultramar,e cuja longa administracao, que s6 veio terrninar no Brasil para onde acom-panhou 0 Regente em 1808, e assinalada por uma constante e inteligentepreocupacao relat ivamente aos neg6cios do Brasi l. A presenc;a do sel l irmaoD. Francisco no Para, que governou ate 1803, mostra os laces que ligavamo ministro 11 colonia, semelhantes nisto aos do Marques de Pombal, quetarnbem teve urn irmao no governo da mesma capitania: 0 autor do Dire-tar io des Indios , Francisco Xavier de Mendonca Furtado.

f'ormarao do Brasil Cot ltemporaneo 361

 

imperio, que a seu tempo se alargara por vastas areas 'Ge fi't's

continentes, e se reduzira na fase que ora nos ocupa pra:tlcamente

s6 ao Brasil, que se reorganiza sua estrutura e sua vida, erne gllea parte continental, 0 Reino propriamente, forma 0 apioe e €entro

politica portuguesa, niio havia aqui uma socieda_de ou ?ma eCQ-

nomia de que se ocupar, fosse embora em funcao dos interesses

portugueses, mas tao-somente "financas" a e~d~r. L~~do-se a

maior e mais import ante parte da correspondencia oficial e _d ?

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controlador. Mas isto em condicoes especialissimas, que' distill'-guem 0 imperio portugues dos outros com que ombreia no 1 1 . r i i , -verso, do britfmico em particular. A monarquia absoluta podu-

guesa tern por figura central e convergente de toda vida -dela,

o rei; e com ele a corte, esta chusma de palacianos que cellcaih

o trono e constituem, quase todos, uma nobreza togada ~\le

ocupa os empregos, comiss6es e outras funcoes mais ou menos

ligadas a estrutura administrativa da monarquia (30).

A politi;~ po:tugues~ e determinada por tal circunsta~ci~.

Os usufrutuanos sao 0 rei e sua corte que ele mesmo constitui,

e com quem reparte os seus proventos; nfio a naciio portuguesa,

que s6 indiretamente se beneficiava das possess6es imensas da

monarquia. Assim foi desde 0 inicio da expansao lusitana no

ultramar. : r ; : alias ao rei que Portugal deve suas conquistas: os

descobrimentos lusitanos resultam de uma obra empreendida

exclusivamente, desde seus primeiros passos ate a ultima provi-

dencia, por iniciativa e atos dos soberanos ou de seus delegados

imediatos( 31). Foi esta alias a base do absolutismo portugues,

do poder imenso e incontrastavel do monarca,

Por estas raz6es, 0 Imperio Lusitano nao sera urn desdobra-

mento natural da nacao, e esta nao figurara na sua base, nem

sera ela 0 nucleo convergente da monarquia. Sem entrar em mats

pormenores, que estenderiam demasiado 0 assunto, podemos con-

cluir relativamente ao conteudo da poli tica Iusitana, em particular

no que diz respeito ao Brasil. Ela e antes de tudo urn "neg6cio"

do rei, e todos os assuntos que se referem a administracao publica

sao vistos deste angulo particular. Assim os problemas politicos

e administrativos que suscita a colonia americana sao sempre

abordados de urn ponto de vista estritamente financeiro. Para a

(30) A inf luencia terri torial e em Portugal minima, e acess6ria da

outra, a burocratica, As proporcoes do Reino, em relacao a seu vasto Imperio,explicam 0 fato suficienternente.

(31) S6 ha uma excecao de vulto a esta regra: e 0 sistema das dona-tdrias, adotado nas I1has e repetido no Brasi l, em que se procurou substi tuir

a iniciativa privada a do rei. 0 fracasso no Brasil foi completo, como se

sabe, ou en tao serviu apenas, num ou noutro ponto, para um timido ensaio.

E b~o depois deste modesto inicio, a intervencfio dos donat.irios pratica-

mente desaparece e 56 subsisite nos proveitos que auferiam de suas capi-

tanias, scm contribuirem em nuda para a obra da colonizacao, que sera toda

de iniciativa real. Depots dos primciros tempos da colonia, os donatarios

somente scrao lembrados pela historia do Brasil quando se trata de fuZCI

reverter scus direitos a coroa, 0 que se consuma no sec. XVIII.

: ' ;G2 Caio Prado J<.nior

legislac;iio relativa ao Brasi!, percebe-se isto !I_led~atamente. :~llasnunca se procurou esconde-lo, e 0 Real Err.rio e 0 persona gem

que representa em nossa hist6ria colonial, e sem nenhum disfarce,

o maior papel.

Sera esta a raziio fundamental da incapacidade da politica

-portuguesa em realizar reformas substanciais que atingissem 0 s~u

"sistema colonial". Porque este sistema niio podia ser outra coisa

para ela senao 0 que era: urn simples setor, embora 0 essencial,

daquela grande empresa comercial que e a monarquia portuguesa,

com 0 seu rei no balciio. Esta organizac;iio que comeca com 0

trafico de escravos, marfim e ouro na Costa da Africa, continua

com 0 da pimenta e das especiarias na lndia, ~ se encerra .C?~o do acucar, ouro, diamantes e algodiio no Brasil, que perrrutma

ao Reino ocupar dois continentes e povoar urn tercei.r~,.tomara-se

obsoleta. Ja nao funcionava normalmente, e os sacrificios que se

faziam para mante-la apesar de tudo, recai~m inte~ramente no

ultimo retalho que ainda lhe sobrava: a coloma amencana. Como

reforma-la pottanto, se isto destruiria a ultima base da orga?izac;a~?

S6 com a substituicao desta por outra qualquer. Mas IStOnao

ocorreria, e nao podia ocorrer aos dirigentes de Portugal: porqueseria a sua autodestruicao, Nao ocorreria, pouco mars tarde,

nem aqueles que derrubariam 0 poder absoluto do rei, procurando,

alias inutilmente, substi tuir-se a ele.

Verifica-se assim que 0 sistema colonial niio e uma cria41ao

arbitraria, reformavel a seu talante. Suas raizes v1io longe e rti,el'o

gulham no mais profundo da monarquia ~ortu~esa de..que acolonia faz parte. A sorte de uma estava ligada a out.;a; Comq,

pois reforma-la seniio pela separacao da colonia? Mas ,~t~,sepao-

racao, se se tomava assim a primeira providencia par~ a. reforma

que se impunha - pelo menos hoje podemos afirma-lo'i' por~ueestamos na posicao comoda de quem ve tudo que , S e ' pa$sou,antes e depois; mas naquele tempo, e para os co~tetnj?~~rt~?s.,~

a coisa nao era tao simples e clara -, nem ,PO! IS~. a l~e!.~

daquela separacao surgiu assim espontanea:me~t~; 1aml'e)Q,er-nt!j\lode urn cerebro privilegiado e angustiado poT umprohlema ~oe

pedia solucao, e que, partin do dai, se propagoo eomo urrra ep lue- ,mia ou 0 incendio de uma floresta, ate, teUIDrc!fm 'D1tmerQ s , u H , . ,

ciente de adeptos decididos e suficientemente '\'''al~t~~f,p~~,' $9transformar, num passe de magica, em a ~a 6 . . Os : f a t O : I > : . ms t opCQssao infelizmente mais complexos que este genero faed e suave

Eormaciio cW Bf 'Q# i l Contempordn.eo 3(13

 

de explicacao, tipo "con to da carochinha", em que se deleitam

rnuitos historiadores.

Houve e certo, ja 0 notei, quem visse prematuramente a sepa-

racao da colonia. Ocuperno-nos com estes profetas, para liquidar

Assim, a explicacao de que e a "ideia" da Independcnda:

que constitui a forca propulsora da renov.ac;:ao que ~e operava

no seio da colonia parece pelo menos arnscada. Mais coerente

com os acontecimentos e que as vari~s ideias .da separacao, ?a

federacao, da Iiquidacao do portugues vendeiro ou taherneiro

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o assunto, de importancia agui alias secundaria, e coloca-Io em

seus devidos termos. E depois da independencia das colonias

inglesas da America do Norte (1776), e claramente por inspiracao

dela, que se comeca a cogitar nas rodas brasileiras do exterior

em imitar-lhes 0 exemplo. Um estudante brasileiro de Montpellier

(Franca), onde era grande a colonia (32), Joaquim Jose da Maia,

escreve sobre 0 assunto a Jefferson, entao embaixador da Uniao

Americana em Paris, pedindo 0 auxilio do seu pais para a Inde-

pendencia do Brasil; chega mesmo a entrevistar-se com ele. Mas

a coisa nao teve maior andamento. Outros dois estudantes, lose

Alvares Maciel e Domingos Vidal de Barbosa, este ult imo tambem

de Montpellier levaram suas conversas e discussoes mais longe,

pois de volta ao Brasil participam da Inconfidencia Mineira, tendo

sido 0 primeiro, com toda probabilidade, quem forneceu a

Tiradentes 0 material ideol6gico de que 0 ardente alferes se

util izaria para colorir e enfeitar a conspiracaoe a projetada revolta.

Nesta, bem como na chamada Inconfidencia da Bahia (1798),talvez menos na ultima, e possivelmente tambern naqueles con-

cluios do Rio de Janeiro em 1794, de que resultou a prisao, entre

outros, de Mariano Jose Pereira da Fonseca, futuro Marques de

Marica e unico moralista que as letras tiveram ate hoje, a ideia

da separacao teve, como se sabe, bastante relevo. Falou-se ai

claramente do estabelecimento no Brasil de um regime politico

independente da metropole, Mas este pensamento nunca saiu de

peqtlenas rodas e conciliabulos secretes. Nem mesmo entre os

espiritos mais esclarecidos da colonia tratava-se de uma ideia

generalizada. Pelo contrario, muito poucos, excepcionais mesmo

eram aqueles que, mesmo admitindo a necessidade de reformas,

e batendo-se por elas, levavam sua opiniao a extremos revolu-

cionarios, Ate as vesperas da Independencia, e entre aqueles

mesmos que seriam seus principais fautores, nada havia que indi-

casse um pensamento separatista claro e definido. 0 proprio

Jose Bonifacio, que seria 0 Patriarca da Independencia, 0 foi

apesar dele mesmo, pois sua ideia sempre fora unicamente a de

uma monarquia dual, uma especie de federacao luso-brasileira(33).

(32) As primeiras gera.;;6es de medicos do nosso pais, Formados no

ul timo quartel do sec. XVIII, vern sobretudo desta Universidade, entfio a

primeira da Europa na materia.

(33) Observou Martius que na Bahia, onde esteve em 1819, a gente

rnais fina e de boa educacao era toda apegada a Portugal e it conservacao

~64 Caio Prado JUnior

(esta ultima, sobretudo, andava na boca de todo mundo ), bern

como outras que tambem se agitavam, embora fossem menos

salientes: a libertacao dos escravos, a supressao das ba:reiras

de cor e de classe; que estas varia~ ideias na~ foss;m ma.ls . que

reflexos, no pens amen to dos individuos de situacoes obJetIv!s,

exteriores a qualquer cerebro; que estao nos fatos, nas relacoes

e oposicoes dos individ';los entre si: 0 senhor ~e engenho0 AU

fazendeiro devedor que e perseguido pelo comerciante portugues

credor; 0 pe-descalco que 0 vendeiro portugues nao quer co_m~

caixeiro: 0 mulato que 0 branco exclui da maior parte das func;:oes,

que de~preza e humilha; 0 lavrador "obrig~do" que se sente

espoliado pelo senhor de engenho que the moi a ca~a; 0 e,scravo

que se quer libertar", 0l?osic;:6es todas qu~ com 19ual Justeza

podem ser vistas pelo lado l~verso: 0 comerc.lante que em.prestou

seu dinheiro e nao faz senao cobrar 0 devido: 0 vendeiro que

prefere seus patricios mais diligentes e afins com seu tempera-

rnento; 0 branco que se formou na conviccao, incutida desde 0

nascimento e oficialmente reconhecida, da superioridade de sua

raca; 0 senhor de escravos que precisa de mao-de-obra, e nao

faz mais que se conformar com 0 que esta nas leis, nos costumes,

na moral em toda ordem estabelecida e reoonhecida. Todos

estao corn a razao, e cada qual forjara ou adaRtara - e este

naturalmente 0 caso mais freqiiente, - alguma "ideia" para sell

uso proprio e que justifique sua posicao e suas pretens6es.

Se desco ao que podera parecer minucias, e que sao elas

que mais importam. Cada uma daquelas situacoes que aparecem

a tona dos acontecimentos, que podemos apalpar e acomp~nhar,

ligam-se a contradicoes ge:ais que vem. do ,~~~g~, do ~lstema

colonial , que resultam da9Ull~ qu~ chamei os VICIOS do ~ls~en~a,

e que 0 processo da oolonizacao Ioi pondo, um a ~m, em evidencia,

Em todos os casos citados, como em outros qualsquer da mesma

natureza, os individuos em jogo nao sao senao criaturas daquele

sistema, e sofrem-lhe as contingencias: 0 proprietario endividadoque nao pode pagar, 0 comerciante credor que nao recebe seu

credito, 0 pe-descalco que nao en contra trabalho e meios de

subsistencia, e assim por diante. Tudo isto provem, clir~ta ou

de suas leis e praxes. Era a "rale' que hosti lizava ,os portugueses, Viag,em,

II, 291. Alias os portugueses indicidualmente, muito mars que 0 regIme,

nocao abstrata que a maioria ainda niio alcancava.

Eormaci io do Brasi l Contemporaneo 365

 

indir~tamente, daquele sistema colonial, e sao todos estes pequenos

confhtos,. s~mados uns aos outros, que porao a sociedade colonial

em .ebuht;ao, preparando 0 terrene para sua transformacao, 0

sentido de~ta sera. no de solucionar tais conflitos, pondo termo

as eontradicoes profundas do sistema donde provem, harmon i-

sombra com scu dinheiro ao prestigio e posicao social daqueles(36).

A oposicao ao negociante portugues - mascate, marinheiro, pc-

-de-chumbo, 0 epitero com que 0 tratam varia -, se genenliza,

como r,ef~ri noutro capitulo, pOi'que este, empo.lgando 0 co~el:cio

da coloma, 0 grosso como 0 de retalho, excluiriele 0 brasileiro,

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zando-as .c~m elem~ntos nov?s que vao surgir no proprio processo

das oposicoes em Jogo, e tirando a estas a razao de ser. Tais

elementos novos constituiriio a transformaeao esperada (34) .

: t ; : assim nas contradicdes profundas do sistema colonial

donde brota~ aquel~s conflitos que agitam a sociedade, e dond~

brotara tamb~m a smtese ?elas que para termo a tais conflitos,

fazendo surgu urn novo sistema em substituioao ao anterior eai q~e ~ncontrare~?s as fort;as.moto~as que renovariio os quad~os

econ~ml<?os e socials, da coloma. Vejamos pois tais contradicoes,

A pnm~Ira, porque e a .que representa maior papel e atinge as

cl~sses mf!,:entes e domlI~a.ntes na ordem colonial, tern por con-

teudo a cisao que se verifica entre proprietanos - senhores de

engenho, lavradores, fazendeiros, - de urn lado, comerciantes do

outro ..p me t.enho referido ao assunto, procurando caracterizar

a _poslt;ao re}attva des~as classes, separadas por interesses antago-

mcos que tern sua ongem, sobretudo, na. situ,ac;iio. respectiva de

devedor e credor. 0 que agu9R 0 conflito e a msolvabHidade

cronica dos debitos comerciais na colonia, resultante da crise mais

ou menos intensa em que se debate a producao brasileira em

part~cular a do acucar, no correr do sec. XVIII, e que, em ultimaanalise pro vern das condicoes de uma economia debfl, mal estru-

turada e conduzida, e visceralmente ligada a urn mercado exterior

p~ec:ir io ~ ince~to(35). Agu9R-o tambem a diferenca profunda de

vida e psicologia que separa as classes referidas e os individuos

9ue respectiv~mente as <?omp6em, fruto tambem de condicoes

merentes ao sistema colonial: de urn lado brasileiros proprietaries

que se consideram a "nobreza" da terra educados num regime

de vida. larga e de J?randes ,~astos, desprezando 0 tra balho e a

eeonorrua; doutro 0 mascate, oimigrante enriquecido, formado

numa rude escola de trabalho e parcimonia, e que vern fazer

. (34) C?mo esta "harrnonizacao" em todos os casos que tern os emVIsta e posten or 00 periodo que ora nos ocupa, mo cabe aqui 0 seguimento

do processo que ficara para a segunda parte deste trabalho. Mas da analise

que segue ?as contradieoes fundamentais que solapam 0 sistema colonial,se percebera 0 rumo para 0 qual tendern.

(35) Nao me deterei no assunto que pertence antes a hist6ria eco-

n.i lrn:ic~em particular; para mais apreciacoes sobre a situacao comercial efinaceira da producao brasileira no momenta que ora nos ocupa e na fase

9,ne .0 precede, re~eto 0 leitor,. e~tre outIos, para 0 trabalho contemporaneoJa diversas vezes citado: Descticiio economica ...

366 Caio Prado JUnior

que ve cercearem-se-lhe os meios de subsistencia, 0 conflito assim

se aprofunda e estende.

Outra contradicao do sistema colonial e de natureza etnica,

resultado da posicao deprimente do escravo preto, e em menor

proporcao, do indigena, 0 que da no preconceito contra todo indi-

viduo de cor escura. E a grande maioria da populacao que e ai

atingida, e que se er~ue contra um sistema que alem do efeitomoral, result a para eta na exclusao de tudo quanto de melhor

oferece a existencia na colonia. 0 papel politico desta oposicao

de racas, ainda pouco avaliado, e no entanto consideravel, Afora

o que se percebe da luta surda e revolta latente das rac;as opri-

midas, e que os depoimentos contemporaneos, apesar de muito

reticentes no assunto, nao podiam esconder - como por exemplo

a observacao de Vilhena sobre 0 "atrevimento" dos mulatos (37)-, ocorrem sintomas mais graves e prenuncios de choque em

perspectiva. A devassa procedida por ocasiao da Inconfidencia

baiana revela-nos, atraves dos depoimentos prestados, bem como

no texto de papeis sediciosos que se fixaram nos lugares publicos

da cidade, que 0 nervo principal do levante projetado era a dife-

renc;a de castas, a revolta contra 0 preconceito de cor (38). Aliasquase todos os consipadores prelios sao pard os e mulatos da mais

baixa extracao,

A condicao dos escravos e outra fonte de atritos. Nfio se

julgue a normal e aparente quietaeao dos escravos, perturbada

alias pelas fugas, formacao de quilombos, insurreicao mesmo -

como as que agitam a Bahia em principios do seculo passado, e

que se repetem em 1807 09, 13, 16, 26, 27, 28, 30 e 35 (39 ), -fosse expressao de um conformismo total. E uma revolta constante

que lavra surdamente entre eles sobretudo leionde sao mais nume-

(36) "Os por tugueses sao at ivos e industr iosos, escrevera Mart ius, os

brasileiros, nascidos na fartura e criados entre escravos domesticos de pouca

educacao, preferem 0 gozo ao trabalho, e deixam aos forasteiros 0 comercio,preferindo desfrutar 0 bem-estar da fazenda." Viagem, II, 479. Boa parte

da crise social e politica brasileira de principios do seculo passado est:l

contida nesta observacao.

(37) Becopilaciio, 46.(38) Inconiidencia da Bahia, em 1798. Devassas e seqiiestro, 0 texto

dos papeis sediciosos foi publicado por Bras do Amaral em apendice ao seu

trabalho subre A consp irad io republicana da Bahia de 1798 .(39) Estudou-se ate hoje, unicamente, Nina Rodrigues, Os ,4fricano~

flO Brasil, 166.

Eormaciio do BrusU Contempordneo 361

 

rosos, mais conscientes de sua forca, ou de 11mnivel culturalmais elevado, 0 que se da particularmente na Bahia( 40). Relati-varnente a esta cidade, que foi 0 maior centro de aaita90es servisna hist6ria brasileira, conta-nos Vilhena 0 estadobde perpetuo

alarma da populacao livre, sob a arneaca perene desta "corporacao

colonia e do sistema politico e econornico que a constitui. 0

que alias se encontra implicito em todas as paginas dcste tmlni".oem que procurei analisar a obra da colonizacao em princlp.os

do scculo passado. A enumeracao que fiz acima das que aparcc(,fllcom mais evidencia e antes exemplificacao. E 0 sistema colonial

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ternivel", como ele chama os escravos(41).

A estas situacdes espedficas de oposicoes e atritos, acrescem

outras ~ais gerais que resultam diretamente da administracaometropolitana, de seus atos e processos. Sao os que, no assunto,mais se estudaram: a acao do fisco, os processos empregadosno recrutamento, a mesquinha poHtica econornica da metr6pole,

o despotismo dos capitaes-generais, etc. Mas 0 papel deste fator,embora mais aparente, e relativamente pequeno no conjunto doprocesso revolucionario que agitava a colonia. No mais das vezes,

?S ~t?S e_abusos .da administracao serviram antes de pretexto ejustificacao de atitudes extrernadas e revolucionarias, ou contri-buiram apenas como fatores imediatos, a gota dagua no copo

trans~o~d~nte(42) . A acao da poHtica metropolitana com relacaoa coloma e rnais mteressante, no caso vertente, nao nestas medidasparticulares, mas no seu aspecto geral e de conjunto que lembrei

acim~, ~ que a~e como Iorca co~servadora principal do "sistemacolonial", e freio as transformacoes em elaboracao.

Nao haveria vantagem em continuar aqui nesta dissecacaodas contradicoes e fontes de atrito que laboram no seio da

(40) Note-se que a par de reivindicacdes materiais, ou envolvendo-as

e com elas se confundindo, aparecem outras de natureza reliziosa comoficou bern claro na revolta de 1835 na Bahia. " ,

(41) ? t~mor perfeitamente [ustificavel em que se vivia revela-se no

alarma co.ns!deravel que causavam quaisquer opinioes contra a legitimidade

da escravlda~, como neste caso ocorrido em 1794, e de que nos d a conta

a correspondenci a do Govemador D. Fernando Jose de Portugal. Tratava-sede urn .caI;u.chi~h?? Frei Jose de Bolonha, que andava propagando, ate pelo

confesslOna.no, ideias pouco .or todoxas a respeito. Logo que 0 fato chegouao co.nheclmento das autondades, 0 frade foi severamente punido pelo

Arc~blspo, su.spenso de confessar e embarcado incontinenti no primeiro

navio d e partid a, Carta do govemador de 18 de junho de 1794. 0 trabalho

servi] deu origem a muitas outras contradicdes imanentes no sistema colo-

n;~I, e que s6 se r~solveram inte.i;amente muito mais tarde, pela nbolicao.

Nao me.ocupo aqUl do assunto, ]<\ tratado noutro lugar (Evolu~ao politicado .Brasil'), I;0rque em b ?ra presen.tes na fase que nos interessa, pertencem

ma~s ao peno?o posterior, Refen-me no texto unicamente it contradicao

mars geml e imediata que resulta da escravidao, e que e a oposicao de

escravos e s~nh?res, porque ,e a que. ,r~presenta em nosso I,Domento 0 principal

papel, contnbumdo I:ara a intranqiiilidade geral que sera 0 terreno propicio

para as transformacoes que se elaboravam no seio do sistema colonial.

(42) 0 caso, da "d,errama", em Minas Gerais, para 0 pagamento do

qumto, e que devia servir de pretexto aos conspiradores da Inconfidencia

para desencadearem 0 movimento, e urn exemplo no assunto.

368 Gaia Prado Junior

em conjunto que aparece profundamente minado e corroido, Osaspectos com que tal desagrega9ao aparec~ na superficie <losacontecimentos, desabrochando em choques e conflitos varies, saomultiformes e complexos, e e s6 por abstracao e para facilitar a

exposicao que podemos reduzi-Ios aos esquemas simples queapresentei, e que sao uma sombra da realidade integral. As contra-

dlcoes do sistema colonial tern de comum unicamente isto: 0de refletirem a desagregacao deste sistema e de brotarem dele.No seu conteudo, bem como nos aspectos cambiantes a cada

momento e em cada lugar como que se apresentam, divergemconsideravelmente. Nao e possivel alinha-los num dualismo rigido,

em dois campos opostos e rutidamente definidos. Se os seustermos respectivos se opoern num caso, penetram-se e se confun-

dem noutro. Para exemplificar com os mesmos casos que empre-guei acima, temos os proprietaries e individuos das classes infe-riores livres unindo-se contra os pegociantes; mas juntando-setambem com estes ultimos contra os escravos; e vemos aindaaquelas classes inferiores congregando-se contra proprietaries ecomerciantes que estao por cima, e que para este efeito, como

possuidores, se aliam contra as nao-possuidoras . . , Veremosbrancos lutar com pretos e mulatos contra 0 preconceito de cor(Inconfid€mcia baiana); mulatos e pretos, com os brancos, a favor

dele; portugueses contra a metr6pole, e brasileiros a favor ...Isto num momenta para mudarem de posicao respectiva logo emseguida, e de novo mais tarde.,. E este alias 0 espetaculo emtodas as situacoes analogas, em qualquer epoca ou lugar; e cujaaparente ilogicidade se procura explicar ingenuamente, generali-zando casos muito particulares e no conjunto insignificantes, em

termos individuals e morais: incoerencia, idealismo . .. conformeo gosto e as preferencias pessoais do julgador. Quando os homens,joguetes dos acontecimentos, sao por eles levados e dispostos notabuleiro da Historia, sem que no mais das vezes sequer .se deem

conta do que estao fazendo e do que se passa.Precisamos acrescentar que aquela aparencia il6gica<e incon-

gruente dos fatos nao s6 torna dificil sua interpretaeao, comoconstitui a razao da dubiedade e incerteza que apreseptam to~as,as situacoes semelhantes a esta que analisamos, Duhiedade eincerteza que estao nos pr6prios fatos, e que nenhnm a.rIifido'de explioacao pode desfazer. Os fatos claros e-I!!scm coninntliJ. ,e definidos, s6vern em seguida, quando tais situa~s amna'urcc,crn,

Formaruo do Brasil ·CQ!t~mpo.rdneg 369

 

lnut.il procura-los antes, torcendo os acontecimentos ao gostoparticular do observador. E rnesmo depois daqueles primeiros

fatos ~eci~ivos, quanto nao decorrera ate que 0 processo se com-plete m~elfamente com a solucfio de todas as contradicoes parase repetir e renovar noutras que se vao formando e surgem inces-

tudo, C oro.J.nico, articulado dentro e fora da colonia, sistema-tieOe consciente. Niio seria por simples coincidencia que os pr indJ?aisfautores da Independencia, ate 0 proprio futuro Imperador, ,sel~mmacons, que todas as palavras de ordem, que saem a publIco

e procuram orientar ?s . aconte:imentos, aparec;a.m .an.tes. e se ela-

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santemente? : e : 0 movimento etemo da Hist6ria, do Homem ede todas a~ coisas, que nao para e nao cessa, e de que n6s, com

os ,Pobres !nstrumentos de compreensao e de expressao que p09-suimos, nao apanhamos e sobretudo nao podemos 'reproduztr

senao numa parcela infima, cortes desajeitados numa realidadeque nao se define estatica, e sim dinamicamente.

No momento que nos ocupa, nao entramos ainda na fase dos~c?I_ltecimentos decisivos e de grande envergadura, cujo marcoinicial podemos grosseiramente fazer coincidir com a transferencia

da cort~ _po~g~esa para 0 Rio de Janeiro. Mas vimos que ascontradicoes ai )a estao latentes, e comecam a se manifestar emsintomas alarmantes que poem em xeque toda a estrutura colonial.Para onde levara aquele processo confuso, complicado, opostomesmo nos seus pr6prios termos, como 0 mar encapelado em que

as vagas .se !azem e desfazem, convergem e divergem, rolam nar ;ne.sma direcao ou se entrecruzam, para dar annal numa resultanteumca e comum que e 0 embate violento contra 0 penhasco ou

a on~a que se al~str~ e espreguic;a pela areia? Nao nos ocupemoscom isto .que v~ _adm.nte d~ nos so assunto. No limite de tempo

dele, a Impreclsao amda e completa; a acao dos individuos,como s~as ideias e opini6es, divergem largamente; mais que isto,contradizem-se dentro das mesmas correntes de pensamento e dea¢o, quando nao no pr6prio intimo dos atores do drama que se

repr~senta;a ..E este e 0 ~so da pr6pria e unica organizacao quena mcoerencia e confusao geral do momento se orienta e se

conduz com mais precisao e seguran~a: refiro-me as sociedadessecretas, em particular a 1TU1gonaria.

. J80nao pode haver mais duvidas acerca do papel que a maco-nana repres~ntou na hist6ria brasileira desde fins do sec. XVIII,quando aqm penetra e se organiza. Papel que nao e somente

aque1e que em regra se Ih~ concede, 0 mais insignificante deles,e que e 0 de uma de suas lojas, 0 Grande Oriente do Rio de Janeiro,

e .s~u<rebento~ o.Apostolado ~s Andr~{ 43), que saem a publicodrngmdo os ultimos acontecimentos que precedem imediatamente

a I?dependencia e a determinam. 0papelda 'maconaria e muitomars amplo e profundo, como tambem mais antigo; e mais que

(43) ? Apostolado nao era propriamente maconico, mas inspirou- sena m~c;:~nana. e tern 0 mesmo carater , embora represente tendencia pol it icaantagomca.

3 70 Ca io Prado Junior

borem nas Iojas maconicas. Nao se trata de comcldencIa. 0 queha e urna acao subterranea e sistematica que trabalha em certo

sentido. Noutras palavras, alem dos individuos que atuam emtodos os grandes fatos da nossa hist6ria de~~e os ultimo~ an_?sdo .sec. XVIII, ha uma organizGgiio em atividade, orgamzac;ao

de que muitas vezes aqueles individuos nada mais sao qu~ simples

instrumentos, e digamos a palavra, nem sempre perf81tamenteconscientes de seus atos.

Atraves da maconaria, a politica brasileira, ou antes os pri-

meiros vagidos do que seria a nos sa politica: artic~lam-se com urnmovimento intemacional de proporc;oes ~mto mars v~stas. Com?se sabe, a maconaria se organiza no Brasil, ou por acao de brasi-

leiros, bern como de portugueses, chegados da Europa e que agempor Impulses vindos de la, como e 0 caso, entre outros, da

primeira Ioja de Pernambuco, fundada ,em 1796 po~ A1!"daCamara, 0 naturalista, sob 0 nome de Areopago; ou entao direta-

mente por agentes estrangeiros, especial~e?te. destacados p~raeste fim, ou que parecem com toda a evidencia tal, na medidaem que se pode penetrar 0 veu de misterio que cerca a vida

maconica. E 0 caso deste "cavaleir? Lau.ren~" qu~ aportou noRio de Janeiro em 1801, e fundou ai a pnmelra 101~ reg~h~r .sobo nome de R eu niiio ( 44). De qualquer forma, as lojas mac;omcas

do Brasil sao evidentemente organizadas sob encomenda de suas

matrizes europeias, .Em principios do sec. XIX havia lojas e~palhadas pelos p~m-

cipais centros da colonia, e nao s6 se articulavarn entre S1 ecom as da Europa, suas inspiradoras, mas com as dos Estados

Unidos e das demais colonias americanas. A intervencao de uma

poderosa organizac;ao desta natureza na vid~ brasileira P?r sfja mostra que acima dos individuos que se agttam no eenario ~apolitica da colonia, ha uma vontade e aC;ao gerais, certame.nte maisfortes que as daqueles. Alias a maior parte dos persona gens' qu~

tern algum papel saliente naquele periodo e formada deJIlla~ns.Da presuncao se pode passar a certe~~ quando se coml?~~os fatos que numa outra noutra ocasiao romperam. o. ~lst.e~omaconico, trazendo a luz 0 que se desenrolava no 1~tet.l,€l~ ~<I3

lojas, A ac;ao da mac;onaria aparece e?tao em toda su~ lI~~e~l~.adee extensao, e sente-se que e ela, mars que qualquer mdiVldueou

(44) M an ife sto m a9 6n ic o d e J os e B on ifa Gio .

Eormaciio do Brasil Contempord!le~ : 1 ' 1 ' 1

 

bgru~od de individuos, quem estava controlando, por detras dosash ores, os acontecimentos da nossa hist6ria.

. Nao c poss~vel esmiucar aqui um assunto que se prende aosmaiores acontecimentos !nternacionais do sec. XVIII e do seguinte,

e ;.rue ultrapassam sensivelments a hist6ria particular do Brasil.

ou aqueles, a maconaria nao poderia torcer os fatos da nossahist6ria. Limitou-se a tirar partido deles para os seus fins, comoos primeiros tirariarn dela para os pr6prios.

E assim que, em sintese, se deve interpretar a intervencao damaconaria na poHtica brasileira de fins do sec. XVIII e prindpios

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Ha urn po~to co~tudo que toea de perto 0 nosso assunto e naopode por ISso deixar de ser elucidado. E ele e 0 do sentido eda medida em que aquela intervencao estranha participa dos

fatos que ora, n?s ?cupam, Esta claro que a situacao colonial,tal qual a analisei ac ima, com suas contradicoes e conflitos internos

na~a .~em a ver com a maconaria ou com qualquer outra ac;a~

ou ideia desta ou daquela natureza vindas de fora, E uma situacaofruto d,e condi?~es pr6~rias da colo~ia, e que se liga unicarnentaao regime ,P?hhCO e sistema economico e social aqui vigentes.Neles se ongma e a eles deve exclusivamente sua razao de ser( 45).

o papel da maconaria foi neste, como em tantos casos ana-

lo~?s" ten tar ~:ticular ~~a situacao propria e interna de umaco orua europeIa, ,3 . politica ~eral da Europa, cujo objetivo eraa reform a que veio a dar afmal neste novo equilibrio do conti-

n;nte~ e de cad~ urn dos seus paises em particular, que e 0 dosec, XIX, Tudo ISto nao toea senao remotamente 0 nosso assunto

porque a intervenc;ao, d~ maconaria numa insignificante colOni~como n6s, s6 the podia mteressar, e de fato s6 Ihe interessou na

me,dida em que contribui para atingir urn dos redutos do abso-

lutismo europeu, contra que, de uma forma geral, ela se dirigia.!ra,tava-se no caso da monarquia portuguesa. Era uma acaomd.lreta, em que 0 Brasil nao servia senao como insttumento.Coisa semelhante se passa alias com as demais colonias ameri-

canas, em que 0 ~im almejado era 0 trono espanhol. Dai 0 inte-resse da maconana em apoderar-se e manejar uma situacao quese desenhav~ nas colonias da America, e que de uma forma ououtra podena servir a seus prop6sitos.

, De seu,lado, os ~ra,sileiros e, todos que tinham urn interessedire to .na vida da coloma, e sentiarn, mais que compreendiam a

necessI~ade de reformas, encontraram na maconaria urn instru-mento Ideal, tanto pelo seu prestigio e ligacoes internacionais

como pela Iorca que s~ acumulava atras dela, pai;;' a . .ealizac;a~

d~que~as reformas. MUltO~, natu~alment~, nao agiram senao pormimetismo, e foram servir depois de simples joguetes mais ou

menos conscientes nas maos da organizac;ao, Mas seja COm estes

. (45) Observacao necessaria, embora evidente, para responder as fanta-s ias ~ certos . t ra?a~os ap. ressados pseudo-hist6r icos, t ipo panf ieto, que comobJetl \:os e InSplrac; :ao un~camente de propaganda pol it ica de momento, sevulganzaram nao Iaz rnuito no Brasil 1942>'

372 Caio Prado Junior

do seguinte. Ela nao traz modificacao alguma aos fatos que nosinteressam. Procurando controlar e orientar os acontecimentosbrasileiros, a maconaria nao lhes acrescentara nem tirara nadade substancial, como alias seria absurdo imaginar. 0 que a inte-

ressa e somente 0 grande objetivo que e seu, e que assinaleiacima; quanta 3 . melhor forma de contribuir para isto ?t ...,,,p~

da situacao particular do Brasil, havia grande margem de alter-nativas, e nunca houve mesmo entre os pr6prios macons unani-midade de opiniao ou de acao a respeito. Qualquer reforma,fosse em que direcao fosse, iria atingir 0 absolutismo portugues,

o grande alvo visado aqui pela maconarla. A simples agitacao,mesmo que nada de concreto se realizasse, ja seria urn resultadoapreciavel, Qualquer caminho, portanto, poderia servir, e s6 lheinteressava que fosse perturbada a estabilidade do trono por tugues,

Explicam-se assim as Iotas no seio das lojas ou entre elas, e quetrazem muitas vezes para 0 interior da orzanizac;ao os conflitosque vao por fora e que ela procura conduzir( 46).

Numa palavra, a diretiva e acao geral e efetiva da maconariacomo entidade internacional, nao desce as minucias da politica

particular da colonia. Neste setor, agira como estimulante apenas.E por isso, em tal qualidade internacional e de conjunto, 56indireta e remotamente pode interessar ao Brasil. Os nossos macons,agindo neste ou naquele sentido, e dentro dos objetivos especiaise particulares da colonia que tinham em vista, estao na realidadeagindo nao como "maeons", mas como "brasileiros." 0 que 0

fa t o de pertencerem a maconaria lhes acrescenta e a organizacao,a possibilidade de uma maior unidade de vistas e de acao conjunta,que sem ela, e na falta de outra organizac;ao semelhante, teria sidoainda mais dispersiva e incoerente que foi. 0 minimo de conti-nuidade na linha de acao que se insinua e serpenteia atraves dos

confusos acontccimentos politicos da colonia des de fins do sec.XVIII, e que iriam dar afinal na Independencia, e sem duvida

atribuivel a circunstancia de terem pertencido a maioria e -osprincipais atores deles a um organismo bem articulado e ja com

larga ,:xp~riencia poHti:a. A maconaria emprestou assim algumaconsciencia a uma acao que, sem ela, embora continuasse aexistir, teria sido certamente cega e desorientada. Ou teria,o que

( 46) 0 j l . 1 aniiesto 11lat;: ilnico ci tado revel a a lguns aspectos daquelesatr itos c lutas intcstinas,

Formacao do Brasil Contempordneo 373

 

e mais provavel, recorrido a outra or~aniza<;:1iosemelhante, feitasob encomenda e que a teria substituido, Se se preferiu a ma-o-Daria para a tarefa, foi por motivos 6bvios.

Ha, portanto - empreguemos a palavra urn pouco arriscada,mas exata se nos colocamos no ponto de vista de uma historia

Tambem niio e de desprezar a intervencao inglesa, esta menossentida nos seus efeitos diretos porque, aliada de Portugal esua protetora, a Cra-Bretanha manejava mais seus neg6cios einteresses na propria corte do Reino. Mas embora toda estamateria de intervencao secreta de govemos estrangeiros ainda

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local como a que fazemos aqui - ha uma "eoincidencia" entre urnfato de nossahistoria, e outro de natureza muito mais ampla: deurn lado, a situacao brasileira, tal como resulta da suas circuns-tfmcias peculiares; doutro, uma internacional, estranha em prin-:

cipio, mas que indiretamente se liga a nos' a maeonaria e seusobjetivos na politica europeia.

Nao seria esta alias a ocorrencia unica de uma tal "coinci-dencia", Encontramo-la em outros setores, ligados todos mais oumenos intimamente ao primeiro assinalado. A intervencao nosfatos de que ora nos ocupamos, ja nfio de uma organizacao privadacomo a maeonaria, mas dos pr6prios poderes publicos das nacoesestrangeiras, e bern sensivel. t0 easo em particular da Francarevolucionaria e bonapartista, adversaria de Portugal que se aliaracom seus inimigos seculares, e agora mais que nunca: os ipgleses.A a<;:iiodo govemo frances, indiretamente atraves de suas Ilga-<;:Desna Europa, e em particular com a maeonaria - que voltaaqui a baila, e que e , no exterior, uma das grandes armas daRevolucao -, mas tambem diretamente por agentes seus quetrabalhavam no Brasil, se faz sentir a cada passo. Em 1809, 0

governo portugues, entao recem-chegado ao Rio de Janeiro,chama a atencao da Junta interina que entao governava a Bahia,para varies franceses ai domiciliados, inclusive e sobretudo urn"eerto Abade", cujo nome nao e citado e que se ignora, francesesesses que tinham ficado desde 0 tempo em que tocara naqueleporto a esquadra que transportava Jer6nimo Bonaparte, irmaodo Imperador( 47). t tambem possivel que a conspiracao desco-berta em Pernambuco em 1801, e de que participavam 0 natura-lista Arruda CAmara, fundador, anos antes, do ja citado Are6pago,e os irmaos Cavalcanti de Albuquerque, senhores do engerihode Suacuna, conspiracao que tinha por objetivo tornar Pernam-buco independente sob a proteeao de Napoleao Bonaparte, entaoPrimeiro Consul, tivesse agido por Inspiracao direta de agentes

franceses( 48). Este assunto ainda nao esta bern esclarecido; mastraz sem duvida muita luz sobre a confusa hist6ria dos aconteci-mentos que nos ocupam.

(47) Carta de 17 de rI01)embro de 1809, Bras do Amaral nos seusEsclarecimentos sobre 0 modo pelo qual se preparou a Independencta,publicou este e outros documentos sobre 0 assunto.

(48) Vejarn-se as anotacoes de Oliveira Lima a Hist6ria da Revol'lfiiode 1817 de Muniz Tavares, pag. 73.

374 Caio Prado Junior

esteja pouco devassada, nao se pode por em duvida a grandeatividade subterranea que vai em conseqiiencia dela pela nossapolitica dos primeiros anos do seculo passado, e que e pelo menosde iguais consequencias as intervcncoes espetaculares que aHistoria oficial registra.

Ainda ha finalmente mais urn setor em que a politica brasi-

leira se liga ao momento intemacional. E 0 da ideologia que seadota aqui, e que servira para explicar, [ustificar e emprestar aosnossos fatos 0 calor das emoooes humanas; tal e sempre 0 papeldas ideologias, que os hornens zaramente dispensam, e que emnosso caso, nao sabendo ou nao pedendo Iorja-las nos mesmos,fomos buscar no grande e prestigioso. arsenal do pensamentoeuropeu. Em especial, na Hlosofiada .E'nciclopedia e dos pensa-dores franceses do sec. XVIII.

o porque desta escolha deve ser procurado, em primeirolugar, em razoes semelhantes as que fizeram adotar aqui, paraorganismo politico dir igente, a maconaria intemacional. Alias aafinidade entre esta organizacao e aquela f ilosofia e notoria, eisto ja explica muita coisa. Mas alem dis to, e de considerar que

nenhum pensamento, nenhuma ideia, e sobretudo nenhum con-junto te6rico deu aos fatos universais do sec. XVIII - "universal"aqui e 0 da civilizacao ocidental a que nos filiarnos -, umainterpretacao mais ajustada, tao hannoniosa, tao esteticamenteperfeita, urn corpo de dou.trina tao completa e geral coI?o aquelaf ilosofia. E particulannente tao a calhar com as necessidades domomento, e de acordo com os impulsos mais intirnos dos contem-poraneos. Comparavel a ela, so se encontrara, para a situacaodo seculo seguinte, 0 socialismo. Nao e pois sem motivo plena-mente [ustificavel que empolgasse todo mundo pensante, e servisse"oficialmente" para vestir das roupagens do pensamento os fatosque se desenrolavam no mundo. Os brasileiros nao poderiamficar imunes ao contagio, Alas varies representantes da intelli-

gentsia da colonia est iveram em contacto direto e intimo com ela,sejam os que estudaram na Franca, sejam os que procuravampor outro motivo qualquer 0 que ja era entao a Meca do pens a-mento ocidental. Em Portugal, colonia comercial da Inglaterra,mas intelectual da Franca, a filosofia deste pais se difundiralargamente; e ate no rancoso casarao de Coimbra, as reformasde Pombal tinham-lhe aberto algumas frestas que foram avida-mente aproveitadas.

Formacao do Brasil Contempordne:J 375

 

Sera assim, na medida em que ideias gerais, se nao ideiastout court puderarn penetrar a espessa crosta de ignoranciacolonial, sera a filosofia francesa do sec. XVIII que dorninara osespiritos capazes deste dominio(49). 0 fato e tao not6rio quenao se precisa mais insistir nele. Tudo que se escreveu no Brasil

0

dades e a "gente boa" da epoca, A correspondencia oficial deixouestampado 0 terror que pwvocam tais ideias (52). 0 simplesconhecimento da lingua francesa chegava a ser mal visto: umtio de Fernandes Pinheiro, futuro Visconde de Sao Leopoldo,conego da catedral de Sao Paulo, sabendo que ensinavam francesao sobrinho, reclamou revoltado, na sua qualidade de chefe da

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se comeca a escrever alguma coisa entre n6s, traz 0 cunho dopensamento frances: ideias, 0 estilo, o modo de encarar as coisase abordar os assuntos. Alias a leitura dos nossos av6s, a parca

leitura que se fazia nesta colonia de analfabetos em que s6 urnpunhado de pessoas saberia ler, e destas, muito poucas se ocupa-

riam com coisas do espirito, e quase toda de origem ou inspiracaofrancesa. As devassas da [ustica colonial, que os acontecimentospoliticos tomam freqiientes desde fins do sec. XVIII, desvendam-

-nos os segredos das principais bibliotecas particulares que entaohavia na colonia, e que, seqiiestradas e arroladas, chegaram aten6s nas paginas amarelecidas e roidas de traca dos autos. A

literatura francesa, e s6 ela no que diz respeito a fil6sofos, mora-listas, politicos, esta ai abundantemente representada (50). Os via-[antes estrangeiros que nos visitaram em prindpios do seculopassado notarao a influencia decisiva da cultura francesa; e 0

favor das ideias racionalistas e revolucionarias daquelacultura,no momenta em questao, e lamentado por Saint-Hilaire, que embo-ra frances, formava politicamente em campo oposto a elas. E Mar-

tius observara 0 que ainda ho]e, a primeira vista, nos parece urnparadoxo: apesar do completo dominic comercial exercido pela

Inglaterra, e do numero muito maior de ingleses aqui domiciliados,a cultura francesa nao sofre concorrenciat 51). Alias it culturainglesa ainda se ignora inteiramente. Os ingleses nao eram comsuas ideias tao felizes como com seus tecidos, sua ferramenta esua louca.

Uma tal difusao do pensamento frances, "ideias [acobinas"ou "abominaveis prinoipios franceses", como se dizia aqui em

certas rodas, nao deix:avade alarmar muito seriamente as autori-

(49) Notemos aqui, mais uma vez, a contribuicao que para este

terreno part icular t rouxe a maconar ia , incumbindo-se de propagar no Brasilo que' era, pode-se dizer, sua ideologia oficial. Acresce 0 fato de ser amaior par te das lojas brasi lei ras fi liadas ao Oriente da Ilha de Franca (Islede France), com sede em Paris. Nao se esquec;:a finalmente 0 prestigio daFranca na America depois que prestou seu concurso it libertacao dascolonias inglesas do continente. Sao outros tantos fatos que explicam,naquela epoca, a vassalagem intelectual do Brasil aquele pais.

(50) Vejam-se os Autos da Deoassa da lnconjidencia Mineira e In-coniidencia da Bahia de 1798, Deoassas e Seqiiestros,

(51) Viagem, II, 293.

376 Caio Prado 1unio,

familia, a suspensao formal deste estudo que ia por a inocentecrianca em contacto com os "libertines, impios e ateus prindpios

daquela nacao"(53).

Mas a ideologia revolucionaria francesa venceria estas resis-tenclas, e se adotara "oflcialmente" para as circunstancias brasi-

leiras. Nos seus traces gerais, ela parecia perfeitamente aplicavelas necessidades politicas da colonia, A "Iiberdade, igualdade efraternidade", que como norma politica a sumaria, ia prestar-sebastante bem as varias situacoes que aqui se apresentam. Casti-

gada embora, e deformada nao raro (que castigo alias, e quedeformacao nao cabem no vago da formula francesa?), ela servirade lema a todos que pretendiam alguma coisa: senhores deengenho e fazendeiros contra negociantes; mulatos contra brancos;

pes-descalcos contra calcados; brasileiros contra portugueses ...Faltou apenas "escravos contra senhores", justamente aqueles a

quem mais se aplicaria como lema reivindicador; e que os escravos

falavam - quando falavam, porque no mais das vezes agiramapenas e nao precisaram de roupa~ens ideol6gicas -, falavam

na linguagem mais familiar e acessivel que lhes vinha das £ 1 0 -restas, das estepes e dos desertos africanos... (54).

(52) Veja-se, entre outros cas os, 0 de urn comerciante da Bahia,acusado de ter, em sexta-feira santa, dado urn "banquete de carne", 0 queprovocou ate uma devassa ; 0 bode expiat6rio foram os "abominaveis prin-cipios franceses", como Jhes chama a correspond encia oficial, VigiUlncia

do governo portugues.. . Veja-se tambern : Bras do Amaral, Esclarecimen-tos . .. , 380.(53) Con. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Apontamentos bio-

grdficos.(54) A identificacao com a ideologia frances a foi em certos meios

rovoluclonarios tamanha, que "frances" se tornou sinonimo de reformador,revolucionario. ~ 0 que se Ie nos depoimentos prestados na devassa daconspiracao de 1798 na Bahia, em que ocorrem expressoes como "Fulanotem cara de frances", "convinha que todos se fizessem franceses paraviverem em abundancia" , etc.

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