CADERNO DE ENTREVISTAS GONZAGÃO.

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A história de um se faz com a de muitos. Raimunda, Jo-quinha, João, Meirinha, Dijesuis, Dominguinhos e Pris-cila são alguns dos nomes que ajudam a dar sentido a uma vida chamada Luiz. Se é no outro que nossa exis-tência se amplia, se prolonga, ganha significado, então estes encontros entre Gonzaga e seus conterrâneos, compadres, comadres e conhecidos, narrados aqui pelo repórter Chico Ludermir, só alumiam a ideia de que um mito também se constrói com vidas comuns. No caso de Gonzagão, isso parece ser ainda mais verdade, já que sua existência passa pela ideia de um Nordeste tão pró-ximo da gente. Que a leitura do especial “Encontro com Luiz” leve você, então, pra bem junto dele, como são es-tes narradores achados por Chico.

Olívia MindêloGestora de Comunicação da Secult-PE

As vidas que cabem em Luiz

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Em 1912, na noite de 13 de dezembro, Dia de Santa Lu-zia, caiu uma estrela que clareou o quarto de Madrinha Santana. A mulher que tinha acabado de parir ficou com o fato na memória. Era um sinal de que o seu menino teria sorte na vida. O nascido ganhou o nome de Luiz, como tantos que vêm ao mundo no dia santo, e cresceu numa vida tipicamente sertaneja da primeira metade do século 20. Vida igualzinha à de Raimunda de Souza, nar-radora desta história com ares de realismo fantástico. Aos 77 anos, Raimunda ainda mora na Fazenda Araripe, no Exu, onde durante boa parte da vida viveu Januário e Santana, além do próprio Luiz Gonzaga, filho do casal.

“Deus deu uma boa sorte a ele. E graças a Deus a vida dele foi boa”, conta a senhora baixinho, como que em segredo. O tom de sussurro revela muito: uma voz fra-quinha, cansada, própria da idade; uma vergonha casa-da com humildade que quase impediu que ela subisse o olhar; uma calma dos que vivem na zona rural da peque-na Exu, silenciosa, tranquila; e até um pesar por não ter tido a mesma sorte.

Raimunda nasceu na Fazenda Águas Belas, administra-da por Sincinato Sete, que também era dono da Araripe. Naquele regime híbrido, Seu Sincinato era, ao mesmo tempo, patrão e parente. “Ele era o chefe, mas era da fa-mília também”, explica. De lá, ela se mudou para Monte Belo até que chegou à casa em frente à de seu Januário e Santana. Viveu a vida inteira da agricultura: na roça das terras dos outros, plantando e colhendo milho, fei-jão, algodão e no duro trabalho de fazer corda de caroá.

Por Chico LudermirTexto e fotos

A Sorte de Raimunda

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No dia em que Luiz Gonzaga voltou pro Exu, episódio relatado na gravação da música “Respeita Januário”, Raimunda estava na roça, apanhando feijão. “Minha fi-lha, se arrume pra ir pro Araripe que compadre Gonzaga chegou”, disse Júlia pra a filha. E foram. Quando as duas chegaram na Fazenda Araripe, Luiz Gonzaga estava sen-tado numa cadeira de Bodocó, tocando. Quando ele viu Júlia, foi logo se animando: “Comadre Júlia! Comadre Júlia”, e começaram a palestrar, como se diz por lá.

Essa é a primeira lembrança de Raimunda. De um Luiz Gonzaga feliz de ter voltado depois de um longo tem-po longe da terra natal. E chegava cheio de novidades. Desde que saiu, já tinha servido às forças armadas, no Ceará, e depois feito fama no Rio de Janeiro. “Em frente àquela casinha rosa, eu o vi tocando durante muito tem-po. Ele era novo e eu achava ele bonito”, conta com um sorriso tímido.

“Tá vendo aquela casinha da frente rosa? Ali foi a casa que ele chegou. Ali está a janela em que ele bateu cha-mando”. E reconta a história:

“Quando ele bateu na janela, Januário veio com o cande-erinho aceso abrir a porta:− Quem é? − Sou eu Gonzaga, seu filho.Aí tio Januário disse:− Isso é hora de chegar em casa, moleque? Santana, Gon-zaga chegou! Aí ficou todo mundo satisfeito.”

Raimunda já ouvia muito falar de Gonzaga. Um primo que tinha ido embora por ter se engraçado por uma moça de família mais rica. Os pais não queriam que o romance fosse pra frente, porque o Gonzaga era pobre e de pele escura. “Tio Januário deu até uma surra nele, porque não era certo juntar um pobre com uma moça mais ou menos.”

Depois daquele primeiro retorno ao Exu, Luiz Gonzaga, cada vez mais conhecido Brasil afora, voltou diversas ve-zes. Quando ele chegava de viagem, ficava todo mundo animado: “Eita! Gonzaga chegou, Gonzaga chegou! Hoje

Hoje em dia, aposentada, é a cuidadora da igreja da fa-zenda da qual ela mostra a chave, toda orgulhosa.“Eu nem sabia que tinha esse pessoal por aqui”, come-ça ela se justificando, se referindo à reportagem. “Eu moro ali do lado do armazém”, aponta, sinalizando que vive também na frente de uma casa rosa, para onde Luiz Gonzaga voltou em 1982, depois de 16 anos distante de casa. Por morar ali, a senhora lembra com riqueza de deta-lhes do seu conterrâneo mais célebre. “Recordo de tudo como se eu estivesse vendo”, assegura, ao mesmo tem-po em que revela seu parentesco com o Rei do Baião. Ja-nuário era primo legítimo de Manuel Jerônimo, pai dela.

“Eu digo que sou prima não é pra juntar, não. É porque ele me considerava mesmo. E não é nada demais”, afir-ma quase com medo de ser desacreditada. Além disso, Júlia, mãe de Raimunda, e Luiz Gonzaga eram compa-dres. “Vocês não sabem não, mas na época de São João, tem essa história de um tomar outro por compadre en-quanto a fogueira tá queimando”, explica, bem explica-do, falando da tradição de batismo nos festejos juninos.

vai ser bom no Araripe!”. E vinha turma para assistir.Dessa época, a prima tem muitas recordações. Um livro cheinho de fotos e um punhado de saudade de um tempo em que Gonzaga dava festas em sua casa, no Parque Aza Branca, na parte urbana do Exu. “Lá ele tocava e a gente dançava. Era bom demais aque-le tempo. Lembro também do aperreio quando o carro dele virou e quase que ele morria. Tem até aquela mú-sica que diz assim: ‘Luiz Gonzaga não morreu/ Nem a sanfona dele desapareceu/ Seu automóvel na virada se quebrou/ Seu zabumba se amassou/ Mas o Gonzaga não morreu’. Ele fazia as coisas tudo engraçada...”, relembra com nostalgia.

Já a sorte de Raimunda foi mais ou menos: “Nem tão boa nem tão ruim”. Casou, mas o esposo morreu cedo. Das duas filhas que teve com ele, uma morreu de acidente de carro, a coisa mais triste que ela já viveu. A diversão era quando tinha forró. “Mesmo com o sofrimento, a gente vinha dançar”. Tinha era que vim dançar mesmo. Não teve estrela caindo no dia em que Raimunda nasceu.

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Em 12 de março de 1962, nasceu, sem nome, mais um bebê na Fazenda Araripe. Três dias depois, o neném foi adotado e registrado por Januário e sua segunda mu-lher, Dona Maria. Ganhou seu primeiro nome: João Ba-tista, em homenagem ao santo padroeiro do lugar. Mas, porque com esse nome já havia muitos, João Batista so-mente era pouco. Das Dores, irmã de Januário, gritou de longe: “Vai ser João Batista Januário”, em homenagem ao pai de criação. Assim ficou.

Já mais velho, quando João Batista participava de uma partida de futebol da região, o locutor narrou: “E agora vai passando o atleta João Gonzaga”. O menino ficou meio assustado. Na cabeça dele, carregar esse nome era um orgulho, mas também uma enorme responsa-bilidade. “Pelo amor de Deus! O que eu já procedi para ser João Gonzaga?”, pensou. Mas não teve jeito. Dali em diante, virou João Gonzaga.

Aos 18 anos, o garoto já era, além de irmão de conside-ração, afilhado de Luiz e de Dona Helena, mulher do Rei do Baião. Gonzagão usava da autoridade de padrinho para educar e ralhar com “Joãozinho”. Num dia, lá na Fazenda Aza Branca, última casa de Gonzagão, no Exu, o sanfoneiro estava chateado, porque o irmão de consi-deração tinha batido num jumento. Foi aí que Luiz disse: “Olha sujeito – que era como ele chamava quando esta-va zangado −, se você não proceder para ser um homem, eu não vou permitir que você carregue meu nome”.

Aquela frase ficou na cabeça de João. “Como honrar ser um Gonzaga?”, matutou o matuto. “Ser um Gonzaga eu

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Um Gonzaga por merecer

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nunca fui e nem poderei ser, de verdade. Mas um ‘gon-zagueano’ serei eternamente. Não só admiro, como amo essa família”, conta numa frase, que ele parece já ter repetido para muitos.

O orgulho que carrega, fica demonstrado, é menos pela fama musical e mais pelo carinho por Luiz e Januário, família que o escolheu e ensinou a “onde ouvir, deixar”. Joãozinho, na verdade, tem é uma verdadeira devoção pelos parentes. E chama de “honra” e “permissão de Deus” o acaso que o fez família de pessoas tão célebres. Por isso mesmo, guarda cada singularidade dos 16 anos que passou ao lado do pai e dos 27 que passou com Gon-zaga até o dia de sua morte, em 2 de agosto de 1989.

“Minha infância no Araripe foi um conto de fadas. Me lembro bem de, desde os cinco anos, ir buscar o leite de Januário, a cerca de três quilômetros. Ia até o sítio dos Pereira. Sempre que ia, o pai dizia atenciosamente: ‘João, tome cuidado, moleque”, lembra. Quando ele vol-tava, o pai estava na cadeira “preguiçosa”, esperando. Aos 50 anos, Joãozinho mora ao lado da Fazenda Aza Branca, numa casa herdada do parente de onde dá para ouvir todas as músicas das festas em homenagem a Lua.

Mas o Gonzaga de coração escolhe não ir festejar. Pre-fere ficar em casa com as lembranças do pai sentado com dedo mexendo, entrelaçado e repousado em cima da perna.

A moradia para onde ele se mudou exatamente um mês depois da morte de Gonzagão é simples e cheia de recor-dações. Fotos do pai, do irmão e padrinho e muitos tro-féus ganhados por ele e seu filho em vaquejadas. João-zinho é, acima de tudo, um vaqueiro. Corre boi, aboia e, numa época difícil, chegou a cantar vaquejadas em troca de goles de cachaça.

“Eu, cabrito novo, entrava em qualquer mato para ir res-gatar o boi. Mais por vergonha de perder o boi do que por coragem”, brinca. Voltava todo latanhado (arranha-do das veredas), mas com uma felicidade danada de ter recuperado o gado. No rol dos momentos divididos com o padrinho, está uma passagem de um dia em que estava brincando de botar o boi para correr e o bicho acabou escapando. João voltou tão latanhado que teve que le-var pontos no hospital do Crato. “Você tá bom de tomar um banho de álcool em cima”, disse brincando Gonza-gão. “Quando ele tava bem humorado era bom demais”,

emenda o narrador.Mas, das histórias, a que João mais se emociona em contar é uma acontecida quando ele nem era nascido. Na época em que forró ainda se chamava tocar um sam-ba, Januário ficou a madrugada na sanfona de oito bai-xos, esperando a hora em que passaria o chapéu para arrecadar seus trocados. Mas justo quando o momento chegou, iniciou-se uma briga tremenda. Sem dinheiro e com os quatro primeiros filhos em casa esperando para comer, Januário voltou triste como nunca. Pareça inven-ção ou não, o que se conta é que ele avistou no meio do caminho uma trouxa com alguns réis e tonhos. Com esse dinheiro, tomou o rumo de casa, passou para comprar uma cabra gorda e uma cuia de farinha.

Em casa, Luiz Gonzaga esperava acordado. “Olho gran-de, cabeça de papagaio, buchão, feio pra peste”, como ele dizia. Morrendo de fome. “Santana, tu faz um pirão pro meu filho?”, pediu. Ela fez. Gonzagão comeu e, antes de terminar, arriou de fraqueza.

“E mais tarde, dá uma figura daquela: Gonzagão, o Rei do Baião. E a mente fica lacrimejando por saber que a gente é capaz”, se emociona Joãozinho.

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Por Chico LudermirTexto e fotos

A memória de Joquinha Gonzaga está cheia de retra-tos não tirados e objetos não guardados. O sobrinho de Luiz Gonzaga nasceu no núcleo nordestino que o tio construiu no Rio de Janeiro, lugar onde remontou uma realidade sertaneja, muita parecida com a do Exu. Tudo isso para ter o familiares por perto. Mesmo tendo vivido toda a infância e adolescência ao lado de Gonzagão, Jo-quinha nunca se preocupou em guardar nada material. Achava que o tio ia ficar para sempre.

A trajetória do sobrinho está completamente entrelaça-da à de Luiz. E muito antes de vir ao mundo. Do lugar onde nasceu à escolha de sua profissão. Desde quando ganhou seus primeiros trocados, Gonzagão começou a planejar levar toda sua família para o Rio de Janeiro. E assim fez. Logo que pode, levou Santana e Januário, seu pais, e as quatro irmãs para viverem perto dele. Doi-do que os parentes ficassem, Luiz Gonzaga resolveu o problema. Adaptou a realidade aos seus conterrâneos. Comprou uma terra em Duque de Caxias, em um lugar chamado Santa Cruz da Serra. E os sertanejos lá prepa-raram a terra, começaram a plantar, criar animais e viver a vida como gostavam.

“Quem for se casando, eu vou dando um pedaço de ter-ra” prometeu o artista às irmãs. E a primeira que se ca-sou foi Muniz. E o primeiro a nascer foi João Januário de Maciel, Joquinha. Ali conviveram irmãos, primos, tios e avós. Casando e morando lado a lado, numa grande vida em comunidade, em família. “Foi na fazenda, no Rio de Janeiro, onde eu comecei a viver o Nordeste”, conta Jo-quinha, lembrando da fase da qual sente muitas sauda-

De tio para sobrinho

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des. Dos tempos difíceis do Exu, o sobrinho mais velho de Gonzaga só ouviu falar. Viveu uma infância pacata no Rio de Janeiro.

“Tio Gonzaga era uma pessoa perfeita. Fez o possível para adequar a sua vida como artista a de um cidadão comum”, conta Joquinha. “E não tinha ganância. Vivia da música. Tinha um coração enorme”. O engraçado, para Joquinha, é que, o hoje mítico Luiz Gonzaga, era apenas seu tio. Por isso mesmo, nem ele nem ninguém da família se preocupava em guardar nada dele. Nem re-trato, nem objetos. “A gente só atentou para isso depois que ele faleceu.”

Gonzaga, no auge da carreira, viajava muito. Passava meses fora, mas semprevoltava pra Santa Cruz da Serra para visitar as irmãs. Le-vava não só notícias do Exu, mas também pequi, carne de sol, bode seco, feijão de corda, e fazia farras tocando sanfona e contando história. Vez ou outra, levava tam-

bém algum conterrâneo para visitar e comer buchada e galinha de capoeira. Dominguinhos, Trio Nordestino, Marinês, Jackson do Pandeiro, Noca do Acordeom toca-vam forró no Rio de Janeiro como se fosse em Pernam-buco.

Foi naquele núcleo nordestino-carioca que nasceu e se criou Joquinha. Estudando, tinha pouco interesse pela tradição familiar da música. Mas um dia, perto dos 14 anos, o tio chegou com uma sanfoninha de presente. “Eu penso que ele achou que eu tinha cara de sanfoneiro e me escolheu. Aí me deu uma sanfona de oito baixos. E eu comecei a tocar”, conta.

Um ano depois, Joquinha já desenrolva bem na sanfona. E ganhou do tio um acordeom. Foi aprendendo cada vez mais, até nascer como sanfoneiro. Mais um na família. O único dos sobrinhos. A partir daí, toda as vezes que Gonzaga ia dar de presente uma sanfona a alguém, pri-meiro perguntava se Joquinha queria trocar. “Se você

gostar mais dessa do que da sua, pode ficar pra você”, dizia Lua.“Aprendi vivendo. Tio Gonzaga me ensinando, me pu-xando, cobrando e procurando me orientar. E depois que ele notou que eu tava tocando, ele começou a me levar pros shows”. Foi só após de servir quatro anos no exérci-to que Joaquinha entrou mesmo no circuito. A primeira viagem oficial com o tio foi em 1975, aos 23 anos. Jo-quinha era chamado para um momento do show de Luiz.

A primeira vez que gravou foi bem depois, em 1986. E foi aí que Gonzaga despertou que tinha chegado mais um artista na família. “Ele notou que eu estava indo bem e me convidou para cantar com ele ‘Dá licença pra mais um’, de João Silva”. (entra gravação aos 12m). “A partir daí eu comecei a voar”.

Mas em1989 Tio Gonzaga se foi e ele ficou. Como repre-sentante da família, o sobrinho procura fazer aquilo que o tio ensinou. Há 16 anos, tomou a decisão de morar no

Exu. Uma forma também de continuar conectado com atradição. “Tenho um carinho muito grande por essa terra que foi tão cantadapelo meu tio. É daqui que eu venho. Gosto do Sertão, do povo, da maneira que o povo vive aqui. E aqui eu vou fi-cando...”

Assim como Joquinha, um dos seus filhos parece ter tido um destino traçado antes de nascer. Luiz Januário, de 6 anos, dorme ao som de um mantra recitado pelo pai: “Você vai ser sanfoneiro, você vai ser sanfoneiro”. “Já comprei até uma sanfona. Tá danado de ele não ser”, brinca. E quando alguém pergunta a Luiz Januário so-bre seu futuro, ele responde sem dúvida: “Eu quero ser baterista.”

“Que baterista, filho da égua? Você tem que ser sanfo-neiro”, debocha o pai.

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Por Chico LudermirFoto | Costa Neto

Tudo estava sob a meia luz do candeeiro: a noiva toda pronta, o pai, ansioso; na igreja, se remexiam as som-bras desenhadas pela chama das velas. O caminho da casa para o altar era demasiado curto. Não havia cami-nho. Sair de casa era dar de cara com a Igreja de São João Batista. Mas o combinado era que o trajeto fosse feito com a energia elétrica ligada. Seria a primeira vez que a Fazenda Araripe veria as lâmpadas acesas. E justo no dia do casamento de Meirinha.

Faltava somente uma autorização vinda de Serra Talha-da para acionar a chave. E veio. Uma efusão em mas-sa ecoou dentro da igreja, onde estavam aglomerados todos os moradores da região. Acenderam-se as luzes. Era a hora. Meirinha abraçou-se com o pai e adentrou naquele momento tão aguardado, ao som da marcha nupcial tocada na sanfona por Luiz Gonzaga ao lado de Dominguinhos. O Rei do Baião escolhera que este seria o presente para a conterrânea que ele vira crescer.

O ano era o emblemático 1968, que ficou marcado tam-bém na cidade do Exu como ano o do centenário do Ara-ripe. Depois do casamento, ainda houve duas semanas de festa que Meirinha e o marido Osmar não chegaram a ver, pois saíram em lua-de-mel. Mas, Luiz Gonzaga, o fi-lho mais célebre da região, não só esteve presente como fez questão de levar música. Levou a composição “Meu Araripe”, que é tocada até hoje como hino naquela terra.

A letra singela fala dos “grandes” do lugar, como a he-roína Bárbara de Alencar e o Barão Gualter Martiniano Araripe. Dessa história lendária, Rosimeire guarda cada

O casamento de Meirinha

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detalhe. Aliás, não só desta. Prestes a completar 70 anos, Meirinha sai puxando com naturalidade os fios de sua memória impressionante e compartilha, na sua for-ma bonita de contar. Com cada erre puxado, sertanejo, vai emaranhando as lembranças. Muitas delas divididas com Gonzaga.

Trinta anos mais nova que o Mestre Lua, Rosimeire Aires de Alencar, em verdade, faz parte da família dos donos da fazenda. Terra que passou do seu avô, Manoel Aires de Alencar (Coronel Manelaires, prefeito duas vezes da cidade do Exu), para o pai, Clóvis, e seus filhos. Mesmo morando longe, em Petrolina, Rosimeire e seus irmãos ainda mantêm suas casas ali. Seu Januário e Madrinha Santana eram “agregados”, como se chamavam os tra-balhadores que também moravam na fazenda. E todo mundo se tratava por compadre e comadre.

Quando nasceu Meirinha, Gonzaga já tinha ganhado o mundo depois de ter perdido um amor. Ouvia falar do “parente” nos bates papos nas calçadas, muitas vezes ao lado de uma fogueira para acalentar o frio das noites do Sertão. “Gonzaga tinha ido embora, porque tinha arran-

jando uma namorada e os pais achavam que havia uma disparidade de nível social. Não queriam que Gonzaga levasse avante o namoro com essa moça que se chama-va Nazarena, diziam”. E Meirinha escutou essa história muitas vezes.

Foi só em meados de 1940 que tiveram notícias concre-tas de Luiz. Certa vez, chegou uma carta dele avisando que estava para assinar contrato com uma rádio no Rio de Janeiro, e que tocaria duas vezes por semana. Na casa dos Alencar, tinha um rádio de pilha que o compa-dre Clóvis movimentava os ponteiros todas as terças e quintas.

“O programa começava com um aboio e a gente logo identificava. O que ele cantava depois era a essência do ser humano daqui do Nordeste. Saudade, alegria, tris-teza, fauna e flora, tudo isso Gonzaga cantou. E cantou despejando todo um sentimento de exílio”, conta Rosi-meire.

A primeira volta de Luiz Gonzaga pro Araripe aconteceu quando Meirinha era criança. A vontade que ela tinha

era de ir pra casa de Comadre Santana e não sair mais de lá. “Mamãe dizia: ‘O pouco parece bom e o muito sempre aborrece’”, lembra. “Mas é que ele pegava a sanfona e aquilo deleitava a gente”, justifica.

A admiração de criança se mantém junto a recordações de uma vida inteira, com momentos bons e ruins. No tem-po da “guerra do Exu”, conflito entre as famílias Alencar, Sampaio e Saraiva, uma pessoa conhecida como Coro-nel Chico Romão arrebentou toda a casa de Rosimeire: portas, janelas, mesas, camas. Levaram joias, dinheiro. “A sorte é que não tinha ninguém na casa, porque era tempo de levar o gado para a Serra (do Araripe)”.

Mas nessa passagem, eles pegaram Seu Januário e ar-rastaram pelo chão, o que desgostou muito Gonzaga e foi um dos principais motivos de ele ter levado toda a família para o Rio de Janeiro (como conta Joquinha Gon-zaga). “Mas você sabe que não se transplanta uma ár-vore velha. Januário e Comadre Santana passavam uma temporada por lá, mas logo dava urgência de voltar”,

explica.

Numa vinda de Minas Gerais, Luiz Gonzaga sofreu um acidente de carro que lhe cegou um olho e arrancou três dedos de sua mãe. Para se recuperar, o rei fez promes-sa para Nossa Senhora da Penha e daí veio uma de suas composições bonitas.

“Isso tudo toca muito a gente, porque vivenciamos esses momentos. Os apuros da vida dele...”

A última lembrança marcante que Meirinha tem do amigo também vem em forma de canção. No dia do seu último show no Recife, quando Gonzaga tocou o “Xote ecológico” Rosimeire chorou por duas horas. “Eu não as-similei os problemas ecológicos naquele dia. Assimilei o problema de Gonzaga. Achei que quem tava morrendo, se acabando e que não podia respirar era ele. Eu pensava nele se acabando e a gente ficando sem ele. Dói, né? Afi-nal de contas, ele foi um rei, mas um rei amigo, querido e estimado por todos nós.”

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Por Chico LudermirTexto e fotos

A primeira e única vez que DiJesus encontrou com seu maior ídolo foi em 1987. Um amigo, Manoel de Exu, ti-nha feito um almoço para Luiz Gonzaga e convidou o compadre. Manoel, de tão abismado que ficou com a presença do Rei do Baião na sua casa, acabou se esque-cendo de apresentar os dois. Depois do almoço, Gonzaga pegou a sanfona e encantou toda a casa. Mas quando to-cou “Vida de viajante”, acabou se atrapalhando no final: “Manoel, eu não vou mais tocar, não. Pega aqui a sanfo-na que eu já tou errando”, disse. Foi só aí que aconteceu, de fato, o encontro.

−Ah, Gonzaga, tem DiJesus, meu amigo, que é um grande sanfoneiro!−Ele é sanfoneiro?−É!−Prazer.−Amém, respondeu atrapalhado, confundido pelo nervo-so.−Por que você não se apresentou há mais tempo?−Seu Gonzaga, eu nasci nos matos e me criei na roça. Te-nho muita vergonha de falar com o povo. Não sei falar. Foi por isso... −Que é isso? Ninguém é melhor do que ninguém, não. To-que aí.

DiJesus então pegou a sanfona e tocou uma de suas composições. “Já noivei, mas não casei,/ Veja que negó-cio ruim/ Levei um fora da moça/ E o véio não gostou de mim...”, cantou entoado. Assim que terminou, o sanfo-neiro foi aprovado. “Vá lá em casa que eu vou gravar sua música. Vou fazer um arranjo e gravar”.

O rei e o sanfoneiro encabulado

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O dono da casa, aproveitando o embalo, também quis mostrar o que sabia, numa música cuja letra misturava cachaça e igreja. “Você neste instante disse que ia tomar cachaça embaixo de um pé de caju e agora já tá dizendo que vai rezar na igreja. Ninguém mistura dois sentidos assim numa musica, não. Essa não serve pra mim!”, re-taliou Luiz.

Aí Manoel ficou com tanta vergonha que entrou e só vol-tou depois de uns 15 minutos, descabreado, para a foto-grafia. “Gonzaga, mandei chamar um fotógrafo pra tirar ‘um foto’ da gente”, disse o anfitrião, retornando com outro assunto. Ficou de “pareia” com Gonzaga, chamou a mãe, chamou os filhos, tirando foto, tirando foto... Até

que Luiz perguntou:Manoel, tu num disse que DiJesus é teu amigo? −E é. Meu grande amigo, por que não?−Por que tu não convida ele pra tirar ‘um foto’ junto com a gente?−Ah! É mesmo, tinha me esquecido...−Deixe que eu chamo: DiJesus, venha tirar um foto junto com a gente. Vá pegar a sanfona. Você vai tirar com a sanfona!

Aí DiJesus pegou a sanfona encabulado e parou: como quem se congela e sente frio por isso. Sem riso, sem pose.

Hoje, menos encabulado, DiJesus mostra a foto.Foi justamente nesse tempo que Luiz Gonzaga foi in-ternado, doente, no Hospital Santa Joana, no Recife. E DiJesus nunca mais encontrou com o mestre. Gonzaga acabou não gravando “Já noivei, mas não casei”. Nem o próprio DiJesus gravou. Não é muito de vaidade...

“Não pude mais falar com ele, mas fiquei muito apaixo-nado de ter conversado um dia, que seja. Se ele fosse vivo, era capaz de a gente ser amigo, que a gente tem o

mesmo jeito.”

E eles têm mesmo. Quem já viu e ouviu gravações de Luiz Gonzaga percebe a semelhança na maneira de con-tar causos de temática sertaneja.

“A minha cultura era a farinha. Fazia e levava de jumento para vender na feira do Crato. Eita sofrimento! Cinco lé-guas. Botava a carga no jumento, na cangaia, dois sacos enrolados. Tangia de pés na poeira. Dormia no caminho, quando descia a ladeira do pé da serra do Crato, tinha um rancho de palha. Armava a rede, dormia e colocava o jumento no cercado. De manhã escangalhava, botava a carga e chegava na feira umas 7h. Às 17h, já estava de volta na Serra do Araripe”, narra DiJesus, lembrando uma das fases mais difíceis de sua vida, com todos os detalhes.

Mesmo carregando lembranças muito cinzas na baga-gem, DiJesus conta com muitas cores os capítulos de suas memórias. Cores e nostalgia de um tempo que, para ele, era melhor do que o de hoje. Desde o Sitio da União, na cidade do Exu onde nasceu e morou até os 9, passando pelos longos 20 anos que viveu no Crato, no

Ceará. Limpava a roça de milho e algodão e, por isso, na escola só ficou três meses (muito diferente dos filhos formados). Aprendeu a escrever estudando somente a “Carta do ABC” e a “Cartilha”.

E se tornou sanfoneiro. Um dos mais conhecidos da ci-dade, com quatro CDs gravados e mais de 100 músicas compostas. “Tem alguns que dizem que eu sou compo-sitor”, comenta com humildade. Foi justamente com o sanfoneiro de Gonzaga que DiJesus aprendeu gran-de parte do que sabe na sanfona. Mauro tornou-se um grande amigo e companheiro. Um ensinou o outro a caçar. Mauro ensinou DiJesus a tocar, porque sanfona, segundo ele, é uma coisa mais simples do que se pensa.

“Eu tocava meio duro e via ele tocando bem simples. Aprendi um bocado com ele”.

Coincidentemente, Mauro morreu no mesmo ano de Gonzaga. “Foi um prejuízo danado. Fiquei quase doido naquele ano”. E como cantar é o melhor remédio para saudade, DiJeus fez foi música.

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OUTROSENCONTROS

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EXPEDIENTE

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