CADERNOS DE HISTÓRIA

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CADERNOS DE HISTÓRIA Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 3 p. 1-100 out. 1997

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Cad. hist. Belo Horizonte v. 2 n. 3 p. 1-100 out. 1997

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Grão-ChancelerDom Serafim Fernandes de Araújo

ReitorProf. Pe. Geraldo Magela Teixeira

Pró-reitora de Execução AdministrativaProfª. Ângela Maria Marques Cupertino

Pró-reitor de ExtensãoProf. Bonifácio José Teixeira

Pró-reitor de GraduaçãoProf. Djalma Francisco Carvalho

Pró-reitora de Pesquisa e de Pós-graduaçãoProfª. Léa Guimarães Souki

Chefe do Departamento de HistóriaProfª Maria Mascarenhas de Andrade

Colegiado de Coordenação DidáticaProfª Carla Ferretti SantiagoProf. Carlos Evangelista VerianoProfª Heloisa Guaracy MachadoProfª Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora)

Tiragem1.000 exemplares

EDITORA PUC•MINASPontifícia Universidade Católica de Minas GeraisPró-reitoria de ExtensãoAv. Dom José Gaspar, 500 • Coração EucarísticoCaixa postal: 1.686 • Tel: (031) 319.1220 • Fax: (031) 319.112930535-610 • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil

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SUMÁRIO

ApresentaçãoAlysson Parreiras Gomes ........................................................................................................ 5

A população de rua e suas relações de trabalho – os catadoresde papel em Belo Horizonte (1988-1996)Maria Vany de Oliveira .......................................................................................................... 7

Belo Horizonte: qual pólisYonne de Souza Grossi ........................................................................................................... 12

Belo Horizonte: tempo, espaço e memóriaLídia Avelar Estanislau .......................................................................................................... 25

As ruas e as cidadesAnny Jackeline Torres Silveira................................................................................................ 29

A recuperação da Lagoinha dentro de uma novaconcepção de política urbanaHeloisa Guaracy MachadoMaria de Lourdes Dolabela L. Pereira .................................................................................... 36

A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo HorizonteMaria Marta Martins Araújo................................................................................................. 50

A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienistae espaço urbano disciplinar – Belo Horizonte – 1907-1908Rita de Cássia Chagas Henriques ........................................................................................... 57

Belo Horizonte – Coração das Minas e das GeraisLucília de Almeida Neves ....................................................................................................... 64

Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênioAlberto Antoniazzi ................................................................................................................. 69

Imagens de Belo Horizonte de Pedro NavaElisabeth Guerra Parreiras Baptista PereiraHerbe Xavier ........................................................................................................................... 86

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Conselho EditorialProf. Carlos Fico (Deptº de História – UFOP)Profª Eliana Fonseca Stefani (Deptº de Sociologia – PUC•Minas)Prof. Dr. Francisco Iglésias (Faculdade de Ciências Econômicas – UFMG)Profª Liana Maria Reis (Deptº de História – PUC•Minas)Profª Drª Lucília de Almeida Neves Delgado (PUC•Minas)Profª Drª Maria do Carmo Lana Figueiredo (Deptº de Letras – PUC•Minas)Profª Drª Maria Efigênia Lage de Rezende (Deptº de História – UFMG)

Coordenação EditorialProf. Alysson Parreiras Gomes

Coordenação GráficaCoordenadoria de Comunicação Social da PUC•Minas

RevisãoProfª Virgínia Mata Machado

MonitoresJosé Otávio AguiarPatrícia Correa Pereira

Preparada pela Biblioteca da Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais

Cadernos de História. — Número especial,out. – 1997 — Belo Horizonte: PUC•Minas,

v.

Anual

1. História – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católicade Minas Gerais. Departamento de História.

CDU: 98 (05)

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APRESENTAÇÃO

As comemorações do Centenário de fundação de Belo Horizontetêm mobilizado várias instituições públicas e privadas com o obje-tivo de discutir, analisar e comparar os diferentes aspectos da orga-

nização do espaço urbano no decorrer deste século, na capital mineira. ODepartamento de História da Pontifícia Universidade Católica de MinasGerais, no seu esforço, sempre renovado, de criar um ambiente de reflexãoe crítica da realidade, promoveu em abril deste ano o simpósio “Belo Ho-rizonte: tempo, espaço e memória”, que contou com a participação de pro-fessores e profissionais oriundos de outras áreas e instituições. Os textosresultantes de algumas dessas conferências e alguns trabalhos produzidospelos professores da casa, encontram-se agora reunidos neste número es-pecial dos Cadernos de História, destinado a alcançar um público maisamplo e estimular a continuidade dos debates e pesquisas.

Os artigos, aqui apresentados, procuram revelar alguns dos múltiploshorizontes que compõem o rico e complexo universo dessa cidade cente-nária. Procurando resgatar parte de uma memória individual e coletivaque tende a se tornar opaca com o passar dos anos, os pesquisadores se es-forçaram em buscar nas reminiscências, signos, documentos e monumen-tos existentes na cidade, o material necessário à reconstrução desse passa-do comum. Partindo de premissas diferentes e utilizando das mais diver-sas fontes e metodologias de análise, os trabalhos ora divulgados são teste-munhos das incalculáveis possibilidades de investigação e pesquisa queesse tema ainda oferece.

Acreditando que o conhecimento produzido no meio acadêmico so-mente ganha seu real significado quando é divulgado, debatido e sociali-zado, o Departamento de História da PUC•Minas, dentro de suas possibili-dades, tem procurado contribuir para a melhoria do ensino, a democrati-zação do saber e a edificação de uma sociedade mais justa, onde a cida-dania efetiva seja um direito de todos.

Alysson Parreiras GomesCoordenador Editorial

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A população de rua e suas relações de trabalho – “Os catadores de papel em ...

A POPULAÇÃO DE RUA E SUASRELAÇÕES DE TRABALHO

“Os catadores de papel em BeloHorizonte” (1988-1996)*

Maria Vany de Oliveira**

Aluna do Departamento de História – PUC•Minas

RESUMO

Este artigo situa os catadores depapel no contexto sociopolítico-eco-nômico da região metropolitana deBelo Horizonte na década de oiten-ta, destacando a ASMARE (Asso-ciação dos Catadores de Papel, Pa-pelão e Material Reaproveitável deBelo Horizonte) como marco impor-tante para a “Capital do século”.

* Tema de um projeto de pesquisa aprovado pelo PROBIC, que está sendo desenvolvido no período de janeiro a dezembro de1997, tendo como orientadora a professora Liana Maria Reis, do Departamento de História – PUC•Minas.

** Está cursando o 8º período de História – PUC•Minas e realizando a pesquisa acima mencionada.

Indigentes, deficientes, mendigos, vagabundos, velhos e doentes sem recursos, cri-anças sem pais, mães e viúvas sem proteção, camponeses sem terra, cidadãos semdomicílio, operários sem emprego, abandonados por conta do crescimento e feridospela civilização, marginais de toda espécie... É longa a lista dos que suscitaram for-mas específicas de tomada de consciência e elas próprias extremamente diversas.

(Castel, 1991, p. 21)

Aessa litania mencionada na epígrafe,pode-se acrescentar um contingentede mulheres e de homens que hoje

ocupam as praças, os terrenos ociosos, os lo-gradouros públicos, as marquises, os centrosurbanos.

Tal população não pode mais ser identifi-

cada, segundo afirma Luiza Erundina, como “a figura do andarilho oudo mendigo tradicional que pede esmolas. (...) São trabalhadores desem-pregados, que se juntam a outros tantos que sem esperança aguardamrespeito e cuidados”. (Souza, 1992, p. 11)

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Maria Vany de Oliveira

A cidade de Belo Horizontenão foge à regra. Também elaconvive com inúmeros proble-mas que afetam tantas outras ci-dades brasileiras. Dentre esses,destaca-se a problemática dosque vivem em situação de rua.

Belo Horizonte foi planejadasegundo o pensamento positi-vista, dominante no final do sé-culo XIX. É o que informa Ro-berto Luís de Melo Monte-Mor:

Belo Horizonte foi planejada de acor-do com a ordem positivista e é filhados desdobramentos do Iluminismoem suas manifestações do final do sé-culo passado. A ideologia da ordemprogressista foi expressa na sua con-figuração urbana nas linhas e esqui-nas retas, rigidamente delimitadas,mais adaptadas aos cânones barro-cos da tradição ibérica e do modismofrancês do que às condições específi-cas da natureza e do terreno onde seimplantava. (Monte-Mor, 1994. p.14)

Monte-Mor salienta aindaque a referida capital foi proje-tada dentro de um modelo eli-tista excludente. Ele afirma:

A década de 80 encontrou a RMBHapresentando os mais altos níveis deatendimento daqueles serviços urba-nos voltados para a produção: ener-gia elétrica, infra-estrutura de trans-portes e serviços de telefonia. De ou-tra parte, os mais baixos níveis deserviço de saneamento em Minas eramencontrados na RMBH (...). (Andra-de e Monte-Mor, 1994, p. 25)

E prossegue o autor:

O centro urbano fechado sobre simesmo exclui ainda mais fortemen-te do espaço do poder a população tra-balhadora – o centro histórico implo-diu – e adensou-se e excluiu os não-

cidadãos, exceto como transeuntes,(...) o tecido urbano estendeu-se pelaperiferia. Espaços industriais, servi-ços, oficinas, conjuntos habitacio-nais, favelas e loteamentos precári-os, linhas de ônibus e serviços de ele-tricidade estenderam a forma urba-no-industrial pelo espaço circundan-te, pouca atenção às antigas munici-palidades, às antigas cidadanias (...).(Monte-Mor, 1994, p. 26)

O século XX, caracteristica-mente frenético, impôs à capital“uma constante construção/des-truição”. A cidade tornou-se es-treita para aglomerar o imensocontingente populacional quemigrou das zonas rurais em bus-ca de novas oportunidades.

Embora tendo nascido sob aótica da industrialização, a ma-turação industrial de Belo Hori-zonte é retardada. Isso resultadas várias crises econômicas de-sencadeadas na virada do sécu-lo, das lutas políticas, dos anta-gônicos interesses travados emvista do controle sobre o capitale das debilidades na resoluçãode problemas regionais e urba-nos, como transporte e energia.Simultaneamente ao processomigratório, dá-se uma intensifi-cação das atividades urbanasprovocada pela dinamização docrescimento industrial, aliada àpolítica de gastos públicos. Osanos 80 nos revelam que o muni-cípio de Belo Horizonte cresceudemasiadamente, sendo a suaperiferia reflexo maior de talcrescimento.

Dos 2,1 milhões de migrantes

do Estado de Minas Gerais nadécada de 80, a Região Metropo-litana de Belo Horizonte atraiu440 mil (21%). Intensificou-se acriação de bairros dormitórios,freqüentemente implantadosem loteamentos clandestinos ecada vez mais distantes do nú-cleo urbano, já que as áreas defavelas mais centrais se encon-tram saturadas.

Ao crescimento desordenadoda Região Metropolitana, se-guiu-se o aprofundamento dasdesigualdades sociais. Tal fenô-meno tornou-se evidente nas ca-madas populares carentes dascondições básicas de vida.

Como meio de garantir a so-brevivência e de resistir ao mo-delo sócioeconômico-políticoexcludente, grande parte da po-pulação belo-horizontina – co-nhecida como população de rua– buscou formas de trabalho al-ternativo e de organização na in-formalidade. A maioria desseshabitantes da rua, antes oriun-da de outros Estados, vem hojedo próprio interior do Estado, docampo ou dos garimpos. Aquitrabalham como camelôs, lava-dores de carro, na prostituição,e ainda como catadores de pa-pel, objeto deste estudo.

Os catadores de papel são, emsua maioria, possuidores de cer-to grau de escolaridade.

Conforme pesquisa realizadaem setembro e outubro de 1993com 411 catadores de recicláveis,

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A população de rua e suas relações de trabalho – “Os catadores de papel em ...

constata-se que 22% deles sãoanalfabetos, 33% não completa-ram o primário, 25% têm primá-rio completo (até 4a série), 14%de 5a a 7a série, 3% completaramo 1º grau, 2% concluíram o 2ºgrau, 1% tem o 2º grau incom-pleto e, entre todos os pesquisa-dos, apenas uma catadora temcurso superior.1

Os catadores de papel eramestigmatizados pela sociedadecomo vagabundos e marginais.Enquanto elementos estranhos àcivilização, eram perseguidospela polícia e expulsos dos espa-ços onde viviam com suas famí-lias, sendo-lhes assim vedado oacesso aos materiais que propor-cionavam sua sobrevivência, is-to é, os restos deixados pelas ruas(papel, papelão, plástico, ferrovelho, alumínio e outros materi-ais reaproveitáveis). O poder pú-blico administrativo desrespeito-samente não os considerava co-mo cidadãos trabalhadores. JoséCarlos, catador de papel, dizia:

... Vivíamos sendo marginalizados,chamados de vagabundos, ladrões,ninguém levava em conta nosso tra-balho. Éramos perseguidos pela Pre-feitura e pela Polícia... trabalhamosno sol e na chuva, sem férias nemdescanso. A nossa casa era a rua, onosso teto o carrinho...2

Apesar do descaso e do pre-

conceito – tanto por parte da po-pulação, quanto do poder público– caracterizando-os como uma ca-tegoria marginalizada e sem re-conhecimento social e profissio-nal, os catadores de papel se ar-ticularam, se reuniram inúmerasvezes debaixo dos viadutos ounas casas de alguns nas favelasda cidade e, então, fundaram aASMARE (Associação dos Cata-dores de Papel, Papelão e Mate-rial Reaproveitável de Belo Ho-rizonte). Isto se deu em 1° demaio de 1990.

Com a fundação da Associa-ção, os catadores de papel foramconquistando credibilidade devários grupos e entidades. Nes-te sentido, vale destacar a expe-riência inédita de relação de par-ceria com o poder público, repre-sentado pela SLU (Superinten-dência de Limpeza Urbana) epela SMDS (Secretaria Munici-pal de Desenvolvimento Social),além das ONG’s, Pastoral de Ruae Cáritas Regional.

No que se refere à Pastoral deRua e à Cáritas Regional, cabe aelas apoiar os catadores em suaorganização, prestando serviçosde assessoria e educação social,de forma a atingir as dimensõescultural, social, econômica, polí-tica e mística, além do finan-

ciamento de projetos que viabili-zam a continuidade e ampliaçãodo seu processo organizativo.

Relativamente à parceria coma Prefeitura Municipal de BeloHorizonte, pode-se dizer que es-ta reflete visivelmente a inversãode prioridades que se deu a par-tir da última administração.

Em dezembro de 1992, foi celebradoo convênio entre a Prefeitura, a AS-MARE e a Mitra Arquidiocesana,caracterizando uma mudança de pos-tura do poder público e da sociedadeem relação a esses trabalhadores. Apartir de 1993, com a assinatura determos aditivos ao convênio existen-te, possibilitando inclusive o forne-cimento de vales-transportes e uni-formes, o poder municipal dá um sal-to qualitativo ao reconhecer formal-mente o trabalho do catador no sis-tema de limpeza urbana do municí-pio, elegendo-o agente prioritário dacoleta seletiva e incluindo-o comoparceiro, e não mais inimigo.3

No reconhecimento dos cata-dores de papel como trabalhado-res e na relação de parceria esta-belecida com eles, percebe-se atentativa de incluí-los, conside-rando-os como cidadãos e, mais,compreendendo o espaço urba-no por eles conquistado enquan-to espaço de luta e de exercícioda cidadania.

A atividade dos catadores depapel é fundamental para o ecos-sistema e representa, para o mu-

1 Cf. Relatório Parcial – Pesquisa Catadores de Material Reciclável do Fórum da População de Rua – INAPP – setembro de 1994.2 José Carlos faleceu há dois anos, aos 38 anos de idade. Participou do processo de fundação da ASMARE, sendo dela tesoureiro.3 Cf. texto “Coleta Seletiva de Belo Horizonte”, elaborado por Maria de Fátima Abreu, Mara Luisa Alvim Mota e Sônia Maria

Dias – Equipe Técnica da SLU.

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Maria Vany de Oliveira

nicípio, a diminuição de gastosexaustivos com a limpeza públi-ca. Na tentativa de superação davisão preconceituosa do trabalhodos catadores de papel em BeloHorizonte, a ASMARE busca,juntamente com as entidadesparceiras, qualificar os catadorespara que possam realizar comeficiência o seu trabalho na cole-ta seletiva.

A organização dos catadoresrepresenta o rompimento com asbarreiras resultantes do desem-prego e do subemprego, que le-vam inúmeras pessoas a ingres-sarem no mercado informal detrabalho. Esse rompimento semanifesta na ocupação do espa-ço que os catadores organizadosconquistaram, sendo reconheci-dos enquanto categoria profis-sional.

Em termos econômicos, a As-sociação representa benefício pa-ra o catador associado que entre-ga aí o seu material. Ele tem a ga-rantia de 20% ao mês acima dovalor real do papel, o que nãoocorre quando vendem paraatravessadores. No final do ano

é feito um levantamento de todoo capital produzido. Sanadas asdespesas, o restante é distribuí-do entre os associados, de acor-do com o que cada um produ-ziu.

A experiência de inserção doscatadores na rua e nos três gal-pões de triagem onde trabalhamlevou a inúmeras transforma-ções em sua vida cotidiana, apartir de sua organização.

Este artigo limitou-se a infor-mações gerais acerca do proces-so organizativo desses agentesprecursores da coleta seletiva.Muito mais, certamente, há deser descoberto nos bastidoresdessa organização. Essas mulhe-res e homens que, com ousadia,resistem às diversas formas deexploração, também fazem par-te do processo histórico. É preci-so dar visibilidade a suas propos-tas, por meio da escuta de suasfalas.

Assim, no desenvolvimentodesta pesquisa está sendo utili-zado o método da história oral,partindo da fundamentação teó-rica de Paul Thompson, Lucília

de Almeida Neves Delgado, Pe-ter Burke, Gwyn Prins, entre ou-tros.

Gwyn Prins, no livro organi-zado por Peter Burke, afirmaque:

É justamente o uso de tal reminis-cência que tem sido até agora a mai-or contribuição de historiadores co-mo Paul Thompson. Eles são histo-riadores sociais e utilizam os dadosorais para darem voz àqueles que nãose expressam no registro documen-tal. (Prins, 1992, p. 192)

O autor prossegue, comen-tando o pensamento de Thomp-son escrito nas primeiras linhasde The voice of the past:

Toda história depende finalmente deseu propósito social, e a história oralé a que melhor reconstrói os particu-lares triviais das vidas das pessoascomuns para aqueles que desejamrealizar isso. (Prins, 1992, p. 192)

Considerando a inexistênciade um trabalho historiográficosobre os catadores de papel emBelo Horizonte, somos peloaprofundamento do tema, so-bretudo para que sua experiên-cia de organização possa esten-der-se a outros grupos de excluí-dos, na luta pela cidadania.

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Referências bibliográficas01. ABREU, Maria de Fátima. Coleta seletiva de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Superintendênica de Limpeza

Urbana de B. H., 1993/1994.

02. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Cenas de um Belo Horizonte. Belo Horizonte, 1994.

03. BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Plano diretor de Belo Horizonte; lei de uso e ocupação do solo –estudos básicos. Belo Horizonte, 1995.

04 BURKE, Peter (Org.). A escrita da história; novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992.

05. CASTEL, Robert. Da indigência à exclusão, a desfiliação; precariedade do trabalho e vulnerabilidade relacional.In: LANCETTI, Antônio (Org.) . Saúde e loucura. São Paulo: Hucitec, 1991.

06. MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo (Coord.). Belo Horizonte; espaços e tempos em construção. Belo Hori-zonte: CEDEPLAR/RBH, 1994. 94p. (Coleção BH 100 anos).

07. ROSA, Cleisa M. População de rua – Brasil e Canadá. São Paulo: Hucitec, 1995.

08. VIEIRA, Maria A. C., BEZERRA, Eneida M. R., ROSA, Clisa, M. M. (Org.). População de rua quem é, como vi-ve, como é vista. São Paulo: Hucitec, 1992.

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Yonne de Souza Grossi

BELO HORIZONTE: QUAL PÓLIS?

Yonne de Souza GrossiDepartamento de Economia – PUC•Minas

RESUMO

Este ensaio examina o processode fundação da capital mineira,tendo como eixo temático a ques-tão da liberdade. O ponto de parti-da é a idéia de pólis grega, na con-figuração de seu espaço público,rastreando instâncias significati-vas na evolução do direito à cida-de. Belo Horizonte emerge comosujeito histórico, capaz de criar suaunidade política.

Como tornar possível a história dosmundos que se desmoronam? Comocontar a gesta do lugar, ocultando o

seu ponto de partida? Como frestar a região delas madres, matriz de excelência na interpreta-ção do presente? Dois mitos de origem assina-lam o início da civilização ocidental, sob o sig-no da liberdade: um de procedência judaica,

outro de raiz romana (Lafer, 1980, p. 31-32). A narrativa bíblica mostra oêxodo dos judeus quando cativos do Egito e a criação de sua comuni-dade sob a lei de Moisés, na terra do leite e do mel. Já Virgílio, em seupoema Eneida, nos conduz à fundação de Roma, fruto do errar deEnéias, após a destruição de Tróia. Nas duas alegorias, o agir conjuntoda comunidade é motivado pelo amor à liberdade.

Dois movimentos compõem esse itinerário: desvencilhar-se daopressão e o estabelecimento da liberdade. O desprender-se da antigaordem e a criação da nova liberdade. A passagem entre os dois mo-mentos, ou seja, os anos de cativeiro e as viagens de Enéias, tem um senti-do alegórico: a liberdade não representa uma forma automática que pode

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Belo Horizonte: Qual pólis?

se suceder aos desastres sociais;ela passa pela edificação de umregime de governo. Essa questãose refere ao exercício da liber-dade: precisa ser praticada. Noentanto, essa constatação serárespondida não pelas institui-ções mosaicas ou romanas, maspela experiência da pólis grega.

A prática da liberdade nos re-mete à sua origem, na antigüi-dade grega, na lapidar constru-ção de sua pólis, inaugurando aexperiência da democracia. Dostrês regimes políticos que os gre-gos conheciam, apenas a demo-cracia revelava a dignidade hu-mana: opunha o princípio deigualdade ao ditame oligárqui-co, mantendo “contra a tirania,o direito à liberdade” (Glotz,1980, p. 118). Tucídides configurao ideal de Atenas quando evoca:

A Constituição que nos rege nadatem que invejar às leis dos povos vi-zinhos; serve-lhes de modelo e de mo-do algum as imita. O seu nome é de-mocracia, porque visa ao interesse,não de uma minoria, mas de grandemaioria. (Glotz, 1980, p. 118-119)

Quando, a partir do século IVAC, a rica experiência da liber-dade foi sendo sepultada em so-lo grego, sua memória, no entan-to, permaneceu imbricada notempo das coisas, tempo dosfragmentos, tempo lacunar for-jado de rupturas. Sua reinven-ção pontilha séculos, submergee volta a nascer, na descontinui-dade do próprio tempo. O sím-

bolo grego da liberdade, a Ágora,passa a ser considerado como“dos antigos” (Coulanges, 1950,p. 342). Os modernos lidam comsociedades complexas, onde odemos como corpo de cidadãosnão é mais soberano. O ideal dacomunidade grega não tem res-sonância entre nós, a sociedademoderna é um espaço coletivoque se opõe, se contradiz e se di-ferencia, relacionando-se atravésde mediações tensas. A marcafundamental da sociedade, queMaquiavel tão bem coloca no sé-culo XV, é que existe nela umadivisão originária: o desejo dosgrandes de oprimir e comandar,e o desejo do povo de não seroprimido nem comandado. Issoé o que Marx mais tarde qualifi-cará como luta de classes, numaperspectiva histórica e teórica.

As nações ocidentais contem-porâneas, mesmo no final do sé-culo XIX e no século XX, aindaguardam a marca opressora eperversa do colonialismo. Aaventura européia de descobrire explorar outras terras e outrospovos, a partir do século XVI,aporta espaços de dominaçãoonde a prática da liberdade tor-na-se apenas uma hipótese deluta. Hipótese esta que, com opassar do tempo, concretiza-seem diversas formas de indepen-dência, cada região com suas sin-gularidades. Assim é o caso bra-sileiro, que vivenciará sua inde-pendência do domínio portu-

guês adotando, no século XIX,um governo imperial mediadopela própria coroa lusitana. En-tre as províncias brasileiras, a deMinas Gerais foi palco de sedi-ções iluminadas pela liberdade,sendo a da Inconfidência gera-dora do mito-herói Tiradentes.Sua ressonância atual na forma-ção do imaginário de diferentesclasses sociais atua também co-mo válvula-reforço no discursode políticos e estadistas mineiros.

Proclamada a República, em1889, a nova ordem federativaredesenhará, nos anos 90, umasituação inusitada no novo Esta-do de Minas Gerais: a constru-ção planejada da cidade que serásua capital, Belo Horizonte. Estaagenciará, em parte, a nova liber-dade republicana. Recuperar es-se momento, explicitá-lo no es-paço contraditório do poder e daliberdade, tendo como marco re-ferencial a pólis grega, tais os li-mites e o alcance deste ensaio.

Alguns interrogantes direcionamnosso objetivo: quais as imagens depossibilidades históricas que a novacapital recria? Qual é a natureza deum espaço público representado pelaliberdade? Quem constrói a cidade?

A pólis grega constróiseus interrogantes

Um grupo de escravos passapela praça de Atenas. Lá um ho-mem fala a ouvintes. — Quem éeste homem? Indaga um jovem

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Yonne de Souza Grossi

escravo. — É Platão discursan-do sobre a sua democracia, res-ponde outro. — Sigamos, retru-ca o jovem... Essa clássica ima-gem da democracia mostra o di-lema da liberdade, mesmo na ci-dade que forja sua matriz para oocidente. Na antiga Grécia, hádois mil e quinhentos anos, de-fine-se a vida política como a vi-da justa, advinda do agir conjun-to, no espaço livre da palavra eda ação. Os pressupostos desseagir comunitário repousam nasfigurações da liberdade e daigualdade. A aspiração funda-mental da democracia grega é aigualdade, no sentido político ejurídico; esta “tanto pode indi-car a independência do indiví-duo, como a de todo o Estado”(Jaeger, 1936, p. 510).1 O concei-to grego de liberdade, na épocaclássica, representa não ser escra-vo de ninguém, significa a pos-sibilidade de decidir, na praçapública, os negócios da Repúbli-ca. Em outras palavras, trata-seda liberdade do homem públi-co. Entretanto, uma dívida nãopaga poderia suspender judici-almente a cidadania do indiví-duo, tornando-o escravo até aquitação do débito.

Como se constrói esse ho-mem público? Na tessitura da li-berdade e da necessidade, quena antiga Grécia qualificam asesferas pública e privada. O sen-tido original de privado circuns-creve a esfera da família, relaci-onada com a vida do indivíduoe a sobrevivência da espécie, te-mas por excelência domésticos,definidores das atividades rela-cionadas ao reino das necessida-des humanas, das utilidades ecarecimentos. A casa, para o gre-go, significa ter um lugar nomundo e poder participar deseus negócios. Na vida em famí-lia, o chefe impera com poderesdespóticos e incontestes. Essaesfera denota estar privado departicipação no bem comum epúblico, que significa a vida napólis; esse espaço identifica fami-liares e escravos. Pertencer àpólis, domínio da esfera pública,representa ter ultrapassado oplano da necessidade e do care-cimento, condição para ingressarno reino da liberdade. Este é oreino das relações entre iguais,os cidadãos, comunidade deiguais em sua liberdade para de-liberar e governar, participandodemocraticamente nas decisões.

Na Paidéia, há um abismo entreas esferas pública e privada, abis-mo este que os tempos moder-nos desalojaram, transformandoa liberdade em direitos individu-ais, direitos civis do homem pri-vado. Também a igualdade dosantigos não possui a conotaçãomoderna que a vincula à justiçasocial, figurando apenas a liber-dade política dos membros dapólis.2 A idéia de cidadania era,portanto, restrita, não abrangen-do a população, apenas o demos,ou seja, o corpo de cidadãos. Odemos quando reunido é sobera-no, “as suas atribuições compre-endem tudo e os seus poderessão ilimitados”. (Glotz, op. cit., p.150)3

Na cidade-estado, a liberda-de é um conceito político, envol-vendo a cidadania. Não signifi-ca, entretanto, ausência de nor-mas, mas autonomia no sentidode “obediência à própria lei co-letivamente elaborada na praçapública” (Lafer, op. cit., p. 14),4

onde se reunia a Assembléia doPovo, soberana em suas decisões.A reunião chamada ágora exigiauma praça pública, que tem omesmo nome. Em sua origem,ela é o lugar das trocas, do ven-

1 A Paidéia considera a escravidão a base sobre a qual repousa a liberdade da população citadina. Assim tem-se que “artesliberais são aquelas que formam parte da cultura liberal, que é a paidéia do cidadão livre, em oposição à incultura e mesquinhezdo homem não livre e do escravo”. Foi Sócrates que fez da liberdade um problema ético, ao criticar a divisão social da pólisem livres e escravos. p. 511.

2 Uma discussão sobre as idéias desenvolvidas pode ser encontrada em: Lafer, 1980; Arendt, 1983; Anastasia, 1988; Carvalho,1989 e Coulanges, 1950.

3 Vale lembrar que cidadão na cidade-estado é aquele que fazia parte do culto da cidade, sendo que desta participação lhederivavam direitos civis e políticos. (Coulanges, 1950, p. 293)

4 Na antiga Grécia autonomia significa o “direito de se reger pela própria lei”. Vem de autos, por si próprio, e nomos, lei.

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der ou comprar para satisfazeras necessidades. Nas antigas ci-dades oligárquicas da Tessália, aágora chamava-se Praça da Liber-dade. Em que sentido pode-seentender tal expressão? Se nocantão da Tessália eram proibi-dos de freqüentar a praça públi-ca “o artesão, o campônio e to-dos os indivíduos que exerces-sem esse gênero de profissão”?Cabia ainda aos magistrados de-sembaraçá-la “de toda a sorte demercadorias”. Enquanto a Praçado Mercado, “suja de víveres”,era entregue ao tráfego, a Praçada Liberdade era reservada a“exercícios ginásticos de cida-dãos privilegiados”. (Glotz, 1980,p. 17-18, 67)

De fato, a praça não serveapenas para transações comerci-ais, mas é o lugar onde se discu-te política e se formam opiniões.Responde, no século V AC, à in-terrogação da pólis, construindoum espaço livre para a palavra ea ação. Responde ao desejo doscidadãos, agenciando seu locusde participação democrática. Apraça materializa as raízes insti-tuintes da pólis, forjando suaidentidade com os deuses fun-dadores da cidade, solenemen-te reverenciados na Acrópole,sua parte mais alta. A Ágora reú-ne, assim, “todos os requisitospara servir às assembléias plená-rias” (Glotz, 1980, p. 17). As ex-

periências políticas que corres-pondem ao conceito de liberda-de têm na Ágora seu ícone sim-bólico, expressando imagetica-mente uma comunidade de iguais.

A partir do século IV, a Ágoracomeça a desalojar os homens.Sua imagem povoa a cidade, exi-gindo em seu silêncio que ela seinterrogue. A experiência sobe-rana da Hélade ficara rompidadesde a batalha de Queronéia.Os antigos estados, mesmo seunindo para enfrentar “a últimabatalha pela liberdade”, foramderrotados pelo poderio militardo reino macedônio (Jaeger,1936, p. 1329). Há uma rupturadramática na história da cidade-estado, como um sujeito coleti-vo capaz de imprimir seu pró-prio destino, criando e transfor-mando cenários sociais.

A construção helênica, desar-ticulada, paralisada em seu flu-xo contém, no entanto, passadoscativos que podem ser liberta-dos. Não em sua continuidade,ensina Benjamim, mas despren-dendo-os de um tempo homo-gêneo, como se despertássemosmortos em suas sepulturas; tra-ta-se de um tempo impregnadode ágoras, uma teia em cada pre-sente comunicando-se com dis-tintos passados (Benjamim,1986). Nesse sentido, podemosconsiderar a liberdade dos anti-gos, não como um registro de

mecânicas repetições, mas umaevocação cujas ressonâncias eco-am em cidades modernas. Emcontraste, porém, a liberdadedos modernos estará impregna-da pela conveniência do interes-se individual, o reino da razãoservindo às paixões.

A que veioBelo Horizonte

A percepção da cidade comoum lugar de mercado faz parteda literatura que se reporta ao fe-nômeno urbano, na Europa oci-dental. Entre outros, Weber eMarx coincidem neste ponto.Marx chega a salientar a impor-tância da cidade para a existên-cia do capitalismo. É a mão-de-obra livre e disponível, em rela-ção com proprietários de meiosde produção, que efetiva a exis-tência do mercado, como lugarde trocas. Todavia, uma das maisantigas referências ao mercadoparte de Anaximandro, que usaa imagem do tribunal para figu-rar a “luta das coisas”:

Temos diante de nós uma cidade jô-nica. Lá está o mercado, onde se admi-nistra justiça; sentado em sua cadei-ra, o juiz estabelece a pena. O juiz é otempo. (...) O seu braço é inexorável.Quando um dos contendentes tirou aooutro demasiado, é-lhe de novo retira-do o excesso e dado ao que ficou compouco. (Jaeger, 1936, p. 186)5

5 Para um estudo da evolução do fenômeno urbano, ver Mumford, 1982.

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Relações sociais, como as des-critas, só ocorrem na cidade. Poroutro lado, a cidade é um instru-mento de dominação, na me-dida em que sedia órgãos locaisde poder e controle dos habitan-tes. Sérgio Buarque de Holanda,em seu precioso capítulo sobre“O Semeador e O Ladrilhador”,mostra a fundação da cidadedurante a conquista espanhola,tecendo comparações com a co-lonização portuguesa em terrasbrasileiras (Holanda, 1982, p. 61-100). Comenta que a Coroa deCastela imprime ao nascimentodas povoações rígidos regula-mentos inscritos nas Leis das Ín-dias. A edificação dos núcleos ur-banos parte sempre da “chama-da praça maior”, sendo sua for-ma um quadrilátero. O povoa-mento surge nitidamente de umcentro, sendo a praça a base parao traçado das ruas. Os portugue-ses, pragmáticos, são mais flexí-veis ao compor a paisagem urba-na colonial, dado talvez o seu ca-ráter de exploração comercial. Opovoamento será contido no li-toral, uma das medidas estipu-ladas pelas cartas de doação dascapitanias. Na América portu-guesa, o desenho das cidades seentorna no desalinho das ruasestreitas que acompanham osdeclives do terreno, mesclando-se com as concepções européiasdo casario urbano. A natureza daobra realizada pelos portuguesestraz a marca da feitorização.

Carlos Nelson Santos, (San-tos, p. 39) ao falar das cidades noBrasil, lembra as capitanias, “li-nhas paralelas feitas a esquadrosobre uma terra” que se desejasob controle e disciplina, “paraglória e riqueza dos colonizado-res”. E as primeiras cidades, in-daga o autor? “São Vicente, Sal-vador, Olinda... pedaços de Lis-boa nos trópicos, concebidasprontas: (...) casa da Câmara aqui,igreja ali, adiante fortaleza e co-légio”. Seguiam a tradição de“ocupar morros”. Rio e Salvadorsão exemplos de “aproveitamen-to de um suporte físico compli-cado”.

Com o descobrimento do ou-ro das Gerais, no terceiro séculode domínio português, assisti-mos à expansão da fronteira li-torânea. Agora, no entanto, ca-be à iniciativa particular a ocu-pação do território, e não mais a“uma política dirigida e planeja-da pelo Estado; para Minas con-verge toda espécie de gente,compondo nas suas origens umasociedade anárquica...” (Boschi,1986, p. 142). Faiscadores, garim-peiros, artesãos, comerciantes,contratadores, militares, profis-sionais liberais, entre outros, for-jam migrações:

A urbanização, que dá tom singularà sociedade mineira do século XVIII,possibilitou uma forma de domina-ção mais ostensiva por parte do Esta-do sobre esta sociedade inicial que,embora original, não possuía identi-dade própria... (Boschi, 1986, p. 143)

A ordem social baseada no es-cravismo insere o negro em umaclasse social, onde é ao mesmotempo capital investido e traba-lho, circunscreve formas de di-visão social do trabalho, apropri-ação e dominação exercidas pe-los brancos detentores de rique-za e poder. No regime escravista,eixo do sistema colonial, qualifi-ca-se “o trabalho produtivo comoalgo inerente e exclusivo de ne-gros ou de pessoas socialmentedesclassificadas...” (Boschi, 1986,p. 141, 148). As contradições ge-radas pelo antagonismo de inte-resses entre a Metrópole e a co-lônia vão criar cenários de resis-tência e luta de classes contra aopressão do Estado. A organiza-ção das vilas e povoados passa ater o desígnio claro de se conse-guir maior controle sobre os ha-b i t a n t e s .

Até os últimos decênios do sé-culo XIX, as cidades são raras napaisagem brasileira. Com a abo-lição da escravatura e a procla-mação da República, novosconstrutos agenciam as necessi-dades. Deseja-se promover umanova ordem: para engendrá-la eassegurá-la, são imprescindíveisas cidades. Pereira Passos recons-trói e embeleza o Rio, tornando-a uma cidade sanitária, bem or-ganizada, ordenada, estetica-mente unificada. As classes me-nos favorecidas são desalojadaspara a periferia, permitindo aocentro emoldurar a presença da

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nascente burguesia. Paralela àsmedidas de saneamento pro-vocadas pelo surto de varíola de1904, procede-se a uma redistri-buição espacial de grupos soci-ais. Para Sevcenko, essa reurba-nização da cidade “trouxe consi-go fórmulas particularmentedrásticas de discriminação, exclu-são e controle social”, atingindoas classes menos favorecidas dasociedade. (Sevcenko, 1984, p. 88)

Uma das preocupações cen-trais do Império é a organizaçãodo Estado brasileiro. Busca-se ga-rantir a unidade política do país,constituir um governo capaz deintegrar as províncias, manten-do a ordem social. O final do Im-pério é que alojará o debate so-bre a formação da nação, redefi-nindo a cidadania (Carvalho,1989, p. 265-266). Entretanto, aquestão da identidade nacionalperpassa a literatura românticados meados do século.6 A partirda segunda metade do séculoXIX, surge a influência positivis-ta. A sociedade positivista, fun-dada em 1876, cria a Igreja Positi-vista do Brasil, no Rio de Janei-ro, cujo templo, construído nos

anos 90, existe até o presente. Apar dessa religiosidade fundan-te, também nos anos noventasurge uma corrente política, deinspiração positivista, lideradapor Benjamim Constant, embo-ra o eixo do movimento tenha sedeslocado para o Estado do RioGrande do Sul. (Paim, 1967 ePaim, 1980)7

A matriz positivista se encai-xa em leis que garantem o funci-onamento da sociedade. Os po-sitivistas tentam justificar e aomesmo tempo definir o nossoatraso cultural. Acreditam na es-cola como restauradora de nos-sas forças sociais, e considerama República como uma perfeitaforma de ordem política moder-na, com seus mecanismos departicipação.8 O lema positivis-ta, “a ordem por base, o progres-so por fim”, sustenta-se na razãoque engendra o conhecimentocientífico. Sua influência simbó-lica repousa na bandeira brasilei-ra, e seus princípios de neutrali-dade e racionalidade estarãotambém presentes no planeja-mento da cidade de Belo Hori-zonte. A nova capital do Estado

de Minas Gerais representa umaobra significativa da República,integrando, em parte, o projetode reordenação política do país,bem “como o nível espacial deredistribuição do poder”; ilus-trativa “a transferência da capi-tal de Minas – consentida logono 7º decreto da República, noquinto dia após sua instalação”.(Magalhães & Andrade, 1989, p.185 e Melo, 1990, p. 92)9

O que irrompe da informeRepública? O desejo de enraizaro poder do Estado. Para tantocontribui, “em parte, a longa tra-dição estatista do país, herançaportuguesa reforçada pela eliteimperial” (Carvalho, 1989, p.273). Entre os pressupostos daRepública, temos a superação doatraso cultural e, para tanto, sãocriados imagens e símbolos. Di-zia-se que:

(...) em 6 anos pode o novo regimefazer mais pelo Brasil que o antigo,em 67 anos. As antigas provínciasque definharam por falta de rendas,presas e manietadas pelo governocentral, são hoje Estados prósperos,pujantes de elementos de vida. (...)A República será mantida pela Fe-deração. (...) O Estado será mantidopelas libérrimas instituições decre-

6 Na Europa, por volta de 1820, o romantismo oferece uma conotação de cidade com fundamentos locais, raízes do povo, na-cionalismo. A cidade surgindo como significado da afirmação como povo. Mas tudo isto ligado à definição dos estados na-cionais. E o Brasil: O movimento do romantismo local também busca suas raízes. Onde a origem? No índio: assim, O Gua-rani, de José de Alencar (publicado em 1857), tenta definir laços, dentro das linhas européias, sem identidade com a raiz dopovo. Trata-se da ligação simbólica entre uma jovem loira portuguesa e um chefe indígena.

7 Também sobre a temática ver Costa, 1957.8 Para perceber a política expressando-se como prática pedagógica, nos primeiros 15 anos da República, consultar o luminoso

trabalho de Melo, 1990, especialmente capítulo 2.9 O parágrafo 10, do referido decreto 7º, determinava em seu artigo 20 ser da competência dos governadores dos mesmos Es-

tados “estabelecer a divisão civil, judicial e eclesiástica do respectivo Estado e ordenar a mudança de sua capital para o lugarque mais convier”.

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tadas. (Fortes, 1896, apud Melo,1990, p. 69)

Embora nos subterrâneos dopoder circuitos de forças políti-cas lutassem para se tornar fac-ções hegemônicas no seio dasclasses dominantes, a palavraoficial traduzia as novas imagensda construção republicana. Deherança positivista, outro pres-suposto do regime é o trabalho,escondendo seu caráter explo-ratório, para explicitar sua sedematerial, que configura o pro-gresso. Impossível com escravosatender a essa meta. Assim a Re-pública significa, entre outrascoisas, trabalho livre, poder, Es-tado, este identificado à nação,à pátria. Havia, no plano econô-mico, uma crise do café, gestadano final do século, e que se es-tenderia até o primeiro decêniodo século XX. Ora, o café repre-sentava 75% da produção brasi-leira. Por que a cidade, o desen-volvimento urbano não poderi-am dar uma resposta à crise? Mi-nas Gerais surge com sua pro-posta de mudança de capital, jáacalentada. Além do impacto so-cial pela construção planejada danova capital, das oportunidadeseconômico-financeiras, haviaum requisito de natureza políti-ca: a nova capital, obra maior daRepública nascente, expressariaa ruptura com o passado coloni-al, com a opressão externa sobrenós. Ouro Preto, entretanto, evo-caria um solo sagrado, mítico na

fecundação da liberdade, repre-sentada pelas sedições de 1720 e1798. Belo Horizonte poderia serdefinida como a cidade capaz deresgatar o sangue e ideais deseus heróis mineiros, estampan-do, em plano nacional, a figurade seus inconfidentes, proto-re-publicanos. (Melo, 1990, p. 100-101)

Na nova capital, a alegoria daliberdade fará parte da batalhade símbolos, mitos e rituais, inte-grando as batalhas ideológica epolítica, “em torno da imagemdo novo regime, cuja finalidadeera atingir o imaginário popularpara recriá-lo dentro dos valoresrepublicanos” (Carvalho, 1990,p. 10). A construção de um ima-ginário é considerada

... parte integrante da legitimação dequalquer regime político. É por meiodo imaginário que se podem atingirnão só a cabeça, mas, de modo espe-cial, o coração, isto é, as aspirações,os medos e as esperanças de um povo.É nele que as sociedades definemsuas identidades e seus objetivos, de-finem seus inimigos, organizam seupassado, presente e futuro. O imagi-nário social é constituído e se expres-sa por ideologias e utopias, sem dú-vida, mas, também, por símbolos,alegorias, rituais, mitos. (Baczko,mimeo)

Para acionar o vetor cogniti-vo do imaginário, a nova capitaladministrativa de Minas repou-sará na matriz ordem e progres-so, projetada que foi segundo oscânones da ciência positiva, re-ferendada pelo emergente in-dustrialismo, que enfrenta pro-

blemas de mão-de-obra, dada aruptura do país com o trabalhoescravo. O desenho da cidadeapresentará uma forma ortogê-nica, com suas largas ruas e am-plas avenidas bordejando suaspraças e áreas centrais. Anosmais tarde, dirá o poeta CarlosDrummond de Andrade:

Por que ruas tão largas? / Por queruas tão retas? / Meu passo torto /foi regulado pelos becos tortos / deonde venho. / Não sei andar na vas-tidão simétrica / Implacável. / Cida-de grande é isso? (...) / Aqui tudo éexposto / evidente / Cintilante. Aqui/ obrigam-me a nascer de novo, de-sarmado. (Andrade, 1985, v. 2, p.781)

A sensibilidade do poetaapreende elementos de projeçãode interesses e aspirações dos di-rigentes. Esses elementos devemmenos transparecer aos gover-nados do que modelar visões demundo e orientar condutas, ma-nipulando sentimentos coletivosno ocultamento de forças sociaisatuantes na construção da cidade.

A cidade de Minasregistra sua memória

A moderna Belo Horizonte,nos primeiros anos Cidade deMinas, simboliza a República nautopia de uma nova ordem, ne-gando porém , em parte, suapromessa de liberdade e igual-dade, instituintes da cidadania.Isto porque conformará um es-

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paço social de desigualdade eexclusão, territorializado no pró-prio agenciamento topográficode sua construção. Por outro la-do, a nova capital, “filha primo-gênita da República”, configurauma força social capaz de evo-car em sua história a escuta vigi-lante dos ecos de poder do novoregime. A cidade, como sujeitohistórico, cunha o sentido detransformação, de mudança, deimplantação e, paradoxamente,corporifica a liberdade comocompromisso da atuação políti-ca do Estado de Minas Gerais.Como comprovação empírica,assinalamos o processo que en-volve a construção inicial da ci-dade.

Inovações urbanísticas, mo-dernas e avançadas da época se-rão aplicadas pela equipe do en-genheiro chefe da ComissãoConstrutora da Nova Capital,Aarão Reis, cuja passagem porParis é um ponto de inflexão, aose identificar tendências positi-vistas na elaboração do projeto.Mesmo no relatório de estudoprévio das localidades indicadaspara a nova capital, o técnico fa-la de sua neutralidade, “sem pre-dileções prévias (...) nem paixõesadquiridas”, agradecendo aoPresidente do Estado, AfonsoPenna, a confiança depositada

(Magalhães & Andrade, 1989, p.58). Também se refere “aos da-dos positivos” coletados, que di-recionam as indicações. A intro-dução de um médico sanitaristana equipe aponta para a nature-za higienizadora do empreendi-mento, exigência das modernascidades européias, no seu dese-jo de buscar ar e luz, “limpar” oque há de escuro e sujo (Santos,p. 33). Neste sentido, tambémhaverá um exorcismo sanitáriodas classes menos favorecidaspara fora dos espaços considera-dos nobres, dentro dos padrõesda cultura ocidental indus-trialista. O que torna menos vi-sível o espetáculo da desigualda-de, num novo mundo em quetodos são considerados “livres eiguais”.

A planta da cidade, quandoda decisão do local pelo antigovilarejo Curral d’El Rey, é o re-sultado de uma rígida trama or-togonal, baseada num círculo, deonde nascem avenidas que sedesdobram em acessos centraispara outras áreas. Essa via, emanel, fecha a cidade “nos moldesda composição circular da cida-de utópica platônica” (Maga-lhães & Andrade, 1989, p. 121).Trata-se de uma avenida de con-torno, denominada 17 de De-zembro, que separa a zona urba-

na da suburbana. Essa divisão foijustificada pela conveniente fa-cilidade na distribuição dos im-postos locais,10 servindo tambémpara a circulação de pessoas emercadorias. Na zona urbana,temos as atividades econômicase administrativas, ponto de par-tida para o povoamento. O cír-culo é forma de identificaçãoperfeita, com equilíbrio e harmo-nia das partes. Concentra suaforça a partir de um ponto cen-tral, comandando seus direcio-namentos legíveis de imediato;como referencial da cidade,identifica-se com a ordem do Es-tado e as ressonâncias do poder.A cidade pode se definir, entreoutras, pela ordem simbólica quea institui. Nessa ótica, nas socie-dades presididas pela lógica docapital, cabe ao planejador defi-nir lugares onde estarão os mo-numentos, os equipamentos, ascores, as luzes; enfim, a gêneseda ordem, capaz de orientar e co-mandar gestos, ações, sentimen-tos. O conteúdo classista de do-minação se ocultará na criaçãode representações e apelos cole-tivos. Porém, esse conteúdoemerge na periferia, através deuma linearidade sombria que seexpressa na pobreza dos sinais,não raro sinais do trabalho oulazer do trabalho, cuja natureza

10 Ofício n. 26 de 23 de março de 1895, Estado de Minas Gerais, Comissão Construtora da Nova Capital, Revista Geral dos Tra-balhos, Rio de Janeiro: H. Lombaerts, Rua dos Ourives, n. 7, 1895. O nome avenida 17 de Dezembro refere-se ao dia e ao anode 1893, quando foi promulgada a lei n. 3, adicional à Constituição, designando o lugar para a construção da capital mineira.Ver: Octávio Penna, Notas Cronológicas de Belo Horizonte, Belo Horizonte: 1950.

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impositiva prefigura o poder e aopressão.11

A planta da cidade foi apro-vada em 23 de abril de 1893, tra-çando na zona urbana, dentrodo círculo de contorno, 65 ruas,12 avenidas e 24 praças, e umaárea aproximada de 9 mil metrosquadrados em duas seções doterreno, para alojar 30 mil habi-tantes. Consideram-se a Praça daLiberdade, a Praça da Estação ea Praça Raul Soares de singularimportância no ordenamentosimbólico da estrutura urbana dacidade. A Praça da Estação, nasprimeiras décadas de vida da ci-dade, será palco privilegiado dostrabalhadores na sua resistênciaàs imposições do capital e parainterpelar o poder público (Fa-ria & Grossi, 1982). A Praça RaulSoares, situada em área residen-cial nobre, conservará ainda essaposição nos anos de 1950, sendoescolhida para receber, em suaproximidade, a construção doConjunto Habitacional JK, um“ícone simbólico” da moderni-dade e das perspectivas desen-volvimentistas do futuro presi-dente Juscelino Kubitschek. (Pi-mentel, 1993)

A Praça da Liberdade, consi-derada o espaço mais importan-te de uso público, era cunhadade Jardim do Palácio, por situar-

se à frente do Palácio da Liber-dade, projetado para residênciado Presidente do Estado. As pe-dras fundamentais desse palácioe de três secretarias são lançadasem 07/09/1896. Na Praça da Li-berdade, voltadas para o nascen-te, estão as secretarias de Finan-ças (hoje, Fazenda) e do Interior(hoje, Educação). Em frente à deFinanças, acompanhando o po-ente, situa-se a de Agricultura(atual Viação e Obras Públicas).A inauguração do Palácio se as-socia à da cidade em 12/12/1897.Um trabalho “de terraplanagemdeu origem à esplanada artifici-al onde se localizam a Praça daLiberdade e o centro administra-tivo do governo”.12 Era o lugarmais elevado da cidade, a acró-pole, ícone visível e ostentóriodo poder.

O conjunto arquitetônico daPraça da Liberdade, à moda deum cordão umbilical, se prendiaà Praça da República (hoje, Afon-so Arinos) pela Avenida da Liber-dade (atual João Pinheiro). A na-tureza unitária e geométrica des-se espaço, tramado pela moder-na racionalidade positivista daépoca, explicita o regime, legiti-mando o Estado de Minas que,por sua vez, se corporifica na Li-berdade. A ordem simbólica efe-tivará a síntese das instâncias po-

lítica e econômica, através da-quela topografia imaginária, cujaproposta parece extrapolar o vi-sível e imediato da proposta ur-banística. Passadas duas déca-das, o testemunho de Pedro Na-va lavra sua memória:

Àquela época, naquele início dosanos vinte, o governo de Minas davaa impressão de solidez babilônica.Seu símbolo era o palácio da Liber-dade todo de pedra e parecendo umaesfinge agachada no fundo da praça.Dali saíam o prêmio e o castigo. (...)O palácio, no fundo do duplo renquede palmeiras (...) Diminuí o passo,fui chegando perto, olhando a pedracinzenta que o pó de Minas ia to-mando. Olhando para cima, vi umbusto de mulher, soberbos seios degranito. Um capricho da luz moven-te do sol deu-me a impressão que elame olhava com olhos serenos e vazi-os. Era evidente que baixara paramim a pupila. Pareceu também quemexia os lábios. Falava. Ouvi distin-tamente: sou a República ou a Liber-dade, ou o símbolo que quiseremmas, como vês, estou cá de fora. Aídentro falam e agem os que dizemfazê-lo em meu nome. (Nava, 1976,p. 300, 341-342)

Para completar a alegoria, no-vamente o memorialista vem emnosso auxílio:

Continuei, vi que o terceiro andar(da Secretaria do Interior, hoje Edu-cação) recuava e que, sobre ele, bemao centro, havia uma meia cúpula(...) oca e pintada de azul, por den-tro. Servia de nicho para um bustoda República. Ora essa! Então ha-via dois desses ícones na praça? Obli-quei e fui verificar bem a do Palácio

11 A discussão dessas idéias pode ser encontrada em Corrêa, mimeo, p. 11. A respeito da tendência a que o povoamento sedesenvolva do centro para a periferia e o tratamento diferençado das zonas, consultar o Plano Geral da Nova Capital emBarreto, 1936, v. 2, p. 241-245.

12 Essas informações podem ser encontradas em Lana & Frota, mimeo, p. 3-5. Consultar também Albano, 1985.

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da Liberdade: coroada de raios comoa do porto de Nova York, aquela eraa liberdade. Eu a ouvira (...) e, ma-ravilhado com suas palavras, nãoatentara na sua coroa radiária e sim-bólica. (Nava, 1978, p. 29)

Marco referencial da Repúbli-ca emergente, qual o lugar da li-berdade? Sua origem na antigüi-dade clássica pagã (Magalhães &Andrade, 1989, p. 159), reporta aantigos mitos ligados à terra(gea, rea), representada por umbusto de mulher emergindo dosolo, divinizando-o. A figura daliberdade é feminina, maternal,vestindo uma túnica branca,símbolo da paz. Aparecem ain-da, em sua iconografia, cornosde abundância (fertilidade dosolo), guirlandas, coroa de lou-ros, ramos (imortalidade e gló-ria), palmas (vitória), águia, pi-ras, raios de sol, tochas de fogo,etc... Foi corporificada pela pri-meira vez pela imagem de Cibe-le, que protege a terra (fertilida-de) e a cidade, na Frígia. Lem-bramos com Nava que no fron-tão do Palácio Presidencial háum busto da liberdade, da mes-ma forma, um busto da Repúbli-ca, na cúpula de ferro da Secre-taria do Interior, atual Educação.Nesse último busto, juntou-seuma bandeira do Estado de Mi-nas Gerais, usada pelos inconfi-dentes, portando um verso deVirgílio: libertas quae sera tamem.

O conjunto arquitetônico daPraça da Liberdade, centro dopoder hegemônico do Estado,

não evoca a Acrópode grega, lu-gar dos deuses fundadores da ci-dade. Aqui, na Acrópole moder-na, estão os homens, tramandono campo da dominação nemsempre visível, alojados na or-dem simbólica que criam e recri-am, configurando uma topogra-fia imaginária com ressonânciasiconográficas. Convidada pelopoder, a Liberdade fica “cá de fo-ra do Palácio”. Na Praça? QueÁgora é esta que exclui o livre de-bate dos cidadãos, que na anti-güidade discutiam no espaço pú-blico e decidiam pelos interessesda coletividade? A quem caberárecolher, na Ágora da nova capi-tal, espaços livres de palavra e deação? Como tecer a história daLiberdade se, em sua ruptura napólis grega, não encontramosainda fragmentos lacunares? Co-mo criar novos laços com o pas-sado, se os fragmentos têm-semostrado invisíveis em seus des-locamentos? Onde estão os in-terlocutores evolucionistas paradiscutir a questão de reparos nostempos de ruptura?

Vimos que propostas arquite-tônicas e urbanísticas podem ser-vir a fins políticos, na medida emque são signos e, portanto, comsignificado sempre controladoideologicamente. O conceito deordem passa pela vigilância efreqüenta o controle. Sabemosque o panóptico de Bentham(Foucault, 1983, p. 173-199) tor-na o poder invisível mesmo

quando se é observado, produ-zindo um efeito perverso: unspassam a vigiar os outros, na in-certeza de estarem sendo vistos.Porém, a advertência de Fou-cault para impedir os efeitos daengrenagem panóptica será oexercício da liberdade. Indago:haverá possibilidade de habitaro espaço público da liberdade,fugindo ao panoptismo do po-der, que paradoxamente nos do-mestica com seus ícones de co-res e de luzes? Como ser o cida-dão da Praça, se a cidadania nanova República se restringe aovoto? (Melo, 1990) Como insti-tuir seus direitos manietados háséculos?

Muitas vezes, consideramos oplano do visível como uma pai-sagem neutra. No entanto, mo-vimentos acontecem: “Nele ecoa,se filtra, se reproduz, se duplica,se absorve a luz” (Magalhães &Andrade, 1989, p. 159), facilitan-do a visão ou não, que se sejaolhado ou não, independente-mente de controle da vontade.Segundo Foucault, através des-se fenômeno geram-se possibili-dades de se domesticar corpos eadestrar palavras, formando econformando aspirações coleti-vas. Assim, o jogo sensorial daluz reforça uma ordem simbóli-ca, podendo ser negada às vezes:na própria Praça da Liberdade,a circulação para lazer se fazia se-gundo critérios classistas, embo-ra não inscritos nas leis da jovem

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Yonne de Souza Grossi

República. A liberdade republi-cana pode contradizer seu dis-curso emancipatório, à medidaque não haja efetiva expressãode autonomia. Outra evidênciafaz voltar a discussão: nos rela-tórios dos prefeitos há queixassobre a necessidade de localizara população operária que edificaa cidade. O Prefeito BernardoPinto Monteiro, em 1902 “consi-derava ter ‘limpado’ o centro ur-bano quando afirmava ter remo-vido deste centro mais de 2.000pessoas que habitavam ‘cafuas’”.Uma nota de desafio surge emum jornal da liga operária:

Louvaríamos o ato do Sr. Prefeito seas cafuas fossem condenadas defini-tivamente, mas como (...) está se edi-ficando nova cidade de cafuas nãocompreendemos o motivo porquemanda-se desalojar os pobres operá-rios com grandes danos de seus in-teresses. Cafuas por cafuas podia dei-xar as que já estavam.13

Em 1912, o confronto da clas-se trabalhadora com o poder pú-blico se dará através da paralisa-ção do trabalho, gerando impas-ses que suscitam a mediação deoutras classes da sociedade paraefetivar negociações. (Faria &Grossi, 1982, p. 192, 195)

Nas primeiras décadas do sé-

culo 20 – tendo como marco dereferência o ano de 1922, quan-do se reconstrói o prédio da esta-ção ferroviária – a organizaçãodo espaço segue as regras do ur-banismo, que explicita a moder-nização e o progresso. Lembra-mos aqui a preocupação de Cas-tells (Castells, 1982, p. 3), quan-do mostra a necessidade de“uma teoria capaz de integrar aanálise do espaço com a das lu-tas sociais e dos processos políti-cos”. Pensamos também que oestudo da representação simbó-lica, aliado a questões instigadaspela prática social e política deindivíduos, grupos ou classes,talvez permita perceber a forma-ção de sujeitos individuais ou co-letivos, instituintes de sua pró-pria história, nos cenários da ci-dade que habitam, ou mesmopara além da realidade local.Nesse sentido, volta a imagemda Ágora, cuja natureza públicadefinia o lugar das mais diver-sas formas de interação, mes-clando pessoas e diversificandoatividades, traduzindo agora es-paços mortos na geografia dascidades; o que pode ser um in-dicador da erosão que foi sola-pando o equilíbrio entre a vida

pública e a vida privada, quemantinha a sociedade. (Sennett,1988)

A insustentável utopia da or-dem que sagrou o planejamen-to de Belo Horizonte pode serconsiderada uma tentativa de in-terdição do conflito social, inscri-ta na topografia e arquitetura dacidade. O renque de palmeirasda Praça da Liberdade, desem-bocando no palácio do mesmonome, lembra o antigo caminhode procissão egípcio, sacralizan-do o poder panóptico do Esta-do. Entretanto, esse pretensoequilíbrio entre harmonia dasformas e divisão física do espa-ço não apaga as diferenças, an-tagonismos e contradições natessitura de interesses sociais.Mas Riccardo Campa registraque “a cidade é uma utopia vi-va”. Assinala que “ela constituimuito mais uma categoria men-tal que uma realidade”; donde autopia “tem direito de cidada-nia”. Quem sabe a antiga comu-nidade de iguais, inauguradapela pólis grega, será capaz defecundar novas possibilidadesutópicas? Possibilidades estascentradas no respeito à diferença?

13 A interpelação ao Poder Público se fez via órgão de representação classista, o jornal O Operário, Belo Horizonte: 29 jul. 1900,n. 1, p. 1.

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Belo Horizonte: Qual pólis?

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Yonne de Souza Grossi

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Belo Horizonte: tempo, espaço e memória

BELO HORIZONTE: TEMPO,ESPAÇO E MEMÓRIA*

Lídia Avelar EstanislauDiretora de Memória e Patrimônio Cultural da SMC/PBH

RESUMO

A memória social e o patrimô-nio cultural tornaram-se, a partirda Constituição Federal de 1988,um serviço público municipal queem Belo Horizonte adquiriu visi-bilidade através da ação do Conse-lho Deliberativo do PatrimônioCultural do Município. Do pontode vista institucional, os critériosforam constitucionalmente ampli-ados para recolher as marcas queos diferentes grupos imprimem noterritório que ocupam. Não se tra-ta mais de cuidar apenas deste oudaquele monumento, nem deste oudaquele bem cultural excepcional.Trata-se de uma ação voltada paraa qualidade da vida urbana em seucotidiano. Tempo, espaço e memó-ria tecidos em relações que se ma-terializam na família, no trabalho,na devoção e na diversão. O patri-mônio cultural enquanto memóriavai do mais simples ao mais com-plexo artefato humano, da paisa-gem natural à paisagem cons-truída: geografia tornada história.

Adélia Prado, no poema Para o Zé, seumarido, assegurou: “O que a memó-ria ama fica eterno”. Milton Nasci-

mento e Fernando Brant, na voz inesquecívelde Elis Regina, revelaram: “Descobri que a mi-nha arma é o que a memória guarda dos tem-pos da Panair”. Aloísio Magalhães, criador daFundação Nacional Pró-Memória, extinta pelodesgoverno Collor, reconheceu: “A comunida-de é a melhor guardiã de seu patrimônio”. EcléaBosi defendeu a tese da memória-trabalho, con-siderando as lembranças dos velhos como subs-tância social da memória. Ao demonstrar a in-teração entre a memória pessoal, familiar e gru-pal, constituintes da memória social “naquela

fronteira em que se cruzam os modos de ser do indivíduo e da suacultura”, Ecléa Bosi, em seu belíssimo livro Memória e sociedade: lem-branças de velhos, enfatiza as muitas possibilidades de releitura, os vá-

* Seminário promovido pela Pró-reitoria de Extensão da PUC•Minas, 23 a 25 de abril de 1997, nas comemorações do centenáriode Belo Horizonte.

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Lídia Avelar Estanislau

rios pontos de vista, as versõesdo acontecido, com seus erros elapsos.

Na maior parte das vezes, lembrarnão é reviver, mas refazer, recons-truir, repensar, com idéias e imagensde hoje, as experiências do passado.A memória não é sonho, é trabalho.A lembrança é uma imagem cons-truída pelos materiais que estão ago-ra à nossa disposição, no conjuntode representações que povoam nossaconsciência atual. (...) O simples fatode lembrar o passado no presente,exclui a identidade entre as imagensde um e de outro, e propõe a sua di-ferença em termos de pontos de vis-ta. (...) Os livros de História que re-gistram esses fatos são também umponto de vista, uma versão do acon-tecido, não raro desmentidos por ou-tros livros com outros pontos de vis-ta. (Bosi, 1987)

A pesquisa da memória apóia-se na narração, que é uma for-ma artesanal de comunicação.Não se trata apenas da coleta dedados e informações, mesmoporque a informação é consu-mível, seu valor esgota-se no ins-tante seguinte de sua formula-ção. O excesso de informaçõeshoje disponíveis satura a fomede conhecer, mas sem a nutrir,porque não há o tempo neces-sário de assimilação. A narração,ao contrário, liga-se aos temposem que o tempo não contava, emque o artesão entalhava e escul-pia sem pressa.

Walter Benjamin relacionou aextinção da arte de narrar com osurgimento da informação, essanova forma de comunicação,que parece ter banido da vida

moderna a possibilidade de in-tercambiar experiências. “Quemviaja tem muito que contar” dizo povo, e com isso imagina o nar-rador como alguém que vem delonge. Mas também escutamoscom prazer o homem que ga-nhou honestamente sua vidasem sair de seu país e que conhe-ce suas histórias e tradições. Naobra de Walter Benjamin a riva-lidade histórica entre as diversasformas de comunicação é pro-blematizada na interação entrenarrativa, imaginação e experi-ência, que atrofiam no reinadoda informação. Refletindo sobreexperiência e pobreza, WalterBenjamin pergunta: “Qual o va-lor de todo nosso patrimôniocultural, se a experiência nãomais o vincula a nós?” E acres-centa que a vivência da guerra,da inflação, da fome e da cor-rupção – as mais terríveis expe-riências humanas – empobrecetoda a humanidade. Essa pobre-za de experiências fez com que,segundo Benjamin, uma depoisda outra fossem abandonadas aspeças do patrimônio humano,“empenhadas muitas vezes a umcentésimo de seu valor para re-cebermos em troca a moeda miú-da do atual”. A teoria benjami-niana da cultura, elaborada empleno nazi-fascismo, assinala odesaparecimento das condiçõespara a transmissão da experiên-cia na sociedade capitalista. As-sim, para Benjamin, a história

coletiva e a experiência individu-al vão se fundir na imagem dacidade e exigir um procedimen-to auto-reflexivo no qual estãopresentes emoção e risco. (Ben-jamin, 1987)

A memória é a mais épica de todasas faculdades, pois a narração, emseu aspecto sensível, não é de modoalgum o produto exclusivo da voz.A alma, o olho e a mão estão inscri-tos no mesmo campo. (...) Contar his-tórias sempre foi a arte de contá-lasde novo, e ela se perde quando as his-tórias não são conservadas. Ela seperde porque ninguém mais fia outece enquanto ouve a história. Nãose percebeu devidamente até agoraque a relação entre o ouvinte e onarrador é dominada pelo interesseem conservar o que foi narrado. (...)O saber que vinha de longe – do lon-ge espacial de terras estranhas, oudo longe temporal contido na tradi-ção – dispunha de uma autoridadeque era válida mesmo que não fossecontrolável pela experiência. Mas ainformação aspira a uma verificaçãoimediata. (...) É indispensável que ainformação seja plausível. (...) A nar-rativa, que durante tanto tempo flo-resceu num meio artesão – no cam-po, no mar, na cidade – é ela pró-pria, num certo sentido, uma formaartesanal de comunicação. Ela nãoestá interessada em transmitir o pu-ro em si da coisa narrada como umainformação ou um relatório. (Ben-jamin, 1987, v. 1)

Benjamin retoma a mesmaquestão em outro texto com aafirmação de que as modernastécnicas de reprodução disponi-bilizam a lembrança, ampliam amemória – qualquer aconteci-mento pode ser fixado a qual-quer momento em som, imageme movimento – mas ao mesmo

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Belo Horizonte: tempo, espaço e memória

1 Praça da Liberdade, Avenida João Pinheiro e adjacências; Praça da Boa Viagem e adjacências, Praça Rui Barbosa e adjacências,Praça Hugo Werneck e adjacências, Praça Floriano Peixoto e adjacências, Rua da Bahia e adjacências, Rua Caetés e adjacências,Avenida Afonso Pena e adjacências, Avenida Álvares Cabral e adjacências, Avenidas Carandaí, Alfredo Balena e adjacências.

tempo reduzem o âmbito daimaginação, atrofiam a experiên-cia.

Na substituição da antiga forma nar-rativa pela informação, e da infor-mação pela sensação, reflete-se aatrofia da experiência. Todas essasformas, por sua vez, se distinguemda narração, que é uma das mais an-tigas formas de comunicação. A nar-ração não tem a pretensão de trans-mitir um acontecimento pura e sim-plesmente (como a informação o faz),mas integra-o à vida do narrador, pa-ra passá-lo aos ouvintes como expe-riência. (...) Os princípios da infor-mação jornalística (novidade, conci-são, inteligibilidade e, sobretudo, fal-ta de conexão entre uma notícia e ou-tra), do mesmo modo que a pagina-ção e o estilo lingüístico constituemum dos muitos indícios da exclusãoda informação do âmbito da experi-ência. (Benjamin, 1987, v. 2)

Na Capital do Século, já emcontagem regressiva para o pri-meiro centenário, a memória so-cial vem sendo identificada e do-cumentada com a intenção decomunicar experiências. E issopode parecer um trabalho ana-crônico nesses tempos de bites,sites e nets, quando tudo é infor-mação e as experiências parecemter deixado de ser comunicáveis.Desde 1990, Belo Horizonte con-ta com um patrimônio culturalprotegido por tombamento mu-nicipal. Da Serra do Curral, tom-bada pelo Conselho Deliberativodo Patrimônio Cultural do Mu-

nicípio em 1991, ao Conjunto Ur-bano Bairro Floresta, tombadopelo mesmo Conselho em 1996,passando pelo tombamento daIrmandade de Nossa Senhora doRosário do Jatobá e do Ilê WopoOlojukan (o mais antigo terreirode candomblé da cidade), peloConjunto Arquitetônico do Cor-po de Bombeiros, pelo caminhode árvores em frente ao HortoFlorestal (além de outras espéci-es na malha urbana, como o pau-brasil, a copaíba, o jequitibá e apaineira, todas mais que cente-nárias). No caso do Bairro Flo-resta, boa parte dos proprietári-os de bens culturais recusaram aproteção através de tombamen-to. Mas alguns outros sentiram-se honrados com o fato de suaspropriedades passarem a figurarna relação dos bens culturais queconstituem o patrimônio da ci-dade. Com o tombamento doConjunto Urbano Bairro Flores-ta, o Conselho Deliberativo doPatrimônio Cultural do Municí-pio, a PBH, a AMAFLOR (Asso-ciação de Amigos e Moradoresda Floresta) e os demais mora-dores assumiram o compromis-so de se empenharem na reabili-tação urbana do lugar. Como osdemais conjuntos urbanos tom-bados em 1994,1 a Floresta temdiretrizes de proteção enquanto

lugar da memória. O espaço tor-na-se lugar porque nele deixa-mos nossas marcas.

A memória topográfica não visa areconstrução dos espaços pelos espa-ços, mas estes são pontos de referên-cia para captar experiências espiri-tuais e sociais. (...) Lugares e objetosenquanto sinais topográficos tor-nam-se vasos recipientes de uma his-tória da percepção, da sensibilidade,da formação das emoções. (...) Os ob-jetos são de algum modo os guardiõesda memória. Mas não apenas os ob-jetos. A caixa de lembranças por ex-celência é o próprio corpo, a expres-são mais intensa de memória topo-gráfica. (...) Num tempo de destrui-ção, o sujeito consegue, pelo traba-lho da memória, encontrar nas ca-madas mais profundas uma imagemde sua identidade. Indestrutível. Issonão é pouco em termos de perspecti-va de futuro. (Bolle, 1994)

A teoria benjaminiana da me-mória fundamenta o registro co-mo comunicação entre as suces-sivas gerações. O registro desons e imagens permite identifi-car, documentar, proteger e pro-mover referências culturais dopovo belo-horizontino. A me-mória social, em sua diferença epluralidade, necessita de marcosfísicos que lhe respaldem o tes-temunho: os bens culturais, mó-veis, imóveis e integrados pro-tegidos por tombamento. As for-mas de ocupação do territórionão apenas como monumentos,mas os espaços enquanto docu-

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Lídia Avelar Estanislau

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mentos de processos econômi-cos, sociais, políticos e culturaisregistrados no parcelamento dosolo, no traçado dos caminhos,na ilustração de ruas, praças eavenidas, nos muros, jardins equintais, nas edificações – seja deque idade ou estilo forem – emsíntese, na teia de relações tecidano dia-a-dia de moradores e vi-sitantes. Relações que se materia-lizam na família, no trabalho, nadevoção e na diversão. Relaçõesentre o indivíduo e a sociedade,laços entre a cidade e os que nela

vivem. A palavra falada e escri-ta, textos e contextos da memó-ria ao mesmo tempo afetiva e crí-tica, cuja síntese material e sim-bólica constitui o patrimônio cul-tural de Belo Horizonte.

Lidar com a cultura em tempos de-mocráticos demanda flexibilidade nopensamento e na ação porque a polí-tica institucional tem que estar emsintonia com os movimentos sociais.A cultura, como a memória, consti-tui-se na criação de direitos semprerenovados que emergem do processodemocrático: o direito das mulheres,dos negros, dos meninos de rua, dos

sem terra, dos sem teto, dos índios,dos homossexuais, dos trabalhadores,dos aposentados ... uma listagem quese amplia em correlação direta coma democracia, cuja característica é aprodução incessante de novos sujei-tos políticos em luta pela cidadania.(Estanislau, 1993)

Para concluir cito, uma vezmais, Walter Benjamin que, emsuas teses sobre o conceito dahistória, ressaltou:

Nunca houve um monumento dacultura que não fosse também ummonumento da barbárie.

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As ruas e as cidades

AS RUAS E AS CIDADES

Anny Jackeline Torres SilveiraPUC•Minas

RESUMO

O texto propõe uma análise dacidade de Belo Horizonte com baseem poema de Carlos Drummond deAndrade, problematizando as no-ções de modernidade e poder ela-boradas por Walter Benjamin eMichel Foucault. Busca discutir odiscurso de ordenação social queperpassa o planejamento do espaçourbano e a resistência a ele contra-posta pela população.

Por que ruas tão largas?Por que ruas tão retas?Meu passo tortofoi regulado pelos becos tortosde onde venho.Não sei andar na vastidão simétricaimplacável.Cidade grande é isso?Cidades são passagens sinuosasde esconde-escondeem que as casas aparecem-desaparecemquando bem entendeme todo mundo acha normal.Aqui tudo é expostoevidentecintilante. Aquiobrigam-me a nascer de novo, desarmado.(“Ruas”. Carlos Drummond de Andrade, 1979)

Osentimento do poeta, desarmadodiante da vastidão da cidade, inscre-ve-se entre as muitas imagens cons-

truídas de Belo Horizonte. E não apenas dela,mas também de boa parte daqueles que viveme/ou escrevem a respeito das cidades moder-nas e, em especial, das cidades planejadas. Ima-

gens que remetem a um espaço ordenado e insípido – onde, parece,nada pode se fixar, a não ser o discurso daqueles que a conceberam.

A construção da capital mineira obedeceu a um pensamento que,em fins do século XIX, buscava estabelecer a melhor forma de se traçaruma cidade. Fundado em preceitos técnicos, esse pensamento se justi-ficava pelas questões de salubridade, funcionalidade, eficiência,

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Anny Jackeline Torres Silveira

disciplinarização e racionalidadeno uso, constituição e expansãodo espaço urbano. Um pensa-mento que pode ser tomado en-quanto expressão da imposiçãodo discurso da ciência tambémao campo do estudo e do plane-jamento das cidades.1

Ruas largas e retas que se dis-punham, como assinala o poeta,numa “vastidão simétrica”. Vas-tidão que devia se tornar aindamais incomensurável em vistado pequeno número de constru-ções e pessoas que ocupavam oespaço da cidade, nas duas dé-cadas iniciais deste século. Retasque miravam o infinito, numaBelo Horizonte ainda de dois an-dares. Vastidão que oprime, pelaimponência e pela insignificân-cia que se lhe contrapõem.

Uma simetria “implacável”,que ordenava e dirigia os passosdos transeuntes, que dava visibi-lidade a tudo e a todos, furtan-do ao homem, e à própria cida-de, a possibilidade de dissimu-lação, de manter segredos, desubtrair-se aos olhos dos outros.Simetria que não oferece dúvi-das, onde tudo se compreendede pronto, de modo claro, mani-festo.

Essa imagem da capital mi-

neira, apresentada por Drum-mond, aponta para uma formade abordagem e caracterizaçãobastante freqüentes da históriade Belo Horizonte. O planeja-mento da cidade é visto comoelemento que parece retirar aosseus habitantes toda e qualquerpossibilidade de escolha e de au-todeterminação. A racionalidadeimposta ao traçado e ao uso doespaço urbano como que confor-ma a vida dos homens que nelese instalam, dando, assim, lugara uma cidade dominadora e au-toritária.

Essa é uma abordagem que serepete em boa parte das pesqui-sas dedicadas ao exame da cons-trução ou das intervenções quese processaram em outras váriascidades, no país e no exterior. Osestudos que envolvem a histó-ria e o planejamento do espaçourbano estão voltados, muitasvezes, para a questão de comoessa construção ou, em outroscasos, de como as intervençõesoperadas em áreas específicas dotecido urbano podem ser pensa-das como veículos e instrumen-tos de um discurso de poder.

Nesse sentido, tais estudosbuscam analisar as conotaçõespolítico-ideológicas que perpas-

sam os projetos de constituiçãoou de reformulação dos espaçosdas cidades. Essas conotaçõespodem ser percebidas através damaneira como as propostas dosplanejadores interferem nos há-bitos e nas relações estabelecidaspelos indivíduos; da forma comoessas propostas disciplinam epoliciam seus comportamentos;ou ainda, do modo como essesprojetos podem – através deuma “pré-escrita” do desenhoque conforma a cidade, do tipode ordenação e de ocupação quedevem ser estabelecidas na áreaurbana – “prescrever” e “pros-crever”2 as mais diversas cama-das da população, a ocupação eo uso desses espaços.

A elaboração dessas análisesacabou concorrendo para a recu-peração e aprofundamento detodo um debate que, desde me-ados do século XIX, marcou odiscurso dos reformadores soci-ais e dos pensadores dedicadosao estudo da cidade. Debate quedaria origem a dois discursos e,por conseguinte, dois modelosfundadores do urbanismo.3

Esses estudos, além de con-tribuírem para repensar e ques-tionar o sentido daquelas inter-venções na vida dos homens,

1 Isto significa perceber a instituição desse “pensar racional” a respeito da cidade no movimento mais amplo e no êxito que umdiscurso científico positivo alcançou na segunda metade do século XIX.

2 A relação entre a “pré-escrita”, a “prescrição” e a “proscrição” que perpassam o espaço planejado da capital mineira foiproposta pelo professor Michel Le Ven, em mesa-redonda sobre Belo Horizonte realizada pelo Departamento de História daPUC•Minas em abril de 1997. Para outros detalhes sobre a abordagem e as análises por ele realizadas da cidade, consultar LEVEN, 1977 e LE VEN e NEVES, 1996.

3 Ver Françoise CHOAY, “História e o método em urbanismo”. In: BRESCIANI, 1993. E também CHOAY, 1979.

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As ruas e as cidades

também ajudam a recuperar esugerir formas de adaptação ereação da população a essastransformações – poderíamos di-zer, “leituras” e “releituras” (oumesmo, “correções”) que a po-pulação efetuou na “pré-escrita”urbana.

Outro tipo de abordagem queoferece elementos importantespara análises sobre a cidade éaquela que diz respeito ao temada modernidade. Nesse campo,a leitura da obra do filósofo Wal-ter Benjamin se tornou funda-mental.4 Seu trabalho está vol-tado para a discussão da expe-riência humana na época moder-na, no espaço da cidade. Na vi-são do autor, a cidade modernase torna um lugar que revela, ouno qual é possível acompanharas mesmas transformações quea época moderna introduziu nocampo do trabalho: o domínioda racionalidade, da calculabili-dade, da repetição; um reino deordem, de uniformidade.

Assim como no âmbito do tra-balho o homem perde o conhe-cimento das várias fases do pro-cesso de produção,5 a experiên-cia urbana também parece fugira qualquer possibilidade de do-mínio do indivíduo. A cidade

moderna é o lugar da massa, damultidão indiferenciada. E é elaque determina e dirige o seu des-locamento. Os espaços pelosquais essa massa transita pare-cem destituídos de qualquer per-sonalidade, de qualquer signifi-cado. Incapazes de deixar ante-ver, de revelar, e, também, de fi-xar uma experiência vivida – e,especialmente, diferenciada – es-ses espaços acabam por se trans-formar em lugares nos quais ohomem, em grande medida, aca-ba não conseguindo se reconhe-cer.

O espaço da cidade pode,muitas vezes, ser pensado comoespaço privilegiado para o auto-reconhecimento sociocultural,no qual diferentes sujeitos vivemexperiências partilhadas e, a par-tir dela, edificam sua(s) memó-ria(s). É a partir dessa experiên-cia, e da memória sobre ela cons-truída, que se torna possível atri-buir identidade(s) ao espaço. Es-sa identidade é criada a partir deum investimento sentimental, is-to é, da atribuição de determina-dos significados ao espaço – ele-mentos capazes de lhe conferirpersonalidade, de o individuali-zar.

Se no discurso da modernida-

de o caráter homogêneo da mul-tidão é uma ameaça à identida-de do sujeito, a padronização doespaço urbano adquire o mesmosentido. A geometria uniformi-za, torna tudo igual, equivalen-te, intercambiável, ela esvazia oespaço de referências, de conteú-do.

Exemplo desse “esvaziamen-to” promovido através de inter-venções no espaço urbano é da-do por Walter Benjamin, nas pas-sagens em que analisa a Paris dopoeta Baudelaire – desfiguradapela urbanização haussmaniana:a cidade dos “boulevards”, dasavenidas largas, retilíneas, bur-guesas, cartesianas. Linha retaque têm, segundo Benjamin, osentido de:

criar um espaço uniforme, homogê-neo, controlável, para prevenir os mo-vimentos sociais, o levantamento dasbarricadas que já haviam ameaçado opoder do capital nas revoluções operá-rias de 1830 e 1848. (MATOS, 1995,p. 75)

A racionalidade que informaa reforma parisiense busca ex-purgar do cenário da cidade orosto da desordem, da revolta,do incontrolável. Ela apaga doespaço os signos capazes de in-corporar e de manter viva na

4 Existem diversos autores que analisam a obra de W. Benjamin nessa perspectiva. Citamos aqui MATOS (1995) e BOLLE(1994).

5 Conforme aponta Olgária MATOS (1995), a nova ordem instaurada pela produção capitalista no mundo moderno inauguraa noção “do trabalho abstrato que liberta o trabalhador não do trabalho propriamente dito, mas do seu conteúdo. De onde aperda da experiência como perda da memória.” (p. 74). Uma idéia fundamental contida nessa passagem, e que será explora-da adiante, é a da experiência como instrumento de poder, o conhecimento como elemento capaz de dar ao homem compe-tência para julgar, escolher e agir criticamente, de fazer do homem um sujeito da história.

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memória a experiência dos indi-víduos, sua identidade enquan-to sujeitos sociais. Isto é, supri-me a capacidade de esse espaçourbano incorporar “referênciasindividuais e coletivas”.

É uma racionalidade que aca-ba por liquidar tudo o que é qua-litativo e heterogêneo. Por isso,a integração do indivíduo navida da grande metrópole é pen-sada como “amnésia social”, es-quecimento do passado, querdizer: perda do seu reconheci-mento como ator em meio aocenário urbano, ou, como apon-ta Matos (1995, p. 74): “perda eimpossibilidade da experiência,isto é, da individualidade”.

Essas imagens e análises deW. Benjamin a respeito da cida-de moderna – lugar do anonima-to, do padronizado, da “amné-sia”, do vazio – são como que tra-duzidas no sentimento expressopor Drummond diante das ruasbelo-horizontinas, nas primeirasdécadas deste século. Ele se dizdesarmado diante da cidade.Não vê nenhum lugar conheci-do, ou que possa ser lido atravésde sua experiência anterior de ci-dade – Itabira, terra natal. Elenão reconhece nenhum referen-cial que possa guiar seus passos

pela simetria que impera nessasruas. Eles desconhecem os cami-nhos dessa cidade. Estão acostu-mados, pela experiência, a andar“de través”, obliquamente.

As ruas da cidade são inexorá-veis com seus habitantes, surdasaos rogos do poeta que afirmanão saber andar por sua vasti-dão. Sua geometria como quedetermina o itinerário – neces-sário –, impõe as possibilidadesde exploração do espaço. Elas di-rigem a multidão, ordenam oseu sentido, assim como na me-trópole benjaminiana. Ruas quea tudo expõem, elas como quevigiam as experiências e vivên-cias que a cidade pode ofereceraos homens que ocupam e tran-sitam por seu espaço. Nada “pa-rece” ser capaz de se lhe furtaràs vistas.

Essa imagem adquirida pelametrópole moderna põe em focouma outra questão bastante ex-plorada no estudo das cidades:a questão do poder – comumen-te analisada sob a ótica desenvol-vida pelo filósofo Michel Fou-cault.6 Segundo Roberto Macha-do (1995), o poder em Foucaulté considerado uma propriedade,“que funciona como ... uma má-quina social que não está situa-

da em lugar privilegiado ou ex-clusivo, mas se dissemina por to-da a estrutura social”.7 O podernão é, assim, um objeto, masuma relação, ou feixe de rela-ções. Algo que só se estabeleceno interior das relações entre oshomens.

Seguindo essas proposiçõeselaboradas por Foucault, diver-sos trabalhos têm sido dedicadosao exame do poder que perpas-sa, além das relações estabeleci-das pelos habitantes das cidades,a própria geografia do seu espa-ço. É nesse sentido que o espaçosurge enquanto lugar de exercí-cio e visibilidade das relações depoder.

Quando se pensa esse espa-ço enquanto elemento funda-mental em qualquer forma de vi-da comunitária, ou lugar por ex-celência no qual se estabeleceboa parte das relações entre osindivíduos, determinar como aspessoas irão ou deverão usá-lo,vigiar esse uso e comportamen-tos, e, mais que isso, interiorizarem cada uma delas o domínio,no sentido de se fazer vigiar,8 sãoexemplos de como o poder atra-vessa e se inscreve no espaço dacidade.

Conforme aponta Machado

6 Em especial, é possível citar as análises elaboradas por Foucault em : Vigiar e punir: história da violência nas prisões (1991)e Microfísica do poder (1995) .

7 Citado em “Introdução” (XVI), In: Foucault, 1995.8 É importante considerar também o papel que os próprios indivíduos (em especial as chamadas minorias, ou dominados)

desempenham no exercício do poder, a forma como participam e contribuem para a reafirmação do poder, através de ações,comportamentos, valores, etc. Nessa perspectiva, Machado (1995) faz uma referência ao “olhar invisível ... que deve impreg-nar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem olha” (XVIII).

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(1995), interessa ao poder “gerira vida dos homens, controlá-losem suas ações” (XVI). É nessesentido que os debates em tor-no das cidades projetadas incor-poram a análise e reafirmam aimagem do espaço planejado co-mo locus do poder. Os discursostécnicos que informam e justifi-cam esse planejamento – a higie-ne, a circulação, o desenvolvi-mento – são também discursosde poder.

A idéia do gerenciamento econtrole das experiências doshomens guarda relação estreitacom a possibilidade de abarcá-las através do olhar. Esse é umaspecto importante na aborda-gem do poder elaborada porFoucault. Em sua análise sobreo Panoptico de Benthan – prisão,sanatório, hospital –, ele apontao fato de que a idéia que estru-tura esse “edifício emblemático”pressupõe e faz funcionar

o projeto de uma visibilidade intei-ramente organizada em torno de umolhar dominador e vigilante, ... umpoder que se exerce por transparên-cias e não tolera zonas de obscurida-de. (Morais, 1995, p. 24)

É esse mesmo projeto queperpassa as ruas haussmanianasde Benjamin, assim como a vas-tidão simétrica de Drummond.Se no discurso do planejamento

o reto pode significar melhor,porque racionalmente estabele-cido (e, por isso mesmo, verdadei-ramente o melhor), ele tambémpode significar, e em grande me-dida significa, ordem, isto é, con-trole. As ruas sinuosas, tortas,podem ser pensadas, ao contrá-rio, como significando engano,algo errado – uma vez que nãoseriam fruto de tal “pensamen-to racional”.

É diante desse espaço – des-conhecido9 – que a tudo dominaque Drummond se sente desar-mado, quase como impotente.Espaço onde tudo é exposto, tu-do é evidente. Essa visibilidadeé, em Foucault, um dos elemen-tos fundamentais para a garan-tia do exercício do poder. Ela ofe-rece condições para a prática deuma vigilância que penetra to-dos os lugares. Na cidade dasruas largas parece não haver lu-gar para a indiscrição.

Mas a abordagem foucaul-tiana também aponta que o po-der “é luta, afrontamento, rela-ção de força, situação estratégi-ca” (Machado, 1995, XV). Isto sig-nifica que o poder não é uma for-ça unilateral, existe sempre algoque lhe é contraposto, algo queresiste. Benjamin também apon-ta a possibilidade de fugir ao ho-

mogêneo, à universalidade daépoca moderna. O mesmo se de-ve ter em mente no estudo dacidade, especialmente daquelasonde parte ou todo o espaço foiobjeto de um planejamento.Suas “pré-escrições” não são algoque se impõe e persiste sem con-tradições, sem resistências.

Em seus escritos, Walter Ben-jamin opõe a imagem raciona-lista e abstrata da metrópole dostempos modernos à cidade dainfância:

À cidade do absolutamente visível ...se contrapõe a cidade infantil e ale-górica, a cidade labiríntica com aqual a criança estabelece pactos se-cretos. É a cidade com suas múlti-plas possibilidades: intersecções, pas-sagens, desvios, becos-sem-saída,ruas-de-mão-única que constituemos espaços de autonomia. Há uma lin-guagem secreta habitando esses luga-res fugidios ... (Matos, 1995, p. 80)

Em Benjamin, a cidade da in-fância representa a possibilida-de de fugir ao padrão que impe-ra no mundo moderno. Essa fu-ga decorre da possibilidade de serecobrar a memória, recobrar aexperiência vivida. A criançaaqui é o símbolo do desejo, ca-paz de burlar a norma. É tam-bém símbolo do sujeito que ins-creve identidade aos lugares dacidade, que individualiza seusespaços e, assim, é capaz de re-

9 O poema faz referência aos primeiros anos da cidade, quando Drummond se transfere para um colégio em Belo Horizonte.Esse aspecto aponta para o fato de a cidade ser a esse tempo ainda “desconhecida” pelo poeta. Se saber e poder são noçõesque se inter-relacionam, esse “desconhecimento” é peça fundamental na explicação do sentimento que o invade diante dacidade. Também é possível identificar e explicar essa passagem a partir da noção de amnésia social, proposta por Walter Ben-jamin.

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cuperar a sua autonomia. Nessacidade infantil é possível criartopografias particulares, que seesquivam de toda tentativa dedomínio, de ordenação segundoum modelo único.

A cidade que Drummondcontrapõe à nova capital de Mi-nas não difere muito da cidadeda infância apresentada porBenjamin. É uma cidade feita deruas e becos tortos, que seus pas-sos, no decorrer dos anos e des-de a sua infância, aprenderam aconhecer e, por isso, conseguiamguiar-se sozinhos.10 Ruas e becosque nunca deixavam tudo àmostra, ao exame do olhar inqui-ridor. Uma cidade capaz de guar-dar segredos.

As cidades do poeta são “pas-sagens sinuosas” que permitema existência dos “malasartes”.Passagens pelas quais a vidatranscorre sem dar satisfações.Um espaço sinuoso que guardalugares individualizados. Nelese pode brincar de “esconde-es-conde”, tanto as crianças comoos adultos. Essas cidades são, as-sim, o oposto daquilo que pres-creve o discurso do moderno.

Essas possibilidades de burlatambém se fazem presentes pormais moderna e racionalmenteprojetada possa ser uma cidade.Ainda que um planejamentopossa “prescrever” e “proscre-

ver” espaços, comportamentos egrupos sociais, ele não institui,por si só, uma cidade. O planopode ser pensado como uma“mensagem inaugural”, uma es-crita antecipada que busca defi-nir usos e sentidos, mas não é “a”cidade. Esta é feita pelas experi-ências, pelas relações e vivênciasde seus habitantes. Isso significadizer que a cidade só existe comoespaço ocupado.

A ocupação de uma cidaderepresenta uma possibilidade depromover reordenações no es-paço e nos significados que lheforam impressos. Através dela osmoradores criam novos lugares,novas identidades que fogem àsdeterminações do modelo. Se oplanejamento urbano pode sertomado como um discurso depoder sobre o espaço, é precisopensar que os homens que ocu-pam esse espaço também cons-troem seus próprios planos (quenão deixam de ser discursos quebuscam se apoderar desse mes-mo espaço).

Os habitantes de uma cidadeplanejada não são apenas paci-entes de um discurso de poder.Afinal, como se depreende daanálise elaborada por Foucault,o poder não pertence a ninguémenquanto multiplicidade de re-lações de forças. A própria resis-tência é também, em si, uma for-

ma de poder, ou elemento cons-tituinte do poder:

a partir do momento em que há umarelação de poder, há uma possibilida-de de resistência. Jamais somos apri-sionados pelo poder: podemos sem-pre modificar sua dominação em con-dições determinadas e segundo umaestratégia precisa. (Foucault, 1995,p. 241)

Ao mesmo tempo em que oshomens se submetem, incorpo-ram e reproduzem alguns dosdiscursos que constituem essascidades “modernas”, eles tam-bém se apropriam de determina-dos lugares, imprimindo-lhessignificados e identidades parti-culares. Ocupar pode significaraceitar e reproduzir, mas tam-bém insurgir, rebelar, recalcitrar.Enquanto sujeitos, os homensultrapassam “o limiar da purarepetição”.11

Mesmo que se mostre apa-rentemente desarmado, o poetaconseguirá acostumar seus pas-sos àquelas ruas largas, traçan-do uma outra geografia por cimadaquela inscrita pelo discurso doplanejamento. Poucos anos maistarde, com os amigos da chama-da “geração modernista”, ele sedivertia atravessando os arcos doviaduto de Santa Tereza, mostran-do que os homens também fazemseus caminhos, a despeito dos queparecem inexoravelmente dados,definidos de antemão.

10 Saber significa conhecer, dominar, ter controle da experiência. Como bem nos mostra Foucault, saber também é poder.11 Marca característica do mundo moderno, amnésia. Ver Matos, 1995, p. 85.

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10. MATOS, Olgária C. F. Os arcanos do inteiramente outro: a Escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.

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Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

A RECUPERAÇÃO DA LAGOINHADENTRO DE UMA NOVA

CONCEPÇÃO DE POLÍTICA URBANA

Heloisa Guaracy MachadoDepartamento de História – PUC•Minas

Maria de Lourdes Dolabela L. PereiraDepartamento de Sociologia – UFMG

RESUMO

O texto trata de um estudo decaso – o bairro da Lagoinha, emBelo Horizonte – a partir de umaperspectiva interdisciplinar, envol-vendo a história, a sociologia e aarquitetura, e de uma análise microe macroestrutural da região. Atra-vés do estudo sobre a recuperaçãodo espaço físico, social e histórico-cultural da Lagoinha, pretendemospromover a rediscussão teórica so-bre as práticas de intervenção ur-bana. Isto inclui novas posturas enovas formas de preservação dopatrimônio edificado, associadas auma significação dada pela própriacoletividade, isto é, levando em con-ta a identidade cultural e a quali-dade de vida da população, o que,em suma, incide diretamente sobrea questão da cidadania, e expressa,de forma mais coerente, a experi-ência coletiva.

Este texto constitui a versão sintetizadade um estudo sobre o bairro da Lagoi-nha, concebido como a primeira etapa

de uma pesquisa de maior amplitude, denomi-nada Projeto Belo Horizonte: bairros antigos,uma nova realidade,1 que incluía, na sua faseinicial, Santa Tereza, Floresta, Calafate, Prado,Carlos Prates e Barro Preto.

O interesse por tal projeto se deve a umasérie de razões, a começar pela sua referênciaaos bairros tradicionais da cidade, que datamde sua criação e ocupam um papel específicodentro do traçado urbano de seu planejado as-

sentamento populacional. Por outro lado, eles representaram e repre-sentam ainda um importante papel na história de Belo Horizonte: cada

1 MACHADO, Heloisa G., PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Projeto Belo Horizonte: bairros antigos, uma nova realida-de – Módulo I: A Lagoinha no contexto urbano da cidade. (monografia). Financiado pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP)da PUC•Minas. Belo Horizonte: PUC•Minas, 1991.

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

um deles constitui, na relação deseus habitantes, uma cultura pe-culiar, uma tradição, um folclo-re, um modus vivendi, presenteno imaginário coletivo. Assim, apopulação identifica, por exem-plo, a arte (a música e a poesia)com os moradores de Santa Te-reza ou Floresta, e a boemia ouo comércio de móveis antigoscom a Lagoinha. Além disso, es-ses bairros foram palco de umasérie de transformações, sobre-tudo as introduzidas pelas inter-venções viárias que, ali executa-das sem o devido planejamen-to, terminaram por desfigurar,em grande medida, o seu patri-mônio físico e cultural.

A nossa pesquisa nasceu, porconseguinte, da motivação em seestudar os bairros antigos de Be-lo Horizonte, num momento emque eram ainda incipientes os es-tudos a esse respeito. Efetiva-mente, as edições encontradassobre o trajeto histórico da cida-de se referiam, comumente, àsquestões de ordem mais geral.Quando elas envolviam áreasmais específicas, o seu enfoquerecaía, quase sempre, nas regiõesprivilegiadas, ocupadas pelascamadas de maior poder aquisi-tivo, como os bairros chamadosclasse A – por exemplo, Lourdese Funcionários. E, ainda, nos es-paços e prédios estética ou co-mercialmente mais valorizados,como a Savassi, a Praça e o Palá-cio da Liberdade, o Automóvel

Clube, o Parque Municipal. Pau-latinamente surgiram publica-ções cunho acadêmico, princi-palmente, sobre os bairros maispopulares e sobre o centro, par-te em resposta à iniciativa daprefeitura local de estimular epremiar obras efetuadas nessesentido.

Assim, a execução de um pro-jeto desse tipo teve como um dosseus objetivos colaborar comuma tendência muito produtiva,e hoje já bastante difundida: ade se imprimir um novo texto so-bre a cidade através da incorpo-ração de algumas áreas antes ne-gligenciadas ou mesmo ignora-das pela documentação oficial,procurando abrir o leque dos de-bates sobre a importância da re-cuperação de vários monumen-tos representativos para o con-junto da população. Isto signifi-ca, em outras palavras, a tentati-va do resgate de uma memórianão linear e não elitista do muni-cípio, em direção a uma memó-ria mais abrangente e condizen-te com as contradições que en-volvem o avanço desordenadodas metrópoles ocidentais nospaíses do chamado “TerceiroMundo”.

Basicamente, procuramosapresentar uma nova perspecti-va teórica de análise das situa-ções urbanas, utilizando umaabordagem simultaneamentemicro e macroestrutural, o queenvolve um duplo ponto de vis-

ta: de um lado, a apreensão doaspecto intrínseco ao bairro, desuas características e formas deinteração; de outro, a inserção dobairro no contexto da cidade co-mo um todo. As mediações en-tre eles se fazem ao longo da di-nâmica urbana de Belo Hori-zonte. Alguns autores já introdu-ziram iniciativas nesse sentido,com destaque para os adeptos dachamada “Nova História”, querefutaram o imperialismo deuma visão economicista das re-lações sociais, afirmando que ahistória dos homens reivindicaoutras formas de problematiza-ção da realidade, novos objetosde investigação e novas formasde abordagem – como a interdis-ciplinaridade.

Assim, a aproximação entre ahistória, a sociologia e a arquite-tura é, a nosso ver, fundamentalpara a apreensão do nosso obje-to de trabalho – a Lagoinha – emtoda a sua complexidade. À so-ciologia cabem a delimitação e aanálise das relações contempo-râneas, tanto no âmbito do bair-ro per si ( a infra-estrutura, as re-lações sociais e comerciais, as al-terações físicas, nos hábitos e noscostumes), quanto nas relaçõesbairro/cidade. À pesquisa histó-rica cabem traçar a trajetória e astransformações daquela forma-ção social, nos vários aspectos dovivido e da memória local, auxi-liando o entendimento das situa-ções experimentadas pelo bair-

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Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

ro no dia-a-dia. À arquiteturacabem o levantamento das edifi-cações de maior significação his-tórica, arquitetônica e artística,bem como o estudo da evoluçãourbana do bairro. Tendo a histó-ria e a participação dos morado-res como referência, é possívelfazer do urbanismo um meio deconstrução e de manutenção daidentidade cultural da área, ga-rantindo, dessa maneira, a qua-lidade de vida da população.

O cotidiano na contempora-neidade constitui, por conse-guinte, e ao mesmo tempo, onosso ponto de interseção e onosso ponto de partida.

A Lagoinha e suaimportânciahistórica

A opção em priorizar a Lagoi-nha encontra justificativa quernos fatores históricos, quer na-queles atuais, que incidem sobreo cotidiano da cidade. Seguimosum caminho, pode-se dizer, na-tural, dada a importância dobairro, sua originalidade e anti-güidade, bem como as interven-ções recentes nele realizadas, noprocesso de urbanização de BeloHorizonte. As fontes consultadasmostram que o bairro nasceujunto à planejada cidade de BeloHorizonte, no final do séculoXIX, percorrendo com ela um ca-minho comum. Há indicações,

inclusive, de que a Lagoinha, co-mo uma entidade espacial dife-renciada, remonta ainda ao an-tigo Curral D’El Rey, que data doinício da ocupação territorial daregião de Minas Gerais. No tra-çado original da cidade, a regiãoda Lagoinha foi classificada co-mo zona suburbana, isto é, forados limites da Avenida 17 de ou-tubro – hoje Avenida do Contor-no – que demarcavam o cinturãourbano. No processo de edifica-ção da nova capital, a região daLagoinha foi habitada pelos tra-balhadores encarregados daconstrução da cidade, modifi-cando-se, paulatinamente, a fi-sionomia daquele espaço de raí-zes rurais. A sua proximidadecom o centro e com a linha detrem, trazendo um número ex-pressivo de pessoas que se ins-talavam nas pensões das redon-dezas, fez com que, à medida docrescimento da cidade, a Lagoi-nha formasse uma área boêmia,dotada de muitos bares e de umavida noturna bastante agitada.Além disso, um comércio diver-sificado foi se consolidando paraatender ao crescente número defamílias ali instaladas e que pro-moveram a configuração do ca-ráter também residencial do bair-ro. No entanto, foi a boemia o as-pecto que mais o marcou, pas-sando a distingui-lo, sobrema-neira, no imaginário de toda apopulação belo-horizontina:

Lagoinha, Deusa da CachaçaRainha do meu carnaval,Lagoinha, Deusa da ArruaçaDe meu carnaval.

(Carneiro, 1974, p. 10).

Na década de 80, com asobras de construção do comple-xo viário da Lagoinha, a regiãoviria a sofrer uma certa descarac-terização, representada pelo de-saparecimento da Praça Vaz deMello, o principal núcleo da boe-mia, que se retraiu desde então.Alguns setores da imprensa seencarregaram de alardear aqui-lo que eles chamavam “a deca-dência da Lagoinha”, estampan-do nos jornais manchetes do tipo“a Lagoinha está morrendo”, aLagoinha é “um bairro fantas-ma”, ou “vamos salvar a Lagoi-nha”. Este foi o fator de maiorpeso que motivou a nossa pes-quisa: a investigação do real im-pacto sofrido pelo bairro após aedificação do viaduto e as trans-formações advindas da sua ins-talação, mescladas ao avanço daespeculação imobiliária, inseridano desenvolvimento do proces-so de urbanização brasileiro.Com esse intuito buscamos fazera investigação do bairro, atravésde uma análise mais aprofun-dada de sua configuração recen-te, que servisse de suporte parafuturas intervenções. O bairrofoi uma área durante muito tem-po abandonada pelo poder pú-blico, convivendo com a prolon-gada improvisação provocada

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pela paralisação das obras naAvenida Antônio Carlos que,executadas sem o devido cuida-do, terminaram por desfigurar oseu patrimônio físico e cultural.

A recuperação da Lagoinhacomo tradição, como história, co-mo memória, como biografia ecomo patrimônio comum com-partilhado pela população de-mandava uma proposta de inter-venção consciente e conhecedo-ra das suas atividades mais re-presentativas, em benefício dasua comunidade, e da socieda-de em geral. Evidentemente, talquestão se insere no âmbito dadiscussão dos conceitos de patri-mônio histórico, memória soci-al, preservação histórica e ambi-ental ou, ainda, da qualidade devida dos seus habitantes. E pres-supõe uma concepção de urba-nismo como um meio de cons-trução e de manutenção da“identidade cultural” de uma da-da região para o resgate da cida-dania, dentro da política de pre-servação. No rastro das conside-rações tecidas por MarilenaChauí (1992), podemos dizer quea recuperação urbana deve con-siderar a política cultural comoum direito de cidadania, conce-bendo a cidade como parte deum movimento histórico com-plexo e diferenciado, que nãopode ser compreendido à parteda esfera política e da materia-lidade espacial das lutas pelaapropriação, nos conflitos entre

a intervenção predatória e o pre-servacionismo irrestrito. Nessecaso, a política de preservaçãodeve levar em conta o equilíbriocultural e, a partir da participa-ção da própria população, sercapaz de construir uma identi-dade social na transição entre ovelho e o novo, permitindo aoscidadãos experimentar um sen-timento de segurança em facedas mudanças brutais da socie-dade.

Não nos referimos a uma no-ção de identidade transparentee unívoca, que se quer assegu-rar a todo custo, mascarada poruma homogeneidade bastantesimplista. Essa noção está vincu-lada a uma abordagem históricalinear, construída a partir das di-retrizes dos setores dominantes,que insistem em ignorar os des-níveis, os fragmentos e as facetasmais opacas de um dado contex-to social. O pensamento ilumi-nista trouxe, no seu bojo, a aspi-ração por um espaço bem arti-culado, por uma sociedade visí-vel e legível em cada uma desuas partes. A essa sociedade nãoera dado comportar zonas obs-curas ou desordenadas: uma so-ciedade previsível e harmônicaera o objetivo subjacente à novaorganização do espaço urbano eda memória. Contrapondo-nosa essa concepção adotamos, nes-te trabalho, uma visão abrangen-te e dialética do conceito de iden-tidade – no sentido utilizado por

Nietzsche e seguido por Fou-cault – percebida na pluralidadede seus elementos e de suas con-tradições, que clarifica, ao invésde ocultar, os sistemas heterogê-neos que interferem na sua cons-tituição:

Quando estudamos a história nossentimos “felizes, ao contrário dosmetafísicos, de abrigar em si não umaalma imortal mas muitas almas mor-tais”. E, em cada uma destas almas,a história não descobrirá uma identi-dade esquecida, sempre pronta a re-nascer, mas um sistema complexo deelementos múltiplos, distintos, e quenenhum poder de síntese domina(...). (Nietzsche, In: Foucault,1979, p. 34).

Ainda segundo Foucault (1979,p.157), “território é sem dúvida umanoção geográfica, mas é antes de tudouma noção jurídico-política: aquiloque é controlado por um certo tipode poder.” Assim, a história dos es-paços corresponde à história dospoderes, devendo ser estudadacomo um problema histórico-econômico-político. Para Fou-cault, o poder não está localiza-do num ponto específico, masdisseminado, manifestando-sena “relação” entre os segmentossociais numa comunidade, naqual todos o exercem e sofrem asua incidência, concomitante-mente. A rede de poder possuiuma forma piramidal cujo ápiceé ocupado pelo aparelho de Es-tado. Mas ele é garantido pelarelação de apoio dada pelos ele-mentos inferiores da hierarquia.

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Por conseguinte, esse poder nãopode ser concebido como umasuperestrutura, uma vez que eleé consubstancial ao desenvolvi-mento das forças produtivas e setransforma continuamente comelas. Dessa forma, o autor defen-de uma metodologia que busque“analisar como esses micro-po-deres que possuem tecnologia ehistória específicas se relacionamcom o nível mais geral do poderconstituído pelo aparelho de Es-tado.” (Foucault, 1979, p. XIII). Opapel do pesquisador, nesse ca-so, deve ser, justamente, o debuscar esclarecer as questões dointrincado jogo de poderes pre-sentes no desenvolvimento his-tórico, organizando uma novamemória das sociedades e doselementos que a compõem.

Os pressupostos da teoriafoucaultiana de espaço/territó-rio/poder orientaram o nosso tra-balho na análise das relaçõesbairro/cidade. No que se refereà metodologia empregada, in-cluímos, na fase do levantamen-to de dados, os métodos tantoquantitativos quanto qualitati-vos, para posterior codificação,sistematização e análise. No pri-meiro caso, foram utilizados sur-veys aplicados a diferentes seg-mentos da população, que con-tinham perguntas sobre as con-

dições do bairro, sua infra-estru-tura (saneamento, transportes,serviços, lazer), e sobre a situa-ção dos entrevistados (tempo deresidência no local, faixa etária,salarial e escolaridade, grau deadaptação e ligação afetiva coma região, tipo de relações estabe-lecidas com a vizinhança). Quan-to ao segundo, recorremos aosinstrumentos da história oral,através de entrevistas abertascom os moradores e comercian-tes ali radicados, ou histórias devida de alguns dos seus mem-bros mais antigos e respeitados.Além disso, estabelecemos umestreito contato com uma de suasfamílias mais tradicionais – osAraújo Brandão – que nos abriu,gentilmente, a sua residência narua Adalberto Ferraz, um exem-plo vivo da história da Lagoinha,a começar da própria casa, cons-truída nas primeiras décadas donosso século. Ali tivemos acessoao acervo fotográfico contendoa memória familiar, que se con-funde com a memória do bair-ro, e ouvimos os relatos dos mui-tos casos envolvendo episódioselucidativos da história local.

Uma questão que se nos co-locou imediatamente foi a res-peito do universo a se estudar,pois percebemos que a região co-mumente reconhecida como La-

goinha não corresponde aos li-mites oficiais do bairro2 – deter-minados pelo mapeamento ofi-cial, de autoria dos órgãos mu-nicipais – abrangendo tambémoutras áreas contíguas. Os de-poimentos de alguns de seus fre-qüentadores são elucidativos,nesse sentido, apontando a La-goinha como uma “cidade” den-tro de Belo Horizonte:

(...) ela começava na praça ... e ia sealastrando. Passava pela Guaicurus,incluía o Montanhês, o Elite. A Rá-dio Inconfidência, a Feira de Amos-tras ... Era o velho brechol que poralgum dinheiro emprestava ternosou smoking, ou, ainda, vendia qual-quer roupa usada. Era o time do ter-restre, o grupo Silviano Brandão.(Serra e Inácio, 1974, p. 5).

Optamos, então, por investi-gar o universo correspondente àpercepção popular, preservan-do, assim, em sua integridade defato, a sua realidade simbólica,relativa a uma paisagem que foise consolidando paulatinamen-te, no ritmo do cotidiano e da di-nâmica social.3

A Lagoinha: umarealidade múltiplae atuante

Constatamos, dessa forma, aexistência de uma Lagoinha

2 Tais limites têm como extremos, ao sul, o Complexo Viário, abrangendo toda a região do Bonfim até a Rua Jaguari, incluindoa Vila Senhor dos Passos e o Conjunto IAPI, e, a leste, a Rua Pitangui e grande parte do bairro Floresta.

3 A equipe circunscreveu inicialmente como a área a ser investigada a região delimitada pelo Complexo Viário, Rua Mariana,Vila Senhor dos Passos e Rua Pitangui, excluindo o Conjunto IAPI.

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múltipla, heterogênea que, apre-endida nas suas contradições,vai conformando a sua trajetó-ria histórica. Tais contradições seconfiguram interna e externa-mente ao bairro, ou seja, nas re-lações bairro/cidade. E podemser percebidas até mesmo naavaliação da Lagoinha por partede seus moradores, dos habitan-tes da cidade como um todo, deestudiosos e jornalistas. Delespartem as opiniões divergentesde rejeição ou defesa ardorosado bairro.

As características que busca-mos identificar e explicitar sobrea região se relacionam tanto à in-serção original do bairro, porocasião do planejamento e inau-guração da cidade, quanto àsmodificações por ele sofridas nodecorrer de seu processo de ur-banização. Acreditamos que asua situação atual, de acordocom as premissas teóricas ante-riormente mencionadas, é decor-rente dos tipos de articulaçõespolíticas (de poder e de domina-ção/submissão) travadas entreaquele “território” e a cidade, omunicípio, o estado e até mes-mo o país. Estes representam osistema capitalista em vigência edesenvolvimento, de modo queas suas leis foram amplamenteobservadas na nossa análise.

Uma constatação inicial a quechegamos sobre a Lagoinha, nasua configuração presente, é a deque não se pode homogeneizar

o seu universo. A sua complexi-dade e diversidade podem serpercebidas principalmente nascinco situações socioeconômicasque conseguimos identificar ali,a saber: uma primeira, relativa àsfamílias tradicionais, que habi-tam os casarões antigos nas pro-ximidades da matriz Nossa Se-nhora da Conceição; uma segun-da, mais pulverizada, relativa àsfamílias – mais jovens – de clas-se média, que têm hábitos demoradia simples, apresentandorelações de camaradagem entreseus integrantes e ocupando aala direita da Av. Antônio Carlosna direção centro/bairro; umaterceira, correspondente a umacamada de baixo poder aquisiti-vo, como se pode notar pelassuas moradias bastante modes-tas – conjuntos habitacionais po-pulares e cortiços – perfiladas narua Peçanha, entre a linha dotrem e a Avenida Pedro II; umaquarta, caracterizada por umarealidade de vida absolutamen-te precária, vivenciada na VilaSenhor dos Passos, mais conhe-cida por “Buraco Quente”; e, porfim, o espaço compreendido en-tre as ruas Bonfim e Caparaó,nos limites com o bairro Bonfim,onde se concentra a maior partedas casas de encontro e o trottoirdas prostitutas e dos homosse-xuais.

Essas situações socioeconômi-cas se aproximam e, por vezes,se sobrepõem, tanto no que se

refere à sua estrutura física,quanto nas inter-relações que seestabelecem entre os seus com-ponentes. Verificamos uma cer-ta fluidez no trânsito dos dife-rentes grupos pelos três núcleosdiferenciados que, grosso modo,caracterizam o bairro, ou seja,um setor familiar, tipicamente re-sidencial (incluindo o aspectotradicional e também religioso),um núcleo boêmio, que abran-ge os redutos da prostituição, eum núcleo comercial e de servi-ços, tendo como centro a rua Ita-pecerica (esta funcionando tam-bém como via de passagem e decirculação dos ônibus que vêmpela Avenida Antônio Carlos, nadireção bairro/centro). Observa-mos que a “topografia” humanaacompanha a tendência ecléticada sua topografia física. Confor-me apuramos nas entrevistas, asprostitutas, por exemplo, fre-qüentam o comércio ou a igrejanormalmente, numa certa pro-ximidade com os grupos familia-res, sem provocar maiores pro-blemas ou hostilidade acentua-da por parte dos moradores. Sãoessas relações que procuramosapreender, pois são efetivamen-te capazes de construir a memó-ria social concebida como partedo processo histórico. Como afir-ma Cássia Magaldi (1992, p. 21),“a cidade deve ser pensada comouma estrutura onde se realizam,em constante interação, as rela-ções sociais: todas as espécies de

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atividades e ações humanas con-centradas”. Sua configuração é oresultado das formas assumidaspela sociedade, pela apropriaçãohistórica do espaço e pelas inter-relações dos elementos que com-põem a sua estrutura. Faz-se ne-cessário salientar, ainda, que essarealidade diversificada e com-plexa está em permanente mu-tação, marcada por transforma-ções físicas, sociais, culturais epolíticas, no processo da dinâmi-ca e do crescimento urbano.

A marcha das transformaçõesdo bairro acelerou-se na décadade 80, impulsionada pelas obraspúblicas do Complexo da Lagoi-nha (onde ocupam papel princi-pal o viaduto e a passarela) e pelaespeculação imobiliária. Estaatingiu o bairro quando a pres-são do crescimento urbano dei-xou de ocorrer apenas na zonasul, chegando também à zonanorte. Do nosso ponto de vista,dois fatores muito influenciaramesse processo, seja em relação aotipo de modificações ocorridas,seja em relação à cronologia des-sas mudanças. O primeiro delesdiz respeito à posição geográfi-ca do bairro – nos limites da zonaurbana e da zona suburbana –dentro do traçado original da ci-dade, além da sua proximidadecom a região central e comercialmetropolitana, com a estação fer-roviária e com a rodoviária. O se-gundo fator se refere à presençados imigrantes italianos, que co-

laboraram na sua formação etno-social. Contribuíram, também,para tornar a Lagoinha um pro-longamento da região central-norte, apresentando um perfilespacial muito semelhante àque-la região.

Explicando melhor, as antigaschácaras de propriedade de ita-lianos foram cedendo lugar àconstrução de casas residenciaise comerciais. Os italianos foram,em grande medida, responsá-veis pela intensa atividade denegócios que sempre distinguiuo bairro, fundando armazéns desecos e molhados, alfaiatarias,padarias, bares, como também aprimeira fábrica de doce de leitena capital. Muitos desses estabe-lecimentos atravessaram as fron-teiras do bairro, em direção àsáreas contíguas, mas situadas noperímetro central. As famíliasmais abastadas formaram seus fi-lhos em profissões liberais (mé-dicos, advogados) e, com o pas-sar do tempo, mudaram-se daLagoinha. Alguns dos casarõesque eles habitavam persistemainda, embora mal conservados,ao contrário de outros derruba-dos na marcha da especulaçãoimobiliária que atinge, principal-mente, as ruas Itapecerica etransversais ou a Avenida Antô-nio Carlos. Com o tempo, o tipode comércio foi se modificandoaté se especializar em antigüida-des, móveis usados, serviços econsertos em geral. Na rua Itape-

cerica encontramos tambémbancos, padarias, papelarias, far-mácias, bares e, lado a lado, umaigreja evangélica e uma casa deumbanda, ou, até mesmo, ummotel, o Butterfly.

Contudo, as entrevistas reve-laram que a atividade comercialé considerada insuficiente pormuitos moradores, que deman-daram um maior acesso a super-mercados, lojas de utensílios do-mésticos, de roupas e melhoresserviços de panificação. Em re-lação aos serviços de infra-estru-tura, observamos que o bairro semostrou bem servido de água,luz, telefone, correios, escolas ehospitais. Mas detectamos pro-blemas no transporte coletivo,traduzidos na deficiência depontos de embarque e desem-barque no interior do bairro enos constantes engarrafamentosna Avenida Antônio Carlos (quedevem ser solucionados, em par-te, com a finalização das obras docomplexo viário). Foram tam-bém considerados precários osserviços de limpeza urbana e depoliciamento. A população semostrou ressentida com a faltade opções de lazer, como cine-mas e clubes – registramos ape-nas a existência do Clube dos Te-celões – e, principalmente, deáreas verdes e praças. Na oca-sião, a antiga Praça Vaz de Mellohavia sido destruída e ainda nãofora substituída por qualqueroutra, sendo a sua falta bastante

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lamentada. Principal centro dereferência do bairro, a praça foicelebrada numa canção compos-ta por um dos seus freqüentado-res habituais:

Não há entre nós um paraleloeu na Praça Vaz de Melloe ela tão longe de mim.E assim de cachaça em cachaçavou vivendo ali na praçade botequim em botequim.

(Garcia, 1990, p. 6)

A situação descrita evidenciaum descaso do poder públicopara com o bairro, durante mui-to tempo. Considerado uma sim-ples “via de passagem”, as obrasde grande porte eram construí-das para resolver problemas deoutros pontos da cidade. A faltade preocupação em se preservaro meio ambiente interno ou aqualidade de vida dos morado-res refletia-se na aparência físicado bairro, com suas casas anti-gas e mal cuidadas, com as facha-das pobres das lojas, com as ruasesburacadas e esgotos entupi-dos. Mas, a despeito disso, gran-de parte dos entrevistados con-siderava o local bom para mora-dia devido, principalmente, àproximidade do centro e aogrande número de linhas de ôni-bus que por ali circulam. A po-pulação da Lagoinha resistiu fir-memente ao modelo de urbani-zação perverso que deixou aolargo valores estéticos, históricos

e patrimoniais; ela conseguiupreservar certas relações sociaisdo tipo tradicional, observáveisnos laços de vizinhança e religio-sidade.

A tradição religiosa constituium aspecto pouco reconhecidopela opinião pública, embora es-tivesse sempre presente, de mo-do marcante, no seu cotidiano.A Igreja Matriz de Nossa Senho-ra da Conceição traz consigo to-da uma história de cultura reli-giosa, social e musical. Ali foramcriados uma banda de música,uma orquestra e um coral, quereuniram as tendências artísticase a fé espiritual das famílias lo-cais, desde os primórdios dobairro:

Tendo-se celebrado em casa do Sr.Francisco Caetano de Carvalho (àRua Itapecerica n. 334) os festejosde mês de Maria, no ano de 1914,surgiu d’ahi a idea da edificação deuma Capela em honra da ImaculadaConceição e com essa grandiosa ideaveio a de se fundar uma Banda deMúsica que com a denominação de“Corporação Musical N. Sra. daConceição”, auxiliasse nas solenida-des realizadas na supradita Capela(...).4

Os tempos mudaram e tam-bém as práticas da tradição cató-lica. Mas se, de um lado, pratica-mente terminaram as missas so-lenes celebradas em latim, poroutro conservaram-se a bandade música e o auditório para os

seus ensaios (embora funcionemnum ritmo mais moderado), as-sim como a Associação São Vi-cente de Paula, fundada em1908, ainda em plena atividadede assistência social junto às fa-velas do bairro. As festividadescomemorativas da Matriz, comoas procissões e as barraquinhas,ou as novenas envolvendo a co-letividade, tornaram-se mais ra-ras. Mas o velho espírito de ami-zade e solidariedade foi manti-do, mesclando-se às novas for-mas atomizadas de convivênciasocial. O bairro, de modo geral,foi considerado pouco violento,haja vista o pequeno número debrigas, atritos e assaltos registra-dos, comparados com outrospontos da cidade.

É patente a coexistência deuma face conservadora, religio-sa, familiar e solidária, com umaface laica, transgressora, caracte-rizada pela presença da prosti-tuição e da boemia, que tambémcompõem a identidade do bair-ro. A fama dos boêmios e dasprostitutas conseguiu transporas fronteiras locais, de modo queo aspecto da transgressão à “mo-ral e aos bons costumes” foi in-justamente identificado como aprópria razão de ser da Lagoinhae, desse fato, derivam muitos dosequívocos a seu respeito.

Mesmo o poder oficial pare-

4 Cf. o Livro de atas da Corporação Musical Nossa Senhora da Conceição.

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ce ter compartilhado de tal visãosobre o bairro, configurandouma ótica reducionista que nãose deu conta das práticas sociaisdiferenciadas que fazem parteda sua rotina.

No planejado assentamentoda cidade de Belo Horizonte, cu-ja distribuição obedeceu a umaracionalidade tipicamente posi-tivista, a Lagoinha ocupou e ain-da ocupa uma posição de margi-nalidade5 num duplo sentido: ode uma área situada fora do cin-turão urbano ou dos centros dedecisão, e também o de uma re-gião “suburbana”, nos termos docomportamento social, em virtu-de da presença de certas atitu-des e atividades discriminadas,consideradas transgressoras ou“subalternas” pela moral vigen-te. Desse modo, coube ao bairroum papel secundário que, sob onosso ponto de vista, foi respon-sável por dois aspectos relevan-tes que marcaram de forma de-cisiva a sua posição no contextoda organização espacial da cida-de. São eles: a importância queas atividades da boemia e daprostituição assumiram em suahistória, mascarando as outrastantas características locais; e oantigo descaso do poder públi-co, apoiado na falácia da obsoles-cência e da decadência do bair-ro, confundidas com o indiscu-

tível declínio de sua vida boê-mia.

A Lagoinha e suaspeculiaridades

Tendo como base a concepçãofoucaultiana de espaço/territó-rio/poder e o exame dos dadoscoletados, constatamos um mo-do peculiar das relações sociopo-líticas da Lagoinha com o muni-cípio e com o establishment que,até aquele momento, não havi-am sido detectadas, quer peloEstado, quer pelos estudos urba-nísticos. Não encontramos qual-quer referência a esse respeitonas matérias especializadas, masessa peculiaridade pode ser per-cebida por um olhar mais aten-to, através de três aspectos bási-cos, que sintetizamos a seguir.

Em primeiro lugar, a Lagoi-nha, devido à sua posição mar-ginal no que se refere à raciona-lidade tipicamente positivistaque orientou o planejado assen-tamento da cidade, pôde seguiro seu próprio traçado, estabele-cendo um padrão estético espe-cífico e um modo de crescimen-to diferenciado. Essa conforma-ção original é visível nas suasruas tortuosas e na sua arquite-tura livre de restrições, em queconvivem diferentes estilos,

construções muito simples ao la-do de algumas que apresentamum certo grau de sofisticação. Is-so denota, sem dúvida, um des-vio espontâneo do traçado regular,padronizado, da cidade, bem co-mo de sua bem demarcada distri-buição sócioespacial. E isso, comouma característica marcante dobairro, deveria ser preservado.

Em segundo, fica bastanteevidente que a Lagoinha consti-tuiu o berço de muitos cidadãostradicionais e ilustres do muni-cípio. Ela é, ainda, responsávelpor algumas tradições religiosase musicais, como a missa solene,até hoje comemorada na Matrizde Nossa Senhora da Conceição,por ocasião do aniversário de suapadroeira. Esse fato demonstraque o bairro não se ateve à segre-gação social e moral que comu-mente o caracteriza, conseguin-do ultrapassá-la na sua trajetó-ria rica e plena de contradições,que permanece bem viva na his-tória da cidade. A nosso ver, esseaspecto deveria ser salientado poruma proposta mais ampla de pre-servação, que considere a impor-tância do legado das significaçõeshistóricas coletivas e suas interse-ções com o momento presente.

Finalmente, observamos ocor-rer um processo de extrema im-portância, tendo como palco obairro, no que se refere à ques-

5 Empregamos o conceito de marginalidade no sentido de “afastada dos centros decisórios de poder e dos setores economica-mente dominantes”. (Foucault, 1979)

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tão da moradia e da habitação.Esta é sinônimo não apenas destatus social, mas também de se-gurança material nas sociedadescapitalistas, particularmente noBrasil, marcado por uma profun-da instabilidade econômica.Aqui, o acesso à moradia está ca-da vez mais comprometido, en-tre outras razões, pelas deficiên-cias da política habitacional bra-sileira e pelo processo de espe-culação imobiliária. A Lagoinha,com suas casas antigas e em es-tado precário de conservação,sugere um panorama de carên-cia e, mais ainda, de abandono.Isso favorece o processo de espe-culação que ronda o bairro, mes-mo porque o empobrecimento ea deterioração das edificações ur-banas são apresentados à popu-lação como um processo orgâni-co de envelhecimento natural. Adesvalorização dos imóveis emrelação à sua idade encobre, narealidade, a sua causa mais pro-funda, ou seja, a especulaçãoimobiliária, em conexão com apolítica econômica vigente. Taldistorção é facilmente manipu-lada pelo interesse pessoal dosagentes imobiliários. Nossas ob-servações nos levaram a concluirque o bairro tem conseguido dri-blar, em certa medida, esse pro-cesso, uma vez que 90% dos mo-radores entrevistados se revela-ram proprietários de seus imó-veis. Esse é um fato que, por suarelevância econômico-social, de-

ve ser objeto de atenção por par-te do poder público, tendo emvista que o mecanismo da espe-culação ronda os limites do bair-ro. A preservação aqui tambémse faz necessária pois, de acordocom a concepção que adotamos,ela deve ser também indutora damanutenção da qualidade de vi-da, evitando sobretudo o enormeônus social da destruição sistemá-tica de manchas urbanas inteiras.

Uma propostapara a Lagoinha

Os resultados do nosso traba-lho revelaram a necessidade im-perativa de uma revalorizaçãoda Lagoinha, isto é, um redire-cionamento planejado pelas au-toridades competentes, levandoem consideração os aspectos físi-cos, estéticos, culturais, político-sociais da região e o seu papelprivilegiado no cenário históri-co da cidade. Nesse sentido, bus-camos promover um novo olharsobre o bairro, amplo o suficien-te para visualizá-lo na sua multi-plicidade. Pois a Lagoinha jamaisse constituiu como um “bairro-fantasma” ou esteve agonizante,como fizeram crer certos comen-tários sobre ela. Ao contrário,constatamos que ela permanecemuito viva, e o seu coração con-tinua forte no interior de cada ca-sa, de cada loja, nos trottoirs, nasruas tranqüilas ou movimenta-

das, nos encontros sociais e reli-giosos de seus moradores.

A revalorização da Lagoinhaimplica a preservação de sua me-mória e de sua história, no âm-bito de uma concepção de “patri-mônio histórico” que englobe asdimensões múltiplas da cultura.É fundamental, nesse caso, esta-belecer a dissociação das noçõesde “tombamento” e de “preser-vação”. Prevalecia, grosso modo,uma política de tombamento debens imóveis que conduzia àdesvalorização financeira dosmesmos, acentuada pelo fato deo poder público efetuar o tom-bamento mas não promover apreservação propriamente dita,fazendo com que o imóvel per-desse também o seu valor sim-bólico. Como exemplo, citamosa “Casa da Loba”, um belo exem-plar do art nouveau no Brasil doinício do século, localizada narua Itapecerica, que, logo após otombamento, foi completamen-te descaracterizada pelos própri-os moradores.

Nesse sentido, concluímosque a melhor forma de se atin-gir os objetivos estipulados seriaatravés da criação de um “Movi-mento Comunitário para a Pre-servação Histórica”, promoven-do as intervenções arquitetôni-cas em conjunto com os mora-dores, e colocando à sua disposi-ção os materiais com preços maisacessíveis. Isto está de acordocom os estudos mais recentes so-

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bre espaço urbano e preserva-ção, os quais salientam que atransformação provocada namentalidade dos moradoresquando eles próprios reconstro-em seu bairro vale muito maisque a transformação da sua con-dição material. Assim, a intençãode preservação deve partir dospróprios habitantes, não se redu-zindo o problema, tão somente,à espera da iniciativa do poderpúblico. Este último deve ser vis-to como co-partícipe e interme-diário nas transações, estabele-cendo as condições técnicas emateriais para que as medidassejam viabilizadas. O “Movi-mento para a Preservação His-tórica” se tornou viável porquecontou com a participação da co-letividade – como pudemos per-ceber nas entrevistas com váriossegmentos representativos dolocal, como o pároco da IgrejaNossa Senhora da Conceição, oscomerciantes e as famílias tradi-cionais ali radicados.

Contudo, faz-se necessária aampliação do debate, a fim deevitar os privilégios de algunsgrupos em detrimento de ou-tros, garantindo a participaçãoda população no seu conjunto.Por outro lado, esse tipo de in-tervenção não pode buscar, noseu momento inicial, abranger obairro como um todo. Por issodestacamos, através de nossapesquisa, aquelas atividadesmúltiplas, e ao mesmo tempo

mais representativas do bairro,ou aquelas que a própria popu-lação mantém vivas, nas suasrelações cotidianas. Dessa forma,apontamos como núcleos inici-ais para uma intervenção: a reli-giosidade, a boemia e a prosti-tuição, o comércio e a assistên-cia social.

A delimitação das áreas a se-rem priorizadas também foi fei-ta através do reconhecimento deseu valor simbólico, inscrito naleitura que os habitantes fazemdelas, mesmo que correspon-dam a locais reduzidos ou de cu-nho familiar. Essas áreas coinci-dem com os espaços ocupadospelas atividades acima mencio-nadas e mais representativas nasrelações dos seus habitantes, demodo que selecionamos, paradar início à intervenções, a ruaAdalberto Ferraz e a rua Itapece-rica. A primeira conta com umfator de estímulo à sua revitali-zação: a presença das famíliastradicionais, que se interessampela preservação da história dobairro e estão ligadas às ativida-des religiosas. Assim, propuse-mos a reativação cultural da rua,através das festividades religio-sas e musicais, concomitante-mente à recuperação da IgrejaMatriz. No que se refere à ruaItapecerica, um dos maiores pre-juízos observados foi a sua trans-formação em via de passagempara a zona norte, sofrendo comos constantes engarrafamentos

na Avenida Antônio Carlos.Concordamos com a opinião dealguns arquitetos e urbanistasentrevistados de que, termina-das as obras do Viaduto, a ruapode ser beneficiada, deixandode ser corredor de trânsito deveículos e adquirindo um perfilpróprio. Isso conta com o apoiodos comerciantes, dispostos a in-vestir no lazer e na cultura, tor-nados atrativos para o incremen-to de seus negócios.

Uma terceira sugestão foi a re-vitalização do antigo MercadoMunicipal, na época desativadoe em fase de deterioração. A nos-sa proposta, nesse caso, foi a im-plantação de um centro cultural,para exposições relativas à me-mória local, apresentações do co-ral da Igreja ou até mesmo reu-niões comunitárias. O incentivoao lazer, ao comércio e à culturapoderá atrair os moradores deoutras regiões da cidade, alémdos seus próprios habitantes.

Conclusão: emdireção às novaspráticas deintervenção –O Projeto deReabilitaçãoIntegrada do BairroLagoinha

Em 1994, as autoras foramconvidadas a participar do pro-

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

grama de elaboração dos inven-tários do Patrimônio Urbano eCultural de Belo Horizonte (IPU-CBH), coordenado pela entãoDiretoria de Patrimônio da Se-cretaria Municipal de Cultura.Os nossos pontos de vista e pre-ocupações teóricas naquele mo-mento se aliavam a uma propos-ta de política de preservação ino-vadora do patrimônio urbano dacidade que, de acordo com assuas premissas,

deve superar a abordagem histórico-estilística e ser trabalhada dentro deuma concepção que integre as ques-tões socioeconômicas, técnicas, esté-ticas e ambientais e leve a conside-rar qualquer intervenção sobre o pa-trimônio como uma ação sobre o pre-sente e uma proposta para o futuro.(Castriota, 1993, p. 13-14)

Inicialmente, foi elaborado oIPUCBH – LAGOINHA, docu-mento oficial exigido para a apli-cação das leis de preservação dopatrimônio, que pretendia iralém e subsidiar uma série deações governamentais, sobretu-do nas áreas de cultura e do pla-nejamento público. Num mo-mento subseqüente, o trabalhofoi ampliado e, como parte dosProgramas Preparativos para oCentenário da Cidade, foi elabo-rado o Projeto de Reabilitação In-tegrada do Bairro da Lagoinha,a nosso ver o primeiro a intro-duzir a gestão urbana integrada

no planejamento da cidade deBelo Horizonte. Foi então firma-do o compromisso plural com apreservação, a recuperação e amanutenção dos espaços urba-nos públicos e privados, tendocomo princípio fundamental aintrodução da co-responsabili-dade e da participação efetiva dacomunidade local, bem comodos órgãos públicos e privadosna administração da cidade.

De acordo com os seus idea-lizadores, o Projeto Lagoinhaconstitui uma proposta de “rea-bilitação integrada”, que procu-ra tratar os diferentes problemasda região de forma articulada esimultânea. Como tal, entrelaçaações de tipos variados, que vãode intervenções físicas a proje-tos culturais, levando em consi-deração a sua “estrutura de sen-timentos” e passando por proje-tos afins de desenvolvimento ur-bano e social. Seu objetivo finalé trazer para o bairro melhorescondições de vida, compatibili-zando a preservação com o de-senvolvimento econômico. Maisprecisamente, ele se propõe a in-verter a lógica que tem norteadoas grandes intervenções urba-nas, pois considera que o pontode partida deve ser a realidadedo bairro tal como é vivida hojepelos seus habitantes. Desse mo-do, o Projeto pressupõe a parti-

cipação dos usuários – os mora-dores do bairro – em todas assuas etapas, desde a sua concep-ção e elaboração até a execuçãodas obras e o seu acompanha-mento.

O Plano de Reabilitação Inte-grada da Lagoinha6 entrou emexecução no mês de maio de1996. No final de dezembro domesmo ano, o prefeito PatrusAnanias entregou à populaçãoum conjunto de obras: a PraçaVaz de Melo, o Mercadinho daLagoinha, a recuperação dospasseios e arborização da rua Ita-pecerica, a reforma do HospitalOdilon Behrens, a reurbanizaçãoda favela Senhor dos Passos. Es-tão em andamento os programasde incentivo às principais linhasde comércio do bairro – contan-do com a parceria do SEBRAE/MG –, tendo sido realizado tam-bém o 1º Leilão de Móveis Anti-gos da Lagoinha (em novembrode 1996). Outra frente de traba-lho foi iniciada: trata-se da recu-peração e conservação dos imó-veis do bairro, feita em conjun-to com os comerciantes e mora-dores locais e contando com aparceria da iniciativa privada.7

A revitalização cultural dobairro encontra-se em andamen-to, com a execução do projeto“Sopro da Lagoinha”, de preser-vação e incentivo da banda Nos-

6 V. PBH/Projeto Lagoinha – relatório de atividades, 1996.7 A empresa R Fonseca Produtos Químicos participou da primeira fase desse programa, com a doação, à Associação de Mora-

dores da Lagoinha, das tintas utilizadas na recuperação e pintura das fachadas dos imóveis cadastrados pelo projeto.

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Heloisa Guaracy Machado; Maria de Lourdes Dolabela L. Pereira

sa Senhora da Conceição (que,segundo os dados apurados emnossa pesquisa, foi uma das pri-meiras a se constituir na cidade,junto com o primeiro coral deigreja de Belo Horizonte e semantinha ainda em funciona-mento, mas sem nenhum apoiooficial). Uma linha editorial tam-bém está sendo implementada eespera-se para breve o lança-mento do “Manual Técnico deConservação e Recuperação daArquitetura da Lagoinha” e dolivro Projeto Lagoinha.

Fontes primárias01. CARNEIRO, Plínio. Conheça a Lagoinha de 35 ou 45 anos atrás e saiba como o progresso estragou com ela. Estado

de Minas. 1º Caderno. Belo Horizonte, 1º de setembro de 1974.

02. GARCIA, Celso. A Lagoinha não dá mais samba. Jornal de Casa. Belo Horizonte, 12 a 18 de agosto de 1990.

03. SERRA, Alberto e INÁCIO, José. Conheça a alma boêmia da Lagoinha, que o progresso vai matando devagar.Estado de Minas. 1º Caderno. Belo Horizonte, 23 de junho de 1974.

Obras de referência01. CASTRIOTA, Leonardo Barci. Alternativas contemporâneas para políticas de preservação. Belo Horizonte:

[mimeo], 1993.

02. MACHADO, Heloisa G., PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Projeto Belo Horizonte: bairros antigos,uma nova realidade – Módulo I: A Lagoinha no contexto urbano da cidade. (monografia) Belo Horizonte:FIP/PUC•Minas, 1991.

03. MORAES, Fernanda Borges de, PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L. Inventário do Patrimônio Urbano eCultural de Belo Horizonte: Bairro Lagoinha. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.

04. PBH/Projeto Lagoinha – Relatório de Atividades. Belo Horizonte: Secretaria de Desenvolvimento Econômi-co, jan./dez. de 1996.

Do ponto de vista conceituale teórico, o Projeto foi muitobem-sucedido, recebendo, inclu-sive, um prêmio internacional.Os seus elaboradores realizaramconferências em seminários so-bre urbanismo em muitas cida-des do Brasil e até mesmo doexterior, como Quito, Barcelonae Berkeley. Do ponto de vistaprático, observamos a concreti-zação de muitas das medidas ini-cialmente elencadas na pesqui-sa sobre a Lagoinha. Os desdo-bramentos do nosso trabalho

nos fazem amplamente recom-pensadas no nosso esforço: deum lado, constatamos uma novapostura dos órgãos da adminis-tração municipal em relação àLagoinha, corrigindo-se, assim,uma antiga distorção das políti-cas públicas anteriores; de outro,pudemos ver realizar-se o verda-deiro sentido do trabalho acadê-mico, ou seja, a transposição dareflexão teórica e sua viabilizaçãoatravés da prática efetiva deações concretas e consciente-mente sociabilizadas.

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A recuperação da Lagoinha dentro de uma nova concepção de política urbana

Referências bibliográficas01. ALMEIDA MAGALHÃES, Beatriz, ANDRADE, Rodrigo F. Belo Horizonte – um espaço para a República. Belo

Horizonte: UFMG, 1989.

02. CHAUÍ, Marilena. Política, cultura política e patrimônio histórico. In: CUNHA, Maria Clementina P. (org.). O di-reito à memória – patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1992.

03. DUBY, Georges et al. História e Nova História. Lisboa: Editorial Teorema, 1986.

04. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

05. MACHADO, Roberto. Ciência e saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

06. MAGALDI, Cássia. O público e o privado: propriedade e interesse cultural. In: CUNHA, Maria Clementina P.(org.). O direito à memória – patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do PatrimônioHistórico, 1992.

07. PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela L., MACHADO, Heloisa G. A Lagoinha no contexto urbano de Belo Hori-zonte. Revista de Urbanismo. n. 3. Belo Horizonte: FAU/UFMG, 1993.

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Maria Marta Martins de Araújo

A VIDA NOS SUBÚRBIOS: MEMÓRIASDE UMA OUTRA BELO HORIZONTE*

Maria Marta Martins de AraújoFundação João Pinheiro

RESUMO

Em 1993, coordenei os trabalhosde pesquisa histórica do Inventá-rio do Patrimônio Cultural reali-zado pelo Departamento de Patri-mônio Histórico de Belo Horizon-te. Iniciamos o trabalho através darua da Bahia e depois partimos paraatuar em três frentes: Lagoinha,Floresta e no bairro Primeiro deMaio. As reflexões que apresentoneste artigo são frutos dessa expe-riência no campo mais propriamen-te dito da preservação e da memó-ria. O texto defende duas posições:as possibilidades oferecidas poruma história de Belo Horizonte apartir da trajetória de seus espaços,particularmente de seus bairros po-pulares, e uma política mais am-pla de preservação que trabalhe comesses mesmos universos identitários.

* Esse artigo é uma versão revisada do texto apresentado no simpósio “Belo Horizonte: tempo, espaço e memória”, promovidopela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Belo Horizonte, 23 a 25 de abril de 1997).

Em 1896, Francisco Bicalho, engenheiroque substituiu Aarão Reis na chefia daComissão Construtora, em relatório ao

governador de Minas, justificava a quantia gas-ta, até aquele momento, com a construção danova capital, como o mais inteligente sacrifíciodo Estado para o desenvolvimento material eelevação intelectual de seus filhos que, segun-do ele, ainda não conheciam bem, pelo menosno interior, as exigências da civilização moderna:

A ignorância do que a vida pode ter de confortável,o hábito de contentar-se com pouco, a modéstia decostumes, a resignação e frugalidade de árabe, en-

fim, são contrários ao desenvolvimento da riqueza. A Nova Capital vai forçosa-mente irradiar benéfica luz por todo o Estado, mostrando que os gozos sociaisnão se coadunam com a simplicidade patriarcal da vida mineira e, ao despertarlouváveis ambições, instigará o trabalho, as indústrias, a lavoura, o comércio, anecessidade de relações de toda a sorte e, em última análise, o desenvolvimento daprodução e da riqueza geral. (Minas Gerais-CCNC, 1896, s/p.)

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A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

Esse trecho de Francisco Bica-lho é bastante revelador das fun-ções concretas e simbólicas doempreendimento da Nova Capi-tal. Ela deveria ser, principal-mente, um incremento para asatividades industriais e comerci-ais – para o desenvolvimento dariqueza – e um instrumento pe-dagógico no sentido de incutirnovos hábitos urbanos. Essa per-cepção dos idealizadores de BeloHorizonte, políticos e técnicos, jávem sendo trabalhada pelos his-toriadores há bastante tempo.Todavia, gostaria de desenvolverum ponto que emerge da fala deFrancisco Bicalho: a visão de quea cidade era, sobretudo, uma pro-messa, algo capaz de “despertarlouváveis ambições” e sonhos deriqueza nos que aqui chegassem.

Todo esse preâmbulo foi paraintroduzir um tema, que não énovo, mas que merece ser me-lhor investigado pelos pesquisa-dores de Belo Horizonte: umahistória da cidade a partir da óti-ca daqueles que não vieram paracá transferidos, como os funcio-nários públicos de Ouro Preto,mas com sonhos de ascensãosocial, seduzidos pela utopia dacidade moderna, tão bem descri-ta pelo nosso engenheiro chefe.

Entretanto, é preciso delimi-tar ainda mais esses sujeitos. Naverdade, o interesse recai sobreos que vieram para a cidade e seinstalaram nos subúrbios da No-va Capital. Alguns com condi-

ções de adquirir propriedade,outros apenas com o saber deum ofício.

“Os ares da cidade libertam!”Esse velho aforismo, criado pe-los camponeses da Alemanhapré-moderna, poderia ser reto-mado para falar dos anseios des-ses migrantes do início do sécu-lo que aportaram na Nova Ca-pital. Assim como naqueles tem-pos, a cidade, a capital moder-na, pretendia materializar umanova era em oposição aos víncu-los fechados e rígidos, nesse ca-so, de um passado escravista ecolonial. Do mesmo modo quepara aqueles mesmos campone-ses alemães:

Quebrar tais vínculos e alcançar acidade, entendida como espaço liber-tador e promessa de salvação, erauma aspiração radical. Nela estari-am contidas uma ambicionada au-tonomia individual e a livre afirma-ção pessoal. Por ela se garantia e davaforma ao desejo de se tornar outro.Antecipava-se o tempo, mudava-sede lugar, enfim, construía-se umanova identidade. (Fortuna, 1997, p.127)

Segundo o Padre Martins, Aa-rão Reis, o primeiro engenheirochefe da Comissão Construtora,não queria na Nova Capital ne-nhum dos habitantes do antigopovoado de Belo Horizonte. Erapreciso construir uma outra ci-dade, sem os males e vícios deuma cultura formada por hábi-tos simples e pouco civilizados.Pode-se dizer que começou aí to-da uma série de restrições à ocu-

pação dos espaços da cidade. Asprimeiras décadas de Belo Hori-zonte são bastante ricas no quese refere às tentativas de orde-namento. Os interditos torna-ram-se cada vez mais explícitosnas normas e nas leis, expressasem seu código de posturas, e as-sumiram muitas vezes um cará-ter bastante repressivo, sobretu-do através da atuação policial.

A cidade aberta à livre afirma-ção dos indivíduos não tinha es-paço para os “aventureiros”, pa-ra os que nada possuíam e que,portanto, nada tinham a perder.Através da leitura dos documen-tos da Comissão Construtora eda análise do plano original deBelo Horizonte, fica evidenteque estavam excluídos desseprojeto os pobres em geral. “Osoperários estrangeiros que traba-lharam na construção da cidade,terminadas as obras, recebiamdas autoridades policiais passespara saírem da cidade”. (Araújo,1988)

Diversos estudos demons-tram que a evolução histórica eo processo de ocupação de BeloHorizonte contrariaram em di-versos aspectos o plano originalconcebido pela Comissão Cons-trutora da Nova Capital (Ver: LeVen, 1977; Guimarães, 1991 e Ju-lião, 1992). Seu traçado geomé-trico, de tamanho prefixado, or-denado e funcional, não previu,dentre outras coisas, espaços emoradias para operários. Em de-

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Maria Marta Martins de Araújo

corrência disso, a cidade passoua conviver, desde os seus primei-ros anos, com favelas, loteamen-tos clandestinos e habitações im-provisadas. Com uma popula-ção bem superior à da zona ur-bana, a periferia foi crescendo eacumulando problemas de infra-estrutura.

Dada a exiguidade do prazopara a sua construção, quatroanos, parte deles gastos em es-tudos e levantamentos, BeloHorizonte foi inaugurada, em1897, de forma precária, comobras inacabadas e serviços a se-rem contratados. Destacavam-sena paisagem algumas constru-ções de maior porte, edifíciospúblicos e residências, e o traça-do das ruas ainda sem pavimen-tação. As largas ruas e avenidas,nos moldes dos cânones euro-peus, vistas em perspectiva, im-pressionaram os primeiros visi-tantes da Nova Capital.

Segundo Walter Benjamin:

O ideal urbanístico de Haussmanneram as visões em perspectiva atra-vés de longas séries de ruas. Isso cor-responde à tendência que sempre denovo se pode observar no século XIX,no sentido de enobrecer necessida-des técnicas fazendo delas objetivosartísticos. As instituições da domi-nação laica deveriam encontrar a suaapoteose no traçado das avenidas: an-tes de serem inauguradas eram reco-bertas por uma lona e depois desco-bertas como monumentos. (Benja-min, 1985, p. 41)

A Belo Horizonte de seus idea-lizadores é plena de elementos

oníricos nos quais a técnica e aarte se harmonizam, mas nãosobrevivem ao despertar amar-go da realidade. Com um ritmobastante acelerado de crescimen-to, a cidade surpreendeu a todos,principalmente a seus planeja-dores e administradores. A cadadez anos, era quase uma novacidade que surgia, acumulandoainda mais o déficit de serviçosbásicos.

Na imprensa, as reclamaçõesdos moradores de bairros quecomeçavam a se tornar populo-sos, como Floresta, Lagoinha eCalafate, eram constantes e co-locavam a nu um quadro amplode carências: falta de água, de es-gotos, de energia elétrica, detransporte coletivo e de pavi-mentação das ruas.

A falta de saneamento básiconos subúrbios era apontada pe-los jornalistas da época como apior ameaça à cidade higiênica esalubre. Não são poucas as refe-rências às águas estagnadas e aosodores que exalavam das ruas.

O Barro Preto, bairro de per-fil operário desde o início da ocu-pação da cidade, era um dosmais deficientes em termos deinfra-estrutura urbana. Para seter uma idéia da precariedadedas condições sanitárias do bair-ro, até 1909 ele foi responsávelpela maior taxa de mortalidadeinfantil da cidade, em decorrên-cia da gastroenterite, causada pe-lo uso de águas infectadas do ri-beirão Arrudas.

Em suas reivindicações, os mo-radores não queriam nada maisdo que lhes era prometido pelaNova Capital: “O conforto e de-mais exigências da civilizaçãomoderna”. Organizados atravésde associações, os moradores che-gavam a condicionar o pagamen-to do imposto predial ao forne-cimento desses serviços, princi-palmente à ligação de água. Dian-te de um poder público injustoe ineficiente, pois taxava a popu-lação de forma indiscriminada,sem distinguir os bairros servi-dos pelos equipamentos coleti-vos daqueles completamente des-providos de infra-estrutura, fo-ram-se criando grupos e fortale-cendo-se identidades. A vivên-cia comum dos problemas leva-va os moradores a serem mais so-lidários, tornando mais fortes oslaços de vizinhança e de amizade.

Historiadores como GeorgeRudé, Edward Thompsom e ou-tros, que se dedicaram ao estu-do do protesto popular, detecta-ram a presença, em diversos mo-vimentos, de uma espécie de “no-ção legitimadora do direito”, ouseja, de um arsenal simbólico ca-paz de levar à revolta e à indig-nação quando direitos básicos etradicionalmente aceitos não sãorespeitados (ver Pamplona, 1996).No caso de Belo Horizonte, a uto-pia da cidade moderna funcio-nava também como um recursoideológico à disposição dos quese sentiam excluídos.

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A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

Sob a ótica do embate entrepopulação e poder público, po-demos ir contando a história des-ses e de outros bairros que foramsurgindo em Belo Horizonte.Entretanto, o que aparece comoo mesmo desdobra-se em milpossibilidades. As trajetórias sãodiferentes e cada lugar tem a suaprópria história. A Lagoinha e aFloresta estavam ali uma do ladoda outra; e como eram diferen-tes e como ainda são diferentes!Elas são o resultado de um uni-verso de práticas partilhadas eda intervenção de uma série deelementos: profissionais, cultu-rais, religiosos, originários dosdiversos grupos que as com-põem.

As pesquisas sobre a históriado bairro da Lagoinha mostrama convivência de diversas face-tas, a Lagoinha da vida boêmia,das famílias católicas e freqüen-tadoras da Igreja Nossa Senho-ra da Conceição, dos ambulan-tes e prestadores de serviços, daslojas de móveis antigos.

Nos primeiros anos da Capi-tal, uma parte da Floresta, ocu-pada por belas chácaras, faziacom que o bairro fosse conside-rado o mais pitoresco e salubrede Belo Horizonte, passeio obri-gatório para os visitantes e na-morados, pois permitia uma vi-são panorâmica das largas ave-nidas e dos edifícios mais impor-tantes. Uma outra, mais densa-mente ocupada, permitia a con-

vivência entre operários e pes-soas de maior posse, reproduzin-do em seu microcosmo a vida deuma pequena cidade do inte-rior.

Na verdade, não se pode es-quecer que Belo Horizonte foiconstruída por imigrantes, mui-tos deles vindos do interior dasMinas Gerais, de lugares nãomuito diferentes do velho arrai-al do Belo Horizonte. Assim, aNova Capital foi se transforman-do, estranhamente, numa cida-de moderna, de gente moderna,mas de costumes provincianos.

Nas suas viagens à cidade,ainda nos anos 40, a escritora Ra-quel Jardim intrigava-se: comouma cidade de “mentalidade to-talmente provinciana” dava aomundo tantos escritores moder-nistas?

Andando pelas ruas, pela Praça daLiberdade, Avenida Afonso Pena, euentendia porquê. Havia uma coisa noar (...) uma civilização interior, vin-da não sei de onde, de ancestrais re-motos. Porque, se a cidade era nova,o povo tinha vindo de longe, de ou-tras cidades, de muitas gerações.(Jardim, 1985, p. 62-63)

Em 1960, mais da metade dosmoradores da cidade não eranascida em Belo Horizonte; des-sas pessoas, 67% vinham dasáreas rurais do estado (Plambel,1974). A mescla resultante de to-do esse movimento deu à cida-de e aos seus bairros contornosdiferentes e inusitados.

As revistas ilustradas que

pontearam as primeiras décadasda cidade exibiam, orgulhosas,“flagrantes” e “instantâneos” dostranseuntes, a passo acelerado,nas ruas do centro. Em muitasdessas imagens visualiza-se umagente aflita, principalmente narua da Bahia com avenida Afon-so Pena, correndo para não per-der o bonde ou para não ser atro-pelada pelos poucos automóveisde Belo Horizonte (Dentre ou-tras: A Vida Mineira, Revista deMinas, Vita, Vida de Minas eTank). Nos subúrbios a vida eraoutra, o tempo corria a passosmais lentos. O nosso contatocom essas outras imagens só épossível, na maioria das vezes,através das recordações de seusantigos moradores, dos álbunsde família, de reminiscências nasquais se confundem diferentescidades.

Pouco sabemos sobre os bair-ros de Belo Horizonte, mesmoaqueles que são tradicionais eque surgiram ainda nos primei-ros anos da cidade, o próprioBarro Preto, o Calafate e outros.Às vezes, parece-me que vemosa história de Belo Horizonte, sen-tados em algum café ou confei-taria da rua da Bahia, numa es-pécie de saudosismo literário doque a cidade já foi e que já não émais. Eu talvez seja a pessoa me-nos indicada para fazer uma crí-tica como essa, pois afinal desen-volvi todo um trabalho de inven-tário da história da rua da Bahia.

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Maria Marta Martins de Araújo

Contudo, e não digo isso de for-ma contraditória, a história deBelo Horizonte é também, e emmuitos aspectos, a história des-sa rua que exerceu no passadouma função clara de centralida-de, sobretudo simbólica, atrain-do para si as fantasias e anseiosde diferentes gerações.

De uma certa forma, a redu-ção de nossa escala de observa-ção é sempre uma experiênciareveladora de novos ângulos, deelementos que antes não pareci-am importar. Entretanto, conti-nuamos trabalhando sem desvi-ar totalmente o nosso foco, falan-do talvez dos mesmos lugares desempre. Pergunto-me: será quenão estamos reproduzindo umamesma história em função dosregistros que temos em mão?

O modo como os indivíduosse relacionam com os lugares his-tóricos e monumentos da cida-de nos diz muito sobre o senti-do que esses mesmos indivídu-os dão ao seu próprio lugar nomundo contemporâneo.

Oposta às categorias de “real” ou de“racional”, a percepção imaginativaou fantasiosa do passado não alcan-çou nunca o estatuto ontologicamen-te mais autêntico que atribuímos ao“presente”, no qual somos convida-dos a viver ou do “futuro”, no qualsomos aconselhados a ter fé. Margi-nalizados, o passado e a memória tor-naram-se um risco. Por isso, pensaro passado é um risco. Recordar trans-porta-nos para outro tempo e, dessemodo, para outro lugar. É nisto quereside o perigo da memória. Se o tem-po é um lugar, o passado é uma ter-

ra distante e o nosso receio, uma fugaao confronto com o outro. Esta, porsua vez, uma fuga ao encontro conos-co próprios. (Fortuna, 1997, p. 139)

A memória é, portanto, a ma-téria-prima das identidades, daconstrução dos sujeitos. Media-doras entre a estrutura social e aação dos sujeitos, as identidadessão construídas e reconstruídasem um processo dinâmico noqual se inter-relacionam espaçoe tempo.

O espaço, da mesma formaque agrega e une as pessoas, éfator de distinção, impondo di-ferenças e qualificando os sujei-tos. Entretanto, de forma relacio-nal e interativa, os sujeitos, noseu cotidiano, alteram e manipu-lam os sentidos e significadosdos lugares, criando estruturasafetivas, cognitivas e individuais.Cada espaço da cidade, uma edi-ficação, uma rua ou um bairro é,sobretudo, um mundo especiale pleno de sensações, cuja iden-tidade, assim como a identida-de dos sujeitos, é uma constru-ção histórica realizada a partir daexperiência cotidiana.

Privilegiar certos lugares, en-quanto “lugares de uma memó-ria autorizada”, significa tam-bém distinguir experiências,marcar diferenças sociais, definiro que importa e o que é residu-al. Apesar de termos ampliadoos limites da história da cidadepara fora da avenida do Contor-no, muita coisa ainda está de fo-

ra. Uma exclusão que também sefaz presente nas discussões emtorno do que é a memória dessacidade.

A partir do que foi exposto, épreciso desenvolver uma políti-ca de valorização dos espaços dacidade, procurando flexibilizaros critérios utilizados para deter-minar o que é esteticamente va-lioso e historicamente significa-tivo, sobretudo levando em con-ta os interesses de grupos quesão social, política e culturalmen-te diversos.

Quando em 1993 discutía-mos, na Prefeitura de Belo Hori-zonte, uma proposta de inven-tário para a cidade, acreditáva-mos que as iniciativas de preser-vação deveriam contemplar aprópria dinâmica de uma cida-de planejada e de passado ain-da recente. O inventário foi de-finido enquanto um trabalho sis-temático de identificação, docu-mentação, proteção e divulgaçãode informações referentes aopatrimônio cultural de Belo Ho-rizonte. Tendo como recorte osbairros da cidade e partindo deuma noção ampliada de patri-mônio, pretendia-se inventariarnão apenas os bens culturais quese restringissem ao patrimônioedificado, mas também as fontese informações que possibilitas-sem a compreensão dos modosde organização do espaço urba-no, as diversidades de sua forma-ção e evolução e as expressõesculturais que lhe são constitutivas.

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A vida nos subúrbios: memórias de uma outra Belo Horizonte

A idéia era criar um núcleo depesquisa e de documentação.Além da pesquisa em arquivos einstituições, seria realizado umtrabalho nos próprios bairros àprocura de arquivos que, apesarde não estarem organizados, se-riam essenciais, como arquivosde igrejas, associações, sedes dejornais de bairros e outros.

O inventário também tinhapor objetivo a produção de fon-tes para a história dos bairros,principalmente através de regis-tros fotográficos e da coleta detestemunhos orais.

A proposta era trabalhar nãosó com bairros antigos, mas tam-bém com bairros de ocupação re-cente, como o Primeiro de Maio.Tratava-se realmente de um de-safio. Um levantamento inicialdemonstrou que tínhamos pou-cas informações sobre o bairroPrimeiro de Maio e que as fon-tes orais seriam fundamentais.Uma outra questão: como traba-lhar a noção de patrimônio deforma a identificar, em um bair-

ro de urbanização precária e debaixo padrão construtivo, asmarcas materiais de seu passa-do e de sua cultura?

Esse era um aspecto impor-tante, pois as coisas materiais de-sempenham um papel de enor-me relevância. Através dos ele-mentos físicos, os indivíduos egrupos sociais identificam os fe-nômenos, suas relações e suasinstituições. Com um olhar maisatento e através dos depoimen-tos dos moradores, foi possívelidentificar esses elementos, quetinham por função estreitar oslaços sociais e eram referênciaspara a comunidade: passagens,pontos de encontro, etc.

A principal conclusão à qualchego é a de que esse é um tra-balho importante e possível deser realizado, todavia necessitade um envolvimento maior dosdiversos órgãos da administra-ção pública e dos setores sociaisem torno de uma metodologia ede objetivos comuns.

Nos últimos anos, uma histó-ria dos bairros de Belo Horizon-te tem sido escrita de forma dis-persa e improvisada. O interes-se nesse tipo de história, ou nes-sa busca de identidade, tem le-vado as associações de bairro,escolas e demais entidades a pro-duzirem um material bastanterico em termos de fotos, textos eentrevistas. Sob a coordenaçãodo poder público, principalmen-te a partir das escolas, poderiaser realizado um trabalho maissistemático de produção de re-gistros.

Paralelamente ao centenárioda cidade, vivemos um momen-to de maior interesse na memó-ria e produção de histórias locais.Todo esse processo tem uma co-notação política clara: trata-se dabusca permanente e criadora dasidentidades e, nesse campo, nadaé desprezível se está em conso-nância com os anseios sociais.

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Maria Marta Martins de Araújo

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A razão moldando o cidadão: estratégias de política higienista e espaço urbano ...

A RAZÃO MOLDANDO O CIDADÃO: ES-TRATÉGIAS DE POLÍTICA HIGIENISTA EESPAÇO URBANO DISCIPLINAR – BELO

HORIZONTE – 1907-1908

Rita de Cássia Chagas HenriquesEspecialista em História Moderna e do Brasil

RESUMO

Este artigo pretende desvendaro discurso higienista veiculado porum jornal na recém-fundada BeloHorizonte do início do século, si-tuando dialeticamente discurso epalco como fundamento e reflexo daordem republicana em Minas.

Aconstrução da república em Minasconstou, como sabemos, da estrutu-ração de um arcabouço político-eco-

nômico e da modelação de um tipo de cidada-nia que se adequasse tanto às exigências da

nova ordem econômica quanto às premissas do Estado. A estruturapolítico-econômica se firmou no pacto que congregou chefes locais emtorno do sólido Partido Republicano Mineiro – o PRM – cuja adesão àpolítica dos governadores assegurava a continuidade da atenção aosinteresses políticos e econômicos a partir do fortalecimento da bancadamineira na câmara federal. Num modelo inovador que se mostravaavesso às mazelas monárquicas, as bases eleitorais eram cooptadas parao projeto com tal peso de continuidade através de dois mecanismos:uma rede clientelística, fundada nos laços de família, que acabou porconstituir o estamento burocrático mineiro e um discurso oficial, fun-dado no positivismo, consoante com a nova ordem, que mostrava comonaturais as diferenças entre os homens de 1ª e 2ª classe, e a dominação dos

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Rita de Cássia Chagas Henriques

primeiros sobre os demais. Nes-se contexto, o ideário liberal-bur-guês foi sendo difundido e in-fundido nas classes subalternasmineiras: com uma fachada uni-versal, modernizadora, que ve-lava as estruturas de dominaçãonele implícitas.

Na passagem do século, apolítica higienista, matriz ideo-lógica dessas práticas e discursos,adequava-se ao projeto político-econômico-social subjacente àconsolidação da república emseus desdobramentos regionaise municipais. Em Minas, a re-cém-instalada capital exibia umplanejamento urbanístico e ar-quitetônico digno de novos tem-pos, eficiente no sepultamentode um insalubre arraial e, por isso,merecedor de uma populaçãosintonizada com sua realidade.

É a consonância do discipli-nador higienismo com as de-mandas da modernidade belo-horizontina que vamos aqui des-vendar, em três de suas nuancesque nos parecem mais revelado-ras: o combate à vadiagem, a de-fesa firme da moral familiar e ogosto pelo cientificismo.

Os subsídios que nos permi-tiram apreender o estrito elo en-tre a necessária moralização dapopulação belo-horizontina doinício do século e o discurso hi-gienista foram fornecidos pelosartigos do jornal Diário de No-tícias, que circulou em Belo Ho-rizonte a partir de 21/02/1907; ti-

nha oficina e redação à AvenidaLiberdade n. 205, telefone 148. Aúltima publicação do Diáriocompilada no Arquivo PúblicoMineiro é a de n. 489, de 31/10/1908, o que impõe o recorte cro-nológico deste trabalho entre asdatas citadas. A política higienis-ta em Belo Horizonte certamen-te extrapola esse período. Cre-mos, entretanto, que a amostra-gem desses dois anos pode sersignificativa e elucidativa para otema que nos propomos desen-volver.

Voltemos então ao palco e àcena principal.

Migrantes e imigrantes queafluíram à capital mineira, comomão-de-obra para sua constru-ção e posteriormente suas indús-trias e colônias agrícolas, encon-traram um espírito arraigado aosideais positivistas e cristãos, deforte apelo moralizante. No iní-cio do século, moralizar signifi-cava sanear, redefinir valores emodelos de comportamento;sintonizar-se com a vida do sé-culo XX.

Adequar-se era trabalhar pelamudança da pátria. “... Educaçãoe razões do Estado ( = da nação)vão, pois, se complementar.”(Melo, 1990, p. 145). A elite polí-tica soube dosar os princípios darazão com o pragmatismo cien-tífico e as demandas específicasmineiras. Herança da economiamineradora: a efervescência cul-tural, sabiamente moldada para

ecoar as pregações de ordena-mento social, prosperidade, esta-bilidade política através de umEstado eficiente, capaz até deconstruir uma cidade daqueleporte. Uma modernidade im-pregnada de conservadorismo –construções neoclássicas e cur-rais eleitorais.

Muitos foram os mecanismosutilizados pelas classes domi-nantes para divulgação de seusprojetos de dominação expres-sos como o saneamento necessá-rio às mudanças que não se fazi-am esperar. O jornal, um dosmais eficazes. Implicitamenteveículo de informação, algo quedeve circular, ser divulgado ediscutido. Na época em questãoo único elo de ligação entre o go-verno e os cidadãos (assim en-tendidos porque o jornal se des-tina em primeira instância àque-le que lê – e quem lê vota). O Diá-rio de Notícias cumpria diaria-mente o seu papel de informa-dor-modelador. Subjacente a ca-da matéria, podemos vislumbrarum toque moralizante, às vezesexplícito, outras vezes sutil, massempre dentro da perspectivahigienista de sanear o social.

De acordo com o ideal higie-nista, a mendicância foi alvoconstante do discurso do Diário.Indignava-se com a inércia daprefeitura para limpar a cidade dainfestação de mendigos que des-caracterizavam o provincianis-mo e os ares de modernidade be-

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lo-horizontinos. Insistia-se paraque um asilo (certamente namais longínqua periferia) fosseconstruído para abrigar os coita-dos, vítimas da má sorte. Esseapelo fortemente cristão abalavaos brios da prefeitura citando oexemplo de outras cidades, cujosExecutivos já tinham resolvidotais problemas. São Paulo é cita-da com freqüência, e a alternati-va apontada é sempre o asilo, oconfinamento das vistas dos ci-tadinos.

BH não pode continuar a exibir suaspompas, ao lado da miséria. Cabe aoestado o dever de assistir aos pobres,aos desvalidos, aos velhos, aos enfer-mos (...) Siga a Prefeitura, auxilia-da pelo Estado e pela população, oexemplo da municipalidade de SãoPaulo, (...) prohibindo terminante-mente a mendicidade nas ruas.”(DN, Ano I, n. 137, 01/08/1907 –1ª pág.).

Percebemos um grande sen-timento de temor nessas falas, epodemos avaliá-lo como a per-plexidade dos homens diante danova realidade das multidõesurbanas, aglomerações que semovem sem parar e que já nãopodem parar, pois é o ritmo nasociedade industrial. Se são ca-minhos para o progresso, trazemconsigo uma revelação perturba-dora: seus problemas são poten-ciais, e não se conciliam com asociedade idílica projetada. Maisque isso, são problemas que sus-citam revoltas. A sujeira, a men-dicância, a doença são o avessodas promessas de bem-estar. Do-

lorosas aos olhos de todos (mui-tas vezes repelentes), acusam aineficiência dos condutores dasociedade. São, portanto, seu al-vo principal, de vigilância e deavaliação.

“... A cidade se constituirá no obser-vatório privilegiado da diversidade:ponto estratégico para apreender osentido das transformações, numprimeiro passo, e logo em seguida, àsemelhança de um laboratório, paradefinir estratégias de controle e in-tervenção.” (Bresciani, 1985, p. 36).

As medidas apontadas comosolução de problemas tão imi-nentes casam perfeitamente como espírito positivista da física so-cial de Augusto Comte. As dis-torções sociais são explicadas pe-la rigidez das leis naturais que re-gem a sociedade. Ao Estado cabezelar pela harmonização dessesconflitos e distorções. Nada maisa fazer senão resguardar o cor-po social, confinar os mendigose isolar os doentes, medidas quetransparecem como humanitári-as.

Por outro lado, um sério pro-blema social deveria ser elimina-do, ao qual medidas paliativasnão seriam satisfatoriamente efi-cientes e que se configurava co-mo principal fator de desvirtua-mento da ordem social. Vadios,boêmios não eram vistos comohomens que estão fora do traba-lho, mas como aqueles que “(...)vagam recusando-se a trabalhar(...) se mantêm através de expe-

dientes pouco confessáveis.”Igualmente temidos, os vadios eboêmios, mais que “desajusta-dos” da república do trabalho,são exemplos de vida desregra-da e impulsiva, merecedoresportanto de coerção.

(...) Bom concurso trariam a acçãorestauradora das nossas forças pro-ductoras em boa hora emprehendidapelos poderes públicos, os senhoresda polícia si conseguissem a comple-ta extincção da vadiagem em a nos-sa terra. Mesmo na Capital é contris-tador o espetáculo que presenciamos:as tavernas vivem locupletadas deparasitas que tantos serviços podi-am prestar (...) e não seriam esse can-cro social que todos nós devemos te-mer. Guerra, pois, aos vadios (...)(DN, Ano I, n. 3, 23/02/1907, 1ªpág.)

O alvo é a vadiagem em si,aquela que se origina na pobre-za, na recusa ao trabalho assala-riado. É a pobreza, em si, perni-ciosa. Desconsiderando que ascontradições da sociedade urba-no-industrial têm efeitos sobretodas as camadas sociais, o jor-nal impinge ao pobre a culpa darebeldia, do mau exemplo.

(...) Ao vadio, a cadeia ou meios efe-tivos de pressão para transformá-loem trabalhador assalariado, mão-de-obra, força de trabalho. Por via dasdúvidas se se educar esse homem po-bre será mais fácil prepará-lo e sub-jugá-lo pela palavra. (Melo, 1990,p. 12)

É então a educação que entraem cena e se faz presente em vá-rios artigos que, muitas vezes,“despretensiosamente” divul-gam realizações e acontecimen-

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Rita de Cássia Chagas Henriques

tos sociais em escolas públicas,enfocando os serviços prestadospela instituição escolar. Pano defundo: o Estado efetuando me-didas de cunho social. É bem di-vulgada também a iniciativa daIgreja em inaugurar a 19/10/1907uma Escola Noturna de Instru-ção Primária, viabilizada pela As-sociação de Assistência à Pobre-za da Paróquia Boa Viagem, des-tinada a pequenos operários ecolonos.

Os poderes públicos, zelando dos de-senvolvimentos physicos e intelectu-ais da infância, não visam exclusi-vamente as individualidades de seuscompatrícios, mas também a forma-ção de uma sociedade resistente e deespírito bem formado para a glóriado paiz. (DN, Ano I, n. 72, 16/05/1907, pág. 2)

A escola, a modeladora dosfuturos homens que fariam “aglória do paiz”, via ordem e pro-gresso. Uma sociedade resisten-te equivale a um corpo são, im-penetrável para os males exter-nos ou suficientemente forte pa-ra combater os males internos. Opoder público, o zelador, o con-dutor; seus agentes, os médicose educadores, detentores de umsaber científico que lhes permi-tia atuar para sanear corpos ementes. Mais que a afirmativa deque o corpo era passível de edu-cação tanto quanto a mente (oque nos remete a Foucault e sua“docilidade dos corpos”) a edu-cação é alternativa que viabilizaa adequação do homem à nova

ordem social. Aquele que apren-de quando menino não vai paraa cadeia quando adulto.

A escola forma mente, corpoe caráter. Os grêmios literáriosserviam perfeitamente para a di-vulgação do ideal de comporta-mento que se esperava das crian-ças e das mulheres em particu-lar. A estas cabiam não só a sub-missão natural, como também amissão de reproduzir, por com-portamentos e ações, os valoresimplícitos nessa submissão, queé fundamental no pensamentosocial positivista. Seriam as mu-lheres o exemplo de resignaçãobenéfica diante das leis naturaisque lhes atribuíam estatuto deinferioridade. O mesmo deveri-am fazer os demais segmentosinferiores.

(...) Grêmio Aurélio Pires. No salãoda Escola Normal-Modelo (...) ef-fectuou-se domingo passado maisuma sessão desta graciosa e promis-sora sociedade literária (...) foi dadaa palavra a talentosa senhorita Ga-briella Varella (...) leu algumas tirassobre o thema A modéstia, revelan-do grande pendor para as letras.(DN, Ano I, n. 120, 12/07/1907, 1ªpág.)

Ser modesto é não se dar con-ta do próprio potencial, e assu-mir que não pode, não sabe, nãodeve. Impunham-se à mulhermodelos que a configuravam co-mo ser híbrido, não pensante,cujo principal papel seria a re-produção dos homens e dos va-lores inerentes à ordem social.Não só em casa as mulheres

aprendiam essa sublime tarefa,também na escola exercitavam-na: “(...) O uniforme ensina amoça a vestir-se com decência esingeleza (...)”. (DN, Ano I, n.116, 07/07/1907, pág. 2)

Instrutor, o jornal tambémcensurava os desvios e os mauscaminhos que distanciavam asmulheres de sua missão sagrada.Aqui também não lhes apontauma opção de “recuperação”,trata-as como causadoras de suaprópria desgraça. Obviamente,podemos encontrá-las nas cama-das mais pobres, entre aquelesque não freqüentam escola, nãoaprendem pelos jornais.

(...) Tenho-as visto pintadas. Car-mim nos lábios, carmim nos olhos,carmim nos queixos, carmim nasorelhas, carmim (...) etc. etc. E estastambém serão esposas, estas tambémserão mães! (...) Senhoritas, as mo-ças que se pintam são censuradas mi-seravelmente pelos homens de todasas idades. E muito mais poderia es-crever, mas não quero fazê-las corar.(DN, Ano I, n. 3, 23/02/1907, 1ªpág.)

Mais que condenadas, sãoapontadas como exemplo em ne-gativo para as moças de família.As prostitutas são meras notíci-as policiais, não se tece nenhumcomentário sobre as causas so-cioeconômicas da prostituição.Nem se clama por medidas paramelhorar sua condição de vidae trabalho. A prostituição é vigia-da e só emerge como ocorrênciapolicial, diante de fatos que po-dem ser explorados pelo jornal.

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O fim da devassidão moral erainvariavelmente a morte.

(...) Dois suicídios! Um era espíritocultivado, outra, pobre moça que obordel absorveu nas suas tanceshiantes, conspurcando-lhe o corpo ea alma (...) o cirurgião que acaboucom a vida não resistiu às seduçõesdo jogo (...) E o jogo continuará sem-pre indifferente às victimas que faz,indifferente às desgraças que occasio-na (...) o prostíbulo é a morte. (DN,Ano I, n. 51, 21/04/1907, 1ª pág.)

Cabarés, bares, bordéis e sa-lões de jogos são os temíveis am-bientes corruptores de corpos ealmas. Admitia-se uma sociabi-lidade amável, não um munda-nismo sem freio. Havia que con-ciliar privacidade com sociabili-dade, de modo a responder aosinteresses da família e do Esta-do. O discurso higienista é o nor-teador das experiências pessoaiscom o mundo, é o saber científi-co capaz de orientar quanto àrealidade maniqueísta que cir-cunda a família, é o que apontaseus meios de defesa e o perigovirtual que a cerca.

(...) Ora se todo mundo comprhen-desse o encanto da paz doméstica: omelhor livro da moral para os filhos,nenhum casal brigaria (...) Chegar agente em casa, após o trabalho quo-tidiano, encontrar satisfeita a espo-sa e risonhos os filhinhos, que gran-de delícia (...) (DN, Ano I, n. 268,09/01/1908, 1ª pág.)

Um padrão de comporta-mento também era indicado pa-ra a família, e foi assim resumi-do:

(...) Mal nos despertamos e após oscuidados da toilette, o almoço, etc., aprimeira cogitação é a missa, depoisdo que, portas abertas aos passeios,ao gozo. (DN, Ano I, n. 266, 07/01/1908, 1ª pág.)

Vida esta que não mais com-portaria valores e crenças nãofundamentados na ciência, narazão. Os costumes popularessão ferrenhamente apontadoscomo infundados, nefastos; sãoalvo de críticas ferozes que apon-tam “milagre” e “santo” sob ad-jetivos pejorativos. Obviamenteclama-se pela ação policial, ad-vertindo-se para as sombriasconseqüências que eventual-mente surgiriam, diante da inefi-ciência da polícia. A ciência po-pular inexiste, é charlatanice,seus agentes uma versão da va-diagem e da má fé.

(...) Feiticeiro (...) No logar denomi-nado Fortaleza, Município de Cam-pos Gerais (...) Tipo acaboclado temcausado alarma à população (...) Estetipo é de uma ignorância crassa ecom taes prácticas só poderá preju-dicar ... chamamos para o caso aattenção do Exmo. Sr. Dr. Chefe dePolícia (...) só falta o santo fazer pré-dicas religiosas para se parecer como famigerado conselheiro. (Do Alfe-nas) (DN, Ano I, n. 64, 07/05/1907,pág. 2)

Contraposto às crendices in-gênuas, infundadas, frutos daignorância, o discurso oficial ofe-rece informações pormenoriza-das sobre as maravilhas de fei-tos científicos – quase sempremédicos – que sintonizam o Bra-sil com a modernidade e solidi-ficam a legitimidade do cunho

científico embutido na própriaorganização estadual. Assim,convence-se a população de quea ciência é eficaz, prática, operapelo bem e é portanto digna deconfiança e inquestionável.

A fundação da Escola Livre deOdontologia foi ótima oportuni-dade para divulgar a valorizaçãodo saber profissional, científico.O aspecto da profissionalizaçãoé também importante faceta dodiscurso modernizador, já quevai ao encontro do ideal de nor-matização social para melhorcontrole deste pelo Estado.

(...) A arte dentária (...) é exercidapor prácticos nem sempre possuin-do os conhecimentos precisos paradesempenhar-se bem. A Escola Li-vre agora officialmente inauguradavae preparar hábeis cirurgiões den-tistas (...) afastando os ignorantes(...) em benefício da saúde pública.(DN, Ano I, n. 141, 06/08/1907, 1ªpág.)

Os próprios termos científicoseram divulgados nas notícias defeitos médicos, como maneira dereforçar o valor do profissionalque os executa.

(...) praticou o Dr. Magalhães Junioruma hysterectomia sub total por viaabdominal em consequência de umfibro myoma interno. DN, Ano I,n. 130, 25/07/1907, 1ª pág.)

Ao contrário, os remédios ci-entíficos eram divulgados comdepoimentos de beneficiários deseus efeitos, portanto em lingua-gem coloquial. Várias cartas che-garam ao Diário para parabeni-zar e agradecer ao Dr. Motta Ju-

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Rita de Cássia Chagas Henriques

nior pelo seu milagroso Dochmi-cida e pó ferruginoso, que cura-vam:

(...) opilação, azia, dor nas pernas,zoeira nos ouvidos, falta de appetite,dores de cabeça, nervosias, palpita-ções, menstruações difíceis e floresbrancas. (DN, Ano I, n. 164, 06/09/1907, pág. 2)

Eram os benefícios da ciênciaalcançando as pessoas mais sim-ples.

Os problemas de saúde públi-ca eram cobrados pelo jornal,como maneira de reforçar a im-portância do caráter público daquestão. Se a ciência contribuíacom os profissionais e as solu-ções, cabiam ao Estado ações queviabilizassem seu emprego dian-te de necessidades que se referi-am à população como um todo.Mais que as medidas de cunhosocial, tratava-se de canalizarpara o Estado a responsabilida-de dessas questões, mostrandoao povo que tamanha relevân-cia só o Estado poderia resolver.

Grave problema da época, aexpansão do número de casos devaríola nas vizinhanças da capi-tal era alvo de denúncia e alerta,para a urgência de providênciasque a situação exigia. Sabará,Nova Lima, Pedro Leopoldo sãocitadas como focos da epidemia.Aparece em pequenos artigos,na 2ª página, o número de casosregistrados em cada localidade.Pede-se a nomeação de delega-dos de “hygiene e vaccinação”,até que se anuncia:

(...) o provecto Dr. Cícero Ferreira,encarregado pelo governo do Estadode estabelecer um cordão sanitárioem pontos injectados pela varíola,medida útil e humanitária. (DN,Ano I, n. 87, 02/06/1907, 1ª pág.)

Um certo artigo conseguiu re-sumir todo o ideal higienista dodiscurso oficial:

(...) A higiene pública é sempre a ga-rantia da paz e felicidade de um povo,todos os males e desgraças vêm, é cer-to, de seu abandono. (DN, Ano I,n. 289, 04/02/1908, 1ª pág.)

Plena de contradições, a Re-pública em Minas foi sendo im-posta em nome da modernida-de. Inimiga histórica do centra-lismo monárquico e aspirando auma democracia liberal, a elitepolítica mineira restringiu a par-ticipação política a seus fiéis re-presentantes, que se alocavamcomo clientes em todas as esfe-ras de poder. A um Estado forte,construído segundo necessida-des autenticamente mineiras,deveria corresponder uma po-pulação igualmente limpa doscostumes de outros tempos. Acooptação popular se deu porum discurso que apresentava oEstado como força eficiente e ca-paz de promover melhorias emtodas as instâncias da vida emcoletividade. O maior exemplo:a construção de Belo Horizonte,cientificamente projetada, urba-nizada segundo os melhoresmoldes estrangeiros, sem dúvi-da a versão arquitetônica da mo-

dernidade erguida no centro deMinas. A cidade exigia um novomodo de vida, tanto quanto aRepública o trabalho assalariado,a nova concepção de família, delazer, de sociabilidade. Foi no jor-nal que a política higienista en-controu seu maior veículo. Suaperiodicidade garantia a conti-nuidade indefinida do discursoe o seu disfarce em matérias cujocunho não era, necessariamen-te, político. Através dele o povofoi sendo instruído para as no-vas exigências sociais, e apren-dendo que só a educação o fariaascender como cidadão, seme-lhante à idílica sociedade euro-péia.

Muitas são as formas de seconstruir um ideário e difundi-lo entre uma população, commecanismos tão eficazes que estapasse a assumi-lo como seu. As-sim como a passagem para o sé-culo XX, o limiar do século XXI éevidência de como acontecimen-tos históricos (de comemoração,no nosso caso) podem oferecervertentes para um discurso demudança, enquanto disfarçamas tramas de uma continuidadelatente. E de como uma estrutu-ra de dominação, reformuladaoportunamente, garante suapermanência enquanto tal, pou-co mudando o discurso. Nossacentenária BH, palco do Fórumdas Américas (?!) está aí paraprová-lo.

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09. TINHA QUE SER MINAS? Ensaio de política mineira. Belo Horizonte: Museu Mineiro, 1986.

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Lucília de Almeida Neves

BELO HORIZONTE – CORAÇÃODAS MINAS E DAS GERAIS

Lucília de Almeida NevesHistoriadora – PUC•Minas

RESUMO

O artigo refere-se aos aspectos his-tóricos, culturais, geográficos, ar-tísticos e sociais constitutivos damineiridade, além de situar BeloHorizonte como centro pulsativoda diversidade e pluralidade pecu-liares a Minas Gerais.

Tristão de Athayde, em A voz de Minas,obra clássica sobre a mineiridade, afirmaque o passado tem papel decisivo em

tudo o que é mineiro. “Os antepassados, os pro-cessos já utilizados imemorialmente, a lição do

tempo, enfim, tudo isso é ouvido e conservado em Minas com umadevoção por vezes excessiva” (Lima, 1983, p. 61). De fato, o imaginárioda mineiridade é fortemente nutrido por um profundo apego à memó-ria, por uma história transformada em tradição, pelas lembranças dosfeitos e ações das gentes que construíram a trajetória histórico-culturaldas Gerais e das Minas.

Minas Gerais é representada como encarnação dos ideais de re-denção da mineiridade/brasilidade. Mineiridade de ritmo lento e sóli-do, de substância e ação. Ação tecida no passado e reatualizada no pre-sente, abrindo espaço para a reprodução da memória da gente mineira.

Brasilidade consubstanciada no valor da liberdade tão cara aos mi-neiros. Pois, se são mineiros apegados à tradição, o são também à liber-dade. “O Brasil como consciência de liberdade nasceu aqui... Só a liber-dade faz as nações, cedo o entendemos e cedo reivindicamos a liberda-

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Belo Horizonte – coração das Minas e das Gerais

de” (Neves, 1986, p. 160). E o queé a história senão a realização daliberdade? Através do processocontínuo de construção da his-tória, o homem afirma-se comosenhor do seu destino, como su-jeito de sua trajetória. Na afirma-ção da liberdade, como ressaltaArruda, “a mineiridade adquireuma certa dimensão épica, porapoiar-se no imaginário tecidopelo destino dos inconfidentes”(Arruda, 1990, p. 213). Imaginá-rio da luta pela soberania e pelaindependência nacionais. Imagi-nário de herança iluminista, ilu-minado pela crença na força deuma racionalidade autônoma ca-paz de propiciar conhecimentoe ação libertadores.

A mineiridade constitui-sepor uma forte dimensão identifi-cadora do mineiro com sua ter-ra, com o solo em que nasceu,com os hábitos e costumes de seuestado. Terra de minério, ferro,pedras preciosas, ouro, prata,calcário. Solo fértil para o plan-tio do café e do milho. Amplo es-paço para pastagens. Horizontesde múltiplo sonhar.

A mineiridade constitui-setambém por uma dimensão par-ticular de temporalidade, naqual a tendência a valorizar opassado mescla-se, em uma úni-ca teia, com o apego à tradição,inclusive com o que é identifica-do pelos mineiros como tradiçãolibertária. Liberdade de construirsua trajetória. Liberdade de ação

do ator político e social que in-tervém na realidade com o afãde transformá-la.

Mas soada a hora da ação, o mineirose agita, não teme surpresas e suasarrancadas conservam a impetuosi-dade dos fenômenos sísmicos. Ele de-safia as intempéries, enfrenta o pa-tíbulo, planta instituições, rasga oscéus, inova a ciência, aprimora a ar-te, planta cidades, prega e faz revolu-ções. (Guimarães, 1995, p. 167)

De fato, os mineiros, ao lon-go da história brasileira, têm sedestacado por sua capacidade deinserção como sujeito ativo naconstrução do destino do país.No período colonial, os inconfi-dentes, através de um ato de re-beldia, lutaram contra o domínioportuguês e a favor da sobera-nia de uma nacionalidade queentão nascia. Na república con-temporânea, os mineiros atua-ram em diferentes momentos,deixando sua marca na vida dopaís. É bem verdade que essamarca ora associou-se à liberda-de e ao progresso, ora ao autori-tarismo e retrocesso político. Naprimeira linha, foi o que ocorreucom o Manifesto dos Mineirosno fim do Estado Novo, com oprojeto de modernidade jusce-linista que plantou a Pampulhae depois Brasília, além de, re-centemente, com a transição de-mocrática para a Nova Repúbli-ca. Na outra linha, destaca-se aconhecida participação de seto-res da elite mineira no golpe de

estado de 1964, que mudou o des-tino do país.

A convivência aparentemen-te paradoxal entre uma tradiçãosecularmente cultivada e os va-lores da liberdade de ação é, naverdade, uma das muitas expres-sões de uma sociedade pluralis-ta, múltipla, de um estado noqual diferentes costumes e cul-turas se constituem em um ca-leidoscópio de cores e formas va-riadas, algumas vezes contradi-tórias, algumas vezes amalgama-das em uma construção culturalpeculiar.

Na verdade, a cultura minei-ra é uma multiplicidade, um ca-dinho de manifestações artísti-cas, literárias, musicais, artesa-nais, arquitetônicas, patrimoni-ais que retratam a realidade deum território geograficamentediversificado e de uma socieda-de plural.

Minas Gerais é a região do mi-nério e das minas. É a Zona daMata com suas serras sempreverdejantes. É o Triângulo Mi-neiro com suas amplas pasta-gens. É o Vale do Jequitinhonhacom seu rico artesanato. É a re-gião das vertentes com seu ex-trativismo de prata e sua produ-ção de estanho. É o Vale do Açocom suas metalúrgicas. É o suldo estado com seus amplos ca-fezais.

As cidades históricas, OuroPreto, Sabará, São João Del Rei,Tiradentes, Serro, Congonhas,

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Lucília de Almeida Neves

Diamantina são Minas e são Ge-rais. As estâncias hidrominerais,Poços de Caldas, Araxá, São Lou-renço, Lambari, Cambuquira sãofontes de mineiridade. As gru-tas de Maquiné, da Lapinha e doRei do Mato são as Minas e asGerais mergulhadas em suas en-tranhas arqueológicas. Minasdiversificada. Minas unificadaatravés da identidade de seu po-vo com o passado e com a terra.Conexão de tempo, espaço, his-tória, mentalidade.

Não se pode, portanto, discu-tir cultura em Minas sem se le-var em consideração a multipli-cidade de culturas do estado. OTriângulo Mineiro, o Vale doAço, a Minas Barroca, o Vale doRio Doce, o São Francisco, a Zo-na da Mata e a região sob influ-ência mais direta de Belo Hori-zonte apresentam característicashistórico-culturais, costumes ehábitos muito diversos.

Uma concepção de mineiri-dade abrangente e que contem-ple essa diversidade pressupõeo alargamento da visão e doolhar para além das montanhasde minério, para além do solo deferro, para além do barroco. Co-mo já dizia Daibert, “as paisagenssão muitas e em todos os níveis.”(Daibert, 1995, p. 167). Em dife-rentes cidades mineiras foramgerados talentos excepcionais.Uma gente reflexiva, densa, cria-tiva, pungente.

Carlos Drummond de Andra-

de, com seus versos, animou acapacidade criadora de Minas.Adélia Prado, marco da sensibi-lidade feminina, canta a singe-leza e a plenitude do interior mi-neiro. Guimarães Rosa levou aomundo os sertões e a alma dasGerais. Milton Nascimento trans-forma em musicalidade os sen-timentos da gente mineira. Fer-nando Brant constrói versos detravessia da mineiridade para abrasilidade.

Pedro Nava fez renascer opassado e a história nele conti-da, através do entrelaçamentode suas profundas reminiscênci-as com a memória coletiva daZona da Mata, de Belo Horizon-te, do Brasil. Murilo Mendes pro-duziu versos de fina e sofistica-da sensibilidade.

Guignard, Carlos Scliar, Car-los e Fany Bracher, Dnar Rocha,Maria Helena Andrés, Yara Tupi-nambá e Arlindo Daibert repre-sentam o que há de mais requin-tado e sensível na pintura e nodesenho deste grande mosaicode luz, cor e perspectiva que éMinas Gerais.

O Grupo Corpo, com suas co-reografias de especial leveza, fazviajar pelo mundo a mineiridadeem movimento. Os bonecos doGrupo Giramundo encantam al-mas e corações com a melhor cri-atividade dos mineiros. O Gru-po Galpão faz aflorar a fantasiae torna o teatro acessível à gentecomum.

O Coral Ars Nova, Grupo Uak-ti e a Orquestra Ribeiro Bastos sãosinfonias de mineiridade, são osom das Minas reatualizado atra-vés da alegria musical do Skank.

Gerais são as Minas. Muitossão os mineiros. O gosto pelaação criadora, entretanto, os unena paisagem do tempo, no espa-ço da história, na construção dofuturo. Mineiros que agem comserenidade própria às mentesreflexivas, mas também compassionalidade, arroubo e so-nhos, peculiares aos seres quetêm espírito visionário. Fitar ohorizonte, mesmo que, muitasvezes, através das montanhas, éuma prática que, em Minas Ge-rais, cultiva-se desde a mais ten-ra infância.

Do passado para o futuro,através da reconstrução/constru-ção cotidiana do presente, o olhare os sentimentos do mineiro via-jam pelo tempo. Constroem novatemporalidade, reafirmam signi-ficados através de uma posturaindagativa, sonhadora. Pois, co-mo afirma Braga, “Minas não éum grande hospício: é simples-mente um caldeirão de sonhos”(Braga, 1997, p. 3). Sonhar, mas“nunca correr à frente da alma”(Braga, 1997, p. 3). Sonhar e en-xergar o mundo com olhos deuniversalidade. Ser cosmopolitasem perder a certeza das raízese das sementes. Cristal de lumi-nosidade multifacetada. Ação/criação.

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Belo Horizonte – coração das Minas e das Gerais

As Minas e as Gerais em mui-to têm contribuído para a reno-vação das idéias, das letras, dasartes. Plantado em sólido terre-no de ferro, em solo fértil, às mar-gens de grandes represas e emmontanhas verdejantes, o minei-ro não se recusa a contribuir paraa transformação da sociedade naqual vive.

Em Minas, o futuro aparececomo ameaça a um passado quese quer manter vivo. As cidadeshistóricas de Minas traduzem,melhor do que qualquer outromovimento, o que vai pela almado mineiro. Um pé na tradiçãode criativa liberdade, um cami-nhar pela história. Um olhar si-multâneo para trás e para dian-te. Ousadia de renovar, de dis-cordar, de cultivar utopias, deconcordar, de transgredir, de re-sistir, de lutar, de afirmar aalteridade, de cultivar o pluralis-mo, de rasgar horizontes.

Belos, novos, atualizados, re-novados, multicoloridos hori-zontes. Horizonte de pôr-do-solrasgado pela vermelhidão mine-ral, ancestral. “Belo Horizontecoração das Minas e das Gerais”.Das Minas várias de GuimarãesRosa. Da região das montanhas,onde habita uma gente cautelo-sa, afeita ao isolamento, intros-pectiva, mas ávida de conheci-mento. Região geradora de ho-mens de letras, de artistas, de se-res viajantes pelas artes plásticas,

pela música, pelas literaturas.Belo Horizonte, capital das Ge-rais. Região de amplitudes eaventuras, de linguajar metafó-rico, de devaneios ao entardecer,de criatividade sertaneja.

Belo Horizonte, cidade cente-nária, plantada em solo mineirono alvorecer da república, quan-do o gosto pela renovação con-tagiou a alma brasileira. Belo Ho-rizonte, sonho e realização posi-tivista de um tempo do acredi-tar no progresso. Capital de umnovo tempo. Prenúncio de umaépoca de efervescência. Tributoà modernidade, que renova. Ci-dade-síntese da alma mineira.Belo Horizonte cravada na Ser-ra do Curral, ocupando as terrasda antiga Fazenda do Leitão,anunciando uma nova vida, pre-dominantemente urbana, gregá-ria. Belo Horizonte do alvorecerdo século XX. Nova temporali-dade no tempo secular das Mi-nas e das Gerais.

Belo Horizonte centenária.Cidade que, para Machado deAssis, parecia mais uma exclama-ção do que um nome. Capital deplurais e inquietas almas. Cida-de construída em poucos anos.Reconstruída, renovada, rear-quitetada em outros cem. BeloHorizonte de Aarão Reis e Afon-so Pena. Cidade planejada paraseparar, segregar. Em um outromundo deveriam se estabeleceros que viviam além da Avenida

do Contorno. Cidade que, toda-via, teve o destino de mesclar,amalgamar, acolher, conter mi-neiros, mineiridade, mineirida-des. Por isso se diz que seus ven-tos contêm horizontes vários etrazem em si o odor de toda aMinas Gerais. “Maravilha de mi-lhares de brilhos vidrilhos”. (An-drade, 1996, p. 195)

Traçado circular de brasilida-de, que se faz presente no nomede suas ruas, que trazem para ocentro pulsativo de Minas os es-tados, as nações indígenas e ci-dades do Brasil. Belo Horizonteonde “se agrupam mineiros detodos os quadrantes do estado”(Dourado, 1997, p. 9), Belo Hori-zonte que é a Praça da Liberda-de com suas alamedas que apon-tam para o poder e suas palmei-ras que descortinam a vastidãoda altura. Belo Horizonte que éa modernidade da Pampulha ea heterogeneidade da Praça daEstação. Belo Horizonte que é aPraça Sete de caminhos entre-cruzados, centralizados. Hori-zonte que esbarra na Serra doCurral de poentes maravilhosos.Horizonte que descortina MinasGerais por inteiro. Horizonte in-terior, incontido, incontinente.Coração represado. Coração deminério, de leite, de café, deágua, de terra densa. Belo Hori-zonte, coração palpitante das Mi-nas e das Gerais.

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Lucília de Almeida Neves

Referências bibliográficas01. LIMA, Alceu Amoroso. A voz de Minas (ensaio de antropologia e sociologia regional brasileira). São

Paulo: Abril Cultural, 1983.

02. NEVES, Tancredo de Almeida. In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves e SILVA, Vera Alice Cardoso.Tancredo Neves: a trajetória de um liberal. Petrópolis: Vozes, 1986.

03. ARRUDA, Maria A. do Nascimento. Mitologia da mineiridade. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 213.

04. GUIMARÃES, Júlio Castanon(Org.), DAIBERT, Arlindo. Cadernos de Escritos. Rio de janeiro, SetteLetras, 1995. p. 167.

05. BRAGA, Welber. Adeus Mélia ou contornos da mineiridade. In: O Tempo. Caderno de Engenho e Arte.Belo Horizonte, 27/04/97. p. 3.

06. ANDRADE, Mário. Noturno de Belo Horizonte. In: ARAÚJO, Laís Corrêa. Sedução do Horizonte. (Co-leção Centenário). Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1996. p. 195.

07. DOURADO, Autran. Mineirice e... In: O Tempo. página Atualidades e Opinião. Belo Horizonte, 2/4/97.p. 9.

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

CATOLICISMO EM BELO HORIZONTENA PROXIMIDADE DO NOVO MILÊNIO

Alberto AntoniazziDepartamento de Filosofia e Teologia da PUC•Minas

RESUMO

O Autor parte da convicção deque uma grande mudança está emato no campo religioso, nas socie-dades ocidentais e no Brasil. Esco-lhe, como área de estudo, a respos-ta da Igreja Católica a estas mu-danças, nos anos ’90, no âmbito daArquidiocese de Belo Horizonte,cuja população e território coinci-dem substancialmente com a Re-gião Metropolitana da Capital mi-neira. À luz das pesquisas dispo-níveis, analisa: o prestígio da Igre-ja Católica comparada com outrasInstituições; a prática religiosa doscatólicos, em particular a freqüên-cia à Missa dominical e aos sacra-mentos; as crenças dos católicos edos fiéis de outras religiões; a in-fluência da religião sobre a vida doscatólicos, inclusive sobre práticasdevocionais e atividades sociais epolíticas; a difusão de associações emovimentos; a atuação no campoda comunicação social.

Mudança radical na religião?

Areligiosidade do mundo ocidental so-freu ou está sofrendo, nos últimosanos, uma mudança radical, tal como

não se via há muitos séculos, talvez a mais ra-dical da época cristã ou mais profunda do queaquela que Karl Jaspers situava no século VIa.C., por ele tido como o tempo-eixo da histó-ria mundial?

É difícil para nós, contemporâneos dessa mu-dança, opinar sobre ela e, principalmente, com-pará-la com outras épocas históricas. Mas nãopodemos descartar a hipótese de que a mudançade que somos protagonistas (ou, pelo menos, ví-

timas) seja realmente tal que impeça considerar a nossa época – os anos ’90do século XX – como uma simples continuidade das épocas anteriores.

Não saiba sua mão esquerda o que faz a direita.

(Mt 6,3)

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Alberto Antoniazzi

Ou seja: parece-me difícil ten-tar uma história contemporâneado catolicismo (ou, em geral, dacultura) em Belo Horizonte, semlevar em conta que – mesmo quemuitos tenham escassa consciên-cia do que está acontecendo –algo novo está chegando, algoque não está enraizado antes detudo na história apenas centená-ria da cidade ou no “catolicismomineiro”,1 mas num fenômenode amplitude muito maior, queatinge todo o mundo ocidentale, numa medida a ser discutida,também o resto do mundo.

A transformação em ato émuito complexa, para tentaraqui tomá-la por inteiro comoquadro de referência. Adotamosuma hipótese mais simples a res-peito das atuais mudanças nocampo cultural e religioso: aque-la formulada por Thomas Luck-mann em sua obra “A religião in-visível”. (Luckmann, 1969)

Luckmann fazia, há trinta

anos, afirmações que o tempoparece ter confirmado. Para ele,a principal mudança ou “revo-lução” da sociedade contempo-rânea é que “a identidade pes-soal se torna, essencialmente,uma questão particular, privada”(Luckmann, 1969, p. 132). Emconseqüência, também a religiãose torna “assunto pessoal” (Luck-mann, 1969, p. 134). Explicitandoum pouco mais: numa socieda-de “tradicional”, é a cultura quedetermina, ao menos em gran-de parte, a identidade do indi-víduo. No contexto da socieda-de pluralista e complexa do nos-so tempo, a cultura “não é maisuma estrutura obrigatória de es-quemas de interpretação e ava-liação (da realidade), ordenadossegundo uma bem definida hie-rarquia de significação, mas éantes um rico, heterogêneo sor-timento de possibilidades aces-síveis, em princípio, a cada indi-víduo consumidor”(Luckmann,

1969, p. 134). Assim, no camporeligioso, quase como num mer-cado,2 “o indivíduo pode esco-lher como mais lhe agrada numsortimento de significados ‘últi-mos’ – guiado unicamente pelaspreferências determinadas porsua biografia individual” (Luck-mann, 1969, p. 134-135). Um dosresultados dessa tendência é achamada “religião invisível”, ouseja, uma religião feita pelas con-vicções interiores, pessoais, doindivíduo, que pode se utilizarde elementos da tradição degrandes instituições religiosas,mas que não se liga explícita eexteriormente a nenhuma insti-tuição religiosa em particular.

Outros resultados, que Luck-mann não tinha previsto comigual clareza desde os anos ‘60,são a reação radical ao subjeti-vismo moderno, encarnada nos“fundamentalismos” (ou neo-fundamentalismos), atualmenteem expansão,3 e a resposta, mais

1 O jovem historiador Sérgio Ricardo da MATA, autor de uma brilhante tese de mestrado sobre A fortaleza do catolicismo.Identidades católicas e política na Belo Horizonte dos anos 60 (Mestrado de História da UFMG, 1996), afirma que “as publi-cações sobre a história da Igreja em Belo Horizonte podem talvez serem carregadas em uma única mão” (tese cit., p. 4). Defato, além dessa tese (de próxima publicação, esperamos!), trabalho de vulto é apenas o do amigo Henrique Cristiano J.MATOS, autor de Um estudo histórico sobre o catolicismo militante em Minas, entre 1922 e 1936. Editora “O Lutador”, BeloHorizonte, 1990, 502 p. (o livro é centrado ao redor da figura de Dom Antônio dos Santos Cabral, primeiro arcebispo de BeloHorizonte, 1922-1967, ao qual dedica um longo capítulo, p. 377-453). Deve-se também mencionar o escrito do ilustre histori-ador mineiro João Camilo de Oliveira TORRES, que em 1972, no cinqüentenário da Arquidiocese, tentou, em condiçõesprecárias, um primeiro ensaio de história da mesma: A Igreja de Deus em Belo Horizonte. 215p. (edição comemorativa, semmenção de Editora). Mas não são apenas a escassez de bibliografia e a minha falta de tempo que me induzem a não procurarestabelecer laços de continuidade entre o catolicismo dos anos ’20 ou ’30, que não conheci, ou o dos anos ’60, do qual conser-vo nítidas lembranças, e a Igreja Católica na Belo Horizonte desta década. Minha convicção é de que, neste momento, deveser ressaltada mais a descontinuidade.

2 A analogia entre o comportamento religioso e o comportamento do cliente ou consumidor no mercado não pode ser exage-rada. Mas aqui não nos interessa uma discussão aprofundada da tese de Luckmann e outros, e sim apontar uma tendência.Mais adiante corrigiremos ou completaremos a tese de Luckmann.

3 O nome “fundamentalismo” foi aplicado inicialmente a um movimento protestante, que teve alguma repercussão nos Esta-dos Unidos nos anos ’20, e ressurgiu com força nos anos ’70, contra todo “liberalismo” e “modernismo”. Uma primeiramanifestação do fundamentalismo protestante estaria nos 12 volumes da coleção The Fundamentals. A Testimony to theTruth (1910-1915), que defendiam uma interpretação literal da Bíblia e da tradição cristã. Hoje, discute-se de fundamentalismo

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Catolicismo em Belo Horizonte na proximidade do novo milênio

matizada e complexa, das pró-prias instituições e tradições re-ligiosas, especialmente do cato-licismo.

Nosso objetode estudo

O quadro traçado esquemati-camente logo acima nos põe di-ante de três áreas de pesquisa:

1) o estudo do catolicismo “in-visível”, do catolicismo reinter-pretado subjetivamente pelos in-divíduos e – muitas vezes – mis-turado com outras crenças oupráticas religiosas, do quadro das“adesões parciais” ao catolicismoou das experiências religiosas in-fluenciadas em parte pela fé ca-

tólica: campo imenso e extrema-mente diversificado, que não po-de ser objeto deste breve artigo,e só poderia ser assunto de umaampla pesquisa de equipe, e po-de emergir também nos depoi-mentos e escritos de “católicos”com profunda experiência reli-giosa;4

2) o estudo dos fundamenta-lismos católicos, ou das tendên-cias fundamentalistas no âmbi-to do catolicismo; aliás, algunsestudos não faltam,5 mas tam-bém esse assunto exigiria umaampla pesquisa de campo emBelo Horizonte;

3) o estudo da “resposta” dasinstituições religiosas e, em par-ticular, da Igreja Católica às no-vas tendências culturais e reli-giosas. Nesse campo, dispomos

de algumas informações consis-tentes6 e, creio, ignoradas pelogrande público.

É a um ensaio de apresenta-ção das mudanças em ato naIgreja Católica – concretamentena sua organização local, a Ar-quidiocese de Belo Horizonte –que limitarei meu trabalho, ten-tando salientar alguns aspectosessenciais e explorar a documen-tação disponível, sem cansarmuito o leitor com excesso dedetalhes.

A credibilidadeda Igreja

Na tese de Luckmann, a ins-tituição religiosa estaria perden-

católico, muçulmano, etc. Para um panorama internacional das atuais discussões (segundo um ponto de vista teológicocristão), cf.: VÁRIOS AUTORES, Fundamentalismo: um desafio ecumênico, “Concilium” 241, 1992/3, 165p. (editora Vozes,Petrópolis). A mesma revista tem dedicado o n. 253 (1994/3) ao Islã e o n. 265 (1996/3) aos Movimentos Pentecostais. Esclarecedoro ensaio de Antônio F. PIERUCCI, Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa, Revista USP, n. 13, março de 1992, p.144-156.

4 Seria imperdoável não citar aqui um exemplo de catolicismo – não “invisível”, mas convicto e militante – tão relevante na Be-lo Horizonte do século XX (sobretudo para os anos 1940-1990) como o de Edgar de Godói da Mata Machado, cuja vida foinarrada pelo próprio Edgar num depoimento a: Lucília Almeida NEVES, Otávio Soares DULCI, Virgínia dos Santos MEN-DES (org.), Edgar de Godói da Mata Machado: fé, cultura e liberdade. Editora UFMG, Belo Horizonte – Edições Loyola, S.Paulo, 1993, 255 p. O depoimento deve ser completado pela leitura do Memorial de idéias políticas, Editora Vega, Belo Ho-rizonte, 1975, XIV, 534p.

5 Pode-se ver algum aceno no já citado n. 241 de “Concilium”. Vários pesquisadores se perguntam pelo caráter fundamentalistada Renovação Carismática Católica, ainda pouco estudada no Brasil (o CERIS está prestes a publicar os resultados de umapesquisa sobre a RCC em Campinas e no Rio de Janeiro).

6 Utilizarei particularmente três relatórios de pesquisas promovidas pela própria Arquidiocese de Belo Horizonte. A primeirapesquisa é um levantamento da participação nas missas dominicais realizado em 17 e 18 de novembro de 1990, que atingiu175 das 178 paróquias da Arquidiocese. A segunda pesquisa foi realizada por Antônio C. Guimarães – “Pesquisa e Consultoria”,em janeiro de 1991, mediante 803 entrevistas numa amostra da população adulta (18 anos ou mais) da Região Metropolitanade Belo Horizonte. Uma síntese dos dois relatórios, com comentários, foi publicada em 1991 num fascículo de 52 páginas:Religião na grande BH. Primeiro relatório das pesquisas promovidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte. (Doravante acitaremos como “Religião na grande BH”, indicando a página). A terceira pesquisa foi realizada também por “Antônio C.Guimarães – Pesquisa e Consultoria”, entre dezembro de 1992 e janeiro de 1993, mediante 600 entrevistas de uma amostrados jovens da Região Metropolitana de Belo Horizonte; uma síntese do relatório foi publicada pela Arquidiocese num fascí-culo de 45 páginas: Juventude face à vida. Pesquisa sobre os jovens na Região Metropolitana de Belo Horizonte. (Citaremosessa pesquisa como: Juventude face à vida). – Desde já, esclarecemos que a Arquidiocese de Belo Horizonte compreende omunicípio da Capital mineira (2.091.770 habitantes em 1º/08/1996 segundo a contagem do IBGE) e mais 27 municípios vizi-nhos (com um total de 1.684.611 habitantes). A Arquidiocese contava em 1996 com 3.776.381 habitantes, enquanto a RegiãoMetropolitana de B.H. contava com 3.803.249 habitantes; alguns municípios da Região Metropolitana não estão incluídos naArquidiocese e vice-versa.

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Alberto Antoniazzi

do prestígio e influência na soci-edade contemporânea. Foi ob-servado que a situação da insti-tuição Igreja não pode ser exa-minada independentemente dasituação de outras instituições.Todas de algum modo estão emcrise ou mudando, parcialmen-te, de papel. A Igreja Católica,em Belo Horizonte, nos anos ’90,está mais em crise do que famí-lia, escola, Estado, sindicatos,partidos, associações...?

Os dados de que dispomospara responder à pergunta sãolimitados e frágeis. Quem quiserpoderá fazer um estudo compa-rativo mais alentado.

Pesquisas de opinião anual-mente procuram medir a confi-ança do público nas instituições.O IBOPE, por exemplo, achouem dezembro de 1990 que 78%dos brasileiros adultos achavamconfiável a Igreja Católica (nosegundo lugar, vinha o rádiocom 58%). Em novembro de1993, o mesmo IBOPE encontra-va 77% dos brasileiros confian-do na Igreja Católica; os Meiosde Comunicação contavam coma confiança de 62%, os Sindica-tos dos Trabalhadores com 61%,a Justiça com 53%, os Militarescom 52%, outras Igrejas com42%, Congresso Nacional com32%, Empresários com 28%, Par-tidos com 19% e Políticos com15%.

Pesquisa mais recente é a do“Vox Populi” (Jornal do Brasil,

26/05/96, p. 8; Estado de Minas,26/05/96, p. 3), realizada em oitocapitais brasileiras, com amostrasda população acima de 16 anose mais de 5.000 entrevistas. Émuito provável que o públicodas capitais seja mais crítico e in-formado. As perguntas eram emtermos de aprovação/desaprova-ção. O resultado global foi:

A Igreja Católica é, certamen-te, a Igreja toda, incluindo aatuação do Papa e dos bispos emgeral. Não é a Igreja local, a Ar-quidiocese ou Diocese. Significa-tivo é que Igrejas locais notavel-mente diversas, como as do Riode Janeiro (capital) e São Paulo(capital), tenham tido aprovaçãoquase igual. Mais surpreenden-te é que as capitais com menornúmero de católicos adultos (cer-ca de 60% no Rio de Janeiro e65% em São Paulo, segundo pes-quisa da Datafolha de setembrode 1994) apresentam um alto ín-

dice de aprovação da Igreja Ca-tólica (74% no Rio de Janeiro e73% em São Paulo). Ao contrá-rio, cidades com maior númerode católicos (como Porto Alegreou Belo Horizonte) têm uma opi-nião mais crítica ou hesitam emse pronunciar. Em Belo Horizon-te, temos 67% de aprovação, 12%de desaprovação (ambas as por-centagens são mais baixas que amédia nacional) e 21% sem opi-nião (os mineiros preferem o si-lêncio?).

Um outro dado mais próximoda Arquidiocese de Belo Hori-zonte vem da pesquisa por elapromovida em 1993 entre os jo-vens de 16-24 anos (Pesquisa Ju-ventude face à vida) da Região Me-tropolitana (RMBH). Dela resul-ta um evidente contraste entreas aspirações ideais dos jovens eo comportamento prático. 52%dos jovens da RMBH julgammuito importante a participação

Instituições Aprovam Desaprovam Sem opiniãoImprensa 72,0 9,0 19,0Igreja Católica 72,0 12,0 16,0Forças Armadas 66,0 14,0 21,0Universidade Pública 62,0 15,0 23,0MST 59,0 24,0 17,0Polícia Federal 56,0 23,0 20,0PM do seu Estado 49,0 30,0 21,0Polícia Civil 47,0 30,0 23,0CUT 45,0 30,0 25,0Feder. das Ind. do seu Estado 37,0 24,0 40,0Câmara Munic. do seu Estado 33,0 38,0 29,0Congresso Nacional 27,0 44,0 28,0Igreja Univ. do Reino de Deus 17,0 69,0 14,0

Quadro 1

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em movimentos sociais, mas me-nos de 10% têm participação efe-tiva em movimentos sociais oucomunitários. 39% acham im-portante participar da política,mas apenas 2,3% têm filiaçãopartidária. A grande maioria dosjovens diz crer em Deus (apenas2,1% se dizem ateus) e 53,3%acham importante praticar a re-ligião numa igreja. Porém, só16% têm um compromisso co-munitário assumido pela fé ecerca de 35% participam, maisou menos assiduamente, daspráticas religiosas.

De qualquer forma, é eviden-te que as Igrejas atraem os jovensmais que os partidos, os sindica-tos, os movimentos sociais oucomunitários, as associações es-portivas... Apenas a família ofe-rece, de fato, maior apoio aos jo-vens do que a igreja e é, para agrande maioria, a instituição queoferece segurança.7

A prática religiosa

Os resultados da pesquisa do“Vox Populi” de maio de 1996 edas anteriores, do IBOPE, foram,por certos aspectos, surpreen-dentes. Revelaram que, especi-almente em cidades como Rio de

Janeiro e São Paulo, o númerodos que confiavam na Igreja erasuperior ao número dos que sediziam católicos. É preciso ir umpouco adiante e tentar definirmelhor quem são os católicos.

A sociologia da prática religi-osa, que teve certa fortuna e pro-duziu muitos trabalhos nos anos‘50 e início dos anos ‘60 (Deelen,1967), foi, logo depois, muitocriticada – inclusive no livro deT. Luckmann sobre “A ReligiãoInvisível” – porque tomava umcritério exterior, a prática, paramedir um fenômeno – a religio-sidade – muito mais complexo.As críticas, muito severas no fi-nal dos anos ‘60, e a mudança navisão da realidade, que levou aopredomínio do estudo das rela-ções entre religião, política e eco-nomia, fizeram quase desapare-cer – ao menos no Brasil – os es-tudos da prática religiosa.

A prática religiosadominical

Quando, em 1990, por moti-vos que tentaremos ilustrar de-pois, a Arquidiocese de Belo Ho-rizonte resolveu encarar mais deperto a realidade sócio-religiosa,uma primeira iniciativa foi pro-

mover um levantamento da prá-tica religiosa (católica) dominical.A metodologia usada é a mesmados anos ‘50. Foram distribuídasem 175 das então 178 paróquiasda Arquidiocese mais de 300.000fichas, com 17 perguntas e 64 op-ções de resposta. Para responder,bastava rasgar a ficha em pon-tos determinados, cada um cor-respondente a uma respostabem definida. Foram recolhidase analisadas 270.304 fichas dosfiéis acima de 10 anos de idade.(Não foram levantadas as res-postas de crianças menores de 10anos) (Religião na grande B. H., p.26-51). As respostas colhidas cor-respondiam a 1.294 celebrações– 1.206 missas e 88 cultos domi-nicais sem padre ou “celebraçõesda Palavra” –, com presença mé-dia de 209 participantes em cadacelebração. Note-se também que13.121 pessoas (4,85%) participa-ram de mais de uma missa nofim de semana.

Dos participantes, 162.820(60,2%) eram mulheres e 90.953(33,7%) eram homens; de 16.531(6,1%) não houve informaçãoquanto ao sexo. Desconsideran-do esse último grupo, a porcen-tagem é de 35,84% de homens e64,16% de mulheres. Em termosaproximados, a relação entre ho-mens e mulheres é de 5 a 9 (em

7 Os dados que acabamos de citar estão esparsos na síntese de Juventude face à vida. Veja, porém, especialmente as conside-rações da página 37 sobre “Pluralismo, fragmentação, contraditoriedade”.

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cada grupo de 14 participantes,5 são homens e 9 são mulheres).8

A porcentagem da participaçãodos homens é mais alta nas pa-róquias do interior, atingindo47,6% em Piedade dos Gerais,47,2% em Vargem Alegre, 45,5%em Belo Vale. É mais baixa nasparóquias da Capital, seja na zo-na sul (Santa Helena, 27,3% dehomens; São João Evangelista,na Serra, 30,4%), seja na zona les-te (Divino Espírito Santo, emSanta Efigênia, 28,7%; N.Sra. dasDores, na Floresta, 29%; Sagra-da Família, 29,8%). (Religião nagrade B. H., p. 29-30)

A porcentagem dos partici-pantes é também notavelmentediferente por faixa de idade. Emsíntese, pode-se dizer que estápróxima da média geral nas fai-xas de 10 a 19 anos; está forte-mente inferior à média geral (al-cançando pouco mais de 60% damédia) na faixa de 20 a 29 anos,que é aquela que registra o me-nor número de católicos prati-cantes; está ainda sensivelmen-te abaixo da média na faixa de30 a 39 anos; e finalmente se tor-na acima da média e progressi-vamente sempre mais alta a par-

tir dos 40 anos. Os participantesacima dos 70 anos são 6,46%, en-quanto a mesma faixa de idadeconstitui apenas 3,01% da popu-lação. (Religião na grande B. H., p.30-33)9

Mais importante é calcular aporcentagem dos participantesda missa dominical em relaçãoao total da população. O cálculonão é fácil, por vários motivos.O levantamento foi decididoquando se esperava ter o Censodo IBGE em setembro de 1990, oque não aconteceu. Pela primei-ra vez, o Censo foi atrasado emum ano, sendo realizado em se-tembro de 1991. Uma nova con-tagem populacional, feita emagosto de 1996, revelou um cres-cimento anual da população daRegião Metropolitana de BeloHorizonte de 2,09% (Jornal doBrasil, 6/8/97, p. 4). A populaçãoda Arquidiocese de Belo Hori-zonte, segundo o Censo de 1991,era de 3.421.249 habitantes (a daRMBH era de 3.436.060 habitan-tes). Podemos subtrair 1,7% aeste número para obter a popu-lação de novembro de 1990, queseria então de 3.363.088 habitan-tes. Calculando em 75% da po-

pulação o número dos católicos,temos 2.522.316 pessoas, dasquais podemos considerar obri-gadas (moralmente) à participa-ção da missa cerca de 65% (ex-cluindo as crianças até 10 anos,que não foram consideradas napesquisa, e mais uma pequenaporcentagem de doentes, pesso-as que trabalham no dia festivoou são impedidas por outrosmotivos). Temos assim o núme-ro de 1.639.505 católicos que de-veriam participar da missa. Sen-do de 257.183 o número de par-ticipantes efetivamente registra-do,10 a “taxa da prática domini-cal” (Deelen, 1967, p. 19-23) naArquidiocese de Belo Horizontepode ser calculada em 15,7%.

Pesquisas de opiniãoe levantamentoestatístico

As pesquisas de opinião dis-poníveis tendem a atribuir aoscatólicos, mesmo em Belo Hori-zonte, uma taxa de prática do-minical ou semanal ao redor de30%.11 Como explicar a diferen-

8 Com base nas pesquisas dos anos ‘60, G. DEELEN (A Sociologia a serviço da Pastoral, II, 29) afirmava que, nos estados doParaná e de São Paulo, entre dez pessoas que freqüentavam a missa dominical, 6 eram mulheres; no Nordeste do Brasil, arelação era de três mulheres para cada homem. Comentava que nenhum psicólogo ou sociólogo tinha explicado claramenteas causas do fenômeno.

9 Cf. ibidem, p.30-33. O fenômeno não é novo. O declínio da prática entre 20-30 anos já era assinalado por G. DEELEN nosanos ‘60 (cf. A sociologia a serviço da Pastoral, II, 42 ss.), que menciona também diversas explicações (ibidem, p.46-51).

10 O número total foi de 270.304, mas subtraímos o número de 13.121 pessoas que freqüentaram mais de uma missa no fim desemana em que foi realizada a pesquisa.

11 O Gallup encontrou 32% de prática semanal entre os católicos brasileiros em março de 1990 e 33% em julho de 1988. APNAD do IBGE, também de 1988, encontrou 31% de prática semanal entre os católicos. Para verificação das fontes e umaanálise crítica desses dados, cf. o estudo de L. Piquet CARNEIRO e Luiz Eduardo SOARES, Religiosidade, estrutura social e

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ça entre o nosso levantamento(que pode apresentar uma por-centagem levemente inferior àrealidade, pela falta de três pa-róquias e dados incompletos depoucas outras) e as respostasdadas às pesquisas de opinião?Provavelmente, a resposta estána distinção de dois tipos de pra-ticantes, que se encontram jun-tos na missa dominical, mas re-presentam dois universos dife-rentes: o primeiro grupo é cons-tituído pelos praticantes real-mente assíduos, que vão à missatodos os domingos (ou mesmo,uns 10%, todos os dias da sema-na): são cerca de 80% do total;um segundo grupo, que repre-senta os restantes 20%, é consti-tuído por pessoas que declaramir à missa dominical raramente.Em resumo, num domingo co-mo aquele considerado no le-vantamento, temos nas missascerca de 200.000 fiéis estáveis,com prática regular e continua-da, mas também temos cerca de50.000 fiéis que somente umavez ou outra participam da mis-sa. Admitindo que estes fiéis es-tejam presentes, em média, numdomingo em cada cinco, teremos– além de 200.000 fiéis assíduos,

outros 250.000 praticantes ocasi-onais, perfazendo assim os 30%de católicos que se dizem prati-cantes. O levantamento mostraassim sua utilidade, revelando adistinção entre os praticantes as-síduos, cuja participação é cons-tante e cujo vínculo de pertençaà Igreja católica é forte, e os pra-ticantes ocasionais, cuja partici-pação é pouco freqüente e cujosvínculos eclesiais são fracos.

A prática dossacramentos

Os dados acima apontam,grosso modo, a partir da partici-pação na missa dominical, trêscategorias de católicos: 15% depraticantes assíduos, 15% depraticantes ocasionais, 70% denão praticantes.

Mas é possível dispor, para aArquidiocese de Belo Horizon-te, de dados bastante confiáveissobre a prática dos sacramentosnos anos 1993-1996.12 Esses da-dos trazem novos matizes naanálise da prática religiosa cató-lica em B.H. De fato, tivemos52.639 batismos em 1993 e 52.010em 1996. Considerando que, se-

gundo o censo do IBGE de 1991,os nascidos no ano anterior à da-ta do Censo na Arquidiocese deBelo Horizonte eram 68.144, osbatizados na Igreja Católica re-presentariam 77,25% dos nasci-dos no ano. Aliás, é provável queo número dos nascimentos, de1991 para cá, tenha diminuído,acompanhando a tendência na-cional.13 Essa porcentagem debatizados significa que todos oscatólicos (e talvez até algunsnão-católicos) batizam os filhos.

A mesma coisa não se podedizer da Primeira Comunhão,cujos números oscilam ao redorde 40.000 por ano. Em 1993, hou-ve 41.644 primeiras comunhões,o que representava 56% das cri-anças com 9 anos de idade (to-mando como referência o Cen-so de 1991). As primeiras comu-nhões representavam pouco me-nos de 80% dos batizados daque-le ano. Isso indica que cerca de20% das famílias que batizam osfilhos não se preocupam emprepará-los para a Primeira Co-munhão ou Eucaristia.

Mais acentuada é a queda donúmero dos crismandos. Houve20.334 crismas em 1993 e 20.550em 1996. A crisma é ministrada

comportamento político, in: Mª Clara BINGEMER (org.), O impacto da modernidade sobre a religião, Loyola, São Paulo,1992, p. 9-58. Na pesquisa de opinião, por amostragem, encomendada em janeiro de 1991 pela Arquidiocese de Belo Hori-zonte, 29% dos católicos se declaram praticantes assíduos da missa ou mesmo empenhados em atividades pastorais.

12 Esses dados são recolhidos pelo chanceler da Cúria Metropolitana, mons. Geraldo dos Reis Calixto, e publicados (geralmen-te no mês de junho do ano seguinte) no boletim Arquidiocese em Notícias.

13 Segundo o IBGE, o crescimento anual da população brasileira foi de 1,38% entre 1991 e 1996, contra 1,93% no período de1980 a 1991. Na mesma época, a taxa de fecundidade caiu para 2,3 filhos, contra 4,3 em 1980. Cf. F. L. NOEL, População temcrescimento em baixa, Jornal do Brasil, 6/8/1997, p. 4.

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agora, geralmente, para adoles-centes de cerca de 15 anos. Se-gundo o Censo de 1991, os jo-vens de 15 anos de idade eram67.647, ou seja, aproximadamen-te o mesmo número das crian-ças até 1 ano de idade e um pou-co menos das crianças de 9 anos.O número das Crismas repre-senta cerca de 40% dos Batizadose 50% das Primeiras Comu-nhões.

Finalmente, temos 12.165 ca-samentos religiosos em 1993. Onúmero dos casamentos subiuum pouco em 1994 e 1995, masem 1996 foi de 11.630 (queda de5% em relação a 1993). O núme-ro dos casamentos, portanto,proporcionalmente, é um pou-co superior ao número das cris-mas e envolve cerca de 40% dapopulação da Arquidiocese quepoderia casar-se naquele ano ou53% dos católicos (na hipótesede que os católicos na idade dese casar sejam 75% da popula-ção total).

Persistência oufragmentação dascrenças?

Seria interessante poder en-tender melhor as motivaçõesque levam à (ou afastam da) prá-tica religiosa. Possuímos poucosdados a respeito. Mas os poucosnão deixam de ser significativose de jogar um pouco mais de luz

sobre o catolicismo belo-hori-zontino.

Na pesquisa de 1991, sobreuma amostra de 803 adultos, re-presentando a população da Re-gião Metropolitana, foram pos-tas perguntas sobre crenças.Apenas 1,6% se disseram ateuse não acreditam em Deus (ape-sar de 8,2% se declararem semreligião). Também a fé na divin-dade de Cristo é comum a qua-se todos (média geral: 87,2%),sendo um pouco menos fre-qüente entre protestantes histó-ricos e espíritas kardecistas (masmesmo estes acreditam na pro-porção de 87%). O único grupoque, maciçamente, não acreditana divindade de Cristo é o dos“sem religião”, dos quais 5% ma-nifestam a fé cristã. Um númerosemelhante (só com menor par-ticipação de espíritas e umban-distas) acredita que a Bíblia é pa-lavra de Deus. Mais curiosa é aresposta com relação à imortali-dade da alma: a média geral é de72%. Excluindo os “sem religião”(cuja crença na alma não passados 5%), a média sobe para 76%para os católicos, 80-85% entre osprotestantes (mais baixa entre ospentecostais, mais alta entre ostradicionais), 90% entre os espí-ritas e 100% entre os umbandis-tas. A crença na vida após a mor-te é mais forte entre os espíritas(97%), bastante fraca entre cató-licos e pentecostais (ambos com62%) e quase nula (3%) entre os

que não aderem a nenhuma re-ligião. Acreditam na reencarna-ção, em média, 55% dos entre-vistados (54,8%). A crença, comoé natural, é altíssima entre espí-ritas (97%) e umbandistas (91%);é media entre os católicos (63%,levemente acima da média ge-ral!); é baixa entre os pentecos-tais (26%) e os protestantes tra-dicionais (22%) e quase nula (3%)entre os que não têm religião.

Outra questão interessante,levantada pela pesquisa, foi aimagem de Deus. Embora a per-gunta indicasse nove alternati-vas de escolha e limitasse ante-cipadamente as respostas, pare-ce-nos significativo que quase50% dos entrevistados optassempor um Deus que é “Tudo, o To-do, o Todo-Poderoso”; só 17,6%indicaram Deus como “O Cria-dor, o Pai”; 7,8% como “Força ouEnergia Superior”; 7,6% como“O Ser Superior ou Supremo”;6% como “Protetor, Salvador daHumanidade”, 4,9% como “Je-sus Cristo” e 1,5% como a “San-tíssima Trindade”. Distinguindoas respostas dos fiéis das váriasreligiões, constatam-se algumasacentuações diversas, mas nãodiferenças radicais: os espíritasdesignam Deus como EnergiaSuperior em 26% dos casos (con-tra uma média de 7,8%); os um-bandistas se aproximam da po-sição dos espíritas, mas com me-nor freqüência; os pentecostaispreferem “Deus Todo-Poderoso”

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em 67% dos casos (contra a mé-dia geral de 49,3%) e tambémacentuam Deus como “JesusCristo”; os católicos, por seu pesopreponderante na amostra, es-tão próximos das médias gerais,mas é possível detectar uma levepreferência (19% x 17,6%) porDeus Pai e pela SS.ma Trindade(1,9% x 1,5%).

Como interpretar esses da-dos? Uma primeira hipótese,que mereceria uma verificaçãomais rigorosa, mas que não édesprovida de argumentos, éaquela que nos faz pensar numaespécie de “matriz religiosa bra-sileira” ou num conjunot de “tra-ços marcantes, convergênciasnotórias e condutas padroniza-das, que nos fazem inferir a pre-sença efetiva e decisiva de umsubstrato religioso-cultural”(Bittencourt, 1996, p. 45). A essa“matriz” ou a esse “substrato”,perdido por aqueles que dei-xaram toda religião, mas presen-te – com algumas diferenças –nos fiéis brasileiros de todas asreligiões, pertenceriam a crençaem Deus, considerado predomi-nantemente como o Todo-Pode-roso, mais temido que amado, ea fé na divindade de Cristo, novalor divino da palavra da Bíblia,na imortalidade da alma, na exis-tência dos anjos, na vida após amorte, na reencarnação. Apesarda aceitação de Cristo e da Bíblia(crenças reforçadas tanto pelocatolicismo, como pelo protes-

tantismo e espiritismo), as cren-ças tipicamente cristãs não pare-cem se sobressair vigorosamen-te, nem na questão de Deus (cujaimagem continua, muito fre-qüentemente, pré-cristã), nemna questão da reencarnação. Aexplicação estaria (Valle, 1976) nofato de que o catolicismo ou ocristianismo teria sido impostoao povo brasileiro, acabando porencobrir (mas não substituir!)um conjunto de crenças mais en-raizadas, de origem indígena eafricana, depois novamente re-elaborado num contexto de in-fluências externas mais recentes(por ex.: espiritismo), mas sem-pre persistindo por baixo de umacatequese cristã superficial epouco “inculturada”.

Essa interpretação, que olhaantes de tudo para o passado,não exclui outros fatores, ligadosao presente e destinados, quasecertamente, a se fortalecerem nofuturo. As pessoas que vivemhoje na metrópole belo-horizon-tina (ou em qualquer outra se-melhante) recebem diariamenteuma tal série de mensagens – pe-la TV, a imprensa, a propagan-da, a convivência com o mundourbano – que dificilmente ospoucos minutos semanais de ho-milias ou as poucas horas men-sais de catequese conseguemcontrabalançar, proporcionandouma formação religiosa coeren-te e consistente. À fragmentaçãoda informação e da cultura

atuais, acrescenta-se a fragmen-tação da própria mensagem re-ligiosa. Pelo menos, é a partirdessa hipótese que a Arquidio-cese de Belo Horizonte reagiu di-ante dos resultados da pesquisade 1991. Preocupou-se em dimi-nuir a fragmentação de suas men-sagens e em articular melhor osdiversos meios de comunicação(celebrações, homilias, reflexãoem pequenos grupos, programasde rádio e televisão), embora sa-bendo que isso não resolve tudo.

A influência dareligião navida social

A pesquisa de 1991 reveloutambém que mais de 56% dosentrevistados consideravammuito importante a influência dareligião na vida do dia-a-dia e27,9% a julgavam importante(total = 84,3%). O mesmo núme-ro julgava importante a religiãonas questões morais. Apenas20% julgavam muito importan-te a influência da religião na po-lítica e 25,9% a consideravam im-portante (total = 45,9%). A me-nor relevância política da reli-gião era confirmada por outrasrespostas: apenas 6,1% achavamótima e 26,7% achavam boa aação política da Igreja, enquan-to 20,5% achavam ótima e 43,2%achavam boa a ação social daIgreja (total = 63,7%).

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Mas, em que medida a reli-gião – declarada tão importante– consegue levar a um compro-misso moral e social efetivo? Noinício do artigo, falando da crisedas instituições, lembramos quea pesquisa de 1993 mostravauma forte distância entre as in-tenções e a prática dos jovens.Para os adultos, e em particularpara os católicos praticantes, te-mos alguns dados mais precisos.O levantamento da participaçãonas missas (novembro de 1990)incluía perguntas sobre o tipo de“engajamento” dos fiéis. As res-postas revelavam que a militân-cia política era pouco freqüente(menos de 2% nas Regiões N. Srada Conceição e N. Sra. da Pieda-de; 4% na Região N. Sra. Apare-cida).14 O empenho em associa-ções de bairro e sindicatos eraum pouco mais freqüente (RENSP:3,3%; RENSC: 4,1%; RENSA:6,2%). Mais forte era o compro-misso com as pastorais da Igreja(entre 9 e 12%). Ainda mais nu-merosos(as) os(as) que freqüen-tavam os grupos de oração (en-tre 15 e 18%). E a devoção aos

santos era praticada, nas três re-giões, por 47-48% dos católicospraticantes, aparentemente semnenhuma diferença significativapor área geográfica ou por clas-se social. (Religião na grande B. H.,p. 43)

A devoção aos santos pareceainda maior entre os católicosnão-praticantes. A pesquisa poramostragem de janeiro de 1991encontrou confiança nos santosem 73,5% dos católicos não-pra-ticantes, porcentagem nitida-mente superior aos 57,5% doscatólicos praticantes. (Os núme-ros das duas pesquisas – a poramostragem e a imediatamenteanterior entre os participantesdas missas dominicais – não sãoperfeitamente comparáveis, por-que as questões foram formula-das diversamente). A devoçãoaos santos dos católicos em ge-ral é confirmada também, napesquisa por amostragem, pelofato de que os católicos provêmdo interior mais que os membrosde outras religiões, valorizammais a tradição na escolha da re-ligião (67% contra 35%-45% das

outras religiões) e recebem maisa influência da família (91,5%).(Religião na grande B. H., p. 17-18)

Outro fato que pode ser cita-do sobre a devoção aos santos éa atração extraordinária exercidanos últimos anos em Belo Hori-zonte por São Judas Tadeu, cujosantuário no bairro da Graça évisitado por dezenas de milha-res de devotos todo dia 28 e, pormuito mais fiéis, no dia 28 deoutubro.15

Comunidades,movimentos epastorais

O levantamento da participa-ção nas missas dominicais cons-tatou também uma forte influên-cia do movimento conhecidocomo “Renovação CarismáticaCatólica”.16 De fato, entre 15%(na RENSP) e 18,8% (na RENSA)dos fiéis que estavam nas missasde 18/11/1990 se declararam par-ticipantes dos “grupos de ora-ção”.17 Quanto à participação em

14 A Arquidiocese está dividida territorialmente em três Regiões Episcopais, que receberam como título e padroeira, respecti-vamente: Nossa Senhora da Piedade (abreviatura: RENSA), que inclui o Centro e a região Sudeste de Belo Horizonte, maisos municípios de Caeté, Nova Lima, Sabará e vizinhos; Nossa Senhora da Conceição (RENSC), que inclui a Região Norte daCapital, com o distrito de Venda Nova e os municípios de Neves, Vespasiano, Lagoa Santa, Pedro Leopoldo e vizinhos; Nos-sa Senhora Aparecida (RENSA), que abrange a Cidade Industrial de Belo Horizonte e o Barreiro, Contagem, Betim, Esmeral-das, Ibirité e os municípios do Vale do Paraopeba. A RENSA concentra a área industrial e a população operária; a RENSPconcentra a classe média alta; a RENSC está numa situação socioeconômica intermédia, com muitos bairros residenciais po-pulares e alguns bairros de classe média alta (Pampulha).

15 No dia 28.10.1996 teriam visitado o santuário cerca de 200.000 pessoas.16 A “Renovação Carismática Católica” é um movimento difundido em muitos países, a partir dos Estados Unidos, poucos

anos depois do encerramento do Concílio Vaticano II (1965). No Brasil, está festejando 25 anos de história. Promove especi-almente os grupos de oração, além de eventos de massa.

17 17% dos presentes nas missas representavam cerca de 44.000 pessoas; note-se que há pessoas que freqüentam assiduamenteos grupos de oração, mas nem sempre a missa dominical.

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“comunidades eclesiais de base”(CEBs), as respostas eram vári-as: desde 1,2% na região maiscentral (RENSP) até 5,6% na re-gião mais operária (RENSA). Amédia geral era de 3,2%, equiva-lente a cerca de 8.300 pessoas(Religião na grande B. H., p. 43). Apesquisa da Datafolha de setem-bro de 1994 encontrou quase 2milhões de membros das CEBse 4 milhões de carismáticos (res-pectivamente 1,8% e 3,8% doseleitores). Em Minas Gerais, aporcentagem de carismáticos eraum pouco mais alta (4,4%) e ados membros das CEBs um pou-co mais baixa (1,4%). No caso daArquidiocese de Belo Horizon-te, vários fatores explicam o pe-queno número de CEBs: a qua-se ausência de população rural(onde as CEBs proliferam maisfacilmente); o apoio oficial dadosomente nos últimos anos; a fal-ta de um trabalho específico decriação de CEBs, a não ser empoucas paróquias.18

Há muitos outros movimen-

tos e associações no meio católi-co da Arquidiocese. Aliás, Minasse destaca pela presença dos “ou-tros movimentos”.19 Não dispo-mos, no momento, de dados pre-cisos sobre os movimentos fami-liares (como “Movimento Fami-liar Cristão” ou “Equipes de Nos-sa Senhora”, mais antigos, ou“Encontro de Casais com Cristo”,mais difundido), ou grupos dejovens ou os diversos ramos da“PJ” (Pastoral da Juventude). Ali-ás, esses movimentos seguemgeralmente um ciclo de altos ebaixos, de entusiasmo e de arre-fecimento, de retomadas e deimpasses. Contribuem, contudo,para a socialização dos jovens ea formação de lideranças, queposteriormente atuam em movi-mentos sociais, associações debairros, sindicatos, partidos.

Mais estáveis são as associa-ções tradicionais, como o Apos-tolado da Oração, a Legião deMaria20 ou as Conferências de S.Vicente, mais autônomas em re-lação às paróquias, mas muito nu-

merosas e atuantes no campo daassistência e promoção social.

Igreja e comunicação

Quem tem acesso aos instru-mentos de informação internada Igreja em Belo Horizonte ficasurpreendido com o número e avariedade das organizações quecompõem o mundo da Arqui-diocese: 204 paróquias, 24 fora-nias, dezenas de associações,movimentos e pastorais. Ao mes-mo tempo, não deixa de serigualmente surpreendente – nu-ma época de abundância dosmeios de comunicação – o des-conhecimento recíproco.21 Exis-tem, porém, bons canais de co-municação entre o centro da Ar-quidiocese e sua base. A RádioAmérica desempenha um papelessencial para o contato entre oArcebispo e os fiéis, particular-mente os mais devotos e um im-portante público feminino, comparticipação ativa nas atividades

18 Uma valiosa experiência de CEBs é a da Paróquia Jesus Operário no bairro Petrolândia (Contagem), próximo de Betim, daRefinaria da Petrobrás (que deu o nome ao bairro) e da Fiat. A história das CEBs de Petrolândia foi estudada pela professorade Comunicação da PUC•Minas Sandra de Fátima Pereira TOSTA. Os primeiros resultados da pesquisa foram publicadospela própria Paróquia: Fé, memória e comunicação: a construção das comunidades eclesiais de base de Petrolândia. Conta-gem, 1995, 55 p. Uma análise mais completa da vida dessas comunidades, de sua cultura, de suas opções políticas e religio-sas, é desenvolvida pela autora na tese de doutorado, que defenderá proximamente na USP.

19 A pesquisa da Datafolha de 1994 encontrou 10,4% dos eleitores ligados a movimentos católicos diferentes da RCC e dasCEBs. A média nacional era de 7,9% de eleitores ligados a outros movimentos. Cf. A. F. PIERUCCI – R. PRANDI, A realidadesocial das religiões no Brasil, p. 216.

20 O Apostolado da Oração conta com 40.000 membros; a Legião de Maria, com 5.848 legionários(as) e 45.500 auxiliares, segun-do o informativo da Arquidiocese de junho de 1997, com estatísticas relativas ao ano de 1996.

21 A “Assembléia do Povo de Deus”, realizada pela Arquidiocese em 12-13 de outubro de 1996, com a participação de mais de500 delegados de paróquias e organismos diocesanos, pôs em relevo esta falta de comunicação, seja pelo desconhecimentopor parte da maioria dos participantes das iniciativas de outras paróquias ou pastorais ou organizações diocesanas, sejapelas propostas avançadas para melhorar a comunicação interna da Arquidiocese.

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paroquiais. Além do Arcebispo,outros padres e dirigentes depastorais desempenham o papelde informar sobre pensamentoe ação da Igreja. Há vinte anos,a Arquidiocese produz uma mis-sa na televisão no domingo pelamanhã (atualmente na TV Mi-nas) e o Arcebispo apresenta oprograma “Palavra de Deus”, re-produzido também por outrasemissoras. Além disso, podem sercitados uma centena de boletinsparoquiais e o semanário “Jornalde Opinião”, muito apreciado,mas pouco conhecido.

Apesar das falhas indicadas,a comunicação “interna” (nosentido de dirigida aos católicosconvictos e praticantes) funcio-na satisfatoriamente na Arqui-diocese e há sinais concretos deuma maior expansão nesse cam-po (projeto de um canal de TVpróprio; aquisição de uma se-gunda rádio; melhor articulação

dos meios existentes; formaçãode equipes de comunicação emnível paroquial...). A que parecemais fraca é a comunicação “ex-terna”, dirigida ao grande públi-co, seja para fazer conhecer asatividades da Igreja, seja paracontribuir com um serviço de in-formação, educação e reflexãocrítica.22

Limitando-nos ao primeiroaspecto – o da divulgação daação social da Igreja –,23 parecehaver um grande déficit de co-municação quanto aos 4 hospi-tais, 33 ambulatórios, 20 casas derepouso ou asilos, 15 centros pa-ra atendimento a menores, 70creches, 50 consultórios familia-res, 44 centros de educação espe-cial e outras 26 obras sociais (to-tal: 262), além das 61 escolas de1º e 2º grau (com 63.654 alunos)e a Pontifícia Universidade Ca-tólica, com 24.013 estudantes.

É verdade que o evangelho

exige: “Não saiba a tua mão es-querda o que faz a direita” (Mt6, 3). Mas se não deve ser incen-tivado o exibicionismo ou o cul-to da personalidade (e neste es-tudo não citamos nenhum nomede pessoa), seria bom divulgar –com a devida discrição – exem-plos a serem imitados e prestarconta com mais clareza daquiloque paróquias, movimentos,pastorais e a organização dioce-sana fazem com recursos queprovêm substancialmente daspróprias comunidades.

Outra análise – que aqui nãoé possível – deveria ser feitaquanto à presença dos católicosna produção cultural ou na atua-ção política, que hoje parece maisdiluída do que na sociedade for-temente marcada pelo conflitodas ideologias dos anos ‘30 ou ‘60deste século, quando a presençacatólica era agressiva e polêmica.(Matos, 1990; Mata, 1996)

22 Mesmo um meio de comunicação hoje indispensável e extremamente difundido, como o telefone, não parece merecergrande atenção. Por curiosidade, verificamos o número de telefones de “Igrejas, Templos e Agremiações Religiosas” nas pá-ginas amarelas da Lista Telefônica de Belo Horizonte (1997). Encontramos 144 telefones de instituições Católicas (paróquias,comunidades religiosas, obras sociais...), 67 instituições Batistas, 44 de Igrejas Pentecostais diversas, 39 da Igreja Quadrangular,17 dos Metodistas, 13 de Grupos interconfessionais (evangélicos, geralmente), 13 de Presbiterianos, 12 de Centros espíritas(kardecistas), 8 da Assembléia de Deus, 7 da Seicho-no-iê, 6 da Igreja Universal do Reino de Deus, 4 de Umbanda, 4 de Mór-mons, 4 de Igrejas Brasileiras, 4 de Adventistas, 3 da Perfeita Liberdade, 2 da Congregação Cristã, 2 da Igreja Messiânica, 1dos Luteranos, 1 da Igreja Episcopal, 1 do Bahai, 1 do Hare Krishna, 1 do Movimento Gnóstico, 1 da Igreja da Unificação. Ainterpretação desses números deve ser cautelosa. Não se trata de um levantamento estatístico confiável. O uso do telefone(e sua publicação na lista oficial) depende da situação socioeconômica e, às vezes, das particularidades de cada religião. Oscatólicos parecem pouco preocupados em divulgar seus telefones: nem metade das 200 paróquias (com quase 1.400 lugaresde culto!), das 120 casas religiosas, das 250 obras sociais aparecem na lista. Igrejas evangélicas de classe média (Batistas, Qua-drangular, Metodistas, Presbiterianos) têm um alto número de telefones em proporção ao número de fiéis, enquanto Igrejaspetencostais pobres, muito mais numerosas, como Assembléia de Deus e Congregação Cristã, ou cultos como o da Umbandaquase não estão mencionadas na lista telefônica. Outro fator é o tamanho do Templo: os da Igreja Universal do Reino deDeus são relativamente poucos, mas de tamanho muito superior aos pequenos templos da Assembléia de Deus e da Con-gregação Cristã. Mesmo assim, a lista não deixa de ser útil para mostrar a grande variedade de opções religiosas oferecidasaos belo-horizontinos, entre as quais não faltam as que atendem à distância, como “Telepaz Mensagem” ou “TeleShalomPronto Socorro de Jesus”.

23 A ação social não é a função própria e característica da Igreja, mas ela a exerce de fato, solicitada pelas necessidades da po-pulação, especialmente da mais carente. Essa função social, como vimos, é julgada positivamente pela opinião pública e, emmuitos casos, é o único canal de contato com a Igreja por parte de não-católicos e não-praticantes.

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Assinalamos, enfim, que aArquidiocese de Belo Horizonteconta com um número significa-tivo de ordens e congregaçõesreligiosas, masculinas (42, com306 sacerdotes e 121 irmãos) e fe-mininas (82, com 1425 irmãs), asquais atuam com bastante auto-nomia e em campos diversos(desde a vida contemplativa atéa ação social). Particularmenteforte é a concentração, na capi-tal mineira, dos institutos de for-mação dos futuros padres e reli-giosos. Há três centros principaisde estudos: o Seminário da Ar-quidiocese, que recebe, além dosseminaristas de Belo Horizonte,os de várias outras dioceses e unspoucos religiosos; o InstitutoSanto Tomás de Aquino (ISTA),mantido por um consórcio de di-versas congregações masculinase femininas; as Faculdades de Fi-losofia e Teologia do Centro deEstudos Superiores da Compa-nhia de Jesus, completadas peloInstituto Santo Inácio (ISI). Osseminaristas religiosos dos cur-sos superiores (filosofia ou teo-logia) eram 335 em 1996; os dio-cesanos eram 78 da Arquidiocesee cerca de 80 de outras dioceses.24

Temos aqui quase 500 seminaris-tas, ou seja, 1/14 dos seminaris-tas brasileiros.

As respostas daIgreja-instituiçãoàs mudançassocioculturais

Está na hora de concluir essaresenha de números e de aspec-tos da Arquidiocese de Belo Ho-rizonte e de esboçar brevemen-te um quadro de conjunto quan-to à ação organizada da Igreja fa-ce aos desafios dos anos ‘90, fimde século que preanuncia o novomilênio.

Retomamos a hipótese quenos serviu de ponto de partida.O contexto cultural atual criouuma situação de pluralismo reli-gioso, que necessariamente tor-na mais competitiva a coexistên-cia de várias religiões na mesmasociedade (e cidade). Além domais, o indivíduo é hoje estimu-lado a construir sua identidade,não a partir de um modelo tra-dicional, mas com base em livresescolhas. A situação é muito dife-rente daquela em que o catolicis-mo detinha uma espécie de mo-nopólio do campo religioso (Bra-sil colonial) ou uma hegemoniamuito nítida.

A nova situação exige umanova qualidade do catolicismo.A hegemonia, como se sabe, po-de gerar um certo relaxamento.Os líderes da renovação católica

no início do século (o pe. JúlioMaria ou Dom Leme) lamenta-vam a situação herdada do Im-pério e da Colônia: um catolicis-mo festivo, nada empenhado so-cialmente, com pouco peso nasociedade civil e – na expressãode Dom Leme – fortemente mar-cado pela “ignorância religiosa”.A reforma católica do século XXfoi marcada inicialmente pormodelos europeus, por uma in-compreensão da tradição religio-sa popular, por um excesso deênfase no conflito ideológico oudoutrinário e, na prática religio-sa, por uma acentuação demasi-ada da importância dos sacra-mentos.

O contexto eclesial dos anos‘90 apresenta-se muito diferen-te dos primeiros sessenta anosdo século, após a virada do Con-cílio Vaticano II (1962-65) e, prin-cipalmente, o esforço de rein-ventar de forma original e pró-pria uma ação eclesial latino-americana e, especificamente,brasileira.

Em Belo Horizonte, duranteo ano de 1990, os trabalhos detrês Assembléias do Clero, im-pulsionados pelo Arcebispo, oConselho Presbiteral e uma Co-missão “ad hoc”, desembocaramnum projeto de dinamização dapastoral, denominado “Cons-truir a Esperança”. Os primeiros

24 Cf. o citado informativo da Arquidiocese de junho de 1997, que porém omite os dados dos seminaristas diocesanos de outrasdioceses, que estudam em Belo Horizonte.

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passos do projeto foram as pes-quisas já citadas25 e uma amplaconsulta ao “laicato” católico, aosfiéis mais ativos nas paróquias eorganizações católicas. Daí nas-ceram um processo permanen-te de reflexão26 e um plano deação, que tem duas diretrizes bá-sicas:

• aprimorar as celebrações li-túrgicas, as homilias e a for-mação dos católicos;

• transformar os católicospraticantes em evangeliza-dores, capazes de prestarserviços às comunidades ede testemunhar sua fé noEvangelho.

Quanto à primeira diretriz,ela vem sendo desenvolvidadesde o 2º semestre de 1991 atra-vés de programas específicosque oferecem subsídios para ascelebrações e homilias domini-cais, para a realização semanalde grupos de reflexão e para aexecução de ações de serviço co-munitário ou de evangelização.Cada programa aborda um temadeterminado durante algumassemanas (geralmente 7 semanasna Quaresma, 9 semanas noTempo Pascal, 15 semanas no 2ºsemestre, desde a Assunção atéo último domingo do ano litúr-gico, no final de novembro; háainda um programa para o Ad-

vento e o Natal, mais centradona celebração e na oração do queem novas ações). E cada progra-ma procura integrar diversas ati-vidades e diversos meios de co-municação: a celebração litúrgi-ca, enriquecida de gestos e sím-bolos; a homilia, tornada maispróxima da S. Escritura e da vidaatual; o grupo de reflexão, queconfronta o evangelho do do-mingo com a vida cotidiana dogrupo; as transmissões de rádioe televisão, que animam e orien-tam os grupos. O programa daQuaresma se inspira na Campa-nha da Fraternidade, promovi-da anualmente pela ConferênciaEpiscopal (CNBB). Os progra-mas do Tempo Pascal e do Tem-po Comum (2º semestre) são de-cididos pela Arquidiocese. Oumelhor: eram decididos até 1º dedezembro de 1996, quando aCNBB lançou seu Projeto “Rumoao Novo Milênio”, em sintoniacom as sugestões da carta do Pa-pa João Paulo II “Tertio MillennioAdveniente”. Esse projeto prevê,entre outras coisas, uma espéciede catequese intensiva dos cató-licos nos anos 1997, 1998 e 1999,centrada ao redor das pessoas deJesus Cristo, do Espírito Santo ede Deus Pai. O projeto da CNBBse inspira, quanto ao conteúdo,nas orientações do Papa. Mas,

quanto à metodologia e à orga-nização das práticas pastorais,depende em grande parte doProjeto Pastoral da Arquidiocesede Belo Horizonte, cuja equipeassessora atualmente a CNBBnesse aspecto.

Quanto à segunda diretriz, aArquidiocese procura o cami-nho... caminhando. Além debuscar repetidamente conscien-tizar os católicos de sua respon-sabilidade missionária ou de tes-temunhar o evangelho, procu-rou-se encontrar formas simplesde colocar os católicos pratican-tes em contato com os católicosnão-praticantes e os não-católi-cos. Teve notável amplitude e re-percussão a visita às famílias, re-alizada pelos católicos a partirdas paróquias, inicialmente emoutubro de 1994, com a finalida-de de anunciar a realização emBelo Horizonte do 5º CongressoMissionário Latino-Americano,efetivamente realizado em julhode 1995. Foram cerca de 300.000visitas, que serão repetidas emoutubro deste ano de 1997, coma finalidade de anunciar o anode Jesus Cristo em preparação aoJubileu do ano 2000 e distribuirgratuitamente um exemplar dosEvangelhos. Outra forma deconscientização e ação foram asmissões de férias, realizadas ge-

25 Particularmente as duas cujos resultados estão em Religião na Grande B.H., 1991.26 Essa reflexão é partilhada anualmente, num seminário de “Pastoral Urbana”, que se realiza em setembro, desde 1992, com

outras Arquidioceses como São Paulo e Campinas (que promoveram a iniciativa junto com Belo Horizonte) e Curitiba,Fortaleza, Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro...

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ralmente em janeiro, em bairrosperiféricos (como Taquaril, Rosa-neves ou Cafezal...). Outra ini-ciativa importante, embora ain-da de dimensões modestas, é aextensão das pastorais sociais,particularmente ligadas a Cam-panhas da Fraternidade: a de1993, sobre Moradia, deu origema um trabalho de apoio aos sem-casa, trabalho que continua; a de1995, sobre os Excluídos, deu ori-gem a uma multiplicidade deiniciativas e a uma revisão geraldas obras sociais das paróquias,visando a uma melhor adequa-ção das mesmas às necessidadesreais, sobretudo às necessidadesnovas ou emergentes.

Todas as iniciativas assinala-das prolongam o que, substan-cialmente, a Igreja no Brasil foidescobrindo e assumindo desdeos anos ‘70: a formação de gru-pos e pequenas comunidades, aredescoberta da Bíblia e sua lei-tura a partir da vida de hoje, apastoral do serviço e o empenhopela promoção humana ou soci-al. Mas não está ausente, especi-almente nos anos mais recentes,a preocupação de compreendere atender à nova religiosidade, àespiritualidade – às vezes mar-cadamente subjetivista, que bus-ca mais a felicidade do que a as-cese – que parece sempre mais

impregnar não apenas os “novosmovimentos religiosos”, mastambém o próprio universo ca-tólico. É ainda cedo para dizerquais rumos tudo isso tomará equais serão as conseqüências pa-ra a Igreja-instituição. Mas nãoé cedo demais para prestar maisatenção (do que a pastoral tri-dentina, preocupada acima detudo com a doutrina e a discipli-na) às pessoas, para acolhê-lascom espírito evangélico, com es-pírito de abertura e solidarieda-de, com sensibilidade humanaao menos!

Perspectivas: atéonde irá arenovação?

Sobre os rumos da Igreja nofuturo é possível apenas imagi-nar algo. O destino da Igreja emBelo Horizonte não dependeráapenas dela mesma, mas dastransformações em toda a IgrejaCatólica. Alguns sociólogos for-mularam três hipóteses alterna-tivas: 1) a Igreja poderá tentar re-forçar sua centralização e sua dis-ciplina, fechando-se novamentedentro dos “bastiões” que H. Ursvon Balthasar27 queria abaterdesde os anos ‘50, permanecen-do numa atitude antimoderna,

apoiada pelos grupos de fiéis tra-dicionalistas e nostálgicos (quenão são poucos, recrutados en-tre os muitos que a modernidadedesiludiu ou prejudicou); é acontinuação das atitudes de umaIgreja perseguida, que chegaramàs suas expressões mais fortesnos países comunistas e daí re-percutiram sobre todo o catoli-cismo recente; 2) a Igreja poderáfragmentar-se numa multiplici-dade de grupos ou comunidadesde base, com grande autonomiae pouca coesão entre si, o queprovavelmente enfraqueceria apresença pública da Igreja na so-ciedade, embora atendendo adesejos individuais de experiên-cias religiosas comunitárias ou“emocionais”; é uma tendênciaque, de fato, já avançou e já mos-trou seus limites em alguns paí-ses da Europa Ocidental; 3) aIgreja aceitará um forte pluralis-mo interno e administrará seusconflitos, mantendo uma auto-ridade central de referência e, aomesmo tempo, reconhecendoampla autonomia às comunida-des locais e mesmo a grupos deorientação diferente (como, defato, aconteceu na Igreja antiga,embora num contexto muito di-ferente do atual, e acontece emparte nas Igrejas Orientais).

A curto prazo, pode-se até

27 O livro de Hans Urs von BALTHASAR foi publicado em 1952 e os bastiões eram os que separavam a Igreja do “mundo”. Bal-thasar (nascido na Suíça, em 1905), excluído dos peritos do Vaticano II porque demasiadamente “avançado”, acabou eleitocardeal em 1994, pouco antes da morte.

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pensar – com Peter Beyer (1994,p. 395-419) – que a solução fun-damentalista ou de defesa in-transigente do passado tem maisprobabilidades de prevalecer,mas que – a longo prazo – é asolução mais pluralista e ecumê-nica, capaz de reconhecer e acei-tar as diferenças, que tem chan-ces de se afirmar. De imediato, asolução mais inteligente – e tal-vez mais conatural ao catolicis-mo mineiro – é a de evitar os ex-tremismos e apostar na convi-vência pacífica e no diálogo.

A tarefa, contudo, não pare-ce fácil. O “povo de Deus”, os ca-tólicos comuns – mais ligados àinstituição eclesiástica ou maisinclinados às práticas do catoli-cismo popular e às devoções aossantos – parecem aceitar o plura-lismo sem grandes problemas edesejar uma renovação da Igre-ja no sentido de uma maior di-versidade e de uma maior auto-

nomia dos diversos grupos. Oclero, ao contrário, não tanto pordecisão ou qualidades pessoais,mas pela situação estrutural emque se encontra, tem mais difi-culdades para mudar no senti-do que a evolução do catolicis-mo parece exigir. Os padres es-tão sobrecarregados de traba-lhos, inclusive burocráticos, poruma excessiva centralização dasfunções eclesiais no clero e peloexcessivo número de fiéis que re-correm a eles.28 Nessas condi-ções, o grande risco – nas paró-quias, mas também nos colégi-os, universidades, seminários,instituições assistenciais – é queo padre se transforme mais numgerente administrativo, reduzin-do ao mínimo o atendimentopropriamente “pastoral” e espi-ritual, sobretudo o atendimentoindividual ou personalizado.Além disso, não se pode deixarde observar como a Arquidioce-

se ainda concentra quase todosos seus recursos humanos nasparóquias, sem criar novas estru-turas e funções para cuidar dosproblemas urbanos, que se colo-cam no nível da cidade e da me-trópole (com algumas exceções– como no campo da comunica-ção – mas que são exatamente...exceções, não regra).

Sem uma redistribuição dasresponsabilidades no interior daIgreja-instituição, dificilmenteela poderá dar respostas adequa-das aos desafios do novo milênioque se aproxima. Mas o catolicis-mo não é apenas a hierarquia,nem a instituição eclesiástica,nem os católicos praticantes. Eleimpregna mais amplamente – em-bora escondido, como as semen-tes na terra – a população da capi-tal centenária e mineira. Que fru-tos dará? Isto depende do Espíri-to, mais do que da terra. E o Espí-rito sopra onde e quando quer.

28 Na Arquidiocese de B.H., pode-se calcular que, geralmente, um pároco atenda a cerca de 1.500 fiéis assíduos às práticasreligiosas, outros tantos com prática esporádica, e mais 10 ou 15.000 habitantes da paróquia, afastados das práticas religio-sas, mas que mesmo assim aguardam a prestação de algum serviço e o anúncio do evangelho.

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Elisabeth Guerra Parreiras Baptista Pereira; Herbe Xavier

IMAGENS DA BELO HORIZONTEDE PEDRO NAVA

Elisabeth Guerra Parreiras Baptista PereiraDepartamento de História – PUC•Minas

Herbe XavierDepartamento de Geografia – PUC•Minas

RESUMO

Este ensaio propõe-se a recuperara imagem de uma Belo Horizonteque se perdeu no tempo. Utiliza co-mo fonte a obra memorialística dePedro Nava, buscando integrarconceitos, métodos, terminologia eprocedimentos da história e da geo-grafia para entender um tempo eum espaço vividos.

Com menos de cem anos, Belo Horizon-te, criada sob a influência das idéiasde progresso e de modernidade do

pensamento positivista dos primeiros anos daRepública, tem demonstrado uma acentuadatendência autofágica, num processo compul-sivo de renovação e superação contínuas, o que

Para sempre. Jamais poderei esquecer-me de ti Belo Horizonte, de ti nosteus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como no salmo, minha mão direitase resseque e que a língua se me pregue no céu da boca. Belo, belo Belorizonte.(Nava, 1976, p. 306-307)

constitui uma ameaça corrosiva à sua memória histórica e material. Porisso, é urgente guardar algo do que se foi, para que suas imagens nãose percam irremediavelmente.

Pedro Nava descreveu em suas memórias a sua Belo Horizonte,num tempo (1910/1930) e espaço vividos intensamente, expressos comforte carga afetiva, cheia de encantamento e aguçada observação críti-ca. Suas memórias são de uma Belo Horizonte “congelada”, ponto dereferência para se perceber o quanto a cidade perdeu de suas caracte-rísticas iniciais, na efemeridade de suas coisas.

Essa efemeridade já fora percebida e denunciada por Nava ao lon-

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

go de seus textos memórias,como Chão de ferro.

A beleza da Praça da Estação, a ári-da subida da Caetés, os oito renquesde árvores da Afonso Pena: no cen-tro da avenida corriam duas filas depalmeiras imperiais, as primeirassacrificadas. Nos passeias, nas sar-jetas, outras filas vegetais. Entre es-tes e as palmeiras, a teoria gloriosados ficus recentemente assassinados.

Morte! aos prefeitos, cuja carapaçalhes impede a percepção das paisa-gens impregnadas de passado dascidades que eles desgovernam. (Na-va, 1986. p. 148)

A obra literáriacomo fonte primáriada história

Na perspectiva da nova his-tória, tomar a obra memoria-lística de Pedro Nava como do-cumento-monumento de umaBelo Horizonte que se perdeu notempo é mais do que uma tenta-tiva de representar o passado. Éuma tentativa de se entender aHistória como uma possibilida-de de garantir a cada persona-gem-testemunho (inserido numtempo e num espaço) o direito àvoz e ao reconhecimento, é re-conhecer nele e em sua obra umaexpressão individual (uma me-mória individual como que umaencarnação de memória coleti-va), capaz de reconstruir de for-ma estética e crítica, ao mesmotempo, a complexidade de uma

sociedade nas suas diversas e ri-cas faces.

A transformação de uma obraliterária em fonte histórica é atarefa do historiador, que ao in-quirir e extrair dela alguma for-ma de representação do passa-do, confere à obra o caráter defonte primária de grande valor,porque logo está superada aidéia de que a imaginação é“uma faculdade produtora deilusões, sonhos e símbolos, e quepertencia sobretudo ao domínioda arte, (...) (Baczko, 1985. p. 296).Os contestatórios anos sessentaimprimiram uma outra conota-ção a essa palavra. A imaginaçãoé hoje tida como construção desímbolos de uma sociedade noafã de se entender e se fazer en-tendida, expressa sobretudouma representação coletiva, queestá longe de ser apenas um“floreamento” da realidade ma-terial, ao contrário, “o imaginá-rio social informa acerca da reali-dade”, (...) (Baczko, 1985, p. 296)

Segundo Le Goff (1976), asobras literárias e artísticas sãoconsideradas importantes fonteshistóricas, porque constituemuma representação dos fenôme-nos objetivos, são “documentosda imaginação”.

A História que se quer produ-zir não tem a veleidade de se vercomo “total”, mas pretende seocupar dessa obra memorialís-tica de talento e representativi-dade como um lugar de obser-

vação de Belo Horizonte nassuas primeiras décadas.

“Interrogar a sociedade, pôr-se à sua escuta, esse é o primeirodever do historiador” (Ferro,1992, p. 76). Assim, o que se queré interrogar Pedro Nava, comorepresentação individual deuma sociedade, pôr-se a escutá-lo para reconstituir um comple-xo contexto espaço-temporal eentender que as cidades são aexpressão da subjetividade indi-vidual e coletiva dos homensque nelas vivem. Mesmo apoi-ando-se numa obra memorialís-tica e reconhecendo que a me-mória tem certa dose de autono-mia, o que lhe garante ampliar,reduzir, violar a ordem cronoló-gica das efemérides, impor, em-baçar a reavivar os fatos, sabe-seque ela guarda uma correspon-dência de “realidade” com oobjeto representado.

A viagem da memória não tem pos-sibilidade de ser feita numa só dire-ção: a do passado para o presente.Não é a sós que velejamos para osanos atrás em busca dos nossos eus.Levamos conosco uma experiêncianão inarranciável que ela é elemen-to de deformação que nos obriga aagir com as nossas recordações comoos primitivos que pintavam a Nati-vidade, o Pretório e a Ressureição,dando à Virgem, a São José, a NossoSenhor, a Pilatos e aos centuriões,roupas medievais em ambientes ita-lianos, flamengos e espanhóis. (Na-va, 1986, p. 282)

Diversos estudos, especial-mente aqueles ligados à historio-

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grafia saída da École des Anna-les, permitem-nos transitar pordiversas áreas na inteção de bus-car uma representação do pas-sado. Essa historiografia indica-nos novos objetos, abordagens eproblemas, permitindo-nos re-ver o fato histórico sob um novoprisma (por sinal, mais vivaz), eescolher uma variedade de cami-nhos e de fontes, não considera-dos como tais até bem poucotempo.

E mais, hoje, o historiador po-de se ver livre dos velhos limitesortodoxos da história-ciência, in-tercambiando com outras ciên-cias humanas e sociais e com ou-tras construções culturais do ho-mem como a arte e a literatura.

No momento, segundo LeGoff (1995),

... fala-se da crise da história; crisehá, mas creio que se trata sobretudode uma crise das ciências sociais, ese a nova história nela está envolvi-da é provavelmente porque foi a quemais se compreendeu com essas ci-ências. Isso merece um exame aten-to, e não creio que a solução possa seencontrar num fechamento da his-tória em si mesma. (p. 8)

Nesse universo tão amplo depossibilidades, caminhos e fon-tes, o que cabe ao pesquisadorda história?

... explicar o passado através do“achado”, da “identificação” ou de“descoberta” as “estórias” que jazementerradas nas crônicas, (...) o histo-riador arranja os escritos da crônicadentro da hierarquia de significação

ao atribuir aos eventos funções dife-rentes como elementos da história,de maneira a revelar a coerência for-mal de um conjunto completo deeventos como processo compreensí-vel, com princípio, meio e fim discer-níveis. (White, 1995, p. 221)

O fundamento norteadordeste estudo é, portanto, buscarna forma de um discurso narra-tivo em prosa e em algumas ima-gens fotográficas a montagem deuma representação do passadobelo-horizontino a partir de um“achado” literário de Nava.

Quanto às imagens fotográ-ficas, tem-se a consciência de quecada uma delas não representaa Belo Horizonte de Nava, masde tantos fotógrafos que se deti-veram na tarefa de guardar ima-gens iconográficas dessa cidadeao longo do tempo. A câmaranão é um objeto frio e imparcial,por ela passam o foco, o jogo deluz e sombra, o senso estético ea chama afetiva que cada fotó-grafo quis imprimir à sua cons-trução imagética. As fotografias,aqui usadas como discurso ico-nográfico, não são imagens na-vianas, são apenas uma tentati-va de dar visualidade, uma cer-ta concretude, a uma Belo Hori-zonte que não existe mais, per-mitindo-nos acompanhar o pro-cesso ágil de mudança do espa-ço, numa sucessão de paisagense lugares das primeiras décadasdesse lugar urbano, hoje cente-nário. Os pontos de parada es-tão nas memórias de Pedro Nava.

São acolhidos os sábios “con-selhos” da história nova, que res-salta uma forte aliança entre si ea geografia, porque busca simul-taneamente o tempo e o espaçona construção de um tempo-es-paço vividos. Este estudo é umapossibilidade de realização des-sa construção.

A geografia observa e analisaaspectos do meio ambiente naescola e nas categorias em quecomumente são apreendidos navida diária. O temperamento deseus praticantes a fazem univer-sal e multifacetada. (Lowenthal,1982)

Segundo Dardel (1954), ciên-cia geográfica pressupõe ummundo que pode ser entendidogeograficamente, em que o ho-mem pode sentir e conhecer a sicomo ligado à terra. A ligaçãocom a terra pressupõe experiên-cias de lugares, espaços e paisa-gens, de um mundo vivido,aquele mundo de ambigüida-des, comprometimentos e signi-ficados nos quais estamos inex-tricavelmente envolvidos emnossas vidas diárias. É um mun-do em acentuado contraste como universo da ciência, com seuspadrões e relações cuidadosa-mente observados e ordenados(Relph, 1979). Assim, cabe aquiuma interação tempo-espaço naconstrução do tempo-espaço vi-vidos por Nava, na Belo Hori-zonte das primeiras décadas.

Este estudo, tendo como su-

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

porte documental as “Memóri-as” de Pedro Nava, tentando re-construir a história de uma cida-de, transita perigosamente nacerteza de que a memória e a his-tória nem sempre têm uma con-vivência tranqüila; percebem-semuitas vezes entre elas algunspontos de incompatibilidade eaté mesmo de oposição.

Memória, história, longe de seremsinônimos, tomemos consciência deque tudo opõe uma a outra. A me-mória é vida, sempre carregada porgrupos vivos e, nesse sentido, ela estáem permanente evolução, aberta àdialética da lembrança e do esqueci-mento, inconsciente de suas mani-festações sucessivas, vulnerável atodos os usos e manipulações, sus-ceptível de longas latências, de repe-tidas revitalizações. A História é areconstrução sempre problemática eincompleta do que não existe mais.(Nora, 1993, p. 9)

Mas é preciso recompor essasimagens da memória para darhistoricidade a um passado belo-horizontino que não é mais. Épreciso desvendar o enigma queé a cidade ou a cidade de cadaum. Cada cidade “real” é a sínte-se de uma multivariedade deimagens construídas através dapercepção tempo-espaço de ca-da um; reconstruir essa históriasignifica vasculhar o código decada memória como uma encar-nação da memória coletiva.

Sinto o tempo parado em cada pedraque piso.

O passado me envolve, pairo sobre asigrejas e assisto à ressurreição dos

mortos.Sou apenas memória.(Moura, apud Nava, 1983, p. 369)

Percepção dapaisagem geográficada Belo Horizontede Pedro Nava

Os estudos sobre a percepçãoda paisagem geográfica desen-volveram-se devido à preocupa-ção no sentido de se conhecer eexplicar as atitudes e valores dapopulação frente ao espaço geo-gráfico. Através da experiência,procura o homem conhecer aspaisagens de seu meio ambien-te. Aprende formas de ação paraseu uso, sua valorização e, quan-do necessário, para assumir ati-tudes em relação à paisagem.

Isso concorre para que a com-preensão cognitiva da paisagemse torne complexa. As relaçõesdas pessoas com a paisagem queas rodeia processam-se, também,a partir da percepção que delase tem, das atitudes tomadas edos valores a ela atribuídos. Sãoextremamente variadas as ma-neiras de perceber e avaliar a pai-sagem. Do mesmo modo, são in-constantes as atitudes das pes-soas, pois refletem variações in-dividuais, bioquímicas, psicoló-gicas, antropológicas e, de modorelevante, seu estilo de vida. Se-gundo Tuan (1980), os significa-dos da percepção, de atitudes ede valores se superpõem e se tor-nam claros dentro do própriocontexto expresso em cada umdesses processos. Esse autor con-

sidera que a atitude assumidafrente ao mundo é formada porlonga sucessão de percepções ede experiências. As atitudes ado-tadas pelas pelas pessoas em re-lação à paisagem espelham seusinteresses e valores e refletemsua visão do mundo. Trata-se deuma experiência conceitualiza-da, parcialmente pessoal e emgrande parte social.

Neste estudo a noção de pai-sagem será considerada em sen-tido o mais abrangente possível,como concepção pluridimensio-nal englobando componentesnaturais e construídos, visíveis enão visíveis, tudo que está ao al-cance de nossos sentidos. A pai-sagem se constitui de um con-junto de acidentes geográficos,mas, além de sua base física, es-tão nela incluídos todos os seresvivos que aí habitam, inclusiveo homem. (Burle Marx, 1975)

Sabe-se que os fatores cultu-rais e os componentes naturaisda paisagem interferem na visãode mundo. Os conceitos de cul-tura e paisagem se superpõem,do mesmo modo que os de ho-mem e natureza, constituindoum todo. Para se conhecer a pre-ferência ambiental de uma pes-soa, mister é examinar sua he-rança biológica, sua educação,seu trabalho e seus arredores fí-sicos.

A pauta fundamental para apercepção da paisagem geográ-fica é o espaço onde se situam as

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habitações, os caminhos e as re-giões. É o mesmo espaço ondeos homens caminham, valori-zam as paisagens e passam assuas vidas.

Tuan (1980) afirma que o es-paço geográfico é limitado e es-tático, não passando de umamoldura para os objetos. A na-tureza consiste de objetos discre-tos e de fundos envolventes econtínuos, como a luz e a tempe-ratura. A visão tridimensional dohomem lhe permite a percepçãoda paisagem como constituídade objetos contra um fundo in-distinto.

Considera o autor que as ex-periências com as paisagensexercem influência na percep-ção. Pessoas com antecedentessocioeconômicos e aspirações di-ferentes avaliam as paisagens demodo distinto. Por outro lado oautor atribui ênfase ao efeito dapaisagem na percepção e na vi-são de mundo.

A idéia de que cada indivíduoestrutura seu espaço geográficoem torno de si próprio pareceuniversal. Os seres humanos, in-dividualmente ou em grupo,tendem a estruturar a paisagemtendo o “self” como centro. Comisso, a paisagem se orienta poruma série de valores irradiadosda própria pessoa ou de seu gru-po.

Em linha fenomenológica, oespaço geográfico perceptivo éorientado como um prolonga-

mento do corpo do sujeito. Col-lot (1986), com base em Vexhüel,destaca três zonas distintas paraesclarecer a maneira como o es-paço geográfico é percebido. Aprimeira zona corresponde aoespaço imediato, situado até oraio de aproximadamente trêsmetros em torno do sujeito. Aseguir vem o espaço profundo,onde reinam as constâncias per-ceptivas até um raio de 8 km dosujeito e, mais adiante, o espaçolongínquo, onde as constânciasperceptivas se perdem.

O espaço imediato corres-ponde ao campo visual geográ-fico do sujeito, no qual, segun-do Gibson (1950), os componen-tes paisagísticos que o constitu-em são predominantementesentidos. O espaço profundocorresponde ao mundo visual,de onde, segundo o mesmo au-tor, descortina-se a paisagemque, pela variedade de objetos eformas apresentados, pode serconsiderado o espaço por exce-lência da percepção visual.

Na dificuldade de percebertodos os seus componentes, dar-se-á nesse espaço profundo umaseleção daquilo que é percebido.Já o espaço longínquo, quecorresponde a um prolonga-mento do mundo visual, não épercebido. Porém, graças àsatividades perceptivas, que esta-belecem um contínuo entre apercepção e a inteligência, pode-se inferir que esse processo per-

mite a transposição daquilo quefoi percebido em outros lugares.

A percepção deve ser encara-da como fase da ação exercidapelo sujeito sobre a paisagem,pois as atitudes não se apresen-tam justapostas, encadeadasumas às outras (Oliveira, 1979).Assim sendo, o fenômeno per-ceptivo não pode ser estudadoisoladamente, nem pode serapartado da vida das pessoas.

Ao se processar, a percepção,além de permitir a interação doindivíduo com a paisagem, per-mite também que sejam elabo-radas respostas apropriadas àsmudanças e às incertezas que omundo oferece.

Neste sentido, a experiênciae a visão do mundo desempe-nham importante papel no de-senvolvimento da percepção,pois o contato direto com a pai-sagem permite ao indivíduoconstruir seu espaço perceptivo,o que justifica a importância dapercepção geográfica no estudoda paisagem, resgatando suamemória ou tratando-se de seuprocesso de decomposição.

Para Tuan (1980), a percepçãoda paisagem é uma arte. Suaavaliação envolve a cultura e éinfluenciada pela arquitetura oupela literatura. A paisagem éuma combinação de pontos devista objetivos e subjetivos, quetem lugar no “olho da mente”.Ela se nos apresenta medianteum esforço de imaginação, exer-

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cida sobre uma forma altamen-te selecionada, a partir de umsentido determinado.

Compreender um lugar, dizo autor, envolve tempo e refle-xão. Aprendemos desde criançaa perceber sempre mais com osolhos da mente. As informaçõesdadas pela paisagem motivam opensamento. Entretanto, as res-postas dadas às informações quea paisagem oferece variam sig-nificativamente de uma pessoapara outra.

As diversas maneiras pelasquais as pessoas interpretamuma paisagem estão contidasnos estudos de Meinig (1979).Seus estudos basearam-se ementrevistas com um pequenomas variado grupo de pessoasreunidas, olhando no mesmoinstante para a mesma direção.Essas pessoas não interpretaramda mesma forma a mesma cena,podendo-se identificar dez enfo-ques diferentes da paisagem: na-tureza, hábitat, artefato, sistema,problema, riqueza, ideologia,história, lugar e estética.

A interpretação da paisagemcomo natureza destaca os ele-mentos físicos, atribuindo pou-ca importância à ação do homemna cena e restituindo a naturezaà sua primitiva condição.

Pelo enfoque do hábitat, a pai-sagem é vista como morada dohomem. Aquilo que se percebeé o trabalho contínuo dos gru-pos humanos para um relacio-

namento viável com a natureza.Assim, a paisagem é uma mistu-ra de homem e natureza.

Como artefato, considera-se oimpacto do homem sobre a na-tureza. Muitas pessoas vêem emprimeiro lugar o registro do ho-mem em todas as coisas. A terrase identifica como uma platafor-ma sobre a qual tudo é conseqü-ência da ação do homem.

Como sistema, percebem-se aspaisagens num conjunto, não seconsiderando os fatos isolados.

Como problema, tende-se aperceber ou inferir em uma cenaa existência de problemas comoencostas erodidas, cidades ina-dequadas, decomposição da pai-sagem.

A paisagem é interpretadacomo riqueza por aquelas pesso-as habituadas a atribuir um va-lor monetário àquilo que enxer-gam.

Como ideologia, a paisagemrepresenta a combinação de sím-bolos de uma sociedade, símbo-los de valor, ideais ou o funda-mento filosófico da cultura.

Como história, a paisagem éum registro de experiências dopassado. Para alguns espectado-res, tudo que se manifesta dian-te de seus olhos é um complexoe cumulativo registro do traba-lho do homem e da naturezadesse lugar.

Como lugar, considera-se apaisagem familiar; toda ela éuma parcela individual do infi-

nitamente grande mosaico queé o mundo.

Finalmente, a interpretaçãoda paisagem como estética enfa-tiza sua qualidade panorâmica.

Meinig considera ainda queesses dez modos de interpretara paisagem não esgotam a pos-sibilidade de existência de ou-tros. Além disso, esclarece quetambém vemos, em comum,muitos elementos da paisagem,como casas, monumentos, estra-das, árvores ou elevações, carac-terizados pela forma, dimensãoe cor. Atribuímos-lhes significa-do a partir da associação de fa-tos que ajustados, propiciamidéias coerentes.

Lewis (1979), após observarsistematicamente diversas paisa-gens, formulou alguns axiomas,como guias para interpretaçãode cenas.

Um desses axiomas conside-ra a paisagem como um indíciode cultura. A cultura de uma na-ção reflete-se em suas paisagens,que evidenciam o tipo de povoque as construiu.

Um outro axioma é o da iden-tidade cultural e da igualdade depaisagens, pelas quais todos oselementos da paisagem refletemaspectos da cultura de um povo.O axioma histórico revela queuma paisagem é o registro dopassado no qual os hábitos, a tec-nologia, as riquezas, as ambiçõese as preferências eram diferen-tes dos hodiernos.

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Assim, consideradas essas for-mas de interpretação da paisa-gem vêm ao encontro da visãode Santos (1982), segundo o quala paisagem é uma combinaçãode (objetos naturais e sociaismostrando a acumulação de ati-vidades de muitas gerações. Suafisionomia reflete mudanças daeconomia, das relações sociais ouda política. Assim, a paisagem deuma cidade é o resultado da acu-mulação de tempos, sendo suaforma alterada, renovada, supri-mida ou mantida em permanen-te modificação, a fim de acom-panhar as transformações da so-ciedade. Na obra de Pedro Nava,as experiências dos lugares sãocarregadas de significados, valo-res afetivos intensos, conheci-mentos que abarcam, simultane-amente, o sentimento, a familia-ridade e a intimidade. Nava, aoescrever sobre Belo Horizonte,cidade por ele vivida, transmitiuexperiências humanas para to-dos nós que hoje a vivenciamos.

Em todas as sociedades, an-tigas ou modernas, os laços en-tre o homem e a paisagem têmsido percebidos e experimenta-dos no contexto de transforma-ções espaciais e temporais comsignificados profundamente va-riados. Projetamos nas paisagensos símbolos de nossas histórias emitos. (Lima, 1994)

Os símbolos atribuídos à pai-sagem representam valores queultrapassam a realidade objetiva

e visível, e são também partes denossa própria compreensão domundo vivido. O conceito demundo vivido se define a partirdo sentimento do homem deestar ligado à terra.

Pedro Nava mantém com aspaisagens que descreve relaçõesíntimas e intensas, pois suas ex-periências humanas não se sepa-ram da paisagem.

Belo Horizonte foi uma cida-de planejada com o traçado emforma de tabuleiro de xadrez, so-bre o qual foi desenvolvido umsistema de avenidas orientadonum ângulo de 45 graus, cortan-do quarteirões em diagonal epossibilitando a formação depraças nos cruzamentos. A plan-ta da cidade foi concebida comomodernizante para a época.

O plano Original de Belo Ho-rizonte dividiu-a em três setores:o urbano, o suburbano e o rural.O setor urbano corresponde aotrancado delimitado pela Aveni-da do Contorno. Foi cuidadosa-mente planejado, com ruas eavenidas largas, onde se instala-ram o centro administrativo, ocomercial e os bairros residen-ciais. Para o setor suburbano, de-terminou-se que as ruas teriamapenas quatorze metros de lar-gura, incluindo as calçadas, pois,sendo ladeadas por chácaras equintas residenciais, tornava-sedesnecessário um espaço para aarborizacão. O setor rural, evi-dentemente abrigava as ativida-des agrícolas.

Até 1910 o povoamento deBelo Horizonte foi bastante dis-persivo. De 1910 a 1930, verifi-cou-se a ocupação dos vazios daárea. Deu-se a expansão em to-das as direções, exceto na sul,barrada pela Serra do Curral.

O crescimento de Belo Hori-zonte passou a ser mais acelera-do, com o surgimento de vilasoperárias no período entre guer-ras, quando foram implantadasnos municípios vizinhos indús-trias de grande porte, ligadas aextração de minérios.

Com a industrialização e a ex-pansão urbana, multiplicaram-se os bairros periféricos, caren-tes de infra-estrutura e construí-dos à revelia de qualquer planodiretor.

Registra-se atualmente emBelo Horizonte um crescimentoperiférico acelerado que se rela-ciona à renda familiar mais bai-xa e transforma a paisagem dacidade.

A história revela que a paisa-gem é o registro de um passadono qual os hábitos, tecnologia,ambições e preferências eram di-ferentes dos atuais.

Contemplar uma cidade ésempre algo agradável. A cadainstante existe mais do que a vis-ta alcança, mais do que o ouvi-do possa ouvir, uma composiçãoou um cenário à espera de ser ob-servado. Assim Lynch (1960) seexpressa ao estudar a imagemdas cidades, acrescentando que

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

todas as pessoas possuem nume-rosas relações com as partes dacidade e que a sua imagem estáimpregnada de memória e sig-nificados.

O estudo de Lynch apóia-sena qualidade visual das cidades.A imagem, conceito central deseu trabalho, é o resultado de umprocesso bilateral, entre o obser-vador e a paisagem. Varia con-forme os significados que lheatribuem as pessoas. Situaçõescomo a cultura e a familiaridadecom os objetos interferem naatribuição de significados.

Para Lynch, a identidade, aestrutura e o significado com-põem a imagem mental. Emuma paisagem legível, os objetospodem ser reconhecidos, possi-bilitando sua distinção de outrosobjetos. É assegurada tambémuma relação estrutural ou espa-cial dos objetos com a paisagem,para a qual os objetos podem tersignificados práticos ou afetivos.

Acrescenta-se de acordo comRelph (1979), com base em Hus-serl, a relevância de dois compo-nentes significativos estreita-mente inter-relacionados. Umdeles é o mundo predetermina-do ou natural, de coisas, formase de outras pessoas, as quais pos-suem modos variados de apa-rência no tempo e no espaço. Éo mundo que vivemos e senti-mos, mas no qual estamos ape-nas implicados, porque se cons-titui numa situação necessáriaque nos é dada.

O outro mundo é o vivido so-cial ou culturalmente, compre-endendo os seres humanos comtoda a ação e interesses, traba-lhos e sofrimentos.

O mundo vivido social é o daintersubjetividade, linguagemcomum, contato com outras pes-soas, instrumentos, edifícios eobras de arte, tudo o que não émeramente predeterminado,mas usado, transformado e ma-nipulado. Há poucos relatos so-bre as coisas do mundo vividocultural (espaços, ruas, edifícios,paisagens), nas quais passamosa maior parte da nossa vida diá-ria e que estão cheias de ideais ede significados para nós, poisestamos envolvidos com elas.

Na obra memorialística dePedro Nava vislumbram-se pai-sagens de Belo Horizonte por elevivenciadas. Seus escritos retra-tam informações carregadas deemoção, de afetividade. Fenô-menos como as ligações afetivascom o lugar constituem substân-cia significativa sobre o nossoenvolvimento no mundo e de-vem ser compreendidos comorealmente são.

Uma cidade é vista e experi-mentada não como a soma deobjetos, mas como um sistemade relações entre o homem, seuespaço e seus focos de interesse.Segundo Relph (1979), três fenô-menos inter-relacinados da ex-periência constituem o mundovivido: o espaço como experiên-

cia, a paisagem como centro designificados no espaço, e o lugarcomo centro de significados noespaço e na paisagem. As rela-ções das pessoas com o mundodependerão de um sistema decorrespondência entre os dadossensoriais, obtidos a partir de ummesmo conjunto de objetos.Com efeito, o espaço perceptivodependerá não só das caracterís-ticas do mundo físico no qual aspessoas estão inseridas, mastambém dos sistemas sensoriaisde que dispõem, e através dosquais entrarão em comunicaçãocom o mundo físico.

A paisagem vivida é o resul-tado das imagens que as pesso-as têm dela, resultado que é in-fluenciado pelas condições psi-cológicas, físicas, individuais eda experiência de vida, acresci-das das heranças culturais, indi-viduais e coletivas. As imagenspercebidas aparecem como umareprodução na mente das pesso-as. Por vezes, podem ser tão cla-ras vividas detalhadas que per-mitem um exame mental e for-necem detalhes de fatos origi-nais, importantes para a vida dohomem.

Vivemos na paisagem, nelaprojetamos nossa personalidadee a ela somos ligados por limitesemocionais. Não se refere exata-mente à percepção, aos sentidosou às representações, mas à vida.E porque ela é vivida, deve ha-ver tantas paisagens quantas fo-

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rem as experiências espaciais;ou, em outros termos, nossaconsciência da paisagem se mo-difica. Suas qualidades e signifi-cados mudam para nós.

Com nossos sentidos pene-tramos e olhamos dentro da pai-sagem, movemo-nos através de-la, ouvimos e cheiramos atravésdela (Relph, 1979). As paisagensque encontramos em nossosmundos vividos são, acima detudo, paisagens construídas, fei-tas pelo homem e, conseqüente-mente, comunicam intenções esignificados humanos. Da mes-ma forma, a cidade é uma reali-dade geográfica tendo as ruascomo centros e cenários para avida de todos os dias, onde ohomem é um transeunte, umresidente, um admirador. (Dar-del, 1954)

Assim, reforça-se o fato deque contemplar uma cidade ésempre agradável. Entretanto, oque agora queremos contemplaré a paisagem da Belo Horizontede Pedro Nava, uma cidade quefez parte de seu mundo vivido,ao qual o memorialista se ligavacomo à terra.

Evidentemente, essa cidadenão existe mais. Só existiu nomundo vivido de Pedro Nava. Oque realmente existe é a BeloHorizonte de cada um de nós,resultado da imagem que temosdela, uma imagem carregada deemoções e, sobretudo, de nossamaneira de ser no mundo.

Diante disso, recuperar a pai-sagem da Belo Horizonte dePedro Nava é recuperar os valo-res que ele atribuiu às suas pai-sagens.

Neste sentido, o presente es-tudo fundamentou-se no traba-lho de Lynch (1960), um arqui-teto que lançou novas maneirasde se planejar uma cidade, umacidade apoiada na percepção deseus usurários, uma cidade legí-vel, com elementos marcantesno cenário para que as pessoaspudessem ter facilidade de ori-entação e de locomoção.

Segundo Lynch, a cidade nãoé apenas um objeto vivido pormuitas pessoas das mais diferen-tes classes sociais e pelos maisvariados tipos de personalida-des. A cidade é sobretudo o pro-duto de muitos construtores,que constantemente modificamsua estrutura. Assim, a Belo Ho-rizonte de hoje vem sofrendo acorrosão do tempo e tem sua pai-sagem transformada pela açãode seus muitos construtores, da-queles que planejam suas mu-danças ou daqueles que espon-taneamente participam de suaexpansão. Entretanto, se são inú-meras as transformações pelasquais a cidade vem passando,poderíamos dizer que mais nu-merosas ainda são as maneiraspelas quais as pessoas que parti-cipam de sua construção a per-cebem.

As relações das pessoas com

a cidade, construindo ou produ-zindo sua transformação proces-sam-se também a partir da per-cepção que dela têm, das atitu-des nelas tomadas e através dosvalores a ela atribuídos. A expe-riência e a visão do mundo de-sempenham importante papelno desenvolvimento da percep-ção, pois o contato direto com aspartes da cidade permite às pes-soas construírem seu espaçoperceptivo urbano, favorecendo,assim, a elaboração de respostasàs paisagens que as cidades ofe-recem.

A construção da imagem éum processo complexo, que temcomo ponto de partida a percep-ção, fenômeno físico e inteligen-te que coloca o ser humano di-ante de algo externo a ele pró-prio, fazendo com que ele cons-trua de maneira inteligente, masnem sempre consciente as ima-gens que se transformem emlembranças. A percepção é umfenômeno humano do presente,isto é, realiza-se no aqui e agora.Não há possibilidade de se per-ceber o que aconteceu no passa-do ou o que irá acontecer no fu-turo. O processo do passado é oda memória e o do futuro é ainferência.

Acrescenta-se ainda como re-ferência aos trabalhos de Lynchsobre a percepção das cidades aidentificação dos elementos daimagem mental urbana: os tra-jetos, os limites, os bairros, os

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cruzamentos e os pontos mar-cantes. A partir de tais marcos dereferência procuramos identifi-car a Belo Horizonte de PedroNava, falando de seu universogeográfico, histórico, simbólico,um verdadeiro arquivo de nos-sa memória cultural.

Os quatro marcos dereferência na obra dePedro Nava

Na obra de Nava, a percep-ção de determinadas paisagensda cidade foi tão viva, tão emoti-vamente marcante que as ima-gens formadas sob forte cargaafetiva ficaram como que sacrali-zadas pela memória. Assim, a es-colha dos quatro marcos referen-ciais foi determinada pelo pró-prio memorialista, tamanha agrandeza e a carga significativaque confere a estes lugares: aRua da Bahia, o Bar do Ponto, aPraça da Liberdade e a Serra doCurral. Em toda a extensão daobra, há um volume enorme deimpressões-imagens sobre esseslugares, traduzindo o que elesrealmente eram na memória doautor.

Na rua da Bahia, verdadeiracoluna vertebral da cidade, rea-liza-se a complexidade da vidasocial, política e cultural de BeloHorizonte nos frenéticos anos20. Ali estão os pontos de encon-

tro da elite politico-burocrata,dos intelectuais, do homem co-mum.

Ali a sociedade desfila nosfoyers dos cinemas, nos bondesque sobem e descem mineira-mente, nas festas profanas e re-ligiosas e no simples transitar. Éaqui o elo de ligação entre o cen-tro comercial e social da cidade

– o “Bar do Ponto” – e o centrodo poder – a “Praça da Liberda-de”. Nava a percorreu e a viveuintensamente. Sua “Evocação daRua da Bahia” é uma verdadei-ra ode a esse caminho-lugar. ARua da Bahia é o trajeto.

... endireita o corpo, levanta a cabeçae começa a andar ritmadamente e aoscilar os braços como achava que de-

Rua da Bahia, 1927 (Arquivo do Museu Abílio Barreto)

Rua da Bahia, 1997 (Foto: Marta Carneiro)

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via aparecer na rua da Bahia. (Nava,1982, p. 392)... Vingaram depois Bahia a pé – na-quele passo especial que só mineiratem para subir ladeira. Passaram portrás das secretarias. Mais um poucoe estavam a sua porta. (Nava, 1982,p. 81)... Às vezes descia Bahia a pé, até oBar do Ponto. Visão de fachadas queficavam na minha lembrança comocara de velhos amigos. (Nava, 1985,p. 40)... Todos os caminhos iam à rua daBahia (...) Da rua da Bahia partiamvias para os fundos do fim do mun-do, para os tramontes dos acaba-mi-nas (..). A simples reta urbana (..).Mas seria uma reta? ou antes, a cur-va? Era a reta, a reta sem tempo, areta. continente dos segredos dos in-finitos, paralelos. E era a curva. Aimarcescível curva, épura dos pas-sos projetados, imanência dos ciclói-des, círculo infinito...... mas jamais, ah! jamais sacudirá ojugo do velho crepúsculo, daquelatristeza da tarde morrendo varridade ventos, da lembrança submarinados fícus e dos moços que subiam edesciam a Rua da Bahia. Não a Ruada Bahia de hoje. A de ontem. A dosanos vinte. A de todos os tempos, asem fim no espaço, a inconclusa nosamanhãs. (Nava, 1986, p. 145)

Como marco-limite, procu-rou-se desvendar a Serra do Cur-ral, referência que fecha a cida-de em si própria e define seushorizontes. Nava, quando estu-dou no Colégio Anglo-Mineiro(hoje, o quartel do Corpo deBombeiros da PMMG) e morouno bairro da Serra, ainda nosseus primórdios, esteve muitopróximo da serra e pôde enten-dê-la como intransponível e mis-teriosa. Essa imponente barreira

montanhosa, que durante mui-to tempo impediu a expansãourbana de Belo Horizonte nadireção sul, foi tomada de assal-to pela urbanização acelerada eindiscriminadamente ocupada.A Serra do Curral é o limite.

íamos além, para adiante dos cami-nhos, tomávamos picadas ladeira aci-

ma, a montanha diminuía, subíamosaté os íngremes que de tão, viravamnuma parede, num muro em cimado qual corria a inacessível crista demetal. (...) A vegetação era poucanaquele solo de ferro onde cintilavampedregulhos e minérios em flor... ASerra, de longe parecia de veludo ...De perto, tocada, era dura e áspera.(Nava, 1986, p. 180)Para trás era a Serra do Curral, corde violeta àquela hora da tarde. Eraabrupta como uma parede, imensa e

Vista da Serra do Curral, 1920 (Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte)

Vista da Serra do Curral, 1997 (Foto: Marta Carneiro)

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

lembrava a imobilidade de pássarosgigantescos, caídos de asas abertas.(Nava, 1986, p. 157)

Para trás era a montanha, o Cerca-do, o Curral que, sob um céu que des-maiava, ia perdendo o verde do matoe o vermelho do chão para esticar-seem todo o horizonte duma cor de vio-leta, dum roxo de quaresma queavançava seus dois braços em direçãoao último clarão do crepúsculo paraapagá-lo enfim e desaparecerem por

sua vez, na pulverização azul mari-nho e depois negra da noite que seconstelava. (Nava, 1986, p. 263)

Ás memórias de Pedro Navaatribuem ênfase ao encontro daRua da Bahia com a AvenidaAfonso Pena, não havendo ne-nhum outro cruzamento comtanta expressão na cidade. O Bardo Ponto foi identificado como

um grande marco de referência.Não se destaca apenas como umlocal de encontro, mas apresen-ta conotações mais amplas, comose fosse um verdadeiro bairro. Asmemórias de Nava registram ci-tações como: “Moro no Bar doPonto”, “minha farmácia é pra-ticamente no Bar do Ponto”, parase referir a Rua dos Goitacazes,à Avenida Afonso Pena ou à la-deira da Rua dos Tupis. O Bar doPonto constitui um símbolo doimaginário social de toda umaépoca, entre os anos 10 e 30, detoda uma geração que tinha aíseu ponto de reunião, por ondecirculavam todas as informações,boatos e fofocas, estabelecendouma identidade cultural entre osque por ali transitavam ou vivi-am. A vida social, cultural e po-lítica da cidade começava e ter-minava no Bar do Ponto.

... agora estamos a três quarteirõesdo Bar do Ponto, que é o centro. Eume referia ao centro da cidade, maslogo veria que aquilo era o centro deMinas, do Brasil do Mundo vastoMundo. (Nava, 1976, p. 103)

Chamava-se Bar do Ponto rond-point formado pelo cruzamento deAfonso Pena e Bahia, que era ondedesaguava também a ladeira deTupis. Todo o primeiro quarteirãodessas ruas era caudatário da esta-ção de bondes – o ponto – que ficavaem cima da ribanceira do ParqueMunicipal e de um café chamado obar do Ponto. Esse nome estendeu-se às circunvizinhanças. (...) Era ocentro da cidade, seu trecho obriga-tório onde todo mundo parava, pas-sava, conversava, atravessava, espe-

Bar do Ponto, 1927 (Arquivo do Museu Abílio Barreto)

Bar do Ponto, 1997 (Foto: Marta Carneiro)

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rava, desesperava, amava, demora-va, vivia no Bar do Ponto. (Nava,1986, p. 132)

Aprendi a conhecer ou reconhecer devista, surgindo no Bar do Ponto comprecisão cronométrica, as figuras defuncionários legendários ... (Nava,1976, p. 306)

Encontro de amigos, encontros deobrigação. O nome acabou extrapo-lando, se estendendo, ultrapassan-

do o estabelecimento, passando a de-signar o polígono formado pelo cru-zamento de Afonso Pena com Bahia– local onde termina também a la-deira da rua Tupis. Enraizou-se tan-to na toponímia da cidade que fez de-saparecer, imaginem! o nome do Al-feres – Praça Tiradentes – que figu-rava nos antigos mapas de Belo Ho-rizonte. (Nava, 1985, p. 4)As lingüinhas trabalhavam, sobre-tudo dentro do Bar do Ponto. (Nava,1985, p. 5)

A Praça da Liberdade, locali-zada no topo de uma colina, soba forma de um tabuleiro, irradiaem todas as direções a imagemdo poder constituído; para issoela foi intencionalmente projeta-do e suntuosamente construída.É ali que está o complexo paisa-gístico no estilo “fin de siècle”, deconstruções ecléticas com traçosneoclássicos marcantes. EmNava, a praça perde sua fineza esisudez e ganha uma imagemhumanizada em expressões deefetividade e descrições minuci-osas e enternecedoras de suasbelezas e singularidades. Não es-tá ali o observador isento, é o ho-mem que vive e percebe a paisa-gem em derredor, estabelecendocom ela uma sintonia única einalienável. A Praça da Liberda-de é um importante marco de re-ferência da cidade de Belo Hori-zonte.

Além para a esquerda, a silhueta doPalácio, das Secretarias, das palmei-ras da Praça; mais longe as do Bon-fim se perdendo em contrafortes decolcotar ruivo, hematita e ferrugem.Era principalmente para atrás do Pa-lácio e da Praça que ia começar o es-tardalhaço cósmico de mais um pôr-de-sol. (Nava, 1985, p. 263)

E tomaram a praça pelo lado esquer-do de quem vai para o palácio.— Esse coreto tem um telhado lin-do. Não sei se exagero mas ele é omeu Tadj-Mahall...— É verdade! Até que parece mes-mo ...O lago artificial era um espelho dei-tado, um espelho com efeito de cruz

Praça da Liberdade, 1920 (Arquivo do Museu Abílio Barreto)

Praça da Liberdade, 1997 (Foto: Marta Carneiro)

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

cujos braços transversais terminas-sem na forma exata de hemicírculo.O Egon escolheu uma pedra achata-da e fez a mesma sair ricocheteandoumas duas, três vezes na superfíciedas águas.— Também sei fazer.E a pedrinha dela foi tirando fini-nhos cinco vezes.Toda a superfície liquida enrugou,angulou, fez rodas divergentes mul-tiplicando as estrelas e os lampiõesda praça refletidos. O palácio aga-chado ria para eles suas portas den-te sim, dente não. (Nava, 1983, p.72-73)Era político demais chegando e sa-indo, era o Palácio da Liberdade ou aSecretaria de Segurança tudo acesoe iluminado noitinteira era um tommais acalorado das conversas nasruas, nos clubes, nos cafés. (Nava,1987, p. 380)

O povo dispersou-se em pânico, re-concentrou-se no Bar do Ponto, dalisubiu até o palácio da Liberdade paradar conhecimento ao presidente. Este

recebeu a multidão cercado das pes-soas que estavam, àquela hora, nasede do Governo ... (Nava, 1987, p.454).

Eu andava agora no lado mais boni-to da praça. Já tinham tirado a Itaco-lomi e a fonte que havia em frente àAgricultura (creio que na reformafeita para receber o Rei dos Belgas)mas lá estava o coreto, teto de linhasorientais, pintado de prata – ao ins-tante recoberto duma camada de póde púrpura; o belo tanque onde serefletiam cada dia mais cambiantesdo céu mais lindo do mundo – àque-la hora cheio de sangue real do sol.Saindo dentre as folhas e galhos operfil violento e lupercal dum semi-deus – não era Pã, mas BernardoGuimarães em bronze. (Nava, 1985,p. 30)

Os textos de Nava resquar-dam os símbolos do passado his-tórico de Belo Horizonte, antes

que a nova cidade do tempo edo progresso e a incúria dos ho-mens os destruam irremediavel-mente. Ao utilizarmos essa obraliterária como fonte documental,deixamos que ela falasse por si,sem cerceá-la nos limites de umateoria ou tomá-la para ilustraridéias previamente construídas.O significativo é tentar captar nodocumento literário a carga sim-bólica que o autor empresta à ci-dade através de sua subjetivida-de criadora.

Neste final de século, quan-do os homens vivem a crise doEstado, recuperar historicamen-te nosso lugar urbano é recupe-rar a nossa própria territoriali-dade.

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Imagens da Belo Horizonte de Pedro Nava

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