Cadernos Nietzsche, nº 17

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Os artigos publicados nos são indexados por The Philosopher’s Index, Clase e Geodados cadernos Nietzsche São Paulo – 2004 N o 17 ISSN 1413-7755 cadernos Nietzsche

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Edição nº17 dos Cadernos Nietzsche, ano 2004. Boa leitura!

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  • Os artigos publicados nos

    so indexados porThe Philosophers Index,

    Clase e Geodados

    cadernosNietzsche

    So Paulo 2004

    No 17ISSN 1413-7755

    cadernosNietzsche

  • no 17 So Paulo 2004ISSN 1413-7755

    Editor / Publisher: GEN Grupo de Estudos NietzscheEditor Responsvel / Editor-in-Chief

    Scarlett Marton

    Editor Adjunto / Associated EditorAndr Lus Mota Itaparica

    Conselho Editorial / Editorial AdvisorsErnildo Stein, Germn Melndez, Jos Jara, Luis Enrique de Santiago Guervs,Mnica B. Cragnolini, Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho

    Comisso Editorial / Associate EditorsAlexandre Filordi de Carvalho, Carlos Eduardo Ribeiro, Clademir Lus Araldi,Fernando de Moraes Barros, Ivo da Silva Jnior, Mrcio Jos Silveira Lima,

    Sandro Kobol Fornazari, Vnia Dutra de Azeredo, Wilson Antnio Frezzatti Jnior

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    Profa. Dra. Scarlett MartonA/C GEN Grupo de Estudos Nietzsche

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    cadernos Nietzsche uma publicao do

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  • Fundado em 1996, o GEN Grupo de EstudosNietzsche persegue o objetivo, h muito acalenta-do, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamen-to de Nietzsche e, portanto, promover a discusso acer-ca de questes que dele emergem.

    As atividades do GEN organizam-se em torno dosCadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que tmlugar em maio e setembro sempre em parceria comdiferentes departamentos de filosofia do pas.

    Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschia-nos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, porrazes profissionais ou no, pela filosofia de Nietzsche.No exige taxa para a participao.

    Scarlett Marton

  • GEN Grupo de Estudos Nietzsche was founded in1996. Its aim is to gather Brazilian researchers onNietzsches thinking, and therefore to promote the dis-cussion about questions which arise from his thought.

    GENs activities are organized around its journal andits meetings, which occurr every May and Septemberin different Brazilian departments of philosophy.

    GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche,whether professional or private. No fee for member-ship is required.

    Scarlett Marton

  • Sumrio

    Friedrich Nietzsche:metafsica, mitologia e linguagem 7Silvia Rivera

    Em torno do conceito de sintoma:uma soluo ao problemado historicismo? 15Juan A. Bonaccini

    Codificao, memria, coeso:um paralelo entre Nietzsche e Clastres 27Alex Leite

    Vestgios das manhs:notas acerca da escrita deNietzsche enquanto tardede seus pensamentos 41Lus Eduardo Rubira

    tica e poltica. Genealogiae alcance do ltimo homemna filosofia de Nietzsche 57Marta de La Vega Visbal

  • Friedrich Nietzsche: metafsica, mitologia e linguagem

    7cadernos Nietzsche 17, 2004 |

    * Este trabalho foi apresentado no Simpsio Nietzsche Homenagem pelos100 anos de sua morte, realizado em Buenos Aires em 29 e 30 de agosto de2000. Traduzido por Adriana Moreira Belmonte.

    ** Professora de filosofia da Faculdade de Cincias Sociais da UBA e da Univer-sidade Nacional de Lans.

    Friedrich Nietzsche:metafsica, mitologiae linguagem*

    Silvia Rivera**

    Resumo: O tema da linguagem atravessa com uma persistncia significa-tiva e peculiar as obras de Nietzsche. assim porque o problema da lin-guagem e do seu poder est presente em toda a sua crtica histria dafilosofia ocidental. essa histria de um erro que Nietzsche delineia eque abarca toda a tradio metafsica desde Plato at os nossos dias.Palavras-chave: linguagem metafsica verdade retrica

    A filosofia inaugura-se sobre o signo da metafsica. Contra adesvalorizao da vida operada pela inverso metafsica, Nietzscheluta com armas distintas em cada um de seus livros. Mas sua lutaencontra um obstculo, que se apresenta de modo ocasional, masque decisivo porque compromete o futuro de sua tarefa. Esse obs-tculo a linguagem. Nietzsche de imediato adverte que lhe faltalinguagem para consumar a crtica desconstrutiva da metafsica etambm para percorrer os caminhos que essa desconstruo abre.

  • Rivera, S.

    8 | cadernos Nietzsche 17, 2004

    Pois toda uma mitologia filosfica reside na estrutura mesma da lin-guagem, nos diz Nietzsche em O andarilho e sua sombra (WS/AS 11). Nesse sentido, a linguagem sempre metafsica, contm umfetichismo grosseiro que nos obriga a ver e a dizer em todas aspartes agentes, atos, substncia, causalidade, vontade, ser: a razona linguagem: oh, que velha, enganadora personagem feminina!Temo que no nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acre-ditamos na gramtica... (GD/CI, A razo na filosofia 5).

    Ao mesmo tempo em que a racionalidade socrtica mata a trag-dia grega, a linguagem lgica do filsofo esvazia de intuies as pala-vras, transformando-as em cascas que perderam seu sentido. Emum primeiro momento, Nietzsche apresenta isso de um modo embrio-nrio, mas muito claro. No texto intitulado Sobre verdade e mentirano sentido extramoral, redigido em 1873, Nietzsche concebe a lingua-gem como uma concordncia que surge quando a guerra natural detodos contra todos chega a um acordo. A linguagem , assim, umasntese de convenes, de acordos, de designaes vlidas para osucessivo. Mas como a designao corresponde coisa mesma? Apre-senta-se talvez nesse acordo a possibilidade e o fundamento do real?

    Nesse ponto, a suspeita de Nietzsche atinge o eixo em torno doqual se articula toda a filosofia metafsica: o conceito de representa-o. A metafsica logocntrica, e isso significa que o que se enfatizada linguagem a sua capacidade para designar, isto , para alcan-ar os objetos do mundo e represent-los. Sobre essa base se esta-belece um modelo de verdade como adaequatio, como correspon-dncia entre as palavras e as coisas, os fatos e as proposies outambm entre a linguagem e o mundo, conforme ascendemos nograu de generalidade de nossa perspectiva. A possibilidade que tema linguagem de dizer a verdade se baseia no postulado que afirma aexistncia de uma conexo necessria e essencial entre os termosassinalados, sempre e quando se os considera em seu aspecto estru-tural; conexo que permite linguagem, em ltima instncia, reve-

  • Friedrich Nietzsche: metafsica, mitologia e linguagem

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    lar a ordem a priori do mundo. E, tal como afirma Cacciari, conce-ber a lgica da linguagem como expresso da ordem do mundo a mxima iluso metafsica (Cacciari 1, p. 70).

    O movimento de inverso na orientao dos valores que tevelugar na Grcia com a emergncia do socratismo afeta de um modoespecial a linguagem, cuja compreenso se distorce por causa des-se dimensionamento exagerado do nvel semntico, que acaba porasfixiar os demais nveis, a um ponto tal que a partir dele se definea linguagem mesma, o significado e a verdade. Verdade que, paraNietzsche, um batalho mvel de metforas, metonmias, antro-pomorfismos, enfim, uma soma de relaes humanas, que foramenfatizadas potica e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que,aps longo uso, parecem a um povo slidas, cannicas e obrigatrias;as verdades so iluses, das quais se esqueceu que o so, metfo-ras que se tornaram gastas e sem fora sensvel, moedas que perde-ram sua efgie e agora s entram em considerao como metal, nomais como moedas (WL/VM 1).

    Para Nietzsche, todo modelo em que se estabelea uma cone-xo necessria entre a linguagem e o mundo, de modo tal que aestrutura lgica da primeira se converta em um instrumento eficaze transparente para dar conta da ordem estrutural do segundo, iluso e delrio metafsico (Sini 5, p. 86). A enfermidade meta-fsica est contida, assim, no modelo lingstico que a tradioplatnica impe. Esse modelo distorce a relao linguagem-mundo,sublimando-a, ao esconder os elementos retricos que operam nalinguagem e que fazem dela uma dynamis: A fora que Aristte-les chama de retrica, que a fora de lanar luz e fazer ver emcada coisa o que impressiona e eficaz, essa fora ao mesmotempo a essncia da linguagem; essa essncia, como a retrica, tam-pouco se refere ao verdadeiro, essncia das coisas; no quer ins-truir, mas transmitir aos outros uma emoo e uma aprendizagemsubjetiva (Nietzsche, Curso de Retrica, 3).

  • Rivera, S.

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    Com efeito, a linguagem no surgiu em funo da verdade, oucom o fim de esclarecer a verdade. Deriva de uma fora retricaoriginria que aponta para a persuaso e ao fazer valer, portanto,para os valores. Por outro lado, essa caracterizao se estende aohomem mesmo, que coincide com o instinto originrio de dominaoque se apresenta explicitamente na linguagem pr-filosfica. O ho-mem no foi feito para o conhecimento. O conhecimento uma trans-posio instintiva que, paradoxalmente, termina por negar-se, opor-se vida de que surge. Se encontramos algo na origem da linguagem uma transformao da representao, uma falsificao que vio-lenta a irredutvel disperso e multiplicidade do mundo, introduzindoanalogias e semelhanas com o objetivo de tornar idntico o no-idntico. Por meio da linguagem se alcana a estabilidade e a regu-laridade dos fenmenos e dos sujeitos. Fixam-se as identidades epostulam-se leis permanentes que regem a mudana e a transforma-o. Desse modo, o consenso possvel entre os homens. Consensosobre os significados que a primeira condio de possibilidade dacomunicao e, portanto, tambm do intercmbio social. A preten-so de verdade, tal como afirma Carlo Sini, surge de um pacto socialentre os homens. Nesse pacto, diz Nietzsche, fixado aquilo quedoravante deve ser a verdade, isto , descoberta uma designa-o uniformemente vlida e obrigatria das coisas, e a legislao dalinguagem d tambm as primeiras leis da verdade (WL/VM 1).

    Porque a linguagem, toda linguagem, oculte ou no, sempreanalogia, metfora, mentira e disfarce. E esses so tambm os limi-tes do conhecimento humano. O mundo de nossa representao uma inexorvel superposio de fices. Fices fixadas pelo poderdos signos que, em um incessante jogo de remisses infinitas, noreconhece sujeito criador algum. O sujeito mais uma fico, assimcomo o a existncia de um plo objetivo de sentido que coloqueponto final nas interpretaes. Essas interpretaes so sempre pers-pectivas e injustas, porque so o produto de uma falsificao.

  • Friedrich Nietzsche: metafsica, mitologia e linguagem

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    Mas qual , ento, o escndalo da falsificao metafsica da lin-guagem, se a linguagem originalmente falsificao, mscara e dis-farce? Em que reside a gravidade dessa falsificao filosfica se-cundria que disfara a inevitvel distoro que a linguagem impeao mundo? Chegado a esse ponto, j no h dvida acerca da res-posta. O grave que ao encobrir e negar esse poder, a metafsicadeixa sem conteno a capacidade da linguagem de criar dolos, talcomo afirma Nietzsche nos primeiros captulos de Para alm de beme mal, ao falar da causa, do efeito e da vontade livre (Cf. JGB/BM 19 e 21). em alguma ou outra seduo por parte da gramti-ca (JGB/BM, Prlogo) que se apiam as elevadas construes dosfilsofos dogmticos, aqueles que se esforam por negar o solo ori-ginrio do qual surgem as verdades. Esse solo originrio remete acondies fisiolgicas, metablicas e raciais1, isto , s formas devidas dos homens: O encanto exercido por certas funes gramati-cais , em ltima instncia, o encanto de condies raciais e juzosde valor fisiolgicos (JGB/BM 20).

    O perigo da linguagem se faz presente somente quando trata-mos o mundo de signos como um em si: quando isso ocorre,diz Nietzsche, agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologica-mente (JGB/BM 21). Desse modo, coloca-se um limite arbitrriono jogo dos signos e das interpretaes, visto que o subordina necessidade e finalidade. Sobre todas as coisas, recorda-nosNietzsche, est o cu Acaso, e o cu Inocncia, o cu Eventualida-de, o cu Desenvoltura (Za/ZA, Antes do nascer do sol). No averdade o que se esconde por trs da linguagem, mas o enigma dosigno e seu reenvio infinito (Sini 5, p. 121). Desse modo entendeZaratustra quando se pe a caminho at o alm-do-homem, que tambm um colocar-se a caminho at a linguagem, quer dizer, atum mundo que encerra em si interpretaes infinitas.

    O objetivo mais importante de Zaratustra anunciar uma novaprtica filosfica sobre a base da completa destruio do niilismo

  • Rivera, S.

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    da metafsica clssica. Uma prtica filosfica que se apresenta comosabedoria dionisaca, que afirma a tragdia da vida, convertendo-se em expresso acabada e consciente da vontade de potncia.Nietzsche tem claro que, para realizar essa tarefa, no dispe deum instrumento adequado. Utilizar a linguagem habitual dos filso-fos supe o inevitvel debilitar-se de sua mensagem, contaminadapelas suposies decadentes que se inscrevem no nvel sinttico. Oxito de uma desconstruo definitiva dos erros metafsicos repou-sa na possibilidade de deslocar a estrutura lgica da linguagem.Para transitar novos caminhos, h de inventar uma nova linguagem.A filosofia do porvir necessita encontrar novos meios expressivos e por isso que Zaratustra recorre alegoria, metfora, e s ima-gens poticas. Da crtica da linguagem depende em definitivo o al-cance de seu objetivo e a ela se dedica de forma paralela inven-o desses modos alternativos de expresso que lhe permitem evitar,ou ao menos manejar, a alienao lingstica se me permitidoutilizar, por consider-la ilustrativa, palavras que no fazem do vo-cabulrio de nosso filsofo. Porque, como afirma Rossi-Landi, todalinguagem ideolgica assim como toda ideologia lingstica(Rossi-Landi 4, p. 235).

    Sem crtica da linguagem sempre permanecer em nosso dis-curso um resqucio dogmtico. Porque se no possvel anular essaalienao lingstica ou falsificao originria da linguagem, pos-svel domin-la ao reconhec-la, afirm-la e quer-la. Convertendo-a em instrumento da vontade de potncia, o criador abre-se ao jogode uma semiosis infinita que, se apartando por completo do modeloclssico, tem coragem suficiente para afirmar a desapario com-pleta do texto sob a interpretao (JGB/BM 22). At as leis na-turais dos fsicos so modos de interpretar, ou seja, preparar omundo (JGB/BM 14), de tal modo que somente a filologia ruimde alguns cientistas acaba por outorgar-lhes status ontolgico ouliteral.

  • Friedrich Nietzsche: metafsica, mitologia e linguagem

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    necessrio ter em conta que o perigoso no o incessante eamoral jogo esttico da vontade de potncia que define a vida e queutiliza a linguagem para criar e impor mscaras. O perigoso oautoritarismo que se segue ao impor referenciais obrigatrios ouformas necessrias de interpretao fundamentadas em substnci-as objetivas ou sujeitos transcendentais2.

    Abstract: The theme of language is present throughout Nietzsches oeuvrewith significant and peculiar persistence. Indeed, the importance of lan-guage and its power is present in all of his criticism of the history of West-ern philosophy. Nietzsche sketches this history of an error, which en-compasses the metaphysical tradition that stretches from Plato to thepresent.Key-words: language metaphysics truth rhetoric

    notas

    1 Em relao a isso Nietzsche destaca que justamente essabase material ou orgnica da linguagem o mais difcil detraduzir de um idioma para outro. (Cf. JGB/BM 28).

    2 Esse perigo espreitava Nietzsche quando, fascinado pelassereias wagnerianas, seduzido pela msica representa-tiva de Wagner. No drama wagneriano, a palavra conse-gue designar, alcanando um reino de significados inde-pendentes. Mas Nietzsche logo descobrir que no h men-sagem alguma para alm dos signos.

  • Rivera, S.

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    referncias bibliogrficas

    1. CACCIARI, Massimo. Krisis: Ensayo sobre la crisis del pen-samiento negativo de Nietzsche a Wittgenstein. Mxi-co, Siglo XXI, 1982.

    2. NIETZSCHE. Smtliche Werke. Kritische Studienausgabe.Berlim/Munique: Walter de Gruyter/dtv, 1988.

    3. _______. Obras incompletas. Traduo Rubens RodriguesTorres Filho. So Paulo: Abril Cultural, 1991.

    4. _______. Curso de Retrica. Traduo: Thelma L. da Fon-seca. In: Cadernos de Traduo. So Paulo: 1999.

    4. ROSSI-LANDI, Ferruccio. Ideologa. Barcelona: Labor,1980.

    5. SINI, Carlo. Semitica y filosofia. Buenos Aires: Hachette,1985.

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

    15cadernos Nietzsche 17, 2004 |

    * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte.

    Em torno do conceitode sintoma: uma soluo aoproblema do historicismo?

    Juan A. Bonaccini*

    Resumo: Trata-se de uma reflexo sobre um problema filosfico a partirde um dilogo com Nietzsche. Primeiro so tecidas algumas considera-es sobre as perspectivas, vantagens e desvantagens na abordagem deum texto clssico e traada uma linha demarcatria entre uma recons-truo histrico-filosfica dos textos, como o comentrio, e um dilogocom autores e textos a partir de questes que nos tocam e se constituemem problemas. A seguir, defende-se a segunda alternativa como perspec-tiva de abordagem de um problema que herdamos da modernidade e dafilosofia clssica alem o chamado problema da conscincia histri-ca e sugere-se que esse problema to nosso poderia encontrar uma viade soluo plausvel se nos aproprissemos criticamente do conceitonietzschiano de sintoma.Palavras-chave: sentido histrico conscincia histrica relativismo sintoma.

    I

    Ensinam-nos que no devemos projetar nossas prprias convic-es nas coisas que estudamos. Ns mesmos somos por vezes obri-gados a exigir dos nossos alunos que no se pronunciem precipita-

  • Bonaccini, J. A.

    16 | cadernos Nietzsche 17, 2004

    damente; que no faam perguntas para as quais ainda no temoselementos de resposta. preciso dialogar com a tradio, sim ensinamos-lhes , mas primeiro devemos conhecer a mensagem dostextos; preciso compreender a profundidade das idias, o contex-to das preocupaes e a estrutura dos argumentos daqueles quenos precederam antes de fazer qualquer crtica ou questo. E setrata, sem dvida, de um preceito claro e sensato: o contrrio seriaalgo assim como discutir acerca do que disse algum durante umaconversa que no tivemos. E no obstante, quando j se fez umcerto percurso no estudo e na meditao sobre as questes da filo-sofia, sem dvida necessrio, parece como se voltssemos primei-ra ambio do incio: ou projetamos nossas prprias convices nosfilsofos com que dialogamos ou no dialogamos e apenas escuta-mos um solilquio que teimamos em repetir. Evidente, por outrolado, que sempre interpretamos o que lemos, e que em um certosentido sempre projetamos nossas prprias crenas nas coisas queestudamos. Mas tambm claro que aquilo que projetamos quandonos defrontamos pela primeira vez com um texto filosfico no omesmo que projetamos depois de refletir demoradamente sobre algoque j conhecemos e, de algum modo, se tornou nosso.

    A questo : depois de ler e refletir sobre o texto, o que fazer?Uma infindvel trama de possibilidades afigura-se palpvel. Duas,porm, extremas: dialogar ou repetir.

    Repetir consiste em oferecer um comentrio fundado na conven-o do texto. Assim, o aluno que fazia mil perguntas, muitas imper-tinentes, aceitou jogar o jogo de aprender a ler a mensagem do fil-sofo para descobrir se as perguntas eram genunas ou no, e seaquelas que eram genunas podiam ou no ser respondidas. Tendojogado o jogo, o aluno sabe o texto. E agora capaz de explic-lo aoutrem. Concordando ou no com o filsofo que o escreveu, impe-se agora a tarefa de coment-lo (at aqui chegamos maioria daspessoas que nos ocupamos de textos filosficos).

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

    17cadernos Nietzsche 17, 2004 |

    Mas ser que s isso o que devemos fazer? Talvez. Todavia,parece que uma resposta a essa questo pressupe ter decidido sevale ou no a pena inscrever nosso nome numa das tantas tendnciase escolas que a histria da filosofia nos oferece para comentar ostextos a partir de uma perspectiva histrica e de uma abordagemexegtica peculiar. Mas ser que essa a nica alternativa que nosresta? Eu diria que no: os filsofos no costumam fazer nem fizerams isso. Nietzsche um excelente exemplo para ilustrar esta situao.

    O passo seguinte, gostaria de sugerir, no consiste em comentar,em repetir, mas antes em dialogar. dialogando que os filsofosmostraram a possibilidade de inscrever o seu nome na tradio porm, no como repetidores, e sim como reformuladores de ques-tes e de respostas.

    Nestas alturas o bom leitor estar se perguntando: O que estesujeito pretensioso entende por dialogar? E com toda razo. Mas euno vou dar uma definio; vou dizer o que no seria dialogar, pri-meiro, e depois vou dar um exemplo de dilogo que pretendo enta-bular aqui com Nietzsche.

    Dialogar no seria repetir o que Nietzsche disse, numa sorte dereconstruo histrico-filosfica de sua filosofia a partir dos seustextos e dos testemunhos de estudiosos e contemporneos. Portan-to, no vou fazer um comentrio. Como exemplo, vou tomar umproblema que herdamos, Nietzsche e ns, da modernidade e dafilosofia alem, um problema que todos ns temos. Eu vou tentarmostrar que esse problema, to nosso, pode encontrar uma soluoplausvel se nos apropriarmos do conceito nietzschiano de sintoma.

    II

    O problema relaciona-se diretamente minha primeira fraseneste texto: parece que no devemos projetar nossas prprias convic-

  • Bonaccini, J. A.

    18 | cadernos Nietzsche 17, 2004

    es naquilo que estudamos. No exemplo do aprendiz, isto claro eno constitui problemas. Se quero aprender, tento me desligar dosmeus preconceitos e pressuposies; tento suspender o juzo e se-guir a linha de raciocnio que este ou aquele filsofo me prope. Aidia que ele pode me ensinar algo valioso ou importante, e, seisto no ocorrer, pelo menos poderei falar dele sem incorrer emerros fatais. Primeiro conhecer, depois (se for o caso) criticar rezaa mxima. Nada contra isto, certamente. Porm, o que ocorre quan-do eu, no sculo XXI, leio um texto de pocas passadas? Algunspequenos problemas...

    Primeiro, parece que eu no devo projetar os usos e costumesde minha poca nas palavras do autor porque, se o fizer, no ocompreenderei. Segundo, se eu tenho conscincia de que minhasconvices poderiam deturpar o sentido do texto, porque sei queas palavras do texto e as minhas palavras pertencem a diferentesmomentos histricos. Ambos os aspectos a exigncia de um sen-tido histrico e a conscincia histrica complicam sobrema-neira a situao e o status do leitor-intrprete.

    Quando se trata de aprender e ser iniciado num certo tipo desaber, aceita-se por conveno uma srie de tipos de leitura. Porconveno, por ingenuidade, ou pela influncia que a autoridadeprofessoral pode incutir nos estudantes. Mas quando o estudanteaprende a ler um texto e a concatenar as idias e os conceitos emseu prprio ntimo, as convenes comeam a cambalear, e s ve-zes caem. Desta situao arranca a reflexo que pode ou no chegar a algum lugar filosoficamente relevante. E a primeira exign-cia que se faz, na pressuposio de que existe minimamente umautor, e um texto, tentar captar a especificidade de ambos. Dizemosque aquele que parece conseguir isso possui sentido histrico. Edizemos que algum possui sentido histrico como dizemos, tam-bm, que fulano ou beltrano tem bom gosto. A idia que al-

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

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    gum que tem sentido histrico sabe separar o joio do trigo e com-preender o passado em sua peculiaridade irredutvel ao presente.

    Problema no alheio a Vico, nem a Herder, chega clarezapropriamente com Hegel. Justamente porque foi Hegel, o grandeprestidigitador, que ergueu a pretenso de compreender todos ospersonagens da histria da filosofia ocidental em sua especificidade.Na verdade, porm, da suspeita provocada pela grandiloqenteempreitada hegeliana que se coloca para os neokantianos, e paraDilthey, a questo do sentido histrico1. Afinal, quem estivesse cer-to de ter compreendido o sentido de Histria deixaria como vestgioa necessidade de compreender o sentido histrico de certos aconte-cimentos a partir de seu prprio contexto, tentando fugir inge-nuidade natural que nos faria julgar o passado segundo os par-metros considerados evidentes em nosso dia-a-dia, na perspectivade nossas instituies, de nossos valores e de nossas verdades ad-quiridas2. Essa mesma constelao levar Nietzsche a dizer queos filsofos, geralmente, no possuem o sentido histrico porquebuscam essncias. Adoram, matam, e empalham o devir como osegpcios faziam com as mmias3. Mas enquanto para Nietzsche afalta de um sentido histrico fez com que os filsofos inventassem aessncia das coisas, para Dilthey, para Gadamer, ou mesmo paraHeidegger, a posse do sentido histrico pode nos aproximar da es-sncia do passado de tradio presente.

    Ter ou no ter um sentido histrico, porm, um imperativocaracterstico dos sculos XIX e XX. O problema da historicidadeocorre talvez antes, mas no se torna lugar-comum at esse mo-mento. Um tal imperativo, assim, supe que tenhamos uma conscin-cia histrica. S posso me preocupar com o sentido histrico, sobcondio de ter presente a relevncia das peculiaridades e limitesde cada poca no curso do tempo. Algo que, mais uma vez, devemosindiretamente a Hegel, e que provoca at hoje muita dor de cabea.

  • Bonaccini, J. A.

    20 | cadernos Nietzsche 17, 2004

    Na seqncia de Dilthey, Gadamer nos fala da revoluo semprecedentes que significa a tomada de conscincia histrica no Oci-dente. Trata-se de um privilgio, e de um peso difcil de carregar.Todo povo, no passado, teve mais ou menos conscincia do seu pr-prio passado, mas no teve conscincia plena da caducidade de to-das suas realizaes. Nunca ningum teve plenamente conscinciada historicidade de todo presente e da relatividade de todas as opi-nies4. Todos ns temos conscincia da relatividade de nossa exis-tncia, de nossa poca, de nosso saber, de nossas convices. Todosns sabemos que absolutamente tudo est fadado ao trnsito, cujametfora a Histria. No nos dado sequer o refgio nesta ounaquela tradio, porque estamos fadados comparao e relati-vizao de uma multiplicidade de pontos de vista. Sabemos que tudoest sujeito interpretao, e toda interpretao, temporalidade.E Nietzsche teve conscincia disso, melhor do que ningum.

    III

    Agora bem: qual o problema de ter um sentido histrico? Equal o problema da conscincia histrica? O problema do sentidohistrico que, diferena do bom gosto, inexiste. Mas, enquantoo gosto provoca a questo da justificao do bom gosto, coisa que,alis, ocorre sobremaneira em pocas de mau gosto, o sentido his-trico levanta a suspeita sobre si prprio. Salvo no caso de certasobviedades como, por exemplo, no imaginar os senadores roma-nos de terno e gravata , o que pode significar ter sentido histrico?Ser que realmente possvel olhar o passado com outros olhosque no sejam os do presente? Tentando pensar algo aceito pordefinio como diferente do hoje, ser que podemos captar algopeculiar ao passado em sua prpria singularidade? Numa palavra:no creio que se possa pretender algo como o sentido histrico

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

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    sem pressupor algo outro muito mais duvidoso: um sentido para ahistria, uma nova escatologia. Como saber se no estamos proje-tando nossas prprias representaes e iluses sobre o passado,quando nos parece que o interpelamos com sentido histrico? Bastapensar na Grcia de Winckelmann e em seu influxo, at certo pon-to nefasto, sobre Hlderlin, sobre Hegel, sobre o jovem Nietzsche,para ver como o sentido histrico acaba sendo devorado pela re-latividade da prpria conscincia histrica.

    Nietzsche podia criticar os filsofos por conceberem as coisassub specie aeternitatis, mas podia ele se arrogar a posse de um sen-tido histrico peculiar? Essa questo nos remete ao problema daconscincia histrica: qual o problema da conscincia histrica?O problema que ela autodevoradora. A conscincia da historici-dade acaba com toda nossa esperana de dizer qualquer coisa queno esteja fadada a passar para o esquecimento ou a virar relquiacasual. Assim, a constatao moderna da historicidade parece nosconfinar ao relativismo. E por que assusta o relativismo? Porque orelativismo nos confronta com um srio problema epistemolgico: adescoberta de uma verdade que no pode ser dita, sob pena decontradio. A conscincia histrica obriga-me a reconhecer queaquilo que eu digo agora tpico da conjuntura histrica e geogrfi-ca em que me encontro, condicionado por ela e limitado em suavalidez. Assim, enquanto pretendo afirmar algo que deve valer aquie em todos os lugares, hoje como amanh, sou obrigado a reconhe-cer que s vale para hoje, e talvez, s para aqui.

    A reviravolta que provoca no Ocidente a tomada de conscin-cia histrica, tambm provoca uma crise sem precedentes em todasas crenas de longa data: tudo produto de seu tempo. Nada valepara sempre. E ento o que Nietzsche chama de niilismo e demorte de Deus, e Heidegger, depois, de fuga dos deuses, tor-nou-se um problema no somente epistemolgico e terico, masprtico.

  • Bonaccini, J. A.

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    A pergunta que eu me fao agora : o que isso tem a ver com oconceito de sintoma? o que tento mostrar a seguir.

    Essa exigncia de sentido histrico na conscincia histricamoderna encobre um pressuposto positivista: a idia de que existeum acontecimento histrico puro que pode ser desvendado se ti-vermos a sensibilidade histrica de no projetar nossos valores epr-noes sobre ele. somente com base nesse pressuposto que aconscincia histrica conduz ao problema epistemolgico do relati-vismo, j que a relatividade do meu ver, interpretar e compreenders pode ser um problema se existem e podem ser apreendidos fatoshistricos brutos. Mas se estes no existem, se fato histrico sempre uma certa interpretao, e se esta interpretao expressauma certa psicologia e uma certa sade epocais, como queriaNietzsche, o problema desaparece. Porque o relativo, o perspecti-vstico somente se identifica com o relativismo e constitui um pro-blema luz de um critrio tradicional de verdade e de um conceitoingnuo de realidade como ancoradouros para mensurar a adequa-o da leitura dos eventos temporais. Mas todo o problema queno podemos medir o passado no presente com este critrio atemporal. que se neste mbito no h critrios absolutos, tampouco h nadaque nos conduza necessariamente ao relativismo!

    Alm disso, um tal pressuposto implica que a conscincia dahistoricidade dos acontecimentos puramente terica, o que su-pe, por sua vez, uma separao entre a razo terica que refletesobre a histria e a razo prtica que a vivencia. Nietzsche, porm,desde seus primeiros escritos, sempre negou esta separao. EmSobre verdade e mentira no sentido extramoral (1872-3), porexemplo, argumenta que animais inteligentes inventaram o conhe-cimento como uma estratgia de sobrevivncia. Em textos posterio-res, como por exemplo em Para a genealogia da moral (1887), umacerta necessidade de sobrevivncia direciona o nascimento gemelare indissolvel da metafsica e da moral. Num certo sentido, a pr-

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

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    pria separao entre a teoria e a prtica faz parte da estratgia dedomnio e de negao da vida de um certo tipo de humanidade.

    Agora bem, se a separao que origina o problema terico dorelativismo uma separao interessada, por assim dizer, o pr-prio problema do relativismo pode ser menosprezado pelo menosno mbito da conscincia histrica. Se no h nenhuma conscin-cia desinteressada, desvinculada de motivaes histricas, e setampouco existem acontecimentos que possam ser captados teori-camente em sua pureza mediante um sentido histrico peculiar,a relatividade de nossas opinies no algo contraditrio. A relati-vidade indica apenas uma perspectiva de acesso e sempre estamosnuma perspectiva, assim como sempre estamos no tempo. A pers-pectiva diz apenas o nosso lugar e do nosso lugar, apenas dele,podemos nos apropriar, confrontar, comparar, separar, criticar,outros lugares diferentes do nosso. Mas como?

    Dissolvido o problema do relativismo da conscincia histricaatravs de denncia de suposies ilusrias, cabe encontrar um cri-trio de avaliao suficientemente histrico, para no incorrer empressuposies positivistas, e ao mesmo tempo firme e minimamen-te constante, para no incorrer nas mal-afamadas pressuposiesrelativistas. Aqui, creio eu, que se encaixa o conceito nietzschianode sintoma.

    Julgamentos histricos, como nossas interpretaes deste oudaquele texto, desta ou daquela poca, jamais podem ser verda-deiros: o nico valor que apresentam o de serem sintomas, e scomo sintomas merecem ser levados em considerao ensinaNietzsche5. Numa palavra: nunca podem ser medidos cientificamenteporque no so tericos.

    O que quero dizer com isso? Quero dizer que no mbito denossa poca, toda leitura uma interpretao que deve nos parecersintomtica em dois sentidos: em primeiro lugar, o texto e a pocaem questo devem ser pensados como sintomas de uma determinada

  • Bonaccini, J. A.

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    forma de vida e de cultura, como sintomas de uma certa preocupa-o; em segundo lugar, o nosso prprio interesse, e o de nossoscontemporneos, deve ser interpelado como sintoma de algo quedevemos trazer palavra.

    Se no podemos deixar de projetar nossos interesses e nossasconvices nas coisas que lemos e interpretamos, talvez fosse o casode no nos preocuparmos com essa projeo, em busca da inter-pretao mais correta. Talvez devssemos apenas pensar que tipode sintomatologia espelha ler ou no ler Nietzsche, ou qualqueroutro, e l-lo desta ou de outra maneira. Afinal, no se trata j tantode compreender o prprio Nietzsche, quanto de compreender a nsmesmos. No se trata mais do lugar de Nietzsche, que est assegu-rado, mas de saber qual o nosso prprio lugar. E se no, por quecelebrar a obra de algum?

    Abstract: The paper focuses on a well-known philosophical problem basedon a dialogue with Nietzsche. First, some reflections upon perspectives,advantages and disadvantages of interpreting classical texts are made.Following, a distinction is drawn between a historical/philosophical recons-truction of texts, such as commentary, and a philosophical dialogue withauthors and texts about specific points that directly concern us. Adoptingthe latter option as the best by which to analyze a problem inherited frommodernity and classic German philosophy the so-called problem ofhistorical consciousness we suggest that it be plausibly solved by criticallyapplying Nietzsches notion of symptom.Keywords: historical sense historical consciousness relativism symptom.

  • Em torno do conceito de sintoma: uma soluo ao problema do historicismo?

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    notas

    1 Riedel 4, 1981, p. 15ss.2 Gadamer 2, 1993, p.43.3 Para herdeiros do Idealismo Alemo como Dilthey 1 (1981,

    p.314ss, 345ss, 363-4) e Gadamer 2 (1993, p. 42ss), osentido histrico consiste na capacidade de compreenderos acontecimentos na especificidade de seu prprio con-texto, no do nosso. Sentido histrico, para Nietzsche, pa-rece ser algo um pouco diferente: falta-lhes queles filso-fos que buscam essncias e negam o devir (GD/CI, Arazo na filosofia, 1).

    4 Gadamer 2, p. 41.5 GD/CI, O problema de Scrates, 2.

    referncias bibliogrficas

    1. DILTHEY, W. (1981) Der Aufbau der geschichtlichen Weltin den Geisteswissenschaften. (Einleitung von M.Riedel), Frankfurt a/M: Suhrkamp.

    2. GADAMER, H.-G. (1993) El problema de la concienciahistrica, trad. de Agustn D. Moratalla, Madrid:Tecnos.

    3. NIETZSCHE, F. (1990) Das Haupwerk, nach dem Textder Krner-Taschenausgabe, Mnchen: Nymphen-burger (4 vol.).

    4. RIEDEL, M. (1981) Einleitung, in: Dilthey, 1981.

  • Codificao, memria, coeso: um paralelo entre Nietzsche e Clastres

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    * Professor de Filosofia na UESB, graduado em Filosofia pela UFBA e mestreem Memria Social e Documento pela Unirio.

    Codificao, memria,coeso: um paralelo entreNietzsche e Clastres

    Alex Leite*

    Resumo: O objetivo deste trabalho demonstrar que a articulao entreos conceitos de codificao, memria, coeso em Nietzsche e Clastres nospermite formular um entendimento sobre o sentido das relaes de inter-dependncias no mundo primitivo. A tica desses dois pensadores da cul-tura focalizou a idia de codificao da memria como atividade que fezdo socius primitivo um verdadeiro espao de inscries de marcas no es-prito. O conceito de codificao significa uma forma de adestrar a dispo-sio mental e orgnica, para que o agir expresse normas fixadas numamemria coletiva, tendo em vista o processo de coeso social.Palavras-chaves: codificao memria coeso antropologiafilosfica.

    Ainda no se avaliou o suficiente a idia de codificao no en-tendimento de alguns aspectos da vida em sociedade. H, portanto,uma lacuna no pensamento filosfico contemporneo no que se refe-re reflexo sobre um determinado modo de ser das relaes inter-subjetivas. Talvez tenhamos ficado presos demais s analises fou-caultianas1 sobre os mecanismos de individualizao nas sociedades

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    modernas, a ponto de termos deixado apenas para os antroplogosa funo de apresentar mentalidades em contextos em que o ho-mem no tivesse se tornando um objeto de hospital ou de priso.

    Mas se o cenrio intelectual brasileiro deseja uma multiplicida-de de sentidos sobre a vida social, ento que sejam pensadas novasperspectivas, e, com isso, avaliado o maior nmero possvel de con-ceitos. Sendo assim, devemos apresentar, a princpio, a idia decodificao como um processo localizado no mundo primitivo, quese caracterizava pelo esforo de adestrar num indivduo suas forasfsicas e psquicas isso com o intuito de evitar qualquer eventuali-dade capaz de desagregar o corpo social. Codificar era, ento, aatividade de formar num elemento isolado do grupo a disposiopara fazer tarefas desejadas pessoalmente e legitimadas pela cons-cincia coletiva.

    O socius primitivo era esse espao de codificao, que no ape-nas reproduzia representaes em comum, mas transformava as fi-guraes sobre o mundo em fora codificadora do desejo. Alis, oconceito de representaes sociais, cunhado pela sociologia, s ga-nha sentido forte quando pensado em seu aspecto codificador, issoporque, se contiver apenas o lado intelectual, ou seja, se apenasexpressar o seu aspecto figurativo das coisas no mundo, ento per-der o ponto fundamental, que o de interferir nas aspiraes dequem afetado por alguma imagem construda socialmente. deacordo com tal raciocnio que mile Durkheim afirmava: qualquerrepresentao, no momento que se produz, afeta, alm dos nossosrgos, o prprio esprito... O quadro que vejo neste momento agede determinada maneira sobre tal ou qual de minhas aspiraes,tal ou qual dos meus desejos (Durkheim 6, p. 31).

    sem dvida a presena do poder de afetar as disposies or-gnicas e mentais que torna a idia de codificao relevante parasabermos o modo de ser de uma mentalidade. E s esse poder deagir sobre o esprito pode gerar uma memria coletiva. Na verdade,

  • Codificao, memria, coeso: um paralelo entre Nietzsche e Clastres

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    a codificao se apresenta na memria no momento em que os va-lores do grupo se inscrevem em cada membro particular, adestran-do-o por inteiro. Para ns contemporneos isso parece estranho;contudo, a estranheza decorre de no percebermos a funo inclu-siva da codificao. Codificar era produzir um acordo de inclusono interior do socius primitivo e no os complexos acordos deexcluso que o campo social moderno gerou. Codificava-se justa-mente para garantir a transmisso de um valor social imprescind-vel: o valor da coeso grupal.

    Claro, se hoje estabelecermos o valor da coeso social como omais importante para nossa vida em sociedade, experimentaremosuma estranheza, porque j somos filhos da fragmentao e damultiplicidade urbanas. E a estranheza advir no por termos con-quistado uma singularidade plena de sentido; pelo contrrio, surgi-r pelo fato de estarmos conectados a muitas pessoas, e, ao mesmotempo, com pouca ou nenhuma sensao de pertencimento territo-rializado. Perdemos a atmosfera da rua, e, empurrados para o lar,forjamos simulacros de relaes com os outros e o mundo externo.

    Se o socius primitivo nos apresenta um quadro de relaes pin-tado pelos traos da coeso entre os membros do grupo e o territrio,isso de fato surpreendente, por mais que o olhar moderno vejacomo simples obviedade. Na verdade, a fora da coeso com o ter-ritrio marca na origem da vida em grupo um sentido primrio delocalizao, pois, como observou Leroi-Gourhan, a trama das rela-es sociais est, por conseqncia, na origem, intimamente contro-lada pela relao territrio-alimentao (Leroi-Gourhan 8, p. 153).Esse senso de localizao formado pela necessidade alimentar davaa percepo dos ritmos, dos movimentos e dos ciclos temporais,permitindo assim a emergncia de uma grafia que era transposi-o simblica e no decalque da realidade (idem, p. 190). Nessesentido, na origem, a linguagem era expresso de ritmos e no ummodo servil de representaes de formas.

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    Encontrar-se coeso ao territrio era compartilhar simultaneamen-te uma tcnica de caa ou de colheita e dos smbolos que expressa-vam os ciclos temporais, porque o esforo no socius primitivo eragarantir um acordo entre o espao e o tempo como uma das normasa serem inscritas em todas as memrias individuais. Esse esforoevitava a fragmentao entre os membros do grupo, fragmentaoessa que seria, sem dvida, a prpria morte da vida social.

    Havia uma funo codificadora da linguagem, na medida emque a grafia era expresso de uma sintaxe operatria capaz de trans-mitir cadeias de aes a serem conservadas na memria coletiva.No socius primitivo, palavras e gestos deveriam encontrar um meca-nismo adequado para intervir no meio material encontrado. O em-bate com a natureza forava o homem primitivo2 a criar e a inscre-ver numa memria alguns programas de comportamentos que oinseria numa rea delimitada, sempre com a finalidade de garantiras condies de sobrevivncia material e simblica do grupo.

    O desenvolvimento de uma ao no mundo primitivo obedecia lgica de coeso interna. Deveria ser avaliado, portanto, seu efei-to e selecionado um valor que fosse princpio de agregao. Sobreessa caracterstica do agir Nietzsche soube identificar duas manei-ras de ser da ao: uma pela utilidade e a outra por si mesma. Nomundo primitivo imperou a primeira, como ele mesmo observou:durante a era mais longa da histria a chamada era pr-histrica o valor ou no de uma ao era deduzido de suas conseqncias;no se considerava a ao em si nem sua origem (JGB/BM 32).

    Havia um tipo de interesse claro embutido no agir: a garantiada coeso grupal. Talvez possa parecer que a necessidade orgnicaimperasse mais forte, mas essa concluso precisa ser mais bem pon-tuada, porque no socius primitivo no h separao entre os utens-lios e o simblico. O reino da necessidade abrangia a fabricao deuns e de outro simultaneamente. Os dois resultavam do mesmo pro-cesso de fixao e explorao de uma rea. Desse modo, tanto a

  • Codificao, memria, coeso: um paralelo entre Nietzsche e Clastres

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    construo de um instrumento de caa ou colheita quanto a medi-o de uma marcha diria obedeciam a lgica de manuteno ma-terial e espiritual do grupo.

    Para Nietzsche, o problema da construo de utenslios e sm-bolos no chega a ser colocado. Na verdade, ele se detm no pro-cesso de codificao dos costumes presente desde a pr-histria, eque se prolonga atravs da racionalidade dos hbitos. O problematomar, dessa forma, uma configurao terica sofisticada, algo quetambm Clastres colocou, com um material etnogrfico superior.S que o importante no simplesmente a superioridade de provasdocumentais de um sobre o outro, mas o conjunto de problemasque eles suscitam juntos. Como bem afirmaram Deleuze e Guattari:o material que Nietzsche tinha era reduzido, o antigo direito germ-nico, um pouco de direito hindu. Mas no hesita, como Mauss, en-tre a troca e a dvida (como Bataille que tambm no hesitar, leva-do pela inspirao nietzschiana). O problema fundamental do sociusprimitivo que o da inscrio, do cdigo, da marca nunca foicolocado dum modo to pertinente (Deleuze & Guattari 5, p. 197).

    Na verdade, Nietzsche abriu uma perspectiva para pensar omodo pelo qual o homem se constituiu no interior do socius primiti-vo. Esse pensamento em termos de marcas, inscries, ou melhor,de codificao da vontade, nos parece relevante para compreenderque a definio da natureza humana no passa pela identificaode uma substncia espiritual que se expressa por um eu inato edesencarnado. , pois, um conjunto de experincias que podemconfigurar um modo de ser do homem, e no uma forma substanci-al. Portanto, avaliar o homem em termos de inscries de cdigos comear a entender no seu agir uma seleo de gestos e palavrascodificadas atravs de um processo no qual h investimento tantode vontade pessoal quanto social.

    O dentro e o fora como dois fios de contatos em que um nopode funcionar sem o outro, porque o inato no a cadeia de com-

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    portamentos tcnicos ou religiosos, mas o poder de assimilar taiscadeias ou diferenciar quando a vontade se desagrega dos demais,e assim inventa novos modos de ser e proceder. No que se refereao socius primitivo, a ao diferenciada deveria seguir ainda o prin-cpio maior, isto , o valor necessrio da coeso grupal.

    Sobre o sentido dessa coeso Nietzsche avalia o carter inicial-mente necessrio, pois percebe que as afinidades comuns organizamuma linguagem e um entendimento coletivo: quando as pessoasviveram por muito tempo, em condies semelhantes (clima, solo,perigos, necessidade, trabalho), nasce algo que se entende, umpovo (JGB/BM 268). Porm, esta citao no pode nos enganar;na verdade, Nietzsche quer revelar com ela toda origem do espritogregrio e tal gregariedade expressa um tipo de homem constitu-do nas relaes de interdependncia, sendo esse tipo, o mediano,ou na prpria compreenso dele, o vulgar: entre todas as forasque at agora dispuseram do ser humano, a mais poderosa deve tersido a fcil comunicabilidade da necessidade, que , em ltima ins-tncia, o experimentar vivncias apenas medianas e vulgares (idem).

    O modo como Nietzsche aborda o processo gregrio inversoao entendimento daquilo que representou o princpio da coesogrupal no socius primitivo para Clastres. Os dois pensadores criaroum quadro de diferenas que visto em paralelo enriquece a proble-mtica tratada neste trabalho. Por ora, ainda devemos consideraras observaes nietzschianas a respeito do tema, porque segundoNietzsche o que interessa entender a formao de tipos humanosatravs dos modos como homens se organizaram entre eles, o tem-po e o espao. Esse entendimento visa descobrir o que o tornar-seum homem.

    Para Nietzsche, o esprito gregrio que ele identifica desde apr-histria revela um poder de adaptao s circunstncias paragarantir a sobrevivncia. Contudo, o prolongamento apenas dessepoder ao longo da histria gerou um tipo manso e demasiadamente

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    adaptvel. por isso que um tom de ironia aparece quando ele nosescreve que, como se mostra afvel, como se mostra afetuoso, tologo fazemos como todo mundo e nos deixamos levar como todomundo!... (GM/GM, II, 24).

    A fora de adaptao move o ser humano a se associar uns comos outros, e atravs dessa atividade gregria surgem os tipos quesimplesmente entram em acordo; h tambm o inverso, ou seja,aqueles que querem dissociar-se ou associar-se quando tem em vis-ta uma ao revolucionria. Pois atente-se para isso, afirmava ele,os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fra-cos buscam associar-se, quando os primeiros se unem, isso apenasacontece em vista de uma agresso coletiva (GM/GM, III, 18).

    Em Nietzsche, o tema da coeso aparece com o objetivo de di-agnosticar a predominncia de um tipo humano domesticvel, poisele no leva muito em considerao o modo especfico da organiza-o no socius primitivo. Fica claro, portanto, que a questo centraldele acompanhar o desenvolvimento de valores que determina-ram uma maneira de ser europia. Ele busca entender por quaismeios a mentalidade europia foi se formando, at alcanar o statusde homem racional, adulto e civilizado.

    Quanto a Clastres, esse mesmo tema assumir um tom diferente,na medida em que sua perspectiva estava centrada na constituiodo ethos selvagem. Ele observou que o ato de associar-se era o me-lhor mecanismo para vencer as adversidades da natureza. Havianas estratgias de coeso uma verdadeira provao de fora. Emtal caso, o associar-se era um esforo no de simples adaptao deuns com os outros, mas um modo eficiente de evitar a diviso inter-na do grupo diviso essa que seria a morte do todo. Para Clastres,no espao da floresta, os selvagens entenderam que repetir os gestosdos antepassados representava a vivncia de um poder imanente aogrupo, que organizava a existncia coletiva a partir de uma memriada lei presente nela, e no a partir de um poder que a transcendesse.

  • Leite, A.

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    Quanto a isso, a citao dele de uma riqueza impressionante:Os primeiros cronistas diziam, no sculo XV, que os ndios brasi-leiros eram pessoas sem f, sem rei, sem lei. certo que essas tri-bos ignoravam a dura lei separada, aquela que, numa sociedadedividida, impe o poder de alguns sobre os demais. Tal lei, lei derei, lei de Estado, os mandan, os guaiaquis e os abipones a igno-ram. A lei que eles aprendem a conhecer na dor a lei da socieda-de primitiva, que diz a cada um: Tu no s menos importante nemmais importante do que ningum. A lei, inscrita sobre o corpo, afir-ma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da diviso, orisco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe es-caparia (Clastres 1, p. 130).

    E para evitar a diviso foi necessrio construir uma memria devalores atravs da codificao. Codificar as disposies fsicas ementais foi a atividade mais duradoura da vida em sociedade. De-vemos pensar, ento, que o esforo essencial do socius selvagemsempre foi talhar no desejo dos seus membros algumas normas quegarantissem a permanncia coesa do grupo.

    Na anlise de Clastres, a codificao assumiu o sentido de me-canismo poltico, com a finalidade de combater uma lei transcen-dente, lei que por ventura pudesse desfazer o lan vital presentenas prticas costumeiras da comunidade. Pois, antes de ser umapostura s de conservao, era simultaneamente uma estratgia decombate interveno de elementos externos ao socius, que pudes-sem desagregar as relaes internas. Combatia-se a exterioridadede um poder capaz de ultrapassar os limites materiais e simblicosdo grupo. Se, portanto, alguns cdigos coletivos eram fixados nocorpo porque a dimenso corporal carregava em si o poder polti-co capaz de formar uma aliana de foras, que fosse ao mesmo tem-po acordo e combate. Um acordo interno que era esforo para seconstituir atravs do ethos tribal.

  • Codificao, memria, coeso: um paralelo entre Nietzsche e Clastres

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    Os cdigos de ao que formavam o ethos selvagem se cristali-zavam atravs das lembranas dos antepassados, mas a simples re-cordao de imagens passadas no eram suficientes para codificara memria. A conscincia de que os mais antigos criaram as trilhasque serviam de conduo no mbito da selva deveria ser fixada nocomo uma escrita no papel, e sim como inscrio de cdigos nocorpo. Inscrever, marcar num espao inseparvel do territrio. nesse sentido que Deleuze e Guattari afirmavam com tanta nfase:a sociedade (primitiva) no se baseia na troca, o socius uma instn-cia de inscrio: o que interessa no trocar mas marcar os corpos,que so da terra. (...) A aliana-dvida responde ao que Nietzschedescrevia como o trabalho pr-histrico da humanidade: servir-seda mnemotcnica mais cruel, na prpria carne, para impor umamemria de palavra(Deleuze & Guattari 5, p. 191).

    A idia de codificao surge na linha de um pensamento daimanncia. por isso que tanto Nietzsche quanto Clastres aponta-ram um processo codificador da memria a partir de regras e leisque no se sustentavam de acordo com uma referncia transcen-dente, mas sim na inscrio de valores necessrios organizaodo espao social. Sendo tais valores referendados pelos antepassa-dos (o pagamento da dvida para com eles), contudo, s revivido namedida em que poderia aparecer algum risco de desintegrao in-terna nas relaes entre os membros do grupo. Os antepassadoseram referncias que expressavam a seguinte mxima: seja um fiocoeso a si mesmo, aos outros e terra, porque da fora de sinuma relao com os outros e a terra que o socius primitivo tornou-se real.

    Esse processo de coeso passou pelo trabalho de tornar umhomem confivel ao outro; nele presenciamos alm da origem daresponsabilidade, tambm o do dbito-promessa. Sem esses dois prin-cpios no poderia ser inventado um campo social, conseqentemen-te o sentido de homem confivel no poderia emergir. A afirmao

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    de Nietzsche bem pontuada quanto a isso: a tarefa de criar umanimal capaz de fazer promessas, j percebemos, traz consigo, comocondio e preparao, a tarefa mais imediata de tornar o homemat certo ponto necessrio, uniforme, igual entre iguais, constante,e portanto confivel. O imenso trabalho daquilo que denominei mo-ralidade dos costumes(cf. Aurora, 9, 14, 16) o autntico tra-balho do homem em si prprio, durante o perodo mais longo dasua existncia, todo esse trabalho pr-histrico encontra nisto seusentido, sua justificativa, no obstante o que nele tambm haja detirania, dureza, estupidez, idiotismo: com ajuda da moralidade docostume e da camisa-de-fora social, o homem foi realmente torna-do confivel (GM/GM, II, 2).

    O sentido da confiana mtua apareceu no processo de consti-tuio da vida social no pela simples boa vontade. Incutir no desejoa disposio para ver no outro um aliado foi o trabalho mais rduoda histria das relaes de interdependncias. Ainda no possumosao certo a compreenso de como o outro se tornou aquele que com-pe com os demais uma proximidade marcada pelo elo da confiabi-lidade. O fato de ter solo, lngua e anseios em comum permite per-ceber parte da formao desse elo, s que ainda no nos oferece oquadro presente de elementos subjetivos.

    Podemos dizer que tal quadro possui nuanas carregadas decrueldade. Para Clastres a funo cruel da codificao dos costu-mes no passava por uma inteno punitiva. Nesse aspecto, ele di-fere de parte do entendimento nietzschiano a respeito do processode inscrio de marcas na memria. Em Nietzsche h uma evidn-cia punitiva no processo, quanto para Clastres h a funo preventi-va: Os Ach, para impedir o retorno do caos no cu, fendem aterra com seus machados; e tambm, para prevenir semelhante caosentre si fendem as costas do betagi. Pele trabalhada, terra escarifi-cada: uma nica e mesma marca (Clastres 2, p. 122).

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    A evidncia do procedimento punitivo abordado por Nietzschese deve em parte fonte de pesquisa extrada do prprio direitogermnico dos sculos XIV e XV, onde estabelecia algumas puni-es pblicas com carter corretivo. Numa descrio surpreenden-te ele afirma: Esses alemes souberam adquirir uma memria comos meios mais terrveis (...): o dilaceramento ou pisoteamento porcavalos (o esquartejamento`), a fervura do criminoso em leo ouvinho (ainda nos sculos XIV e XV), o popular esfolamento (cortede tiras`), a exciso da carne do peito (...). Com a ajuda de taisimagens e procedimentos, termina-se por reter na memria cincoou seis no quero` (...) (GM/GM, II, 3).

    H em Nietzsche e Clastres o estudo de uma pedagogia da cruel-dade com fins ticos e polticos. Eles perceberam que a construode um modo de ser do homem dependeu da encarnao de valoresatravs do processo de codificao da memria. O modo dessacodificao possui o mesmo aspecto doloroso no estudo dos dois; adiferena reside no fato de Clastres no encontrar nos seus estudostraos de uma mentalidade que aplica a dor a quem transgride nor-mas, e sim quele que capaz de provar resistncia e capacidadede proteger a vida tribal. Nesse caso, a crueldade pedaggica an-terior a qualquer desvio, porque tenta evitar a quebra de um fiohumano teia de todo grupo.

    Para Nietzsche, a aplicao da dor ocorria aps a realizao deum comportamento considerado fora das normas j codificadas emformas de leis. A punio aps o ato desviante revela a fragmenta-o de um campo de relaes mais complexas, onde a possibilida-de de emergir o indivduo separado do todo apareceu. Em tal situ-ao, poderemos afirmar que, ao invs de uma pedagogia dacrueldade, Nietzsche descobriu, na histria dos costumes, uma ten-dncia punitiva com o objetivo de moldar um tipo de homem razo-vel. Sendo assim, o triunfo da razoabilidade o mesmo da aceita-o da mentalidade punitiva.

  • Leite, A.

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    Os ndios de Clastres no estavam na linhagem dos homens ra-zoveis, pois mesmo quando em grupo eles se alinhavam para ca-ar noite; havia nesse momento uma tenso grupal em relao caa, e entre eles uma relao de parentesco, no apenas de san-gue, mas, sobretudo, de coragem e resistncia.

    Abstract: This paper aims to demonstrate that the interaction betweenthe concepts of codification, memory, and cohesion in Nietzsche andClastres allow us to formulate an understanding about the meaning of in-terdependent relationships in the primitive world. Both authors focus uponthe idea of the codification of memory as an activity that converts the primi-tive socius into a genuine space in which marks are inscribed upon themind. The concept of codification refers to a way of training the mentaland organic faculties, so that action expresses norms fixed in a collectivememory, with the aim of producing social cohesion.Key-words: codification memory cohesion philosophical anthro-pology.

    notas

    1 Foucault nunca se interessou diretamente pelas socieda-des primitivas. Elas no deixam de ser um exemplo privi-legiado, quase em excesso. (Deleuze 4, p. 45).

    2 A palavra primitivo designa aqui o estado tecnoeconomicodos primeiros grupos humanos, isto , a explorao do meionatural selvagem. Cobre por conseguinte todas as socieda-des pr-histricas anteriores agricultura e criao degado e, por extenso, quelas que, muito numerosas, pro-longam o estado primitivo na Histria at aos nossos dias.(Leroi-Gourhan 8, p. 221, n. 11).

  • Codificao, memria, coeso: um paralelo entre Nietzsche e Clastres

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    referncias bibliogrficas

    1. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado, Rio deJaneiro: Francisco Alves, 1978

    2. _______. Crnicas dos ndios guayaki: O que sabem osAch, caadores nmades do Paraguai. Rio de Janei-ro: Editora 34, 1995

    3. _______. Infortnio do guerreiro selvagem, in: Guerra,religio, poder. Lisboa: Edies 70, 1977.

    4. DELEUZE, Gilles. Foucault, So Paulo: Brasiliense, 1988.

    5. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O Anti-dipo:Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assrio e Alvim,1966

    6. DURKHEIM, mile. Sociologia e filosofia. Rio de Janei-ro: Forense Universitria, 1970

    7. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: A histria dos cos-tumes (Vol. 2). Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

    8. LEROI-GOURHAN, Andr. O gesto e a palavra: memriae ritmos (Vol.: 2). Lisboa: Edies 70, 1990.

    9. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. So Pau-lo: Companhia das Letras, 1998.

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  • Vestgios das manhs: notas acerca da escrita de Nietzsche...

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    * Mestre em Filosofia pela PUCRS.

    Vestgios das manhs:notas acerca da escrita deNietzsche enquanto tardede seus pensamentos

    Lus Eduardo Rubira*

    Resumo: O presente texto intenta refletir acerca de diversas passagensda filosofia madura de Nietzsche que deixam margem para interpretar-mos que o filsofo tinha conscincia de que seus escritos eram atravessa-dos tanto pela impossibilidade em comunicar a multiformidade de impres-ses abarcadas pelo pensamento quanto pelo fato de que, quando pass-veis de comunicao, elas expressam apenas uma espcie de tarde emcontraposio manh representada por ele.Palavras-chave: linguagem estilo comunicao poesia

    O que formulado s uma par-te do pensamento (...).

    Sempre dizemos s uma parte doque queremos dizer. (Cioran)1

    I

    No me compreendem, no sou a boca para esses ouvidos.Ser preciso, primeiro, partir-lhes as orelhas, para que aprendam a

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    ouvir com os olhos? (Za/ZA, Prlogo, 5). Esta meditao do c-lebre personagem nietzschiano (realizada aps ver fracassada a lin-guagem atravs da qual falara multido acerca do alm-do-ho-mem), bem poderia aplicar-se ao ato de Nietzsche, que, sentindo aincompreenso de seus contemporneos frente ao modo de expres-so e ao contedo de sua obra Assim falava Zaratustra, publica, em1886, Para alm de bem e mal. Em uma carta de 22 de setembrodo mesmo ano, encaminhada a Jacob Burckhardt, Nietzsche refe-re-se a seu ltimo escrito como obra na qual, ainda que de mododiferente, estariam ditas as mesmas coisas que no seu Zaratustra.O que muda, ento, a linguagem atravs da qual as idias soapresentadas: o preldio de 1886 visar, entre outras coisas, to-car uma melodia para ferir os ouvidos dos leitores que no sou-beram escutar o Sim afirmativo que perpassava o Zaratustra.

    Mudar o modo de expresso de uma mesma idia tambm, emmuitos casos, no atinge o resultado esperado: Eles no me com-preendem; eu no sou a boca para esses ouvidos. Demasiado tem-po, decerto, vivi na montanha, por demais escutei os crregos e asrvores (Za/ZA, Prlogo, 5), medita Zaratustra aps ter, nova-mente, falado multido, desta vez, porm, numa linguagem quereputava compreensvel, a do ltimo homem, no intento de par-tir-lhes as orelhas, ou seja, para que pudessem perceber o niilismoque os ameaava e se abrirem compreenso do alm-do-homem.Nestes dois trechos de Assim falava Zaratustra (bem como na com-parao entre a forma de expresso desta obra em relao a Paraalm de bem e mal), temos um exemplo tanto da possibilidade deabordar e expressar um mesmo tema a partir de ngulos diferentesquanto de que o problema no domnio daquilo que pode ser comu-nicado no reside, muitas vezes, no modo de apresentao da idiaou do pensamento, mas na interpretao que o interlocutor faz dele2.Tal como a multido no compreende o anncio do alm-do-ho-mem e o perigo do ltimo homem, distorcendo-os, posteriormente

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    Zaratustra perceber que, mesmo entre seus discpulos, sua dou-trina corre perigo, j que o joio quer chamar-se trigo (Za/ZA,O menino com o espelho): o que, outra vez, desvela a fragilidadeda comunicao.

    Se no nvel daquilo que a linguagem mantm disponvel para acomunicao (vocabulrio, estrutura, etc.) o problema grave, numnvel mais profundo, Zaratustra e Nietzsche defrontam-se com aquiloque no encontra lugar na linguagem, que no pode ser comunica-do e, no limite, sendo comunicado, afigura-se como uma plida ex-presso do pensamento: tal como ocorre no que diz respeito expe-rincia do eterno retorno. No que tange a esta experincia, e suatentativa de comunicao, significativo verificar os papis desem-penhados por Zaratustra, seus animais e o narrador da histria nostrechos finais da terceira parte de Assim falava Zaratustra (tomadoaqui em suas trs partes, tal como fora pensado originalmente3).Neste sentido, o texto O convalescente e os que lhe seguem sodecisivos para circunscrevermos nossa anlise.

    curioso observar que, ainda que O convalescente no sejao ltimo momento em que aquele que narra a histria do Zaratustrase faz notar, o lugar onde quase se retira de cena, pois, nos trstextos que se seguem e concluem a obra, o narrador limita-se a ins-crever Assim falou Zaratustra (no final Do grande anseio e nosegundo trecho de O outro canto de dana), desaparecendo porcompleto nos demais trechos e em Os sete selos. Segundo nossainterpretao, o motivo que atenua a interferncia do narrador nostrechos finais da obra est relacionado experincia do eterno re-torno. Iniciemos, assim, nossa anlise pelo texto onde Zaratustravivencia tal experincia, a saber, O convalescente. Neste texto,podemos perceber que Zaratustra no verbaliza sua experincia maisntima do eterno retorno, a saber, o pensamento abissal, que, apsinvocado e enfrentado, lhe deixou prostrado durante sete dias. Cer-cado por seus animais, que insistem em lhe inquirir sobre o que se

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    passou, a primeira fala que Zaratustra dirige a eles aponta para aimpossibilidade em comunicar-lhes o ocorrido:

    meus animais respondeu Zaratustra , continuai a tagarelar as-sim e deixai que vos escute. Traz-me tamanho conforto, ouvir-vos taga-relar; onde se tagarela, j o mundo ali, para mim, como um jardim.

    Como agradvel que existam palavras e sons; no so palavras esons arco-ris e falsas pontes entre coisas eternamente separadas? (...)No foram as coisas presenteadas com nomes e sons, para que o homemse recreie com elas? Falar uma bela doidice: com ela o homem danasobre todas as coisas.

    Quo grata toda fala e toda mentira dos sons! Com sons dana onosso amor em coloridos arco-ris.

    A impossibilidade em, atravs de palavras, comunicar a expe-rincia do eterno retorno evidencia-se tambm quando, no segundomomento em que Zaratustra se dirige aos animais, sua fala inter-rompe-se no instante em que ele lembra do momento em que trou-xera tona seu pensamento abissal. Percebendo a experincia-limite de Zaratustra em trazer para a linguagem o ocorrido, seusanimais no deixaram que continuasse a falar e lhe incitaram acantar, ao que Zaratustra lhes responde:

    farsantes e realejos, calai-vos de uma vez!, respondeu Zaratus-tra, sorrindo de seus animais. Como conheceis bem o consolo que, emsete dias, inventei para mim! (...) tambm disso quereis fazer logomodinha de realejo?

    Depois deste trecho podemos perceber que, enquanto os ani-mais tagarelam4 acerca do Eterno Retorno, o prprio Zaratustra estdistante, no notando nem mesmo o momento em que os animaissilenciam, pois jazia imvel, de olhos fechados, como algum que

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    dorme, sem bem que no dormisse: pois, justamente, discorria coma sua prpria alma.

    Deste modo os textos que seguem a O convalescente so can-tos, ditirambos5 onde a personagem discorre com a sua prpriaalma. Assim, segundo nossa interpretao, o motivo que leva onarrador a ir desaparecendo implica em registrar que, a partir deum determinado ponto, tudo no passa de narrativa, tagarelice,plida imagem daquilo que foi vislumbrado, pois o essencial daexperincia-limite do Zaratustra-Nietzsche permanece velado6.Nietzsche ainda faz questo de registrar na ltima cano dos Seteselos o aviso que a Sabedoria dera a Zaratustra:

    No foram as palavras, porventura, feitas para os seres pesados? Nomentem todas elas, porventura, criatura leve? Canta! No fales mais!

    Discorrendo com sua prpria alma e cantando o modo comotermina a obra onde o falar ocupara, at O convalescente, o lu-gar central. Talvez por esta razo tenhamos uma sinalizao domotivo pelo qual o ttulo do livro carrega o verbo falar no pretrito(Also sprach Zarathustra) e no no presente: Zaratustra deixa de fa-lar, pois o essencial acerca do eterno retorno no encontra, na lin-guagem, possibilidade de comunicao acerca daquilo que se per-cebeu, e tambm porque sabe que a linguagem tende a enrijecer ovir-a-ser.

    II

    Dois anos depois da concluso da terceira parte do Zaratustra,obra em que Nietzsche encontra sua prpria linguagem para expres-sar seus pensamentos mais ntimos (Fink 2, p. 71), uma linguagemartstica e no cientfica, figurada e no conceitual (Machado 13,

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    p. 18), o filsofo com Para alm de bem e mal retoma o trabalhoconceitual, argumentativo, crtico, hipottico. Visto que, como apon-tamos ao incio de nosso texto, Assim falava Zaratustra encontraressonncia em Para alm de bem e mal, significativo que estaltima obra termine (em que pese a diferena de suas propostas,estilos, perspectivas), temtica e estruturalmente, de modo muitosemelhante maneira como finalizado o Zaratustra. diante daimpossibilidade de comunicar a multiformidade perceptiva abran-gida pelo pensamento, sem que as palavras sacrifiquem e enrijeamsua mobilidade, que Nietzsche encerra o ltimo pargrafo da obraPara alm de bem e mal, o 296:

    Oh, que so vocs afinal, meus pensamentos escritos e pintados! Hpouco tempo ainda eram to irisados, to jovens e maldosos, com espi-nhos e temperos secretos, que me faziam espirrar e rir e agora? J sedespojaram de sua novidade, e alguns esto prestes, receio, a tornar-severdades: to imortal j seu aspecto, to pateticamente honrado, toenfadonho! E alguma vez foi diferente? Que coisas escrevemos e pinta-mos, ns, mandarins com pincel chins, eternizadores do que consenteem ser escrito, que coisas conseguimos apenas pintar? Oh, somente aquiloque est a ponto de murchar e perder seu aroma! Oh, somente pssarosque fatigaram e extraviaram no vo, e agora se deixam apanhar com amo Com a nossa mo! Eternizamos o que j no pode viver e voarmuito tempo, somente coisas gastas e exaustas! Apenas para sua tardeeu tenho cores, meus pensamentos escritos e pintados, muitas cores tal-vez, vrias delicadezas multicores, e cinqenta amarelos e vermelhos emarrons e verdes: mas com isso ningum adivinhar como eram vocsem sua manh, vocs, imprevistas centelhas e prodgios de minha soli-do, vocs, velhos e amados maus pensamentos!

    Tal como Zaratustra no tem como comunicar a experinciaprofunda do eterno retorno, e assim como aquilo que foi dito acerca

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    do eterno retorno uma caricatura da experincia mesma de Zara-tustra, convertendo-se em tagarelice na boca de seus animais, asensao de no poder comunicar algo sem que as palavras sacrifi-quem e enrijeam tanto aquilo que foi percebido quanto o pensa-mento atravessa Nietzsche outra vez. Significativo tambm, no quetange estrutura das obras, observar que do mesmo modo comoAssim falava Zaratustra concludo com trs cantos ou ditirambos,os quais j distantes da narrativa aproximam-se da forma potica,Para alm de bem e mal, aps o 296, concludo com uma can-o-eplogo intitulada Do alto dos montes: ambos finais mantm,assim, traos em comum e expressam, na medida em que se apro-ximam da forma de expresso artstica, a forma potica, a tentativade buscar uma outra linguagem para expressar aquilo que o discur-sivo no consegue preencher, para expressar outros matizes abarca-dos pelo pensamento.

    Se Assim falava Zaratustra e Para alm de bem e mal guardamalguma semelhana no modo como so finalizados, tanto em rela-o ao contedo quanto forma, bem como recorrem a linguagempotica como via de aproximao daquilo que, conceitualmente, inexprimvel, num prefcio escrito tambm em 1886, para a obraO Nascimento da Tragdia, que o filsofo, num lamento, nos diralgo esclarecedor: pena que eu no me atrevesse a dizer comopoeta aquilo que tinha ento a dizer, j que aquilo que era balbu-ciado (n)uma lngua estranha, em linhas gerais, sua compreensosobre o dionisaco, ficou sacrificado sob a peso e a rabugice dial-tico-alem (GT/NT, Tentativa de autocrtica, 3). possvel iden-tificar nestas afirmaes, lanadas retrospectivamente sobre suaprimeira grande obra, pelo menos dois momentos que ilustram oque at aqui vimos: primeiro a deformao que algo novo que sequer comunicar sofre quando submetido ao instrumental conceitualdisponvel. Segundo, que no fortuitamente que o filsofo, no pe-rodo maduro de sua obra, recorreu ao expediente potico para

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    complementar sua escrita (ainda que saiba que at mesmo esta for-ma de expresso encontra seus limites na linguagem e no sai inc-lume no comunicvel7). Face a estes aspectos, diramos, tambm,que no ao acaso que o Quinto Livro de A gaia cincia, escritotambm no ano de 1886, possu estrutura idntica ao final de Paraalm de bem e mal: em primeiro lugar porque o tema do 383 semelhante ao do 296 de ABM (com o diferencial de que, aoinvs de Nietzsche verificar que aquilo que escreveu representa atarde de seus pensamentos, no final de A gaia cincia so os pr-prios pensamentos, os espritos de seu livro, que surgem e lhechamam a ordem para que pare de escrever, j que, conforme eles,seu canto matinal sacrificado com a msica fnebre da escri-ta), e, em segundo lugar, porque se segue a este ltimo pargrafodo livro um apndice potico8.

    III

    O contedo, ou esta sensao de incompletude da escrita pe-rante o pensamento, expresso no final do 296 de Para alm debem e mal e do 383 do Quinto Livro de A gaia cincia, atravessaoutros prefcios escritos em 1886 e segue-se at o ano de 1888. Osprprios prefcios, em si mesmos, no seriam a materializao dasensao de que as obras escritas representam um plido retrato,uma tarde diante do fulgor dos pensamentos? Se esta sensaoque movimenta o filsofo ao escrever os prefcios, eles mesmos tam-bm esto atravessados por ela. Neste sentido tomemos o queNietzsche escreve acerca de A gaia cincia: Mais de um prefcioseria necessrio a esta obra e ainda restariam dvidas (FW/GC,Prefcio, 1). O mesmo sintoma podemos observar em ttulosque o filsofo d aos seus prefcios, obras e projetos. Assim o pref-cio ao Nascimento da Tragdia intitula-se Tentativa de autocrtica,

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    e o subttulo dado a Para alm de bem e mal Preldio a umafilosofia do futuro. No ano seguinte, 1887, na Genealogia da Mo-ral (GM/GM, III, 27) o filsofo anuncia que estaria preparandouma obra, mas tambm esta, como o prprio subttulo nos deixaperceber, seria um Ensaio acerca de um tema que lhe caro (Avontade de potncia: ensaio de uma transvalorao dos valores), emesmo nos Fragmentos pstumos do ano de 1888 podemos encon-trar o registro de que a prpria obra O Anticristo, ao ser pensadainicialmente enquanto primeira de quatro obras dedicadas Trans-valorao, seria, como mostra o subttulo, um ensaio de uma crti-ca do cristianismo9.

    Tentativa, Ensaio, Preldio: a filosofia de Nietzsche man-tm-se coerente no reconhecimento de que o fluxo da realidade nopossa estancar-se em conceitos, no possa receber um ponto finalcom um escrito. Quando muito, com a escrita, e de acordo com adestreza do escritor, possvel reter por um pouco coisas que des-lizam leves e sem rudo (EH/EH, Aurora, 1). Se j na primeira egrande obra que demarca a maturidade intelectual de Nietzsche apersonagem Zaratustra queixa-se de que na verdade, difcil dedemonstrar todo o ser, e difcil faz-lo falar (Za/ZA, Dos trans-mundanos), ou seja, dar voz quilo se percebe ou se experimenta,o filsofo Nietzsche, em seus derradeiros escritos, continuaria a regis-trar a mesma preocupao, como podemos ver, respectivamente,tanto no prefcio ao segundo volume de Humano, demasiado hu-mano (1) quanto no Crepsculo dos dolos (Incurses de umextemporneo, 26):

    Deve-se falar somente quando no se pode calar (...) tudo o mais tagarelice, literatura, falta de disciplina.

    No nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nos-sas vivncias mais prprias no so nada tagarelas. No poderiam co-

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    municar-se, se quisessem. que lhes falta a palavra. Quando temospalavras para algo, tambm j o ultrapassamos. Em todo falar h umgro de desprezo. A fala, ao que parece, s foi inventada para o cortetransversal, o mediano, o comunicativo. Com a fala j se vulgariza ofalante.

    IV

    Acreditamos que tais textos sejam capazes de fornecer-nos umaindicao ao lermos as obras nietzschianas: um filsofo que vemanunciar o logro do supra-sensvel (e com isto, tambm, suprimirseu plo oposto: o sensvel10), vedar o acesso a um mundo de es-sncias, impossibilitar um ponto de vista privilegiado com relao verdade, requer que aquilo que foi escrito acerca de suas princi-pais inquietaes (Eterno Retorno, Vontade de potncia, etc.) sejalido como tentativa, aproximao de apreenso de um devir que sefurta quando tentamos aprision-lo nas malhas do comunicvel, vir-a-ser este do qual a mobilidade do pensamento capaz de melhorabarcar a multiformidade do que a escrita o possa fazer. No obs-tante a dificuldade, Nietzsche desdobrou-se em suas obras para ten-tar aproximar-se deste vir-a-ser, comunicando suas impresses atra-vs de dissertaes, aforismos, mximas, poesia, enfim, buscandosignos apropriados para cada caso, os quais exprimissem o ritmode suas experincias e inquietaes, no deixando, todavia, de reco-nhecer que aquilo que escrevia (o que era pintado com pincel chi-ns) representava apenas a tarde de seus pensamentos. Seus es-critos, assim, para no se despojarem de sua novidade e tornarem-severdades defendidas aos quatro cantos, deveriam ser tomados porns como o prtico de seu pensamento, como um convite a desvelaraquilo que, atravs do comunicado, ficou oculto: em outras pala-vras, como delineia Nietzsche ao comentar Humano, demasiado

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    humano na obra Ecce Homo: Ainda hoje, ao tocar casualmenteeste livro, quase cada frase torna-se-me uma ponta, a qual puxopara novamente retirar da profundeza algo incomparvel (EH/EH,Aurora, 1).

    Para concluir, recorro ao expediente potico tal comoNietzsche o fez em tantas ocasies para complementar seus escri-tos, aproximando-os das diversas tonalidades do pensamento11

    , e valho-me de um escrito12 que, a meu ver, bem poderia aplicar-se diferena sentida pelo filsofo entre o percebido e o comu-nicado, bem como ao nosso prprio texto acerca dos escritos deNietzsche, que permanece como ensaio:

    Ao cair da tardepenso sempre maise a luz que me invadeso as cores naturais

    cada figuraque passa por mimnem me perturbae eu fico assim

    longe me leva este silncioe o sentir que se alteraso as cores do sol

    e eu fico encantadoe eu sinto-me arderquando o dia se apagafica tanto por ver

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    Abstract: This paper focuses upon some examples of Nietzsches laterphilosophical output, in which he revealed he was conscious that his writ-ing was permeated by the impossibility of communicating the variety ofimpressions encompassed by thought. Even, if communicable, such im-pressions could only express a sort of afternoon in contrast to the morn-ing represented by his thought.Key-words: language style communication poetry

    notas

    1 Trecho de entrevista do pensador romeno Emil Cioran,publicado no caderno Mais! da Folha de So Paulo de12/02/1995.

    2 Acreditamos que, dos temas centrais do pensamento deNietzsche, a morte de Deus e o ltimo homem fazemparte daquilo que Nietzsche comunica de modo preciso aquem souber compreend-lo. O alm-do-homem somentepode ser comunicado em parte, pois o prprio Zaratustra,em vrios momentos, nos diz que um prenunciador doraio, raio este que se chama alm-do-homem. Quantoao eterno retorno, cremos que ele no pode ser comuni-cado. Sua comunicao resulta numa caricatura. Existemdeterminados tipos de impresses cuja comunicao ple-na, Nietzsche, desde muito cedo, considera impossvel, talcomo aqueles que atravessaram o filsofo Tales, como eleescreve em A filosofia na poca trgica dos gregos, 3:Assim como, para o dramaturgo, palavra e verso so ape-nas o balbucio em uma lngua estrangeira para dizer nela oque viveu e contemplou e que, diretamente, s poderiaanunciar pelos gestos e pela msica, assim a expressodaquela profunda intuio filosfica pela dialtica e pela

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    reflexo cientfica , decerto, por um lado, o nico meio decomunicar o contemplado, mas um meio miservel, no fun-do uma transposio metafrica, totalmente infiel, em umaesfera e lngua diferentes. Assim Tales contemplou a uni-dade de tudo o que : e quando quis comunicar-se, falouda gua!

    3 A quarta e ltima parte, escrita em fevereiro de 1885, esta-va destinada a ser a primeira de uma nova obra, cujo ttuloseria Meio dia e eternidade, a qual deveria ser compostade mais duas partes que nunca foram escritas: A quarta eltima parte permaneceu indita (...) durante a vida lcidade Nietzsche. Ela somente veio a pblico em 1890 e porfim, em 1892, se publicou a primeira edio completa deAssim falou Zaratustra , tal como hoje a conhecemos (Cf.a Introduo de Andrs Snchez Pascual para o Zaratustrade Nietzsche. p. 17 e 18).

    4 Alm de Zaratustra ter apontado que os animais tagarelam,Deleuze nos diz que eles fazem isto pois a essncia doeterno retorno escapa-lhes (Deleuze 1, p. 35)

    5 Com um ditirambo como o ltimo do terceiro Zaratustra,intitulado Os sete selos, voei milhares de milhas acima ealm do que at ento se chamava poesia. (EH/EH, Por-que escrevo to bons livros, 4).

    6 Uma dvida que se desprende: como o narrador, que atento se limitara a narrar a histria daquilo que falavaZaratustra sabe, nos trechos que se seguem a O convales-cente o que passa na alma de Zaratustra? No h aquiindcios de que o narrador funde-se e a sua personagem?

    7 Sabemos que o prprio Zaratustra (Za/ZA, Dos poetas)oscila entre ser e no ser um poeta, j que at mesmo apoesia, e no somente os conceitos, encontra limites nocomunicvel. O poeta Mrio Quintana em um poema seuexpressou estes limites de forma muito clara (Trecho dopoema Selva Selvaggia, In:Quintana 15, p. 28):

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    O poema est parado em meio da clareira.O poemacaiuna armadilha! Debate-see ora subdivide-se e entrechoca-se como esferas de vidrocoloridoora uma frmula algbricaora, como um sexo, palpita... Que importaque importa qual seja enfim o seu verdadeiro universo?Ele em breve ser inteiramente devorado pelas palavras!

    8 O que tambm ocorre com a segunda edio de Humano,demasiado humano, datada do ano de 1886, na qualNietzsche acrescenta um poema-eplogo, com o qual encer-ra a obra.

    9 Analisando os fragmentos pstumos nietzschianos, ScarlettMarton escreve: Prevendo ainda a publicao de uma obracomposta de quatro livros, o filsofo elabora o plano:Transvalorao de todos valores. Primeiro livro: O anticristo ensaio de uma crtica do cristianismo. Segundo livro: Oesprito livre crtica da filosofia como movimento niilista.Terceiro livro: O imoralista crtica da mais fatal espciede ignorncia: a moral. Quarto livro: Dioniso filosofia doeterno retorno. Desse plano chega a redigir apenas umadas quatro partes. Na carta a Georg Brandes de 20 denovembro do mesmo ano, passa a considerar O anticristono o primeiro livro, mas o conjunto da Transvalorao detodos os valores; essa idia reaparece em outras cartas.(Marton 14, p. 25).

    10 Neste sentido ver o final de Como o verdadeiro mundoacabou por se tornar uma fbula, da obra Crepsculo dosdolos.

    11 Os limites da linguagem nos tornam mais modestos notrato com a escrita. Em Nietzsche, assim, no se trata deabandonar o discurso filosfico para refugiar-se no mstico

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    ou to somente na prpria poesia, mas de reconhecer que,no limite, a comunicao algo difcil e requer muita habi-lidade daquele que algo quer comunicar, e que, no limite,h impresses que no conseguem ser comunicadas.

    12 Poema As cores do sol de Pedro Ayres Magalhes eGabriel Gomes que compe a obra musical O esprito dapaz do grupo Madredeus. 1994 EMI Valentim de Car-valho, Msica, Ltda.

    referncias bibliogrficas

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  • Rubira, L. E.

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    9. NIETZSCHE, F. O Nascimento da tragdia, ou Helenismoe pessimismo. Trad., notas e posfcio de J. Guinsburg.So Paulo: Compahia das Letras, 1992.

    10. _______. Humano, demasiado humano: um livro paraespritos livres. Trad., notas e posfcio de Paulo Csarde Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

    11. _______. Le Gai Savoir. Textes et variantes tablis parGiorgio Colli et Mazzino Montinari. Traduits delallemand par Pierre Klossowski. dition Revue,corrige et augment par Marc B. de Launay.Gallimard, Collection Folio/Essais: 1982.

    12. _______. Obras incompletas. Seleo de textos de GerrdLebrun. Trad. e notas de Rubens Rodrigues TorresFilho. Col. Os Pensadores. (4a Ed.). So Paulo: Novacultural, 1987.

    13. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragdia nietzschiana.Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

    14. MARTON, Scarlett. Nietzsche. Das foras csmicas aosvalores humanos. So Paulo, Brasiliense, 1990.

    15. QUINTANA, Mrio. Seleo de textos, notas, estudosbiogrfico, histrico e crtico e exerccios por ReginaZilberman. So Paulo: Abril Educao, 1982.

  • tica e poltica. Genealogia e alcance do ltimo homem...

    57cadernos Nietzsche 17, 2004 |

    * Professora da Universidad Catlica Andrs Bello (Venezuela).

    tica e poltica. Genealogia ealcance do ltimo homemna filosofia de Nietzsche

    Marta de La Vega Visbal*

    Resumo: Para captar a idia do ltimo homem e compreender melhorcomo ela se configura na obra nietzschiana, a autora no a v como umpensamento separado do processo da prxis histrica, mas procura exp-la ligada igualmente s circunstncias particulares que determinam o pro-jeto essencial do filsofo: a transvalorao de todos os valores.Palavras-chave: ltimo homem poltica tica transvalorao

    Introduo

    Por meio do ltimo homem, Nietzsche concebe uma coern-cia sua percepo crtica da realidade do sculo XIX, cujas tur-bulncias marcaram, sem dvida, uma ruptura definitiva no quetange s estruturas tradicionais da sociedade. Na medida em queessa crise continua a ser atual, apesar das circunstncias diferentesnas quais atualmente se desenvolve, nos parece importante desta-car a presena do ltimo homem no fenmeno cultural contem-porneo. Ele permitiria evidenciar, sobretudo, o parentesco das

  • La Vega Visbal, M. de

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    estruturas existentes entre tais momentos histricos, embora, de umamaneira aparente, distantes qualitativamente. Se, com efeito, essafigura metafrica delineada por Nietsche expressa traos dominan-tes no sistema de valores da cultura ocidental, a questo do ltimohomem continua aberta.

    1. Genealogia do ltimo homem

    Como surge a idia do ltimo homem no pensamento doNietzsche? a primeira pergunta que devemos traar quando setrata de encontrar a origem e a necessidade dessa idia. Com efei-to, no surge naturalmente no pensamento do filsofo; no respon-de ta