Caderno Diretrizes I Completo

download Caderno Diretrizes I Completo

of 166

Transcript of Caderno Diretrizes I Completo

  • Caderno de Diretrizes Museolgicas

    Presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira Presidente do IPHAN Luiz Fernando de Almeida Diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais Jos do Nascimento Jnior Diretor do Departamento de Patrimnio e Fiscalizao Dalmo Vieira Filho Diretor do Departamento de Patrimnio Imaterial Mrcia Genesia de Santanna Diretor do Departamento de Patrimnio e Administrao Maria Emilia Nascimento dos Santos Procuradora-Chefe Teresa Beatriz da Rosa Miguel Coordenadora Geral de Promoo do Patrimnio Cultural Thays Pessotto Zugliani Coordenadora Geral de Pesquisa, Documentao e Referncia Lia Motta Governador do Estado de Minas Gerais Acio Neves Secretria de Estado de Cultura de Minas Gerais Eleonora Santa Rosa Secretrio-Adjunto de Estado de Cultura de Minas Gerais Marcelo Braga de Freitas Superintendente de Museus Silvania Sousa do Nascimento Diretor do Museu Mineiro Francisco Carlos de Almeida Magalhes Diretora de Conservao e Restaurao Mrcia Almada Diretora de Pesquisa e Documentao Flvia Klausing Gervsio

  • Diretora de Difuso Museolgica Ana Maria Azeredo Furquim Werneck Coordenadores dos Museus vinculados Superintendncia de Museus Museu Casa Guignard/Ouro Preto Glcio Fortes

    Museu Casa Guimares Rosa/Cordisburgo Ronaldo Alves de Oliveira

    Museu Casa Alphonsus de Guimaraens/Mariana Ana Cludia Rola Santos

    Museu do Banco Crdito Real/ Juiz de Fora Jos Roberto Dilly

    Braslia

    Ministrio da Cultura Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Departamento de Museus e Centros Culturais Belo Horizonte

    Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais Superintendncia de Museus

    2006

    Coordenao Editorial - 2 Edio Silvania Sousa do Nascimento tila Tolentino Mrio Chagas Fotografia Ins Gomes Projeto Grfico Srgio Luz de Souza Lima Capa Gustavo Goes Preparao e Reviso dos Textos Olga Maria Alves de Sousa Colaborao Usiminas Usinas Siderrgicas de Minas Gerais S.A.

  • Ficha Catalogrfica CADERNO de diretrizes museolgicas 1. Braslia: Ministrio da Cultura / Instituto do Patrimnio Historico e Artstico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendncia de Museus, 2006. 2 Edio 1. Museologia 2. Museus 3. Objetos e museus 4. Conservao e restaurao 5

    Sumrio

    Apresentao da 2 Edio Eleonora Santa Rosa Prefcio Silvania Sousa do Nascimento e Jos do Nascimento Junior Museu e Poltica: Apontamentos de uma Cartografia Jos do Nascimento Jnior e Mrio Chagas Apontamentos sobre a histria do museu Letcia Julio Documentao museolgica Maria Inez Cndido Pesquisa histrica no museu Letcia Julio Preveno e conservao em museus Maria Ceclia de Paula Drumond Anexos Modelo de Lei de Criao de Museu Modelo de Estatuto de Associao de Amigos Associao dos Amigos do Museu Casa Guignard Glossrio

  • Apresentao da 2a. Edio

    A Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, por intermdio da Superintendncia de Museus, busca implementar aes efetivas de gesto, difuso e preservao do patrimnio mineiro. de sua responsabilidade a integrao das instituies museais mineiras e a materializao das polticas pblicas que visam manuteno do dilogo entre memria representativa e a contemporaneidade. Promover aes exemplares de capacitao profissional na rea da museologia uma das funes que o Caderno de Diretrizes Museolgicas I busca em sua origem. Nesse volume, reflexes desenvolvidas principalmente no Museu Mineiro foram difundidas em todo o Estado de Minas Gerais atendendo aos gestores culturais, administradores de museus e pblico em geral. O sucesso da primeira edio, elaborada na gesto do Sr. ngelo Oswaldo de Arajo Santos, reflete o constante aprimoramento das atividades museais no Estado. A democratizao do acesso ao conhecimento ultrapassa, assim, o discurso ativista e fica registrada em forma de texto que responde s fortes demandas em favor da salvaguarda do patrimnio museolgico mineiro. A relevncia da temtica apontada, evidenciada pela constante demanda de reedio, demarca a exemplaridade da ao e a necessidade de sua continuidade.

    Aes dessa natureza reforam o compromisso social de oxigenao do tecido cultural e promovem a disseminao de conceitos e prticas reflexivas na rea museolgica. Uma segunda edio do Caderno de Diretrizes Museolgicas I, com a possibilidade de distribuio que ultrapasse os 853 municpios mineiros e os 216 museus atualmente cadastrados, busca contribuir para a sistematizao de procedimentos de preservao e conservao de nosso patrimnio. Esse compromisso assumido em parceria com as esferas pblicas, federal e estadual, e a sociedade civil, co-responsveis pela construo de uma cidadania cultural.

    Esperamos que o Caderno de Diretrizes Museolgicas 1, fomente o debate das questes museolgicas e irradie inspiraes para o alargamento de uma rede de abastecimento cultural no pas.

    Eleonora Santa Rosa Belo Horizonte, outubro 2006

  • Prefcio A Superintendncia de Museus do Estado de Minas Gerais e o Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, dando continuidade profcua parceira desenvolvida nos ltimos quatro anos, tm a satisfao de apresentar a segunda edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas. A primeira edio dos Cadernos, elaborada pela equipe da Superintendncia de Museus, lanada em 2002, teve excelente acolhida e em pouco tempo foi esgotada. Esse acontecimento merece ateno, uma vez que testemunha a favor do bom trabalho realizado com a publicao dos Cadernos e indica que h um pblico vido por informaes no campo dos museus e da museologia. O Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN, reconhecendo a qualidade desse trabalho, a demanda por sua reedio e sua adequao linha de publicaes que vem desenvolvendo, tomou a iniciativa de propor esta segunda edio em parceria com a Superintendncia de Museus da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, a qual, como sempre tem acontecido, disps-se prontamente a levar adiante mais esse projeto. Assim, como fruto dessa atuao conjunta, lanamos agora a segunda edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas, esperando, de algum modo, contribuir para a formao e capacitao de estudantes e trabalhadores do campo museal e tambm para o melhor desenvolvimento dos museus brasileiros. Que os Cadernos de Diretrizes Museolgicas sirvam de fonte de inspirao e informao para os interessados nos museus e na museologia! Este o anelo da Superintendncia de Museus e do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan.

    Silvania Sousa do Nascimento Superintendncia de Museus

    da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais Jos do Nascimento Jnior

    Diretor do Departamento de Museus do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional do Ministrio da Cultura.

  • MUSEUS E POLTICA: APONTAMENTOS DE UMA CARTOGRAFIA

    Jos do Nascimento Jnior1 Mrio Chagas2

    I Porto de partida Depois de chegar cidade, aquele que quiser ver e conhecer o museu local de

    referncia regional, nacional e internacional no ter dificuldades. Sem dvida, alguns desses museus ocupam na polis lugar de destacada importncia e notvel presena.

    Este o caso, por exemplo, do Museu de Arte Contempornea de Niteri (RJ), cujo projeto arquitetnico foi concludo em 1996, assim como o do Museu Paraense Emlio Goeldi, nascido como Sociedade Filomtica, em 1866, na cidade de Belm (PA).

    Estas duas referncias so suficientes para indicar que tanto museus criados no sculo XIX, quanto criados no sculo XX; tanto museus de arte, quanto de cincia; tanto museus com colees, quanto sem colees; tanto museus instala-dos em edifcios readaptados, quanto instalados em edifcios especialmente pro-jetados e construdos para as funes museais podem ocupar - e freqentemente ocupam um lugar de notvel relevo no imaginrio e na memria social, bem como no cenrio cultural e poltico de determinadas localidades. Este fenmeno, mesmo tendo sido pintado no mundo contemporneo com cores expressionistas, pode ser encontrado e observado na histria cultural do ocidente, em registros menos dramticos, pelo menos desde o sculo XVIII.

    Identificar e reconhecer esse lugar de notvel relevo dos museus em diferentes temporalidades e localidades implica o reconhecimento de que eles so, ao mesmo tempo, casas de memria, lugares de representao social e espaos de mediao cultural. Como casas de memria eles podem ser acionados visando o desenvolvimento de aes de preservao e de criao cultural e cientfica, como lugares de representao eles podem ser utilizados para teatralizar o universal, o nacional, o regional, o local, o tnico e o individual e como espaos de mediao ou de comunicao eles podem disponibilizar narrativas menos ou mais grandiosas, menos ou mais inclusivas para pblicos menos ou mais ampliados.

    Todas essas possibilidades contribuem para colocar em evidncia pelo menos quatro aspectos que aqui so apresentados como snteses provisrias: 1. Os museus surgem na polis e na polis esto engastados como mediadores de relaes sociais; 2. Os museus tm uma dimenso poltica que extrapola e orienta

  • as funes de preservao, investigao e comunicao; 3. Os museus constroem, disciplinam e controlam seus pblicos e 4. Para alm da acumulao de tesouros culturais um dos desafios polticos dos museus de hoje o compromisso com o exerccio da cidadania e o desenvolvimento de valores de humanidade. 1Antroplogo, Mestre em Antropolo-gia e Diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan. 2 Muselogo, Doutor em Cincias Sociais, professor adjunto da Unirio e Coordenador Tcnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan. 12

    II Rumo e contexto O museu estrito senso - um fenmeno da modernidade ocidental que tem

    aproximadamente duas centenas de anos. Essa indicao importante, pois explicita o fato de que o saber fazer e o saber lidar com os museus um aprendi-zado recente e que, por isso mesmo, freqentemente nos surpreendemos com os seus encaminhamentos, desdobramentos, novidades e ressignificaes. Na dcada de sessenta do sculo XX, por exemplo, a morte prxima dos museus foi profetizada por alguns tericos. De modo curioso, o que se observou foi justo o contrrio. Os museus no apenas no morreram, como se renovaram e se mul-tiplicaram em progresso quase geomtrica.

    Assim, superando as previses catastrficas, os museus, de maneira geral, foram ressignificados e reconquistaram notvel centralidade no panorama poltico e cultural do mundo contemporneo; de igual modo, eles deixaram de ser compreendidos, por setores da poltica e da intelectualidade, apenas como casas onde se guardam relquias de um certo passado ou, na melhor das hipteses, como lugares de interesse secundrio do ponto de vista sociocultural.

    Na atualidade, observam-se uma reaproximao e um interesse crescentes de antroplogos, socilogos, filsofos, artistas, historiadores e educadores em relao ao campo museal, incluindo a o patrimonial. A 25. Reunio Brasileira de Antropologia3 que reuniu mais de 2000 antroplogos, sob o tema Saberes e prticas antropolgicas desafios para o sculo XXI uma evidncia dessa re-aproximao e desse interesse crescente, uma vez que em diversos Grupos de Trabalho a temtica dos museus esteve presente.

    De modo bastante visvel os museus esto em movimento e j no so apenas casas que guardam marcas do passado, so territrios muito mais complexos, so prticas sociais que se desenvolvem no presente e que esto envolvidas com criao, comunicao, afirmao de identidades, produo de conhecimentos e preservao de bens e manifestaes culturais. O interesse poltico nesse territrio simblico, conseqentemente, est tambm em mudana e em franca expanso. Tudo isso indica que os museus esto conquistando um novo lugar na

  • vida social brasileira, e, por isso mesmo, um novo lugar na agenda da poltica cultural. Uma das evidncias desse novo lugar encontra-se no relatrio final da I Conferncia Nacional de Cultura, onde o tema museu deixou de ser perifrico e foi amplamente debatido.

    III Provises, equipamentos e conceitos ligeiros Na segunda metade do sculo XX, ou, de modo mais preciso, depois dos anos

    setenta, a museologia e os museus no Brasil passaram por um grande processo de transformao e amadurecimento. Nesse perodo, o objeto de estudo da museologia foi construdo, desconstrudo e reconstrudo inmeras vezes; a categoria museu foi ressignificada e a diversidade tipolgica dos museus foi am-pliada de uma maneira sem precedentes. Os museus passaram a ser tratados como processos e prticas culturais de relevncia social. Muitos museus - como o caso dos ecomuseus, museus comunitrios, museus de territrio e alguns dos chamados museus regionais - deixaram de ser pensados como unidades e passaram a operar com a noo de multiplicidade, de mltiplas sedes, mltiplos 3 Promovida pela Associao Brasileira de Antropologia (ABA), em Goinia, no perodo de 11 a 14 de junho de 2006.

    13

    ncleos espalhados por um territrio socialmente praticado; tantos outros deixaram de ser pensados como guardies de colees fixas e passaram a atuar com um patrimnio cultural em processo.

    Essas consideraes so relevantes quando se trata de pensar e colocar em prtica uma poltica pblica especfica para museus. Em outras palavras: a construo, na contemporaneidade, de uma poltica museal democrtica e de interesse pblico precisa considerar a museodiversidade brasileira, bem como as reflexes, os debates, as prticas e as poticas caractersticas desse universo em expanso. A aceitao dessa afirmao - que bem poderia ser tratada como uma hiptese - implica tambm a aceitao de que uma poltica pblica de museus no Brasil de hoje est colocada diante de pelo menos sete desafios: 1. Trabalhar com o direito memria como um direito de cidadania; 2. Desenvolver modelos de gesto que estimulem redes e sistemas de museus; 3. Democratizar o acesso aos, e a produo de, bens culturais musealizados; 4. Desenvolver e estimular a criao de programas de educao em museus e de formao e capacitao de pessoal; 5. Criar dispositivos de valorizao do patrimnio cultural musealizado e do patrimnio cultural passvel de musealizao, seja ele tangvel ou intangvel; 6. Apoiar e implementar projetos ancorados no respeito diferena e na valorizao da memria de comunidades populares e, por ltimo na ordem, mas no na

  • importncia, 7. Institucionalizar procedimentos democrticos de investimentos no campo dos museus.

    Estes desafios ancoram-se no pressuposto de que os museus so ferramentas de trabalho, so como lpis, com os quais se pode escrever mltiplos textos, so equipamentos ou tecnologias que podem ser apropriadas por diferentes grupos culturais, o que resulta em diferentes museus e diferentes experincias museais.

    IV Ventos e correntes O processo de renovao da museologia e dos museus est longe de ser

    esgotado ou concludo. As reflexes e as prticas colocadas em curso pela deno-minada nova museologia introduziram tambm novas questes polticas e colo-caram em xeque teorias e prticas clssicas consagradas. Ainda que hoje se possa fazer uma anlise crtica da nova museologia, no se pode negar as suas contri-buies e no se pode deixar de enfrentar os problemas que introduziu, sem que isso caracterize uma determinada tendncia poltica. Em outras palavras: a nova museologia contribuiu para a valorizao das pessoas, dos territrios e do patri-mnio cultural, para a acentuao da dimenso poltica dos museus e tambm para a compreenso de que eles so processos onde esto em jogo, ao mesmo tempo: memria e poder, esquecimento e resistncia, tradio e contradio.

    Entre as diferentes experincias includas no mbito da denominada nova museologia destaca-se a do ecomuseu, definido por Hugues de Varine e George H. Rivire como prtica social que se estrutura a partir da relao entre uma determinada populao, um determinado patrimnio e um certo recorte ter-ritorial, visando a melhoria da qualidade de vida, a reorganizao do espao, o desenvolvimento local e a ampliao das possibilidades de identificao cultural.

    Na atualidade, o desenvolvimento de polticas pblicas especficas para o campo dos museus precisa levar em conta as contribuies e os limites da nova

    14

    museologia. Este , a rigor, um caminho possvel para a construo de uma museologia que no se contenta com os adjetivos: velha, nova, jovem ou novssima, e que, por isso mesmo, busca se afirmar como museologia crtica.

    V - Navegar preciso... Tem a Poltica ainda algum sentido? Para essa pergunta Hannah Arendt con-

    sidera que (...) existe uma resposta to simples e to concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensveis por completo. Essa resposta segundo a filsofa indica que o sentido da poltica a liberdade. (2004, p.38)

    A pergunta e a resposta apresentadas por Arendt tm a capacidade de pro-duzir certo desconforto e estimular o pensamento, uma vez que as relaes entre poltica e liberdade no so pacficas. Ao se perguntar sobre o sentido da poltica,

  • Arendt tem como pano de fundo a noo de que a poltica baseia-se na pluralidade dos homens e trata da convivncia entre diferentes (2004, p.21).

    Movidos pelo questionamento da filsofa poderamos perguntar: Uma poltica para o campo dos museus tem ainda algum sentido?

    Tambm aqui preciso considerar, ao lado de Andr Malraux, que o museu um dos locais que nos proporcionam a mais elevada idia do homem (2000, p.12). Assim, a pluralidade dos homens em que se baseia a poltica repercute na pluralidade dos museus. nesse sentido, que se pode dizer que os museus so pontes entre culturas, so portas que se abrem e se fecham para diferentes mun-dos, so espaos de convivncia entre diferentes. Os museus esto, portanto, inteiramente mergulhados na poltica e, por isso, tambm esto em relao com a liberdade e com a ausncia de liberdade. De outro modo: os museus, assim como a memria e o patrimnio, tanto podem servir para conformar quanto para transformar, tanto podem servir para tiranizar quanto para libertar.

    O exerccio do direito memria, ao passado, ao presente e ao futuro, do direito preservao, mudana e criao um repto para uma poltica de museus na contemporaneidade.

    VI Chegar e partir so dois lados da mesma viagem O texto aqui apresentado quer contribuir para o debate em torno das relaes

    entre museus e poltica. Ele foi construdo com base em apontamentos e tem, como se pode verificar, uma arquitetura de fragmentos. A cartografia que desejamos desenhar no quis em momento algum apresentar contornos muito bem definidos, ao contrrio, quis estimular, sugerir e convidar o leitor para a via-gem pelo territrio dos museus. Um territrio de prticas polticas e poticas.

    O Caderno de Diretrizes Museolgicas constitui uma boa introduo a esse territrio. No se trata de diretrizes rgidas e monolticas, trata-se de uma suges-to de viagem, de um roteiro para estudos e passeios agradveis e instigantes. Nessa sugesto de viagem somos levados a pontos ou temas como histria dos museus, documentao museolgica, pesquisa histrica nos museus, preveno e conservao em museus. Alm desses pontos, encontramos tambm um modelo de Lei de Criao de Museu, um modelo de Estatuto de Associao de Amigos e um pequeno glossrio com temas museolgicos.

    15

    A primeira edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas foi muito bem recebida. As pesquisas e os textos que os constituem recomendam a sua leitura. O Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), consciente da importncia desses Cadernos, alm de sugerir e apoiar empenhou-se decididamente na publicao da

  • segunda edio. Ao leitor, s nos resta desejar uma boa leitura e uma boa viagem!

    Bibliografia ABREU, Regina e CHAGAS, Mrio. Memria e patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A/Unirio/Faperj, 2003. ARENDT, Hannah. O que Poltica? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. BARY, Marie-Odile de. (dir.) Vagues: une anthologie de la nouvelle musologie. Lyon: Difusion Presses Universitaires de Lyon/M.N.E.S., 1992. CHAGAS, M. Muselia. Rio de Janeiro: JC Editora, 1996. CHAUI, Marilena. Conformismo e resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1986. FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas hbridas. So Paulo: Edusp, 1998. GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989. HALBWACHHS, Maurice. La mmoire collective. Paris: PUF, 1968. LE GOFF, Jacques (org.) Enciclopdia Einaudi. Memria - Histria, v.1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984. LEON, Aurora. El Museo. Madrid: Ediciones Ctedra, 1988. MALRAUX, Andr. O Museu Imaginrio. Lisboa: Edies 70, 2000. MOUTINHO, Mrio. Museus e Sociedade. Monte Redondo (Portugal): Museu Etnolgico, 1989. RIVIRE, Georges Henri. Musologie. Paris: Dunod, 1989.16

    SANTOS, Maria Clia T. M. Processo museolgico e educao Construindo o Museu Didtico Comunitrio Prof. Lomanto Jnior, em Itapu (tese de doutora-mento em Educao) Salvador: UFBa, 1995. SANTOS, Myrian S. dos. Histria, tempo e memria: um estudo sobre museus a partir da observao feita no Museu Imperial e no Museu Histrico Nacional. (Tese de Mestrado apresentada ao IUPERJ). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1989. SEGALL, Maurcio. Controvrsias e dissonncia. So Paulo: Edusp/Boi Tempo, 2001. VARINE, Hugues. O Ecomuseu. In: Revista da Faculdade Porto-alegrense de Educao, Cincias e Letras, n.27, 2000. p.61-90.

  • Apresentao da 1 Edio Superintendncia de Museus instituio responsvel pela implementao da poltica de museus para o Estado de Minas Gerais, alm da gesto de suas unidades, Museu Mineiro, em Belo Horizonte; Museu Casa Guimares Rosa, em Cordisburgo; Museu Casa Alphonsus de Guimaraens, em Mariana, e Museu Casa Guignard, em Ouro Preto. Sua criao, em 1979, faz parte das aes preservacionistas referendadas pela instalao, em princpios da dcada de 70, do Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico de Minas Gerais, sendo concebida com o objetivo de se dotar o Estado de uma estrutura administrativo-cultural capaz de responder formalmente s demandas em favor da salvaguarda do patrimnio museolgico mineiro. Assim, a Superintendncia nasceu com a misso de assessorar os municpios de Minas nas iniciativas de criao e dinamizao de museus, responsabilizando-se pela disseminao de conceitos e prticas que se traduzissem em constante in-centivo e aprimoramento crescente das atividades dessa natureza no Estado. Hoje, passados vinte e trs anos, e sobretudo num momento em que se co-memoram os vinte anos de implantao do Museu Mineiro, unidade exemplar concebida como museu-laboratrio, a Superintendncia de Museus se sente vontade para rever criticamente seu papel, refletir sobre suas atribuies e com-petncias e sobre o distanciamento do discurso em face prtica institucional. Ao se repensar sobre os limites de sua atuao, no se pode desconsiderar a grande extenso de Minas: mais de 500 mil quilmetros quadrados, 853 municpios e 154 museus, muitos dos quais tm, sistematicamente, recorrido instituio procura de informaes sobre a criao, implantao e gesto de espaos museolgicos. Em que pese a ateno constante da equipe desta Superintendncia em responder a todas as solicitaes, o atendimento tem sido casustico e circunstancial. Trata-se agora de se percorrer o caminho inverso: da Superintendncia de Museus, atravs do Caderno de Diretrizes Museolgicas 1, se fazer presente nos municpios, revestida do compromisso de atuar como unidade de integrao dos museus existentes em Minas Gerais, reafirmando o seu papel de ser agente res-ponsvel pela difuso de conhecimentos nessa rea do saber. A publicao se divide em duas partes. A primeira composta por quatro artigos, nos quais so abordados temas referentes a museus noes conceituais; apontamentos histricos sobre a instituio; documentao museolgica; objetos museais entendidos na dimenso de fragmentos de cultura material; preveno e conservao em museus. A segunda parte, reservada a anexos, integrada

  • A

  • 10 por modelo de lei de criao de museus elaborado pela Assessoria Jurdica da Secretaria de Estado da Cultura; Estatuto da Associao dos Amigos do Museu Casa Guignard, que deve ser tomado como exemplo para a organizao e composio de uma associao dessa natureza, e glossrio de termos bsicos e freqentes nos museus. O propsito da Superintendncia de Museus ao conceber este Caderno, dirigido s Secretarias, aos Departamentos de Cultura e aos Conselhos de Patrimnio, estimular os municpios a musealizar suas colees; disseminar e democratizar o acesso de informaes, sem privilegiar regies e acervos previamente conhecidos e valorizados, e, principalmente, posicionar-se como ponto de convergncia dos museus mineiros sem prejuzo do princpio da municipalizao preceito constitucional relevante para a preservao dos bens culturais mineiros. Espera-se que esta publicao possa responder a muitas indagaes que rotinei-ramente nos tm sido formuladas. Mas, espera-se, sobretudo, que ela incite uma nova maneira de pensar, um novo jeito de criar e de gerir os museus de Minas, de forma que estes, cumprindo o seu compromisso social, sejam apreendidos, de fato, como casas da memria a servio do homem, no tempo presente.

    Silvana Canado Trindade11

  • 1Caderno de Diretrizes Museolgicas

  • 2Governador do Estado de Minas GeraisAcio Neves

    Secretrio de Estado da CulturaEleonora Santa Rosa

    Superintendente de MuseusSilvana Sousa do Nascimento

    Diretor do Museu MineiroFrancisco Carlos de Almeida Magalhes

    Diretora de Conservao e RestauraoMaria Ceclia de Paula Drumond

    Coordenadora do Projeto de Inventrio do Museu MineiroMaria Inez Cndido

    Coordenadores dos Museus vinculados Superintendncia de Museus

    Museu Casa Guignard/Ouro PretoGlcio Fortes

    Museu Casa Guimares Rosa/CordisburgoLcia Corra Goulart de Castro

    Museu Casa Alphonsus de Guimaraens/MarianaAna Cludia Rolasam

    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da CulturaGilberto Passos Gil Moreira

    Presidente do IPHANLuiz Fernando de Almeida

    Diretor do Departamento de Museus e Centros CulturaisJos do Nascimento Jnior

    Diretor do Departamento de Patrimnio e FiscalizaoDalmo Vieira Filho

    Diretor do Departamento de Patrimnio ImaterialMrcia Genesia de Santanna

    Diretor do Departamento de Patrimnio e AdministraoMaria Emilia Nascimento dos Santos

    Procuradora-ChefeTeresa Beatriz da Rosa Miguel

    Coordenadora Geral de Promoo do Patrimnio CulturalThays Pessotto Zugliani

    Coordenadora Geral de Pesquisa, Documentao e RefernciaLia Motta

  • 3Belo Horizonte

    Secretaria de Estado da CulturaSuperintendncia de Museus

    Braslia

    Ministrio da CulturaInstituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    Departamento de Museus e Centros Culturais

    2006

  • 4Coordenao Editorial - 2 EdioSilvania Souza do Nascimentotila TolentinoLetcia JulioMaria Inez CndidoMaria Ceclia de Paula DrumondMrio ChagasSilvana Canado Trindade

    FotografiaIns Gomes

    Projeto Grfico Srgio Luz de Souza Lima

    CapaGustavo Goes

    Preparao e Reviso dos TextosOlga Maria Alves de Sousa

    ColaboraoUsiminas Usinas Siderrgicas de Minas Gerais S.A.

    Ficha Catalogrfica

    CADERNO de diretrizes museolgicas 1. Braslia: Ministrio da Cultura / Instituto do Patrimnio Historico e Artstico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendncia de Museus, 2006. 2 Edio1. Museologia 2. Museus 3. Objetos e museus 4. Conservao e restaurao

  • 5Sumrio

    Apresentao da 1 Edio

    Silvana Sousa do Nascimento e Jos do Nascimento Junior 09

    Museu e Poltica: Apontamentos de uma Cartografia

    Jos do Nascimento Jnior e Mrio Chagas 11

    Apontamentos sobre a histria do museu

    Letcia Julio 17

    Documentao museolgica

    Maria Inez Cndido 31

    Pesquisa histrica no museu

    Letcia Julio 91

    Preveno e conservao em museus

    Maria Ceclia de Paula Drumond 105

    Anexos

    Modelo de Lei de Criao de Museu

    133Modelo de Estatuto de Associao de Amigos

    Associao dos Amigos do Museu Casa Guignard 134

    Glossrio 143

  • 6

  • 7AApresentao

    Superintendncia de Museus do Estado de Minas Gerais e o Depar-tamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, dando continuidade profcua parceira desenvolvida nos ltimos quatro anos, tm a satisfao de apresentar a

    segunda edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas.

    A primeira edio dos Cadernos, elaborada pela a equipe da Superintendncia de Museus e lanada 2002, teve excelente acolhida e em pouco tempo foi esgotada. Esse acontecimento merece ateno, uma vez que testemunha a favor do bom trabalho realizado com a publicao dos Cadernos e indica que h um pblico vido por informaes no campo dos museus e da museologia.

    O Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN, reconhecendo a qualidade desse trabalho, a demanda por sua reedio e sua adequao linha de publicaes que vem desenvolvendo, tomou a iniciativa de propor esta segunda edio em parceria com a Superintendncia de Museus do Estado de Minas Ge-rais, a qual, como sempre tem acontecido, disps-se prontamente a levar adiante mais esse projeto.

    Assim, como fruto dessa atuao conjunta, lanamos agora a segunda edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas, esperando, de algum modo, contribuir para a formao e capacitao dos estudantes e trabalhadores do campo museal e tambm para o melhor desenvolvimento dos museus brasileiros.

    Que os Cadernos de Diretrizes Museolgicas sirvam de fonte de inspirao e informao para os interessados nos museus e na museologia!, este o anelo da Superintendncia de Museus e do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan.

    Silvania Sousa do NascimentoSuperintendncia de Museus do Estado de Minas Gerais

    Jos do Nascimento JniorDiretor do Departamento de Museus

    do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional do Ministrio da Cultura.

  • 8

  • 9AApresentao da 1 Edio

    Superintendncia de Museus instituio responsvel pela implemen-tao da poltica de museus para o Estado de Minas Gerais, alm da gesto de suas unidades, Museu Mineiro, em Belo Horizonte; Museu

    Casa Guimares Rosa, em Cordisburgo; Museu Casa Alphonsus de Guimaraens, em Mariana, e Museu Casa Guignard, em Ouro Preto.

    Sua criao, em 1979, faz parte das aes preservacionistas referendadas pela instalao, em princpios da dcada de 70, do Instituto Estadual do Patrimnio Histrico e Artstico de Minas Gerais, sendo concebida com o objetivo de se dotar o Estado de uma estrutura administrativo-cultural capaz de responder formalmente s demandas em favor da salvaguarda do patrimnio museolgico mineiro.

    Assim, a Superintendncia nasceu com a misso de assessorar os municpios de Minas nas iniciativas de criao e dinamizao de museus, responsabilizando-se pela disseminao de conceitos e prticas que se traduzissem em constante in-centivo e aprimoramento crescente das atividades dessa natureza no Estado.

    Hoje, passados vinte e trs anos, e sobretudo num momento em que se co-memoram os vinte anos de implantao do Museu Mineiro, unidade exemplar concebida como museu-laboratrio, a Superintendncia de Museus se sente vontade para rever criticamente seu papel, refletir sobre suas atribuies e com-petncias e sobre o distanciamento do discurso em face prtica institucional.

    Ao se repensar sobre os limites de sua atuao, no se pode desconsiderar a gran-de extenso de Minas: mais de 500 mil quilmetros quadrados, 853 municpios e 154 museus, muitos dos quais tm, sistematicamente, recorrido instituio procura de informaes sobre a criao, implantao e gesto de espaos mu-seolgicos. Em que pese a ateno constante da equipe desta Superintendncia em responder a todas as solicitaes, o atendimento tem sido casustico e cir-cunstancial.

    Trata-se agora de se percorrer o caminho inverso: da Superintendncia de Museus, atravs do Caderno de Diretrizes Museolgicas 1, se fazer presente nos municpios, revestida do compromisso de atuar como unidade de integrao dos museus existentes em Minas Gerais, reafirmando o seu papel de ser agente res-ponsvel pela difuso de conhecimentos nessa rea do saber.

    A publicao se divide em duas partes. A primeira composta por quatro arti-gos, nos quais so abordados temas referentes a museus noes conceituais; apontamentos histricos sobre a instituio; documentao museolgica; obje-tos museais entendidos na dimenso de fragmentos de cultura material; preven-o e conservao em museus. A segunda parte, reservada a anexos, integrada

  • 10

    por modelo de lei de criao de museus elaborado pela Assessoria Jurdica da Secretaria de Estado da Cultura; Estatuto da Associao dos Amigos do Museu Casa Guignard, que deve ser tomado como exemplo para a organizao e com-posio de uma associao dessa natureza, e glossrio de termos bsicos e fre-qentes nos museus.

    O propsito da Superintendncia de Museus ao conceber este Caderno, dirigido s Secretarias, aos Departamentos de Cultura e aos Conselhos de Patrimnio, estimular os municpios a musealizar suas colees; disseminar e democratizar o acesso de informaes, sem privilegiar regies e acervos previamente conheci-dos e valorizados, e, principalmente, posicionar-se como ponto de convergncia dos museus mineiros sem prejuzo do princpio da municipalizao preceito constitucional relevante para a preservao dos bens culturais mineiros.

    Espera-se que esta publicao possa responder a muitas indagaes que rotinei-ramente nos tm sido formuladas. Mas, espera-se, sobretudo, que ela incite uma nova maneira de pensar, um novo jeito de criar e de gerir os museus de Minas, de forma que estes, cumprindo o seu compromisso social, sejam apreendidos, de fato, como casas da memria a servio do homem, no tempo presente.

    Silvana Canado Trindade

  • 11

    1Antroplogo, Mestre em Antropolo-gia e Diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan.2 Muselogo, Doutor em Cincias Sociais, professor adjunto da Unirio e Coordenador Tcnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan.

    MUSEUS E POLTICA: APONTAMENTOS DE UMA CARTOGRAFIA

    Jos do Nascimento Jnior1 Mrio Chagas2

    I Porto de partida

    Depois de chegar cidade, aquele que quiser ver e conhecer o museu local de referncia regional, nacional e internacional no ter dificuldades. Sem dvida, alguns desses museus ocupam na polis lugar de destacada impor-tncia e notvel presena.

    Este o caso, por exemplo, do Museu de Arte Contempornea de Niteri (RJ), cujo projeto arquitetnico foi concludo em 1996, assim como o do Museu Paraense Emlio Goeldi, nascido como Sociedade Filomtica, em 1866, na cidade de Belm (PA).

    Estas duas referncias so suficientes para indicar que tanto museus criados no sculo XIX, quanto criados no sculo XX; tanto museus de arte, quanto de cincia; tanto museus com colees, quanto sem colees; tanto museus instala-dos em edifcios readaptados, quanto instalados em edifcios especialmente pro-jetados e construdos para as funes museais podem ocupar - e freqentemente ocupam um lugar de notvel relevo no imaginrio e na memria social, bem como no cenrio cultural e poltico de determinadas localidades. Este fenmeno, mesmo tendo sido pintado no mundo contemporneo com cores expressionis-tas, pode ser encontrado e observado na histria cultural do ocidente, em regis-tros menos dramticos, pelo menos desde o sculo XVIII.

    Identificar e reconhecer esse lugar de notvel relevo dos museus em diferentes temporalidades e localidades implica o reconhecimento de que eles so, ao mesmo tempo, casas de memria, lugares de representao so-cial e espaos de mediao cultural. Como casas de memria eles podem ser acionados visando o desenvolvimento de aes de preservao e de criao cultural e cientfica, como lugares de representao eles podem ser utilizados para teatralizar o universal, o nacional, o regional, o local, o tnico e o indi-vidual e como espaos de mediao ou de comunicao eles podem dispo-nibilizar narrativas menos ou mais grandiosas, menos ou mais inclusivas para pblicos menos ou mais ampliados.

    Todas essas possibilidades contribuem para colocar em evidncia pelo menos quatro aspectos que aqui so apresentados como snteses provisrias: 1. Os museus surgem na polis e na polis esto engastados como mediadores de relaes sociais; 2. Os museus tm uma dimenso poltica que extrapola e orienta as funes de preservao, investigao e comunicao; 3. Os museus constroem, disciplinam e controlam seus pblicos e 4. Para alm da acumu-lao de tesouros culturais um dos desafios polticos dos museus de hoje o compromisso com o exerccio da cidadania e o desenvolvimento de valores de humanidade.

  • 12

    II Rumo e contexto

    O museu estrito senso - um fenmeno da modernidade ocidental que tem aproximadamente duas centenas de anos. Essa indicao importante, pois explicita o fato de que o saber fazer e o saber lidar com os museus um aprendi-zado recente e que, por isso mesmo, freqentemente nos surpreendemos com os seus encaminhamentos, desdobramentos, novidades e ressignificaes. Na dcada de sessenta do sculo XX, por exemplo, a morte prxima dos museus foi profetizada por alguns tericos. De modo curioso, o que se observou foi justo o contrrio. Os museus no apenas no morreram, como se renovaram e se mul-tiplicaram em progresso quase geomtrica.

    Assim, superando as previses catastrficas, os museus, de maneira geral, foram ressignificados e reconquistaram notvel centralidade no panorama pol-tico e cultural do mundo contemporneo; de igual modo, eles deixaram de ser compreendidos, por setores da poltica e da intelectualidade, apenas como casas onde se guardam relquias de um certo passado ou, na melhor das hipteses, como lugares de interesse secundrio do ponto de vista sociocultural.

    Na atualidade, observam-se uma reaproximao e um interesse crescentes de antroplogos, socilogos, filsofos, artistas, historiadores e educadores em relao ao campo museal, incluindo a o patrimonial. A 25. Reunio Brasileira de Antropologia3 que reuniu mais de 2000 antroplogos, sob o tema Saberes e prticas antropolgicas desafios para o sculo XXI uma evidncia dessa re-aproximao e desse interesse crescente, uma vez que em diversos Grupos de Trabalho a temtica dos museus esteve presente.

    De modo bastante visvel os museus esto em movimento e j no so apenas casas que guardam marcas do passado, so territrios muito mais complexos, so prticas sociais que se desenvolvem no presente e que esto envolvidas com criao, comunicao, afirmao de identidades, produo de conhecimentos e preservao de bens e manifestaes culturais. O interesse poltico nesse territrio simblico, conseqentemente, est tambm em mudana e em franca expanso. Tudo isso in-dica que os museus esto conquistando um novo lugar na vida social brasileira, e, por isso mesmo, um novo lugar na agenda da poltica cultural. Uma das evidncias desse novo lugar encontra-se no relatrio final da I Conferncia Nacional de Cultura, onde o tema museu deixou de ser perifrico e foi amplamente debatido.

    III Provises, equipamentos e conceitos ligeiros

    Na segunda metade do sculo XX, ou, de modo mais preciso, depois dos anos setenta, a museologia e os museus no Brasil passaram por um grande pro-cesso de transformao e amadurecimento. Nesse perodo, o objeto de estudo da museologia foi construdo, desconstrudo e reconstrudo inmeras vezes; a categoria museu foi ressignificada e a diversidade tipolgica dos museus foi am-pliada de uma maneira sem precedentes. Os museus passaram a ser tratados como processos e prticas culturais de relevncia social. Muitos museus - como o caso dos ecomuseus, museus comunitrios, museus de territrio e alguns dos chamados museus regionais - deixaram de ser pensados como unidades e passaram a operar com a noo de multiplicidade, de mltiplas sedes, mltiplos

    3 Promovida pela Associao Brasileira de Antropologia (ABA), em Goinia, no perodo de 11 a 14 de junho de 2006.

  • 13

    ncleos espalhados por um territrio socialmente praticado; tantos outros deixa-ram de ser pensados como guardies de colees fixas e passaram a atuar com um patrimnio cultural em processo.

    Essas consideraes so relevantes quando se trata de pensar e colocar em prtica uma poltica pblica especfica para museus. Em outras palavras: a construo, na contemporaneidade, de uma poltica museal democrtica e de interesse pblico precisa considerar a museodiversidade brasileira, bem como as reflexes, os deba-tes, as prticas e as poticas caractersticas desse universo em expanso. A aceitao dessa afirmao - que bem poderia ser tratada como uma hiptese - implica tambm a aceitao de que uma poltica pblica de museus no Brasil de hoje est colocada diante de pelo menos sete desafios: 1. Trabalhar com o direito memria como um direito de cidadania; 2. Desenvolver modelos de gesto que estimulem redes e sistemas de museus; 3. Democratizar o acesso aos, e a produo de, bens culturais musealizados; 4. Desenvolver e estimular a criao de programas de educao em museus e de formao e capacitao de pessoal; 5. Criar dispositivos de valorizao do patrimnio cultural musealizado e do patrimnio cultural passvel de musealiza-o, seja ele tangvel ou intangvel; 6. Apoiar e implementar projetos ancorados no respeito diferena e na valorizao da memria de comunidades populares e, por ltimo na ordem, mas no na importncia, 7. Institucionalizar procedimentos demo-crticos de investimentos no campo dos museus.

    Estes desafios ancoram-se no pressuposto de que os museus so ferramentas de trabalho, so como lpis, com os quais se pode escrever mltiplos textos, so equipamentos ou tecnologias que podem ser apropriadas por diferentes grupos culturais, o que resulta em diferentes museus e diferentes experincias museais.

    IV Ventos e correntes

    O processo de renovao da museologia e dos museus est longe de ser esgotado ou concludo. As reflexes e as prticas colocadas em curso pela deno-minada nova museologia introduziram tambm novas questes polticas e colo-caram em xeque teorias e prticas clssicas consagradas. Ainda que hoje se possa fazer uma anlise crtica da nova museologia, no se pode negar as suas contri-buies e no se pode deixar de enfrentar os problemas que introduziu, sem que isso caracterize uma determinada tendncia poltica. Em outras palavras: a nova museologia contribuiu para a valorizao das pessoas, dos territrios e do patri-mnio cultural, para a acentuao da dimenso poltica dos museus e tambm para a compreenso de que eles so processos onde esto em jogo, ao mesmo tempo: memria e poder, esquecimento e resistncia, tradio e contradio.

    Entre as diferentes experincias includas no mbito da denominada nova museologia destaca-se a do ecomuseu, definido por Hugues de Varine e George H. Rivire como prtica social que se estrutura a partir da relao entre uma determinada populao, um determinado patrimnio e um certo recorte ter-ritorial, visando a melhoria da qualidade de vida, a reorganizao do espao, o desenvolvimento local e a ampliao das possibilidades de identificao cultural.

    Na atualidade, o desenvolvimento de polticas pblicas especficas para o campo dos museus precisa levar em conta as contribuies e os limites da nova

  • 14

    museologia. Este , a rigor, um caminho possvel para a construo de uma mu-seologia que no se contenta com os adjetivos: velha, nova, jovem ou novssima, e que, por isso mesmo, busca se afirmar como museologia crtica.

    V - Navegar preciso...

    Tem a Poltica ainda algum sentido? Para essa pergunta Hannah Arendt con-sidera que (...) existe uma resposta to simples e to concludente em si que se po-deria achar outras respostas dispensveis por completo. Essa resposta segundo a filsofa indica que o sentido da poltica a liberdade. (2004, p.38)

    A pergunta e a resposta apresentadas por Arendt tm a capacidade de pro-duzir certo desconforto e estimular o pensamento, uma vez que as relaes entre poltica e liberdade no so pacficas. Ao se perguntar sobre o sentido da poltica, Arendt tem como pano de fundo a noo de que a poltica baseia-se na pluralidade dos homens e trata da convivncia entre diferentes (2004, p.21).

    Movidos pelo questionamento da filsofa poderamos perguntar: Uma pol-tica para o campo dos museus tem ainda algum sentido?

    Tambm aqui preciso considerar, ao lado de Andr Malraux, que o museu um dos locais que nos proporcionam a mais elevada idia do homem (2000, p.12). Assim, a pluralidade dos homens em que se baseia a poltica repercute na pluralidade dos museus. nesse sentido, que se pode dizer que os museus so pontes entre culturas, so portas que se abrem e se fecham para diferentes mun-dos, so espaos de convivncia entre diferentes. Os museus esto, portanto, inteiramente mergulhados na poltica e, por isso, tambm esto em relao com a liberdade e com a ausncia de liberdade. De outro modo: os museus, assim como a memria e o patrimnio, tanto podem servir para conformar quanto para transformar, tanto podem servir para tiranizar quanto para libertar.

    O exerccio do direito memria, ao passado, ao presente e ao futuro, do direito preservao, mudana e criao um repto para uma poltica de museus na contemporaneidade.

    VI Chegar e partir so dois lados da mesma viagem

    O texto aqui apresentado quer contribuir para o debate em torno das re-laes entre museus e poltica. Ele foi construdo com base em apontamentos e tem, como se pode verificar, uma arquitetura de fragmentos. A cartografia que desejamos desenhar no quis em momento algum apresentar contornos muito bem definidos, ao contrrio, quis estimular, sugerir e convidar o leitor para a via-gem pelo territrio dos museus. Um territrio de prticas polticas e poticas.

    O Caderno de Diretrizes Museolgicas constitui uma boa introduo a esse territrio. No se trata de diretrizes rgidas e monolticas, trata-se de uma suges-to de viagem, de um roteiro para estudos e passeios agradveis e instigantes. Nessa sugesto de viagem somos levados a pontos ou temas como histria dos museus, documentao museolgica, pesquisa histrica nos museus, preveno e conservao em museus. Alm desses pontos, encontramos tambm um mo-delo de Lei de Criao de Museu, um modelo de Estatuto de Associao de Amigos e um pequeno glossrio com temas museolgicos.

  • 15

    A primeira edio dos Cadernos de Diretrizes Museolgicas foi muito bem recebida. As pesquisas e os textos que os constituem recomendam a sua leitura. O Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), consciente da importncia desses Cadernos, alm de sugerir e apoiar empenhou-se decididamente na publicao da segunda edio. Ao leitor, s nos resta desejar uma boa leitura e uma boa viagem!

    Bibliografia

    ABREU, Regina e CHAGAS, Mrio. Memria e patrimnio: ensaios contempor-neos. Rio de Janeiro: DP&A/Unirio/Faperj, 2003.

    ARENDT, Hannah. O que Poltica? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

    BARY, Marie-Odile de. (dir.) Vagues: une anthologie de la nouvelle musologie. Lyon: Difusion Presses Universitaires de Lyon/M.N.E.S., 1992.

    CHAGAS, M. Muselia. Rio de Janeiro: JC Editora, 1996.

    CHAUI, Marilena. Conformismo e resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1986.

    FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

    FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

    GARCIA CANCLINI, Nestor. Culturas hbridas. So Paulo: Edusp, 1998.

    GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989.

    HALBWACHHS, Maurice. La mmoire collective. Paris: PUF, 1968.

    LE GOFF, Jacques (org.) Enciclopdia Einaudi. Memria - Histria, v.1. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984.

    LEON, Aurora. El Museo. Madrid: Ediciones Ctedra, 1988.

    MALRAUX, Andr. O Museu Imaginrio. Lisboa: Edies 70, 2000.

    MOUTINHO, Mrio. Museus e Sociedade. Monte Redondo (Portugal): Museu Etnolgico, 1989.

    RIVIRE, Georges Henri. Musologie. Paris: Dunod, 1989.

  • 16

    SANTOS, Maria Clia T. M. Processo museolgico e educao Construindo o Museu Didtico Comunitrio Prof. Lomanto Jnior, em Itapu (tese de doutora-mento em Educao) Salvador: UFBa, 1995.

    SANTOS, Myrian S. dos. Histria, tempo e memria: um estudo sobre museus a partir da observao feita no Museu Imperial e no Museu Histrico Nacional. (Tese de Mestrado apresentada ao IUPERJ). Rio de Janeiro: IUPERJ, 1989.

    SEGALL, Maurcio. Controvrsias e dissonncia. So Paulo: Edusp/Boi Tempo, 2001.

    VARINE, Hugues. O Ecomuseu. In: Revista da Faculdade Porto-alegrense de Educao, Cincias e Letras, n.27, 2000. p.61-90.

  • 17

    Apontamentossobre a Histria

    do Museu

    Letcia Julio*

    * Mestre em Cincia Poltica pela UFMG, ex-diretora do Museu Histrico Ablio Barreto.

    Guardar... Guardar... GuardarGuardar uma coisa no escond-la ou tranc-la

    Em cofre no se guarda nadaEm cofre perde-se a coisa vista

    Guardar uma coisa olh-la, fit-laMir-la por admir-la

    Isto , ilumin-la e ser por ela iluminadoEstar acordado por ela

    Estar por elaOu ser por ela

    (Antnio Ccero)

  • 18

    Origens do museu

    de conhecimento corrente que a palavra museu origina-se na Grcia anti-ga. Mouseion denominava o templo das nove musas, ligadas a diferentes ramos das artes e das cincias, filhas de Zeus com Mnemosine, divindade da memria. Esses templos no se destinavam a reunir colees para a fruio dos homens; eram locais reservados contemplao e aos estudos cientficos, literrios e artsticos. A noo contempornea de museu, embora esteja associada arte, cincia e me-mria, como na antigidade, adquiriu novos significados ao longo da histria.

    O termo foi pouco usado durante a Idade Mdia, reaparecendo por volta do sculo XV, quando o colecionismo tornou-se moda em toda a Europa. Nesse perodo, o homem vivia uma verdadeira revoluo do olhar, resultado do esprito cientfico e humanista do Renascimento e da expanso martima, que revelou Europa um novo mundo. As colees principescas, surgidas a partir do sculo XIV, passaram a ser enriquecidas, ao longo dos sculos XV e XVI, de objetos e obras de arte da antigidade, de tesouros e curiosidades provenientes da Amrica e da sia e da produo de artistas da poca, financiados pelas famlias nobres.

    Alm das colees principescas, smbolos de poderio econmico e poltico, tambm proliferaram nesse perodo os Gabinetes de Curiosidade e as colees cientficas, muitas chamadas de museus. Formadas por estudiosos que busca-vam simular a natureza em gabinetes, reuniam grande quantidade de espcies variadas, objetos e seres exticos vindos de terras distantes, em arranjos quase sempre caticos. Com o tempo, tais colees se especializaram. Passaram a ser organizadas a partir de critrios que obedeciam a uma ordem atribuda natu-reza, acompanhando os progressos das concepes cientficas nos sculos XVII e XVIII. Abandonavam, assim, a funo exclusiva de saciar a mera curiosidade, voltando-se para a pesquisa e a cincia pragmtica e utilitria.

    Muitas dessas colees, que se formaram entre os sculos XV e XVIII, se transformaram posteriormente em museus, tal como hoje so concebidos. Entretanto, na sua origem, elas no estavam abertas ao pblico e destinavam-se fruio exclusiva de seus proprietrios e de pessoas que lhes eram prximas. Somente no final do sculo XVIII, foi franqueado, de fato, o acesso do pblico s colees, marcando o surgimento dos grandes museus nacionais.1

    A acepo atual de museu surgiu precisamente na conjuntura da Revoluo Francesa. Segundo Franoise Choay, a proteo ao patrimnio francs, com a montagem de um aparato jurdico e tcnico, teve origem nas instncias revo-lucionrias, que anteciparam, atravs de decretos e instrues, procedimentos de preservao desenvolvidos posteriormente no sculo XIX, fato que para a autora resultou de dois processos distintos:

    O primeiro, cronologicamente, a transferncia dos bens do clero, da Coroa e dos emigrados para a nao. O segundo a destruio ideolgica de que foi objeto uma parte desses bens, a partir de 1792, particularmente sob o Terror e o governo do Comit de Salvao Pblica. Esse processo destruidor suscita uma reao de defesa imediata...2

    Para preservar a totalidade e diversidade de um patrimnio nacionalizado, no contexto da Revoluo, foram desenvolvidos mtodos para proceder ao seu

    1 A respeito da origem do museu ver: SUANO. O que museu, 1986; KURY; CAMENIETZKI. Ordem e natureza: colees e cultura cien-tfica na Europa moderna, p. 57-86; BITTENCOURT. Gabinetes de curiosidades e museus: sobre tradi-o e rompimento, p. 7-19.2 CHOAY. A alegoria do patrimnio, p. 97.

  • 19

    inventrio e gesto. Tambm foram concebidas formas de compatibilizar esses bens recuperados pela Nao com as demandas de seus novos usurios, ou seja, o povo, o que, s vezes, implicava atribuir-lhes novas funes. No caso dos bens mveis, estes deveriam ser transferidos para depsitos abertos ao pblico, denominados, a partir de ento, de museus. A inteno era instruir a nao, difundir o civismo e a histria, instalando museus em todo o territrio francs, pretenso que no se efetivou, exceo do Louvre que, aberto em 1793, reuniu importante acervo artstico.3

    Se a conjuntura da Revoluo Francesa, em fins do sculo XVIII, traou os contornos da acepo moderna de museu, esta se consolidaria no sculo XIX com a criao de importantes instituies museolgicas na Europa. Em 1808, surgia o Museu Real dos Pases Baixos, em Amsterd; em 1819, o Museu do Prado, em Madri; em 1810, o Altes Museum, em Berlim, e em 1852, o Museu Hermitage, em So Petersburgo, antecedidos pelo Museu Britnico, 1753, em Londres, e o Belvedere, 1783, em Viena.4 Concebidos dentro do esprito nacio-nal, esses museus nasciam imbudos de uma ambio pedaggica formar o ci-dado, atravs do conhecimento do passado participando de maneira decisiva do processo de construo das nacionalidades. Conferiam um sentido de antigi-dade nao, legitimando simbolicamente os Estados nacionais emergentes.

    Alm das antigidades nacionais, muitos desses museus reuniram acervos expressivos do domnio colonial das naes europias no sculo XIX. Expedies cientficas percorriam os territrios colonizados, com o objetivo de estudar seus recursos naturais e sua gente, e de formar colees referentes botnica, zoo-logia, mineralogia, etnografia e arqueologia, que seriam enviadas para os princi-pais museus europeus. No Brasil, as inmeras viagens e pesquisas de naturalistas estrangeiros resultaram em minuciosos relatos de viagem, com descries do meio fsico, da fauna, da flora e dos nativos, e na remessa de importante acervo brasileiro para instituies museolgicas e cientficas da Europa.5

    Surgimento dos primeiros museus no Brasil

    O surgimento das primeiras instituies museolgicas no Brasil tambm data do sculo XIX. Entre as iniciativas culturais de D. Joo VI est a criao, em 1818, do Museu Real, atual Museu Nacional, cujo acervo inicial se compunha de uma pequena coleo de histria natural doada pelo monarca. Por longo perodo, o Museu manteve uma atuao modesta, adquirindo, de fato, seu carter cient-fico somente no final do sculo XIX. Na segunda metade do oitocentos, foram criados os museus do Exrcito (1864), da Marinha (1868), o Paranaense (1876), do Instituto Histrico e Geogrfico da Bahia (1894), destacando-se, nesse cen-rio, dois museus etnogrficos: o Paraense Emlio Goeldi, constitudo em 1866, por iniciativa de uma instituio privada, transferido para o Estado em 1871 e reinaugurado em 1891, e o Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga, surgido em 1894.

    Ao lado do Museu Nacional, os Museus Paraense Emlio Goeldi e Paulista alinhavam-se ao modelo de museu etnogrfico, que se difundiu em todo o

    3 CHOAY. A alegoria do patrimnio, p. 95-123.4 SUANO. Op. cit. nota 1, p. 29.5 Ibidem. p. 40-41.

  • 20

    mundo, entre os anos 1870 e 1930. Caracterizados pelas pretenses enciclo-pdicas, eram museus dedicados pesquisa em cincias naturais, voltados para a coleta, o estudo e a exibio de colees naturais, de etnografia, paleontolo-gia e arqueologia. Os trs museus exerceram o importante papel de preservar as riquezas locais e nacionais, agregando a produo intelectual e a prtica das chamadas cincias naturais, no Brasil, em fins do sculo XIX. Tinham como pa-radigma a teoria da evoluo da biologia, a partir da qual desenvolviam estudos de interpretao evolucionista social, base para a nascente antropologia. Ao buscarem discutir o homem brasileiro, atravs de critrios naturalistas, essas instituies contriburam, decisivamente, para a divulgao de teorias raciais no sculo XIX.6

    possvel dizer que no sculo XIX firmaram-se dois modelos de museus no mundo: aqueles alicerados na histria e cultura nacional, de carter celebrativo, como o Louvre, e os que surgiram como resultado do movimento cientfico, voltados para a pr-histria, a arqueologia e a etnologia, a exemplo do Museu Britnico. No Brasil, os museus enciclopdicos, voltados para diversos aspectos do saber e do pas, predominaram at as dcadas de vinte e trinta do sculo XX, quando entraram em declnio como no resto do mundo, em face da superao das teorias evolucionistas que os sustentavam. Embora a temtica nacional no constitusse o cerne desses museus, tais instituies no deixaram de contribuir para construes simblicas da nao brasileira, atravs de colees que celebra-vam a riqueza e exuberncia da fauna e da flora dos trpicos.7

    A questo da nao, no entanto, ganharia evidncia museolgica, no Brasil, somente a partir da criao, em 1922, do Museu Histrico Nacional (MHN). Marco no movimento museolgico brasileiro, como observa Regina Abreu,8 o MHN rompeu com a tradio enciclopdica, inaugurando um modelo de museu consagrado histria, ptria, destinado a formular, atravs da cultura mate-rial, uma representao da nacionalidade. Resultado do empenho de intelectuais, apoiados pelo Estado, e tendo frente Gustavo Barroso, diretor do Museu de 1922 a 1959, o MHN foi organizado com o objetivo de educar o povo. Tratava-se de ensinar a populao a conhecer fatos e personagens do passado, de modo a incentivar o culto tradio e a formao cvica, vistos como fatores de coeso e progresso da nao. Mais que espao de produo de conhecimento, o MHN constitua uma agncia destinada a legitimar e veicular a noo de histria oficial, fazendo eco, especialmente, historiografia consolidada pelo Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro. Com um perfil factual, os objetos deveriam documentar a gnese e evoluo da nao brasileira, compreendida como obra das elites nacio-nais, especificamente do Imprio, perodo cultuado pelo Museu.

    O Museu Histrico Nacional acabou constituindo-se em rgo catalisador dos museus brasileiros, cujo modelo foi transplantado para outras instituies. Contribuiu para isso a instalao do curso de museologia, criado sob a orienta-o de Gustavo Barroso, que funcionou no prprio MHN entre 1932 e 1979, formando profissionais que atuaram na rea em todo o pas. Seguindo as diretri-zes do MHN, os museus surgidos especialmente a partir das dcadas de trinta e quarenta traziam as marcas de uma museologia comprometida com a idia de uma memria nacional como fator de integrao e coeso social, incompatvel,

    6 A respeito dos museus etnogrfi-cos no Brasil, ver: SCHWARCZ. O espetculo das raas: cientistas, ins-tituies e questo racial no Brasil 1870-1930, p. 67-98.7 Sobre os museus brasileiros do sculo XIX como parte da simbolo-gia da nao, ver SANTOS. O papel dos museus na construo de uma identidade nacional, p. 23.8 A respeito do Museu Histrico Nacional ver ABREU. Sndrome de museus? p. 51-68.

  • 21

    portanto, com os conflitos, as contradies e as diferenas. A coleta de acervo privilegiava os segmentos da elite, e as exposies adotavam o tratamento factual da histria, o culto personalidade, veiculando contedos dogmticos, em detrimento de uma reflexo crtica.9 Alm do curso de museologia, o surgi-mento de novos museus do pas contou, ainda, com a atuao decisiva do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN), criado em 1937.

    O SPHAN e a poltica de museus

    O surgimento do SPHAN representou um marco no processo de institucio-nalizao de uma poltica para o patrimnio cultural no pas. Esse e outros proje-tos de educao e cultura, implementados pelo Estado no ps-trinta, refletiam o iderio de construo de uma identidade e cultura nacional, formulado nos anos vinte pela gerao de intelectuais modernistas. A busca de superao do atraso e do ingresso do pas na modernidade at 1924 era associada necessidade de atualizao da produo local com as tendncias europias. A partir de ento, passou a ser concebida como um processo de rompimento com a dependn-cia cultural e de descoberta das singularidades nacionais. Tratava-se de construir uma identidade alicerada em uma cultura genuinamente brasileira, o que repre-sentou valorizar o passado e as tradies nacionais, num esforo de conciliao do antigo com o novo.10 Concretamente, a redescoberta pelos modernistas da esttica barroca e do passado colonial, em viagens pelo interior do Brasil, espe-cialmente s cidades histricas mineiras em 1924, fez emergir uma conscincia da necessidade de preservao do patrimnio cultural.

    Desde os anos vinte, algumas iniciativas no mbito federal vinham deli-neando uma poltica de preservao, a exemplo da criao da Inspetoria dos Monumentos, em 1923, e da organizao, em 1934, do Servio de Proteo aos Monumentos Histricos e Obras de Arte, presidido pelo ento diretor do MHN, Gustavo Barroso. Assim como o Museu Histrico Nacional, esses rgos concebiam o patrimnio e a histria como campos voltados para o conhecimento e culto da tradio, privilegiando aspectos morais e patriticos, em uma viso grandiloqente e ufanista do passado e da nao.

    A criao do SPHAN, no contexto da poltica autoritria e nacionalista do Estado Novo, representou um refluxo dessa concepo de patrimnio, en-sejando embates de grupos de intelectuais, que disputavam o predomnio de suas idias sobre passado, memria, nao e patrimnio. Como mostra Mariza Veloso Motta Santos,11 o grupo modernista, liderado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, e que se tornou hegemnico no SPHAN, buscava no apenas restaurar os testemunhos do passado, mas fazer sua releitura, associando a preservao do patrimnio construo de uma nacionalidade. Para esses intelectuais, o pro-cesso de construo nacional no fora ainda concludo. A nao constitua um projeto emergente, no qual o patrimnio participava como promessa de acesso ao passado e ao futuro. Divergiam assim da viso passadista e romntica de Jos Mariano e Gustavo Barroso, representantes do segmento que compreendia o patrimnio como tradio a ser venerada e copiada pelo presente.

    9 SANTOS. Op. cit. nota 7, p. 24-25.10 MORAES. Modernismo revisita-do, p. 220-238.11 SANTOS. Nasce a academia SPHAN, p. 79-81.

  • 22

    Alm dos conflitos entre grupos intelectuais de extratos ideolgicos distin-tos, pode-se dizer que a concepo de patrimnio tambm no era consensual entre os responsveis pelo projeto do SPHAN. Em 1936, portanto um ano antes da criao oficial do rgo, Mrio de Andrade elaborou o anteprojeto da insti-tuio, a pedido do Ministro da Educao e Sade Pblica, Gustavo Capanema. Com uma proposta etnogrfica generosa, o documento expressa a pretenso de institucionalizar uma poltica de patrimnio para o pas, incorporando as mais diversificadas manifestaes da cultura brasileira. Convicto de que os museus poderiam prestar-se como espaos de preservao da cultura do povo e exer-cer importante funo educativa, Mrio de Andrade props a criao de quatro grandes museus, que corresponderiam aos quatro livros de tombos a serem ado-tados: arqueolgico e etnogrfico, histrico, das belas artes e das artes aplicadas e tecnologia industrial. A prtica do SPHAN, entretanto, seguiu uma trajetria distinta daquela idealizada por Mrio de Andrade. Em detrimento do pluralismo cultural contemplado no anteprojeto de 1936, o rgo oficializou um conceito de patrimnio restritivo, associado ao universo simblico das elites, idia hierr-quica da cultura e ao critrio exclusivamente esttico dos bens culturais.12

    O trabalho pioneiro desses construtores do patrimnio, iniciado nos anos trinta, guarda conexes com os propsitos dos revolucionrios franceses, como sugere Afonso Carlos Marques dos Santos, uma vez que tinham a ambio de in-ventar, num tempo de afirmao do nacional, os contornos de um passado que se queria autntico e especfico. No se tratava apenas de celebrar a histria, mas de definir o passado a ser recuperado, o passado que deveria ter direito perpe-tuidade e direito visibilidade.13 O patrimnio legado pelo SPHAN, ao longo de mais de trinta anos em que Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve sua frente, buscou conferir ao pas um passado referenciado pelo sculo XVIII, pela cultura barroca e religiosa e pelo ciclo minerador.14 Sobretudo, o SPHAN foi responsvel pelo processo de entronizao do barroco, convertido, naquele momento, em centro da poltica de preservao do patrimnio, smbolo da identidade nacio-nal.15 Alicerava essa poltica francamente regional a ideologia da mineiridade, transformada em matriz da identidade nacional, que considerava Minas e o con-junto de valores morais e religiosos a ela associados como metfora central para o Brasil.16 So exemplos dessa poltica a declarao, em 1933, de Ouro Preto como monumento nacional, a criao, em 1938, do Museu da Inconfidncia e o repatriamento, em 1936, dos restos mortais dos inconfidentes, posteriormente depositados no Panteo do Museu da Inconfidncia, em 1942.

    A atuao do SPHAN no campo da museologia pode ser considerada t-mida se comparada aos tombamentos dos bens edificados, cuja preservao foi privilegiada pelo rgo. Apesar disso, iniciativas importantes marcaram um novo alento para os museus em geral, a exemplo de medidas que procuravam impedir a evaso de acervos do pas e a implementao de uma poltica de criao de museus nacionais. Inicialmente foram implantados o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro (1937), reunindo o acervo da Academia Imperial de Belas Artes; o Museu da Inconfidncia, em Ouro Preto (1938), com acervo refe-rente quele movimento, arte barroca e cultura material do ciclo minerador, e o Museu das Misses, no Rio Grande do Sul (1940), com o objetivo de preservar a cultura das misses jesutas. Foram criados, ainda, numa espcie de desdobra-

    12 SANTOS. Op. cit. nota 7, p. 26-28.13 SANTOS. Memria cidad; his-tria e patrimnio cultural, p. 49.14 A respeito dos bens culturais pri-vilegiados pela poltica de tomba-mento do SPHAN, ver: RUBINO. O mapa do Brasil passado, p. 97-105.15 Sobre a entronizao do barroco pelo SPHAN: MICELI. SPHAN: re-frigrio da cultura oficial, p. 44-47.16 Ver a respeito da ideolo-gia da mineiridade e o SPHAN: GONALVES. A retrica da per-da, p. 71, e tambm BOMENY. Guardies da razo; modernistas mineiros, 1994.

  • 23

    mentos do Museu Histrico Nacional, de modo a contemplar a periodizao tradicional da histria do pas, o Museu Imperial, em Petrpolis, em 1940, e o Museu da Repblica, instalado no antigo Palcio do Catete, no Rio de Janeiro, em 1960. Em Minas, alm do Museu da Inconfidncia, o empenho de Rodrigo Melo Franco de Andrade em preservar testemunhos da histria colonial mineira resul-tou na criao de mais trs importantes museus, o Museu do Ouro, em Sabar (1945), o Museu Regional de So Joo del Rei (1946) e o Museu do Diamante, em Diamantina (1954).

    Com o SPHAN na coordenao da poltica de museus, o Museu Histrico Nacional acabou perdendo terreno como referncia para os museus brasilei-ros. Apesar disso, a ao museolgica do novo rgo pouco inovou em relao a alguns dos princpios fundadores do MHN.17 A abordagem de fatos e perso-nagens excepcionais, a preponderncia dos critrios esttico e de raridade na formao das colees, a histria tratada sob a tica das elites e do Estado e a idia de que os museus deveriam educar o povo, preparando-o para o pro-gresso e civilizao, eram vetores conceituais presentes na maioria dos museus organizados pelo SPHAN, configurando uma poltica distante do ideal formu-lado por Mrio de Andrade, que inclua a preservao de bens representativos da cultura popular.

    A cultura do povo foi contemplada somente em 1968, com a inaugurao do Museu do Folclore, em um anexo do Palcio do Catete, sede do Museu da Repblica. Sua fundao resultava do movimento folclorista das dcadas de qua-renta e cinqenta, responsvel pelo lanamento oficial do projeto do museu, em 1951. Como afirma Regina Abreu, tal iniciativa expressa uma poltica de museus orientada por uma noo binria da cultura, cindida em erudita e popular. Trata-se de uma concepo na qual a construo da histria nacional identificada como obra das elites, no contando, portanto, com a participao do povo, a quem eram tributadas, apenas, as singularidades da cultura da nao. Segundo a autora,

    o sistema nacional de museus implantado a partir de 1922 fundamentou-se num modelo dicotmico da cultura nacional. De um lado, preservou-se e promoveu-se uma cultura nomeada erudita (predominantemente histrica) resultado da marcha evolutiva das sociedades humanas na direo do progresso e da civilizao. De outro lado, preservou-se e promoveu-se uma cultura nomeada popular (folclrica) relquias de tradies primitivas, comunitrias e puras, coletadas em sua maior parte por folcloristas no contexto de uma sociedade em avanado processo de industrializao e mudana.18

    Na mesma dcada, os anos sessenta, em que se criou um museu atendendo a uma antiga reivindicao de grupos folcloristas, setores da intelectualidade bra-sileira, a exemplo de movimentos internacionais, comearam a formular crticas atuao SPHAN, identificando-o como elitista, exclusivamente tcnico e alheio aos debates e s inovaes no campo das polticas culturais. Em 1967, Rodrigo Melo Franco de Andrade se aposentou, e substitudo por Renato Soeiro, que permaneceu frente do SPHAN entre 1967 e 1979. A nova direo, no entanto, manteve as diretrizes traadas por Rodrigo, apesar da necessidade de adequar o rgo aos novos tempos, inclusive s orientaes de preservao dos bens cultu-rais definidas por organismos da Unesco.

    17 A respeito da conservao do iderio de 1922, que orienta a cria-o do MHN e os museus criados pelo SPHAN, ver: ABREU. Op. cit. nota 8, p. 56-57.18 ABREU. Op. cit. nota 8, p. 59.

  • 24

    Entre as iniciativas de modernizao da poltica cultural, a criao, em 1975, do Centro Nacional de Referncia Cultural (CNRC), no contexto da disten-so poltica do regime militar, foi fundamental. Sob a coordenao de Alosio Magalhes, promoveu-se uma reflexo crtica e uma renovao conceitual no campo da preservao do patrimnio cultural, que, seguindo uma tendncia in-ternacional, resultou na ampliao da noo de patrimnio e na adoo do con-ceito de bens culturais, que passaram a ser concebidos como elementos impor-tantes para o desenvolvimento autnomo do pas. Em 1979, Alosio Magalhes substituiu Renato Soeiro na direo do IPHAN, sendo criada, no mesmo ano, a Fundao Pr-Memria. frente do rgo props recuperar a proposta etnogrfica generosa de Mrio de Andrade, alargando os limites do discurso de Rodrigo, o qual, segundo Magalhes, no expressava mais a complexidade do patrimnio brasileiro. Numa perspectiva pluralista, que objetivava democratizar a concepo e o acesso ao patrimnio cultural, o IPHAN passou a reconhecer a diversidade cultural do pas e os produtos do fazer popular como horizontes de sua atuao, processo que teve como fato emblemtico o tombamento do terreiro de candombl Casa Branca, de Salvador, em 1984.

    A partir dos anos oitenta, grupos tnicos e sociais negros, indgenas, seg-mentos populares , vistos at ento em uma perspectiva folclorizante, passa-ram a ser incorporados pelo discurso e pela prtica preservacionista, no apenas como objetos de estudo, mas como produtores de cultura e sujeitos da histria. Rompia-se, assim, com a tradio do pensamento que reconhecia somente o valor etnogrfico da cultura popular, destituindo-a de um lugar na construo da histria. Essas mudanas de conceitos e princpios do patrimnio, alimentadas pelo processo de redemocratizao do pas, acabaram tendo repercusses na Constituio de 1988, ao serem transformadas em direito do cidado. Alm da preservao dos testemunhos da nao como um todo, consolidaram-se avanos inegveis nesse campo: o reconhecimento de diferentes grupos sociais como su-jeitos com direito memria, a ampliao da noo de patrimnio, a participao das comunidades no processo de preservao e a diversificao tipolgica dos bens preservados.19

    Movimento de renovao dos museus

    Os debates em torno da questo do patrimnio cultural no Brasil e no mun-do refletiram diretamente nas instituies museolgicas. J no final da Segunda Guerra Mundial, teve incio um movimento de renovao na museologia, com a formulao de novos princpios e prticas, que procuraram imprimir aos museus um carter dinmico, de centros de informao, lazer e de educao do pblico. Novas atribuies foram sendo acrescidas quelas j tradicionais de conservao e exibio de acervos, a exemplo de atividades educativas, eventos culturais e de entretenimento. Em 1946, com a criao do Conselho Internacional de Museus (Icom), na esfera da Unesco, no qual o Brasil contaria com representantes, incre-mentam-se as discusses e proposies em torno da transformao das institui-es museolgicas.20 exemplo disso a Conferncia, de 1962, promovida pelo

    19 A respeito das transformaes da atuao do SPHAN nas dcadas de 70 e 80 ver: FONSECA. Da moder-nizao participao: a poltica fe-deral de preservao nos anos 70 e 80, p. 153-163. Sobre a concepo de patrimnio cultural de Alosio Magalhes ver: GONALVES. Op. cit. nota 16.20 CHAGAS; GODOY. Tradio e ruptura no Museu Histrico Nacional, p. 42.

  • 25

    Icom, em Neufchtel, na Sua, que, em face do processo de descolonizao da frica, abordava o papel dos museus nos pases em desenvolvimento.

    Mas a partir da dcada de sessenta que as crticas aos museus se acentua-ram, em meio crescente insatisfao poltica e a movimentos de democratizao da cultura, realidade que atingia diferentes pases do mundo. A descolonizao africana, os movimentos de negros pelos direitos civis nos EUA, a descrena nas instituies educativas e culturais do ocidente, a luta pela afirmao dos direitos de minorias configuraram um cenrio propcio a mudanas na poltica cultural. Os museus iniciam um processo de reformulao de suas estruturas, procurando compatibilizar suas atividades com as novas demandas da sociedade. Deixam de ser espaos consagrados exclusivamente cultura das elites, aos fatos e perso-nagens excepcionais da histria e passam a incorporar questes da vida cotidiana das comunidades, a exemplo das lutas pela preservao do meio ambiente e da memria de grupos sociais especficos. Atuando como instrumentos de ex-tenso cultural, desenvolvem atividades para atender a um pblico diversificado crianas, jovens, idosos, deficientes fsicos e, ao mesmo tempo, estendem sua atuao para alm de suas sedes, chegando s escolas, fbricas, sindicatos e periferias das cidades. Nos EUA a idia de museu dinmico ensejou tais trans-formaes j nas dcadas de quarenta e cinqenta, antecedendo, portanto, o movimento na Europa, cujo marco foi a criao em Paris, no incio da dcada de setenta, do Centro Nacional de Arte e Cultura Pompidou, misto de museu e centro cultural.21

    Nos anos setenta intensificaram-se os debates em torno do papel dos mu-seus nas sociedades contemporneas. Em sua IX Conferncia realizada em Paris e Grnoble, em 1971, o Icom discutiu o tema O museu a servio do homem presente e futuro. No ano seguinte, em maio de 1972, a Unesco promoveu a Mesa Redonda de Santiago do Chile, evento que constitui um marco no processo de renovao da museologia. Novas prticas e teorias sinalizam a funo social do museu, se contrapondo a museologia tradicional que elege o acervo como um valor em si mesmo e administra o patrimnio na perspectiva de uma conser-vao que se processa independente do seu uso social. Tratava-se de redefinir o papel do museu tendo como objetivo maior o pblico usurio, imprimindo-lhe uma funo crtica e transformadora na sociedade. Em 1984, era lanado o Movimento Internacional da Nova Museologia (Minom), em Quebec, no Canad, respaldando tais inovaes. Segundo Maria Helena Pires Martins, lembrando Hugues de Varine-Bohan,

    a nova museologia deve partir do pblico, ou seja, de dois tipos de usurios: a sociedade e o indivduo. Em lugar de estar a servio dos objetos, o museu deveria estar a servio dos homens. Em vez do museu de alguma coisa, o museu para alguma coisa: para a educao, a identificao, a confrontao, a conscientizao, enfim, museu para uma comunidade, funo dessa mesma comunidade.22

    Essas novas orientaes afirmavam o compromisso do museu com uma concepo antropolgica de cultura, de carter abrangente, compreendida como um sistema de significaes que permite comunicar, reproduzir, vivenciar um modo de vida global distinto, e que est envolvida em todas as formas de ativi-dade social.23 A adoo deste conceito de cultura pressupunha abandonar alguns

    21 A respeito das mudanas dos museus a partir do ps-Segunda Guerra ver: SUANO. Op. cit. nota 1, p. 54-60.22 MARTINS. Ecomuseu. TEIXEIRA COELHO. Dicionrio crtico de pol-tica cultural, 1999.23 Ver conceito de cultura em: WILLIAMS. Cultura, p. 13.

  • 26

    procedimentos que faziam tradio nos museus a priorizao de segmentos da cultura dominante, a valorizao de tipologias especficas de acervo, a idia de hierarquizao da cultura em favor da ampliao do patrimnio a ser pre-servado e divulgado. De lugares consagrados ao saber dogmtico, os museus deveriam se converter em espaos de reflexo e debate, ajustados aos interesses e s demandas reais das comunidades.

    Foi neste contexto que se iniciou e consolidou a discusso em torno dos ecomuseus, conceito avanado da museologia contempornea, formulado por Georges Henri Rivire e Hugues de Varine-Bohan. Compreendido como museu do homem em seu meio ambiente natural e cultural, o ecomuseu expressa a relao da populao de um determinado territrio com sua histria e com a natureza que a cerca, prestando-se como meio de auto-reconhecimento da co-munidade na qual est inserido. Sua coleo constituda pelo patrimnio vivo pertencente aos habitantes do territrio, abrangendo bens materiais, imateriais, mveis e imveis. A populao participa de maneira decisiva na gesto do museu como sujeito e objeto de conhecimento pblico e curador do ecomuseu.24

    O movimento de renovao dos museus repercutiu no Brasil, nos anos se-tenta e oitenta, com iniciativas que buscaram revitalizar vrias instituies, ade-quando-as aos parmetros da nova museologia. Em linhas gerais, promoveram-se a reformulao de espaos fsicos e de exposies, a adoo de critrios e pro-cedimentos adequados de conservao e segurana dos acervos, e, sobretudo, a implantao de servios educativos, referenciados no princpio da participao do pblico na construo de relaes culturais. Tambm no plano conceitual, surgiram autores com uma produo sistemtica, desenvolvendo reflexes cr-ticas acerca da museologia, cultura, memria, patrimnio e educao. O pensa-mento tradicional, confinado a lidar exclusivamente com a realidade circunscrita das instituies de museus, e que elegia a conservao e o acmulo de colees como centro de suas reflexes, pouco a pouco cedeu lugar a novos conceitos que buscaram ampliar, diversificar e, sobretudo, democratizar o campo de ao da museologia.25 Como observa Waldisa Rssio, em artigo publicado em 1984, o fato museolgico passa a ser concebido como uma relao profunda entre o homem, sujeito que conhece, e objeto, testemunho da realidade. Uma realidade da qual o homem tambm participa e sobre a qual ele tem o poder de agir, de exercer a sua ao modificadora.26

    Seguindo a tendncia internacional, o pas viveu um verdadeiro boom de museus, na dcada de oitenta. A ampliao da noo de patrimnio e o processo de globalizao, em escala mundial, e o movimento de redemocratizao do pas contribuem para que diferentes movimentos da sociedade passassem a se ocupar da questo do patrimnio, identificado como campo propcio afirmao de novas identidades coletivas. Resultado de uma crescente segmentao da sociedade, os museus se especializaram, se tornaram temticos e biogrficos, atendendo demanda progressiva de segmentos e grupos sociais indgenas, negros, imigrantes, ambientalistas, moradores de bairros, etc. que reivindicavam o direito memria. Diferente da conjuntura das dcadas de trinta e quarenta, quando foi possvel aos construtores do patrimnio do SPHAN, apoiados por uma poltica nacionalista, inventariar e definir o passado comum da nao digno

    24 A respeito da definio de eco-museu ver: MARTINS. Op. cit. nota 23.25 Sobre as repercusses da reno-vao da museologia no Brasil ver: CHAGAS; GODOY. Op. cit. nota 21, p. 48-49 e passim.26 RSSIO. Texto III. ARANTES. Produzindo o passado; estratgias de construo do patrimnio cultural, p. 60.

  • 27

    de ser preservado, a sociedade brasileira j no reconhecia sua identidade em torno de uma base social e cultural nica e homognea. A memria nacional, por conseguinte, perdia seu sentido e sua funo enquanto tradio coletiva capaz de conferir identidade e coeso totalidade do tecido social.27

    A esse cenrio configurado na dcada de oitenta se somaram novos desa-fios nos anos noventa. Os museus, assim como outros equipamentos culturais, estreitaram os laos com o mercado, por meio de mecanismos destinados a pro-mover o apoio e o patrocnio cultura pelas empresas. Em particular, as leis de incentivo cultura, em mbitos municipal, estadual e federal, tm assegurado recursos, provenientes da renncia fiscal do Estado, que vm permitindo a sobrevivncia e/ou a revitalizao de muitos museus, bem como a realizao de projetos arrojados de preservao do patrimnio cultural. Se, por um lado, as leis de incentivo tornaram-se alternativas legtimas e, em parte, bem sucedidas de sustentao de polticas culturais, em face da falta de recursos oramentrios da Unio e dos Estados,28 por outro, tm obrigado os museus a se adequarem lgica do mercado, s exigncias do marketing e do consumo cultural. So exem-plos disso a recepo de exposies do circuito internacional ou a promoo de grandes exposies locais, que vm ocorrendo em muitos museus, inclusive fora do tradicional eixo cultural Rio-So Paulo. Concebidas como megaeventos, essas exposies constituem verdadeiros acontecimentos na mdia, atraindo milhares de pessoas, ou seja, um pblico quantitativo e qualitativamente indito para os museus. Alm de conferir visibilidade s instituies museolgicas, tais eventos so oportunidades de difundir acervos e colees at ento inacessveis a grande parte do pblico. Entretanto, ao serem convertidas em espetculos, as exposi-es transformam os museus em espaos de mero consumo cultural, relegando para o segundo plano a sua funo social e educativa, to enfatizada nas ltimas dcadas.

    Concluso

    As mudanas do significado de museu atravs dos tempos talvez possam ser compreendidas como uma trajetria entre a abertura de colees privadas visitao pblica ao surgimento dos museus na acepo moderna, como insti-tuies a servio do pblico. Concebidos com a funo de educar o povo desde a Revoluo Francesa, os museus, no entanto, mantiveram-se por longo tempo como uma espcie de lugar sagrado, alheio realidade das sociedades nas quais estavam inseridos, pouco atraentes para o pblico em geral. No por coincidn-cia experimentaram uma crise profunda a partir da dcada de sessenta, atingidos por crticas radicais e movimentos de protestos, em vrios pases, em favor da democratizao das instituies polticas, educativas e culturais. Nesse contex-to, inicia-se um processo de transformaes substanciais nos museus, tendo o pblico como centro de suas preocupaes. Como em nenhuma outra poca, o papel educativo e a relao do museu com a comunidade tornam-se, de fato, questes nucleares do pensamento e de prticas museolgicas, exemplificadas nos debates sobre o ecomuseu.

    27 Ver a respeito ABREU. Op. cit. nota 8, p. 61-66.28 Alm dos mecanismos que incen-tivam a captao de recursos junto s empresas, atravs da renncia fiscal, a lei federal de incentivo cultura dispe do Fundo Nacional de Cultura que investe em projetos de rgos pblicos.

  • 28

    Paralelo discusso da funo social do museu, ocorre a ampliao da noo de patrimnio cultural, resultando numa espcie de sndrome de No,29 que parece pretender abarcar a totalidade da realidade humana na arca patrimonial. Diversificam-se as tipologias do patrimnio, e confere-se o estatuto de bens a serem preservados a obras do presente, bem como ao que annimo, cotidiano e banal. O patrimnio cultural torna-se um domnio indefinido, fludo e incerto, que se refere no mais ao legado do passado e da nao, mas a um bem capaz de restituir a identidade de determinados grupos, originando um mosaico de me-mrias sociais segmentadas.30 No mundo globalizado, a sociedade se torna cada vez mais complexa e fragmentada; as referncias de identidade se multiplicam e em lugar da idia de uma memria nica, imutvel e homognea, que se quer como passado comum da nao, tem-se a pluralidade de memrias, assim como o patrimnio torna-se cultural e socialmente diversificado e extenso.

    Como instituies que historicamente surgem e se vinculam ao processo de afirmao da identidade nacional, os museus se deparam com desafios cruciais na contemporaneidade. A comear pelos impasses a respeito do que eleger como digno para ser preservado, considerando a amplitude das memrias e dos bens culturais. A demanda de diferentes grupos pela preservao de testemunhos de sua histria traz a questo de como o museu pode incorporar essa tendncia expanso do patrimnio, sem, no entanto, concorrer para a banalizao da me-mria. Embora no se possa desconhecer a realidade das novas tecnologias de comunicao, isto no significa necessariamente alinhar-se ao processo de massi-ficao dos produtos culturais; trata-se de saber como colocar tais meios a servio do compromisso das instituies museolgicas com o desenvolvimento de uma conscincia crtica. Quanto ao pblico, pilar da nova museologia, a ampliao de usurios no pode render-se aos imperativos do mercado, da produo industrial de cultura, da indstria do turismo que, longe de promoverem a democratizao do acesso aos bens artsticos e intelectuais, operam uma espetacularizao do patrimnio, tornando-o um produto para o consumo cultural.31

    Embora seja difcil conceber hoje museus vinculados ao processo de cons-truo da identidade nacional, preciso compreender que a nao e a cultura nacional no desaparecem, apenas deixaram de ser a base exclusiva da constru-o da identidade. A formulao das identidades, hoje, se d em processos tran-sitrios, instveis, nos quais a memria histrica permanece tambm como algo que se reconstri continuadamente. Nessa perspectiva, no cabe mais ao museu celebrar uma nica memria, nem permanecer exercendo o papel que lhe coube historicamente de espao vocacionado para pedagogia nacionalista. Ajustando-se a essa realidade, talvez o museu possa assumir a funo de constituir-se em espao no qual a sociedade projeta, repensa e reconstri permanentemente as memrias e identidades coletivas, permitindo a emergncia das diferenas, de modo a refletir a diversidade de projetos e necessidades culturais que permeiam a sociedade.32

    Nesse processo de adequao realidade do mundo contemporneo ne-cessrio que o museu desenvolva uma reflexo sobre a sua prpria histria, que construa uma memria no como mera repetio ou conservao do passado, mas a que se coloca a servio da transformao e emancipao. Talvez caiba a

    29 Expresso utilizada para definir o processo de expanso do patri-mnio por: CHOAY. Op. cit. nota 2, p. 209.30 Sobre o patrimnio como tes-temunho de identidade de grupos, ver SANTOS. Op. cit. nota 12, p. 37-55.31 Sobre a relao do patrimnio com os meios de comunicao e indstria cultural ver: CANCLINI. O patrimnio e a construo imagi-nria do nacional, p. 94-115.32 Sobre uma poltica cultural que reflita o conjunto de conflitos e inte-resses da sociedade ver: TEIXEIRA COELHO. Guerras culturais, arte e poltica no novecentos tardio, p. 92-96.

  • 29

    alguns museus, com sugere Maria Ceclia Frana Loureno, recuperar seu vigor inicial e os sentidos e valores que se agregaram na sua formao,33 encontrando solues de equilbrio entre a tradio e as demandas do mundo atual. Talvez em pequenos museus, localizados em cidades do interior do pas, dedicados memria local, de grupos determinados ou indivduos, se possa estar cumprindo a misso ou utopia de firmar o compromisso da instituio museolgica com a ampliao da cidadania, entendida no somente como direitos reconhecidos pelo Estado, mas tambm como prticas sociais e culturais que do sentido de per-tencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma lngua, formas semelhantes de organizao e de satisfao das necessidades.34

    Referncias bibliogrficas

    A INVENO do Patrimnio: continuidade