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    metrpole

    ISSN 1517-2422 (verso impressa)ISSN 2236-9996 (verso on-line)

    guas urbanas

    Cadernos Metrpolev. 17, n. 33, pp. 1-300

    maio 2015h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3300

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  • Cadernos Metrpole / Observatrio das Metrpoles n. 1 (1999) So Paulo: EDUC, 1999,

    SemestralISSN 1517-2422 (verso impressa)ISSN 2236-9996 (verso on-line)A partir do segundo semestre de 2009, a revista passar a ter volume e iniciar com v. 11, n. 22

    1. Regies Metropolitanas Aspectos sociais Peridicos. 2. Sociologia urbana Peridicos. I. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais. Observatrio das Metrpoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatrio das Metrpoles

    CDD 300.5

    Catalogao na Fonte Biblioteca Reitora Nadir Gouva Kfouri / PUC-SP

    Peridico indexado no SciELO e na Library of Congress Washington

    Cadernos Metrpole

    Profa. Dra. Lucia BgusPontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais - Observatrio das MetrpolesRua Ministro de Godi, 969 4 andar sala 4E20 Perdizes

    05015-001 So Paulo SP Brasil

    Prof. Dr. Luiz Csar de Queiroz RibeiroUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatrio das MetrpolesAv. Pedro Calmon, 550 sala 537 Ilha do Fundo

    21941-901 Rio de Janeiro RJ Brasil

    Caixa Postal 60022 CEP 05033-970So Paulo SP Brasil

    Telefax: (55-11) [email protected]

    http://web.observatoriodasmetropoles.net

    SecretriaRaquel Cerqueira

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  • guas urbanasggguuuaaasss uuurbbbaaannnaaasss

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  • PUC-SP

    Reitora Anna Maria Marques Cintra

    EDUC Editora da PUC-SPDireo

    Miguel Wady Chaia

    Conselho Editorial Anna Maria Marques Cintra (Presidente), Cibele Isaac Saad Rodrigues, Ladislau Dowbor,

    Mary Jane Paris Spink, Maura Pardini Bicudo Vras, Miguel Wady Chaia, Norval Baitello Junior,Oswaldo Henrique Duek Marques, Rosa Maria B. B. de Andrade Nery, Sonia Barbosa Camargo Igliori

    Coordenao EditorialSonia Montone

    Reviso de portugusEveline Bouteiller

    Reviso de inglsCarolina Siqueira M. Ventura

    Reviso de espanholVivian Motta Pires

    Projeto grfi co, editoraoRaquel Cerqueira

    CapaWaldir Alves

    Rua Monte Alegre, 984, sala S-1605014-901 So Paulo - SP - Brasil

    Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected]

    www.pucsp.br/educ

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    metrpole

    EDITORESLucia Bgus (PUC-SP)Luiz Csar de Q. Ribeiro (UFRJ)

    CONSELHO EDITORIAL

    Eustgio Wanderley Correia Dantas (Universidade Federal do Cear, Fortaleza/Cear/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Jnior (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Srgio de Azevedo (Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil)

    COMISSO EDITORIAL

    Adauto Lucio Cardoso (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (Universidade de Braslia, Braslia/Distrito Federal/Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del Mxico/Mxico) Ana Cristina Fernandes (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ana Fani Alessandri Carlos (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (Universidad Nacional de General Sarmiento, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Anglica Tanus Benatti Alvim (Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo/So Paulo/Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/So Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (Universidade Federal Fluminense, Niteri/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (Pontifi cia Universidad Catlica de Chile, Santiago/Chile) Carlos Jos Cndido G. Fortuna (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra, Coimbra/Portugal) Cristina Lpez Villanueva (Universitat de Barcelona, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (Universidade Federal do Par, Belm/Par/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (Universidade Federal do Par, Belm/Par/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Flix Ramon Ruiz Snchez (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (Universidade Tcnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (Universidade de Braslia, Braslia/Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo/So Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Helosa Soares de Moura Costa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesus Leal (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Jos Alberto Vieira Rio Fernandes (Universidade do Porto, Porto/Portugal) Jos Antnio F. Alonso (Fundao de Economia e Estatstica, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Jos Machado Pais (Universidade de Lisboa, Lisboa/Portugal) Jos Marcos Pinto da Cunha (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/So Paulo/Brasil) Jos Maria Carvalho Ferreira (Universidade Tcnica de Lisboa, Lisboa/Portugal) Jos Tavares Correia Lira (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corra do Lago (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Lus Antonio Machado da Silva (Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (Universidade Federal do Cear, Fortaleza/Cear/Brasil) Mrcio Moraes Valena (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marco Aurlio A. de F. Gomes (Universidade Federal da Bahia, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marlia Steinberger (Universidade de Braslia, Braslia/Distrito Federal/Brasil) Marta Dominguz Prez (Universidad Complutense de Madrid, Madri/Espanha) Nadia Somekh (Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo/So Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (Universidade Catlica do Salvador, Salvador/Bahia/Brasil) Norma Lacerda (Universidade Federal de Pernambuco, Recife/Pernambuco/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (Universidade de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Roberto Lus de Melo Monte-Mr (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, Braslia/Distrito Federal/Brasil) Rosana Baeninger (Universidade Estadual de Campinas, Campinas/So Paulo/Brasil) Sarah Feldman (Universidade de So Paulo, So Carlos/So Paulo/Brasil) Tamara Benakouche (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis/Santa Catarina/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo/So Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)

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  • Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 1-300, maio 2015 7

    sumrio

    9 Apresentao

    dossi: guas urbanas

    From mud to chaos: an estuary calledGuanabara Bay

    15 Da lama ao caos: um esturio chamadoBaa de Guanabara

    Maria Anglica Maciel Costa

    Belm, in the State of Par: city and water 41 Belm do Par: cidade e guaJuliano Pamplona Ximenes Ponte

    Water governance and innova onin the policy of water resources

    recovery in the city of So Paulo

    61 Governana da gua e inovao na pol cade recuperao de recursos hdricosna cidade de So Paulo

    Pedro Roberto JacobiAna Paula FracalanzaSolange Silva-Snchez

    Water urgency: urban interven onsin watershed areas

    83 A urgncia das guas: intervenes urbanasem reas de mananciais

    Anglica Tanus Bena AlvimVolia Regina Costa KatoJeane Rombi de Godoy Rosin

    Water management and sustainability:global challenges and local responses

    from the case study of Seropdica,Metropolitan Region of Rio de Janeiro

    109 Gesto das guas e sustentabilidade:desafi os globais e respostas locaisa par r do caso de Seropdica na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro

    Denise de Alcntara Adriana Soares de Schueler

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    Artigos complementares

    The Program Minha Casa Minha Vidain the metropolitan regions of So Paulo and

    Campinas: socio-spa al aspects and segrega on

    127 O Programa Minha Casa Minha Vidanas regies metropolitanas de So Pauloe Campinas: aspectos socioespaciais e segregao

    Raquel Rolnik et al.

    Gentrifi ca on of the modernis c city: Braslia 155 Gentrifi cao da cidade modernista: Braslia William Lauriano

    The (in)visible faces of urban regenera on: Riachuelo Street and the produc on

    of a gentrifi ed scenario

    179 As faces (in)visveis da regeneraourbana: rua Riachuelo e a produode um cenrio gentrifi cado

    Andrei Mikhail Zaiatz Crestani

    The technical-poli cal construc onof metropolitan governance

    201 Construo tcnico-pol ca de governana metropolitana

    Maria do Livramento M. Clemen noLindijane de Souza B. Almeida

    The place of opinion. The city and the spacesfor social produc on of public opinion

    225 O lugar da opinio. A cidade e os espaosde produo social da opinio pblica

    Maria da Penha Smarzaro SiqueiraGilton Luis Ferreira

    Fragmenta on of a precariza on scale.References to conven onal

    urban structuring

    243 Fragmentacin de escala y precarizacin. Referentes de la estructuracinurbana convencional

    Rafael Monroy

    The trajectory of the worlds economy:from recovery in the post-war period

    to the contemporary challenges

    265 A trajetria da economia mundial: da recuperao do ps-guerra aos desafi os contemporneos

    Ricardo Carlos Gaspar

    297 Instrues aos autores

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  • Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 9-13, maio 2015h p://dx.doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3300

    9

    Apresentao

    O nmero 33 do Cadernos Metrpole rene na sua primeira parte uma conjunto de artigos

    sobre a gesto das guas nas metrpoles. As guas, nas suas diferentes formas, so elementos

    de fundamental importncia das cidades. Discutir o tema da gesto das guas nas cidades evoca

    tanto problemas como oportunidades. Problemas quando pensamos nas questes relativas

    escassez e desigualdade no acesso gua que hoje afeta parte das cidades brasileiras; nas

    presses sobre os recursos hdricos e sua poluio nos contextos urbanos; s inundaes urbanas.

    Oportunidades quando se trata de reconciliar a cidade e suas guas, atravs de projetos de buscam

    a criao de novas paisagens, que possam ser usufrudas por todos, que tragam maior conforto

    ambiental e climtico, em uma perspectiva de maior qualidade urbana e ambiental. As relaes

    multifacetadas entre planejamento urbano e gesto das guas se manifestam na discusso do que

    passou a ser designado como gesto integrada das guas, que abrange tanto a gesto de recursos

    hdricos quanto a gesto de servios de saneamento. Enquanto a primeira se refere s atividades de

    aproveitamento, conservao, proteo e recuperao da gua bruta, em quantidade e qualidade, a

    segunda concerne os servios de abastecimento de gua potvel, coleta e tratamento de esgotos,

    drenagem pluvial e coleta e disposio final de resduos slido. Esses so dois sistemas distintos

    em termos legais, polticos e institucionais, sendo o setor de saneamento ambiental um usurio da

    gua bruta. No entanto, quando se trata de regies densamente urbanizadas esses dois sistemas

    de gesto passam a ser estreitamente inter-relacionados, pois o principal uso de recursos hdricos

    o abastecimento urbano que passa a demandar cada vez mais gua em quantidade e qualidade

    e, ao mesmo tempo, constitui seu principal problema (lanamento de efluentes sem tratamento nos

    corpos hdricos e ocupao de rea de proteo dos mananciais).

    Book final.indb 9Book final.indb 9 07/05/2015 09:20:0207/05/2015 09:20:02

  • Apresentao

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 9-13, maio 201510

    Nas reas metropolitanas, a necessidade de pensar de maneira articulada esses dois

    sistemas se coloca de forma mais evidente a partir do processo de intenso crescimento urbano e do

    agravamento de problemas relacionados ameaa de escassez ou diminuio da disponibilidade

    de gua, sobretudo nos cenrios atuais de maior vulnerabilidade urbana associada intensificao

    de eventos hidrolgicos extremos, com destaque para as inundao e as secas e/ou estiagem.

    Novos e velhos conflitos socioambientais envolvendo a gesto das guas urbanas se manifestam

    nesse contexto.

    Se a escassez decorrente das mudanas climticas hoje uma ameaa real, ela precisa

    ser enfrentada junto com o desafio de universalizar o acesso aos servios de saneamento:

    abastecimento de gua e esgotamento sanitrio so direitos bsicos de cidadania e devem estar

    acessveis a todos. Para as parcelas mais pobres da populao urbana, sobretudo nas periferias

    metropolitanas, esses servios ainda so escassos ou precrios, com reflexos na sade humana,

    e na qualidade do meio ambiente. O estudo Panorama do Saneamento Bsico, que subsidia

    o PLANSAB, Plano Nacional de Saneamento Bsico, estimou que nas rea urbanas existam 3,3

    milhes de habitantes com abastecimento de gua precrio, reconhecendo que a insuficincia na

    qualidade e quantidade de gua distribuda se constitui em formas desse acesso precrio. Indicar

    caminhos para o acesso universal a servios com qualidade uma questo central no planejamento

    de cidades mais justas.

    Por outro lado, as relaes entre planejamento e gesto das guas aparecem tambm no

    planejamento da paisagem. Mesmo sendo elementos estruturadores da paisagem das cidades,

    ao longo de desenvolvimento urbano muitos rios foram canalizados e cobertos, desaparecendo

    da paisagem visvel, e, aos poucos, da memria dos habitantes do Rio de Janeiro. Revitalizar rios

    urbanos, e planejar adequadamente o uso das suas margens, atravs de estratgias de projeto que

    sejam sensveis gua e reduzam a vulnerabilidade inundaes e democratizem uma paisagem

    urbana como qualidade um tema central no planejamento contemporneo das cidades.

    Este nmero dos Cadernos Metrpole traz na sua primeira parte cinco artigos que evocam

    esses temas. No artigo Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara, Maria Anglica

    Maciel Costa examina o histrico de desenvolvimento desse territrio, enfocando as polticas pblicas

    que incidem sobre ele. Como assinala a autora, esturio Baa de Guanabara encontra-se encravado

    no centro da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, sendo uma marca da paisagem metropolitana

    e um elemento de fundamental importncia para o desenvolvimento socioeconmico do territrio.

    A rea foi e objeto de diferentes politicas pblicas, com objetivos amplos e diferenciados. Temos

    as polticas visando a recuperao da qualidade das guas dos corpos hdricos que desaguam

    na Baa, que se encontram em situao de degradao ambiental extrema, como o programa de

    despoluio da Baa de Guanabara, negociado ainda em 1992 e ainda em andamento, mas com

    resultados pouco expressivos, reativado a partir das demandas decorrentes dos Jogos Olmpicos.

    Temos tambm polticas voltadas para o desenvolvimento econmico, como aquelas relacionados

    economia do petrleo. A autora examina os impasses enfrentados por essas polticas pblicas, em

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  • Apresentao

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 9-13, maio 2015 11

    perspectiva que elege a gua como um fio condutor, a partir do qual busca revelar relaes sociais

    e conflitos que perpassam processos espaciais de diferentes ordens que ocorrem nesse territrio.

    No texto Belm do Par: cidade e gua, Juliano Pamplona Ximenes Ponte tambm tem a gua

    como fio condutor, abordando as relaes historicamente construdas entre a cidade de Belm, Par

    e suas guas, examinando o desenvolvimento urbano e aproveitamento da rede hdrica regional,

    identificando diferentes dimenses da gua na cidade: gua como paisagem, veculo, substncia e

    recurso. A partir dessa anlise, o autor discute as dificuldades da construo de polticas pblicas

    de aproximao e integrao da cidades s suas guas, em uma perspectiva que seja socialmente

    inclusiva e democrtica.

    O terceiro e o quarto texto abordam as guas da maior regio metropolitana do pas, So

    Paulo. Em Governana da gua e inovao na poltica de recuperao de recursos hdricos na cidade

    de So Paulo, Pedro Roberto Jacobi, Ana Paula Fracalanza e Solange Silva-Sanchez examinam

    os fluxos das guas na metrpole paulista, enfocando as diferentes polticas pblicas visando a

    recuperao ambiental de crregos urbanos da cidade de So Paulo, como novo paradigma na

    gesto dos recursos hdricos, e a complexa articulao entre elas. Na contextualizao do estudo

    realizado o texto recupera o processo histrico de urbanizao da cidade de So Paulo, que resultou

    na degradao de seus recursos hdricos, e as polticas pblicas voltadas para a sua gesto. Em

    um contexto atual de crregos contaminados, vrzeas ocupadas por favelas, ausncia de rede

    coletora e de tratamento de esgotos, ressaltado o papel das polticas recentes que incidem sobre

    a recuperao ambiental da rede hdrica no sentido de transformar esses crregos em importantes

    prestadores de servios ecossistmicos. O texto traz uma anlise dos impasses relacionados

    implementao dessas polticas, ressaltando sua baixa efetividade decorrente da baixa capacidade

    do poder pblico para constituir mecanismos eficazes de planejamento e gesto, notadamente para

    elaborao de polticas de longo prazo, como so as polticas ambientais, e o ainda frgil espao

    dado participao da sociedade, como marcas do processo de governana das guas na cidade

    de So Paulo.

    Anglica Tanus Benatti Alvim, Volia Regina Costa Kato e Jeane Rombi de Godoy Rosin, no

    texto A urgncia das guas: intervenes urbanas nas reas de mananciais, discutem outra

    dimenso das gesto das guas na Regio Metropolitana de So Paulo, abordando as polticas

    pblicas que incidem sobre as reas de mananciais da bacia hidrogrfica do reservatrio Billings.

    Na Regio Metropolitana de So Paulo, as ocupaes urbanas, precrias, em reas de proteo de

    mananciais vm ocorrendo de forma crescente e adensada, comprometendo os recursos hdricos

    necessrios ao abastecimento humano, em termos de quantidade e qualidade. Os desafios para

    a recuperao das reas de mananciais vo alm da instituio dos marcos legais; dependem de

    estratgias de interveno inovadoras que envolvem a sociedade civil e que podem sinalizar uma

    real transformao da realidade das bacias hidrogrficas protegidas. O trabalho traz uma anlise

    do caso de So Bernardo do Campo, examinando as interfaces e os conflitos entre os instrumentos

    ambientais, representados pela legislao de proteo e recuperao dos mananciais e urbanos

    representados pelo Plano Diretor que que incidem sobre as reas de mananciais.

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  • Apresentao

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 9-13, maio 201512

    O quinto texto Gesto das guas e sustentabilidade: desafios globais e respostas locais a

    partir do caso de Seropdica na RMRJ, de Denise de Alcntara e Adriana Soares de Schueler, trata

    do desenvolvimento territorial e a questo hdrica da regio abrangida pela Bacia Sedimentar

    de Sepetiba, na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. Nesse territrio correm as guas do Rio

    Guandu, principal fonte de abastecimento da Metrpole; em seu sobsolo encontra-se o Aqufero

    Piranema. Os municpios a localizados, Itagua e Seropdica, sero fortemente impactados pelas

    atividades decorrentes da instalao do Complexo Porturio de Itagua; da insero do Arco

    Metropolitano, junto com o complexo porturio, catalisam e impulsionam o crescimento das

    atividades industriais, retro porturias e imobilirias na regio. A partir de investigao transescalar

    e tipomorfolgica da paisagem, o texto enfatiza os riscos para os recursos hdricos em funo da

    previsvel expanso urbana/industrial, bem como pela infraestrutura urbana precria, especialmente

    sistemas de saneamento e drenagem pluvial. So apresentados na escala regional dados qualitativos

    e quantitativos sobre as potencialidades e fragilidades do territrio e, na escala local, propostas

    intervenes para mitigao dos efeitos dos problemas hdricos verificados em reas urbanas.

    A segunda parte deste nmero do Cadernos Metrpole traz textos que abordam diferentes

    aspectos da temtica metropolitana. Um primeiro conjunto de textos aborda o temas da segregao

    e da gentrificao.

    Raquel Rolnik, Alvaro Luis dos Santos Pereira, Fernanda Accioly Moreira, Luciana de Oliveira

    Royer, Rodrigo Faria Gonalves Iacovini e Vitor Coelho Nisida trazem uma anlise contundente do

    Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) mostrando que, embora o tema da habitao tenha

    alado uma posio de destaque na agenda do Governo Federal, o padro de insero urbana

    de seus empreendimentos reafirma a predominncia de um modelo de urbanizao excludente e

    precrio na maior parte das cidades do pas, especialmente nas principais regies metropolitanas. O

    texto traz uma anlise dos padres de insero urbana dos empreendimentos produzidos no mbito

    do PMCMV entre 2009 e 2012 nas regies metropolitanas de So Paulo e Campinas, buscando

    mostrar como essa poltica habitacional vem contribuindo para reiterar o fenmeno da segregao

    de classes sociais.

    No artigo sobre Braslia, William Lauriano aborda diferentes dimenses da gentrificao

    em Braslia. O autor discute como a interveno do Estado, atravs da regulao urbanstica e do

    monoplio de pblico do mercado formal fundirio, defendidos sob um discurso de preservao

    arquitetnica, ambiental e da qualidade de vida, restringe intencionalmente a oferta habitacional

    na capital do pas. Esse modelo impe um conjunto de requisitos normativos que erguem uma

    barreira institucional para a proviso de habitaes para os setores populares da sociedade na

    capital, induzindo esses a buscar alternativas irregulares. Em outro artigo, Andrei Mikhail Zaiatz

    Crestani aborda os projetos de recuperao de centros analisando o projeto Novo Centro de

    Curitiba com o enfoque especfico de suas propostas para a Rua Riachuelo que, desde 2009, passa

    por uma incisiva transformao socioespacial. O autor discute a presena de gentrificao, tida

    como estratgia de uma poltica urbana que subsidia a remodelagem socioespacial, cultural e

    econmica da regio.

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  • Apresentao

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 9-13, maio 2015 13

    Discutindo aspectos tericos da questo metropolitana, Maria do Livramento Miranda

    Clementino e Lindijane de Souza Bento Almeida trazem o tema da construo tcnico-poltica de

    governana metropolitana. As autoras buscam contribuir para o debate sobre o tema a partir de

    uma concepo que tem como base de sustentao o conceito de ao coletiva, elaborado a partir

    da sistematizao da literatura recente sobre o tema. Tambm em uma perspectiva de construo

    terico conceitual, o artigo de Maria da Penha Smarzaro Siqueira e Gilton Luis Ferreira aborda a

    cidade e os espaos de produo social da opinio pblica, trazendo uma anlise histrica dos

    espaos que serviram de palco para desenvolvimento das discusses e afirmao das ideias coletivas

    nas cidades.

    Os dois ltimos textos tratam de diferentes aspectos da temtica da globalizao e cidades

    na contemporaneidade. Rafael Monroy discute como medidas econmicas relacionadas ao circuito

    global de capital geram desequilbrios sistmicos no nvel local examinando o caso mexicano, um

    movimento que o autor denomina globalizao da precariedade. Ricardo Carlos Gaspar traz um uma

    interpretao de carter ensastico dos mltiplos fenmenos que caracterizaram as transformaes

    na ordem social, partindo do perodo ps-guerra, passando pelos anos 1970 e chegando atualidade.

    A abordagem multidisciplinar, com nfase para dimenso econmico dessas transformaes.

    Ana Lucia Nogueira de Paiva BrittoOrganizadora

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    Da lama ao caos: um esturiochamado Baa de Guanabara

    From mud to chaos:an estuary called Guanabara Bay

    Maria Anglica Maciel Costa

    ResumoO objetivo deste artigo analisar os fluxos da

    gua na metrpole fl uminense, as relaes desi-

    guais de poder envolvidas na gesto bem como a

    consequncia dessa situao em reas perifricas.

    Para tanto, lanamos mo de reviso bibliogrfi ca,

    entrevista com gestores, usurios de gua e repre-

    sentantes da sociedade civil; alm de uma anlise

    do Cadastro de Usurios de gua, disponibiliza-

    do pelo rgo gestor. Verifi ca-se que no contexto

    de mutaes sociais e espaciais ligadas industria-

    lizao e aos investimentos vultosos para uma (no-

    va) despoluio da Baa de Guanabara, a garantia

    de acesso gua, bem como o tratamento dado

    aos usurios, continua a variar de forma expressiva

    na metrpole fl uminense.

    Palavras-chave: usos mltiplos da gua; ecologia poltica da gua; Baa de Guanabara; gesto me-

    tropolitana de guas; fl uxos de gua.

    AbstractThis paper aims to analyze the water flow in the city of Rio de Janeiro, the unequal power relations involved in its management, and the consequence of this situation in peripheral areas. To this end, we carried out a literature review, inter v iews with managers , water users and civil society representatives, and analyzed the Water User Registration provided by the governing body. We verified that in the context of social and spatial mutations linked to industrialization and to huge investments for a (new) cleaning-up of Guanabara Bay, the guarantee of access to water, as well as the treatment given to users, continues to vary significantly in Rio de Janeiro.

    Keywords: multiple uses of water; political ecology of water; Guanabara Bay; metropolitan water management; water fl ows.

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  • Maria Anglica Maciel Costa

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    Introduo

    Nas metrpoles ao redor do mundo, comum

    a gua passar por uma srie de transformaes

    at chegar ao usurio final. Trata-se de modifi-

    caes no apenas em termos de caractersti-

    cas fsico/qumicas, mas tambm em termos de

    suas peculiaridades sociais e seus significados

    simblicos e culturais. Nas cidades capitalistas,

    ou pelo menos nas cidades onde as relaes de

    mercado so a forma dominante de troca, a cir-

    culao de gua tambm parte integrante da

    circulao de dinheiro e capital (Swyngedouw,

    2004). Assim como acontece com outros bens

    e servios urbanos, a circulao de gua (ou os

    servios que envolvem o saneamento ambien-

    tal) est diretamente imbricada com a econo-

    mia poltica e os sistemas de poder, que do

    estrutura e coerncia ao tecido urbano (ibid.).

    Neste artigo, o intuito analisar os pro-

    blemas relacionados questo da gua na

    Regio Hidrogrfica da Baa de Guanabara.1

    Pretende-se refletir sobre os fluxos da gua

    na metrpole fluminense e as relaes de po-

    der envolvidas nesse campo. A relevncia des-

    te tema se deve ao fato de o esturio Baa de

    Guanabara encontrar-se encravado no centro

    da segunda Regio Metropolitana (RM) mais

    importante deste pas, cujos corpos hdricos

    se encontram em situao de degradao am-

    biental extrema, onde existem fortes desigual-

    dades de poder poltico e econmico entre os

    usurios de gua e entre os municpios que

    fazem parte deste territrio. Essa centralida-

    de espacial contribuiu sobremaneira para que

    ali fosse realizada uma sucesso de projetos

    polticos de desenvolvimento econmico, um

    exemplo notrio de territrio usado,2 tal

    qual apresentado por Santos e Silveira (2001).

    Em que pese o fato da poluio e indus-

    trializao crescente da Baa serem assuntos

    de interesse da mdia e populao fluminen-

    se, o surgimento de novos investimentos na

    metrpol e principalmente aqueles ligados

    reali zao de provas Olmpicas e expanso

    da indstria do petrleo e petroqumica na

    RMRJ colocam o esturio ainda mais no cen-

    tro das atenes desde o incio da dcada de

    2010. Toda essa conjuntura tem fortes reflexos

    nas demandas e usos e direcionamento dos flu-

    xos das guas na metrpole.

    Acompanhamos boa parte desses proje-

    tos, pois as anlises aqui empreendidas foram

    iniciadas no ano de 2008, no mbito do pro-

    jeto Valorao da gua e Instituies Sociais:

    Subsdios para a Gesto de Bacias Hidrogrfi-

    cas na Baixada Fluminense, RJ.3 Nos anos de

    2009 a 2013, a autora deste artigo tambm se

    dedicou a essa temtica em sua tese de douto-

    rado, desenvolvida no Instituto de Pesquisa e

    Planejamento Urbano e Regional (Ippur-UFRJ),

    tambm sob orientao desses professores.

    Foi a partir dessas experincias que pu-

    demos entender melhor a dinmica do cam-

    po de gesto de guas no RJ. Comeamos a

    frequentar reunies do Comit de Bacia Hi-

    drogrfica da Baa de Guanabara (CBH Gua-

    nabara) e visitar localidades com histrico

    de enchentes e falta de gua, localizadas na

    Baixada Fluminense e que receberiam investi-

    mentos do Programa de Acelerao do Cres-

    cimento (PAC) para saneamento bsico. Alm

    das conversas (no gravadas) com populao

    residente em beira de curso dgua, fizemos

    entrevistas (gravadas) com ambientalistas,

    gestores pblicos, participantes do CBH Gua-

    nabara e outros. Entre 2008 e 2009, realiza-

    mos um total de 39 entrevistas.

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    A segunda etapa dos trabalhos de cam-

    po foi iniciada em 2011, com foco nas anlises

    etnogrficas institucionais do CBH Guanabara.

    Entre 2012 e incio de 2013, outras seis entre-

    vistas foram realizadas, dessa vez apenas com

    membros titulares do Comit. Participamos de

    reunies do CBH Guanabara, seus subcomits

    e cmaras tcnicas; fizemos visitas tcnicas na

    rea de Proteo Ambiental (APA) Guapimirim

    e na Estao de Tratamento de guas (ETA)

    Alegria; participamos de eventos ligados ao

    campo estadual de gesto de guas e, por fim,

    fizemos visitas ao rgo gestor ambiental esta-

    dual, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA),

    para coletar dados e tirar dvidas.

    Outro documento importante analisado

    foi o Cadastro Nacional de Usurios de guas

    (CNARH)4 da Regio Hidrogrfica da Baa de

    Guanabara, cedido pelo INEA, referente aos

    anos de 2008 e 2012. Desse modo, foi poss-

    vel extrair dados interessantes relativos tanto

    extrao de gua, quanto aos lanamentos

    realizados por setores distintos de usurios

    de recursos hdricos. Essas informaes fo-

    ram dispostas em tabelas (item Usos e usu-

    rios de gua na metrpole fluminense deste

    trabalho) para melhor ilustrar os fluxos de

    gua na metrpole, e foram analisadas com

    o apoio dos argumentos de autores ligados

    Ecologia Poltica.5

    Adotamos essa perspectiva de anli-

    se pois temos como interesse contribuir para

    o debate sobre o futuro da gesto de recur-

    sos hdricos em reas metropolitanas uma

    questo que, a nosso ver, tem sido abordada,

    prioritariamente, de forma tcnica e operacio-

    nal. Aqui cabe acrescentar que para Santos

    (2003, p. 118), a vida no um produto da

    Tcnica, mas da Poltica, a ao que d sentido

    materialidade.6 Encontramos em Santos

    (2003) outras observaes pertinentes ques-

    to em debate. Para ele, na contemporaneida-

    de, a tecnologia se ps a servio de uma pro-

    duo em escala planetria, na qual nem os

    limites dos Estados, nem os dos recursos, nem

    os dos direitos humanos so levados em con-

    ta. Nada levado em conta, exceto a busca

    desenfreada do lucro, onde quer que se encon-

    trem os elementos capazes de permiti-lo (San-

    tos, 2003, p. 118).

    Neste caso, refletir sobre o ciclo hidros-

    social7 da gua no contexto de uma grande

    metrpole, como a do Rio de Janeiro (RJ), en-

    volve um olhar atento sobre os processos de

    urbanizao e polticas de desenvolvimento

    adotadas. Assim, necessrio compreend-los

    como um processo poltico ecolgico, cujo o

    elemento gua serve como ponto de partida

    para uma discusso que abarca outras ques-

    tes. Para Ioris (2010), a ecologia poltica dos

    recursos hdricos lida com as contradies so-

    cionaturais relacionadas ao uso e conserva-

    o da gua sob a esfera de influncia direta ou

    indireta dos processos de circulao e acumu-

    lao de capital, assim como das alternativas

    para sua superao em contextos histricos e

    culturais especficos. Uma anlise responsvel

    dos problemas de gesto de recursos hdricos

    deve, ento, identificar responsabilidades cole-

    tivas, mas profundamente diferenciadas, entre

    os grupos sociais que interagem em um dado

    territrio (Ioris, 2010, p. 81).

    Alm do mais, medida que as cidades

    crescem, tornam-se mais complexos os fluxos

    das guas urbanas, sejam elas destinadas ao

    abastecimento da populao, diluio de

    efluentes, ao escoamento das guas pluviais,

    ao uso industrial, dentre outras situaes.

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    No caso especfico da metrpole fluminense,

    observa-se que a dinmica urbana na Regio

    Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) sofre

    influncia direta dos problemas relacionados

    tanto aos alagamentos recorrentes nos meses

    de vero quanto da escassez hdrica j que

    so poucos os mananciais de gua existentes

    para abastecer a metrpole, sendo o principal

    deles o Guandu, que depende fortemente das

    guas transpostas do rio Paraba do Sul para

    operar (Costa, 2013).

    Por fim, visvel que a Baa de Guana-

    bara mais do que uma regio hidrogrfica

    cortada por rios e pequenos crregos; e vai

    muito alm de um simples esturio retratado

    em cartes postais. Sculos atrs, o principal

    ecossistema ali existente era o mangue; j nas

    ltimas dcadas sua configurao o resul-

    tado de diferentes formas de apropriao dos

    territrios, da consolidao e sobreposio de

    polticas pblicas variadas (cada uma com sua

    prpria institucionalidade) que regulamen-

    tam os usos da gua ali empreendidos. Sendo

    assim, ser com um olhar sobre a histria desse

    territrio, que iniciaremos nossas anlises.

    Baa de Guanabara: aspectos histricos e projetos da atualidade

    As primeiras memrias do Rio de Janeiro, no

    sculo XVI, so impregnadas de observaes

    sobre a bela, extica e perigosa natureza da

    Baa de Guanabara e tribos indgenas, seus ha-

    bitantes originais. A colonizao das margens

    da Baa e de suas bacias hidrogrficas, pelos

    europeus, seguiu uma marcha ininterrupta

    atravs de florestas, pntanos e morros. Essa

    foi uma grande vantagem para a ocupao ini-

    cial do Rio: a disponibilidade, na retaguarda,

    de plancies cultivveis (zona de produo de

    alimentos e materiais de exportao) e de fcil

    acesso por hidrovias (Lessa, 2000).

    Convm ressaltar que o incio da colo-

    nizao foi tambm o comeo da incessante

    explorao dos recursos naturais da Baa de

    Guanabara, no somente das matas existentes

    nas ilhas, mas tambm de todo seu recncavo

    e mangue. Alm da extrao de pau-brasil, as

    florestas prximas da costa transformaram-se

    em um reservatrio de madeiras e lenha com-

    bustvel para uma srie de atividades: desde

    caieiras, para a produo de cal, passando por

    armaes para a pesca de baleia, olarias, fa-

    zendas para produo de farinha de mandioca

    e engenhos de acar (Coelho, 2007).

    No sculo XVII, foi marcante o impulso ao

    desenvolvimento econmico do estado e cres-

    cimento demogrfico alcanado, principalmen-

    te em funo do apogeu do ciclo da cana-de-

    -acar.8 Caracterstica relevante, e que trouxe

    srias consequncias para os corpos hdricos

    locais, ainda durante o perodo colonial, foi o

    fato de a cidade ter se desenvolvido aperta-

    da entre os morros, lagoas e o mar. Na busca

    de espao para implantao da cidade, neste

    que demonstrava ser um ambiente hostil ao

    urbanismo, iniciava-se a luta do homem contra

    as reas midas, tais como brejos, pntanos e

    lagoas, em um processo de aterramento que

    duraria mais de trs sculos (Coelho, 2007). To-

    da a zona central do Rio de Janeiro, do cais do

    Porto9 at a atual Avenida Beira-Mar, e da Pra-

    a VX at a Praa Tiradentes, por exemplo, est

    assentada sobre uma rea de alagadio aterra-

    do. Nesses termos, pode-se afirmar que a terra

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    no Rio de Janeiro no foi apenas conquistada,

    mas tambm construda (Lessa, 2000).

    Silva (2005) acrescenta que o advento

    da atividade mineradora direcionou a dinmica

    econmica da Colnia do Nordeste para o Su-

    deste brasileiro, tornando imprescindvel o pla-

    nejamento logstico e a melhoria da infraestru-

    tura existente, com vistas ao desenvolvimento

    e fiscalizao da produo. Esse cenrio es-

    clarece, em grande parte, as motivaes que

    ensejaram a transferncia da capital adminis-

    trativa da Colnia de Salvador (BA) para a ci-

    dade do Rio de Janeiro, em 1763. Nessa poca,

    o territrio fluminense j havia se consolidado

    como importante regio porturia para abas-

    tecimento dos navios que faziam a defesa do

    litoral Sul da Colnia (Silva, 2005).

    Contudo, mesmo com a ascendncia que

    a capital fluminense galgava no fim do sculo

    XVIII, incio do sculo XIX, ainda era notria a

    precariedade da cidade nos quesitos sanea-

    mento bsico e abastecimento de gua, no pe-

    rodo colonial. O ambiente insalubre, somado

    falta de condies de higiene em que vivia a

    populao fluminense, produzia um meio pro-

    pcio propagao de doenas e a problemas

    de sade pblica (Carvalho, 1996).

    A vinda da corte portuguesa, em 1808,

    marcaria profundamente a paisagem e os h-

    bitos da cidade, ento convertida no centro de

    deciso do Imprio Portugus. Segundo Cano

    (2002, p. 50), a transferncia da corte sinali-

    zou para o Brasil a antecipao do processo

    de independncia: a liberalizao dos portos e

    a liberdade de comrcio e da indstria pratica-

    mente liquidavam o estatuto colonial.

    Outros importantes foram a Procla-

    mao da Repblica (1889) e o novo ciclo de

    urbanizao do Rio de Janeiro, implementado

    pelo pero do de gesto do prefeito Pereira Pas-

    sos (1902-1906).10 Foi a partir da que as desi-

    gualdades espaciais e sociais, tanto da capital

    quanto da Baa de Guanabara, se acentuaram e

    se sobrepuseram ainda mais (Carvalho, 1996).

    Nesse contexto, Chiavari (1985) lembra

    que, se o saneamento foi um problema recor-

    rente nas grandes cidades, em uma dada fase

    de seu desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em

    especial, esse problema assumiu grandes pro-

    pores, pois, alm de ser uma praga que

    ameaava a sobrevivncia e reproduo da

    mo-de-obra, gerava o cancelamento de che-

    gada de navios nos portos, algo que deveria ser

    combatido por uma cidade que ambicionava

    um papel de protagonista no cenrio do comr-

    cio internacional.

    Um sculo depois, especificamente na

    dcada de 1950,11 ocorre o momento auge do

    processo de poluio e degradao da Baa,

    coincidindo com o processo de desenvolvimen-

    to urbano-industrial da RMRJ. Britto (2003)

    lembra que os aterros que acompanharam a

    abertura da Avenida Brasil, conjugados ex-

    panso das indstrias poluidoras, principal-

    mente qumicas, farmacuticas e de refinaria,

    e ainda o espetacular crescimento populacio-

    nal e a expanso urbana, conduziram a uma

    alterao radical na qualidade das guas, flo-

    ra, fauna e balneabilidade das praias, e ao de-

    clnio da pesca. Os efluentes industriais, cada

    vez em maior escala, passaram a contaminar

    as guas com leo, metais pesados, substn-

    cias txicas e carga orgnica. A expanso ur-

    bana e populacional, sem o acompanhamento

    de servios adequados de esgotamento sanit-

    rio, passou a responder, por sua vez, pela po-

    luio provocada pelo esgoto domstico no

    tratado, o qual, gradualmente, foi tornando as

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    praias do interior da Baa imprprias para o ba-

    nho (Britto, 2003).

    Na histria do esturio da Baa de Gua-

    nabara, cabe pontuar que foi relevante no s-

    culo XX, incio da dcada de 1990, o Programa

    de Despoluio da Baa de Guanabara, finan-

    ciado pelo Banco Mundial e pelo Japan Bank

    for International Cooperation (JIBIC). Britto

    (2003) lembra que esse foi apresentado como

    um dos maiores conjuntos de obras de sanea-

    mento no Estado do Rio de Janeiro, tendo por

    objetivos gerais recuperar os ecossistemas ain-

    da presentes no entorno da Baa de Guanaba-

    ra e resgatar, gradativamente, a qualidade das

    guas e dos rios que nela desaguam, atravs

    da construo de sistemas de saneamento ade-

    quados. Contudo, esse programa foi um grande

    fracasso, pois teve uma efetividade muito bai-

    xa, sobretudo se analisado sob o vis do volu-

    me de recursos investidos pelos agentes finan-

    ciadores externos (Britto, 2003; Sanches, 2000;

    Vieira, 2009).

    A seguir, iremos nos deter em aspectos

    relevantes deste incio de dcada de 2010.

    A Baa de Guanabara Olmpica e a Baa da Petrobrs

    Neste incio de sculo XXI, h dois grandes pro-

    jetos se sobrepondo na Baa de Guanabara, o

    primeiro deles diz respeito ao uso olmpico es-

    portivo de suas guas e, o segundo, refere-se

    ao uso industrial. E analise desses, que

    este tpico se deter.

    No incio dos anos 1990, com o agrava-

    mento da crise de endividamento do Estado

    brasileiro e o colapso do planejamento urbano

    estatal, as iniciativas de planejamento urbano

    subsequentes a esse contexto passaram por

    um perodo de descrdito e desvalorizao

    (Pires, 2010). Em 1993, a Prefeitura da Cidade

    do Rio de Janeiro (PCRJ) resolveu, inspirada

    no modelo de planejamento urbano de Bar-

    celona, firmar um acordo com a Associao

    Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e Federa-

    o das Indstrias (Firjan), para promoverem

    juntas o Plano Estratgico da Cidade do Rio

    de Janeiro (PECRJ). Assim, esse documento

    foi elaborado apostando que essa estratgia

    contribuiria para reverter o quadro de agra-

    vamento da crise urbana e a perda de inves-

    timentos,12 recolocando a Cidade em termos

    globais, inserindo-a em termos competitivos,

    em condies de atrair investimentos pblicos

    e privados (Pires, 2010).

    Desse modo, estavam dadas as condies

    para que se estabelecessem com toda a fora,

    na cidade do Rio de Janeiro, os pressupostos do

    modelo neoliberal de planejamento, a fim de

    que fosse reforada a vocao olmpica da

    cidade e criados investimentos visando atra-

    o de megaeventos. Para tanto, os consulto-

    res internacionais de planejamento estratgico

    de cidades indicam que sediar megaeventos

    uma eficiente ao de marketing urbano inter-

    nacional e atrao de investimentos pblicos.

    Sobre isso, o prprio prefeito carioca, Eduardo

    Paes, confirma:

    Tudo o que a gente faz como se fosse coisa da Olimpada, de olmpico no tem nada. Os dois maiores eventos esportivos do mundo serviro, assim, de pretexto para realizar intervenes urbansticas num curto espao de tempo, numa escala comparvel somente gesto de Pereira Passos, o prefeito do incio do sculo pas-sado, que alou o Rio condio de Ci-dade Maravilhosa. (A Lio..., 2013, p. 40)

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    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 21

    Nessa mesma reportagem, o RJ apre-

    sentado como um exemplo a ser seguido pelas

    outras metrpoles do pas, e enaltecido por ser

    a cidade, capital de estado, que mais recebe in-

    vestimentos em todo mundo.

    Assim, com relao ao primeiro projeto

    citado, despoluir a Baa de Guanabara cha-

    mada de Baa Olmpica por representantes

    do poder pblico e usurios de gua durante

    eventos e reunies, esse um dos objetivos

    que compem o chamado legado ambiental

    dos Jogos Olmpicos. O que se observa, ento,

    que o alardeado modelo bem-sucedido

    de Planejamento Estratgico de Cidades tem

    relao direta com os aspectos ambientais,

    sociais, econmicos e polticos da capital. O

    otimismo fluminense se deve, fundamental-

    mente, ao fato de a cidade ter sido uma das

    cidades- sede da Copa do Mundo de Futebol

    em 2014, e de receber tambm os Jogos Olm-

    picos, no ano de 2016.

    Diante da grande expectativa a respeito

    dos legados que deixaro na cidade, para

    alm dos dias de realizao dos megaeventos,

    bem como do montante de dinheiro investido

    na RMRJ nesses anos, fica mais fcil visualizar

    os jogos de poder e o poder dos jogos (Oli-

    veira, 2012). Tamanha a fora poltica desse

    megaevento esportivo que, sob a alegao de

    tornar a Baa adequada para realizao de es-

    portes nuticos, o Estado conseguiu retomar

    antigos projetos de despoluio, inclusive al-

    guns dos que foram duramente criticados, co-

    mo o PDBG. Sobre isso, o secretrio estadual

    do ambiente, Carlos Minc, afirmou no ano de

    2013: o PDBG estava to queimado que o

    programa mudou de nome para Saneamento

    Ambiental dos Municpios do Entorno da Baa

    de Guanabara (PSAM). (Em 20 anos..., 2012).

    Sobre isto, temos as palavras do pre-

    sidente da Cedae, Wagner Victer (Rio Vai...,

    2013):

    O presidente da Cedae explicou que o antigo Programa de Despoluio da Baa de Guanabara (PDBG), iniciado ainda nos anos 80 e que consumiu bilhes de dla-res em recursos, com resultados tmidos, j foi superado pelas aes atuais. O PDBG original tinha um conjunto de obras com um nvel de tratamento no to pro-fundo como o atual. As estaes tinham um nvel de tratamento primrio s de 40% da carga orgnica. Hoje temos esta-es com nvel secundrio, que processam at 98% da carga orgnica. Em 2016, ns vamos entregar populao, aos turistas e aos atletas uma Baa de Guanabara muito mais limpa. (Rio Vai..., 2013)

    Em que pesem o fracasso e o desper-

    dcio de dinheiro pblico que o PDBG logrou,

    sob o discurso de uso Olmpico das guas da

    Baa, uma srie de novos investimentos eco-

    nmicos e polticos est sendo retomada para

    o territrio. Assim como no PDBG, novamente

    o Banco Interamericano de Desenvolvimento

    (BID) concede emprstimo ao Governo do Es-

    tado para despoluio da Baa, dessa vez so

    US$452 milhes. O prprio diretor do BID, ao

    ser questionado sobre isso em entrevista BBC

    Brasil, admite que houve falhas em projetos

    financiados pela instituio, mas diz apenas

    que nenhum projeto perfeito, e que o banco

    tambm aprende com os fracassos.

    Segundo o site institucional da Secretaria

    Estadual do Ambiente (SEA), faz parte dos com-

    promissos olmpicos assumidos pelo Governo

    do Estado com o Comit Olmpico Internacional

    (COI) para a realizao das Olimpadas do Rio

    a meta de se alcanar o saneamento de 80%

    Book final.indb 21Book final.indb 21 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201522

    da Baa de Guanabara at 2016. Sendo assim,

    possvel ver que a realizao das Olimpadas

    serviu de pretexto para uma srie de proje-

    tos, j que agora o Rio de Janeiro mais do que

    uma cidade qualquer, sim o Rio Olmpico,

    tal qual pretende apresentar o folder abaixo.

    Assim, a Baa de Guanabara apresenta-

    -se como a regio-chave para a implementao

    da poltica pblica estruturante da SEA deno-

    minada Pacto pelo Saneamento que con-

    templa o Plano Guanabara Limpa e o Pro-

    grama de Saneamento dos Municpios do En-

    torno da Baa de Guanabara (PSAM). Em maio

    de 2013, os investimentos previstos no Guana-

    bara Limpa somavam pelo menos R$6 bilhes,

    incluindo desde obras de saneamento at res-

    taurao florestal nos rios que compem a ba-

    cia hidrogrfica. Contudo, a partir de meados

    de 2014, diversas foram as notcias veicula das

    na grande mdia acerca das dificuldades para

    alcanar a meta olmpica de despoluir a Baa

    de Guanabara.

    Com relao ao outro importante uso da

    gua na Baa de Guanabara, seu uso industrial,

    ressaltamos a forte presena de empreendi-

    mentos relacionados indstria do petrleo

    e petroqumica, no entorno e espelho dgua,

    principalmente, e tambm indstria naval,

    estaleiros e portos. Cabe lembrar que, nas l-

    timas duas dcadas, o litoral do estado do Rio

    de Janeiro se tornou a regio petrolfera mais

    importante do pas, e uma das mais importan-

    tes do mundo; mais precisamente uma faixa

    do oceano atlntico, defronte costa do norte

    fluminense, entre a cidade de Cabo Frio e a foz

    do rio Paraba do Sul (Sev, 2013). Na RMRJ,

    especificamente, ficam a Refinaria de Duque de

    Caxias (Reduc), da Petrobrs, e a Refinaria de

    Manguinhos, de capital privado. Nas ilhas do

    interior da Baa de Guanabara, a Ilha Redon-

    da, a Ilha dgua e a Ilha do Governador, lo-

    calizam-se terminais de carga-descarga de pro-

    dutos petrolferos e parques de tanques com

    grande capacidade de armazenamento, ligados

    Figura 1 Folder campanha gua Limpa para o Rio Olmpico

    Fonte: Secretaria de Agricultura e Pecuria, RJ. 2013.

    Book final.indb 22Book final.indb 22 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 23

    refinaria Reduc. Desses terminais, saem du-

    tovias recentemente construdas sob o mar da

    Baa, para ligar com a refinaria Reduc e com o

    novo Complexo Petroqumico do Rio de Janeiro

    (Comperj) (ibid.).13

    Sobre o Comperj, esse ser o maior com-

    plexo industrial da Amrica Latina, que ocupa-

    r uma rea de 45 milhes de metros quadra-

    dos, localizada no municpio de Itabora, na

    RMRJ. Trata-se de um complexo de atividades

    petroqumicas voltadas, prioritariamente,

    produo de resinas termoplsticas, a partir do

    refino do petrleo.14 Para escoar sua produo,

    est prevista a construo do Arco Metropoli-

    tano do Rio de Janeiro, uma rodovia que liga-

    r esse empreendimento ao porto de Itagua,

    contornando o fundo da Baa de Guanabara,

    ambos, Arco e Porto, impactando diretamente

    o planejamento urbano e regional da metrpo-

    le fluminense.

    Com a entrada em operao do Com-

    perj, a populao do Leste da Baa de Guana-

    bara dever atingir um patamar da ordem de

    trs milhes de habitantes, at o ano de 2030

    (Coppetec, 2013), impactando diretamente

    a prestao de uma srie de servios urba-

    nos. Para o suprimento da demanda futura de

    gua, por exemplo, sero necessrias alternati-

    vas de abastecimento em carter emergencial,

    visando complementar os mananciais atuais,

    principalmente porque sua principal fonte de

    abastecimento, o Sistema Imunama Laranjal,

    produz a vazo de 5.500 l/s, enquanto a de-

    manda atual de 7.700l/s, ou seja, j trabalha

    com dficit (ibid.).

    Analisando esses dois poderosos proje -

    tos megaeventos e indstria do petrleo

    percebemos que um ponto de convergncia

    entre eles a fora poltica de que esto

    institudos. Nesse caso, notrio o esforo pol-

    tico e financeiro para despoluir a Baa de Gua-

    nabara e, assim, honrar o compromisso assumi-

    do com o Comit Olmpico Internacional (COI),

    de um lado. E por outro, perceptvel um em-

    penho similar para consolidar ainda mais essa

    regio hidrogrfica como um polo da indstria

    do petrleo. Em muitos momentos, esses dois

    projetos governamentais, em princpio con-

    traditrios (despoluir versus industrializar),

    confluem politicamente. Um exemplo concreto

    so os recursos financeiros de medidas com-

    pensatria do Comperj, investidos na despo-

    luio da Baa, e o Termo de Ajustamento de

    Conduta (TAC) da Reduc, assinado em 2011,

    que prev investimentos na ordem de um bi-

    lho de reais em aes que contribuiro para

    sanear a Baa de Guanabara, dentre outros.

    Porm, se na atualidade o uso industrial

    marcante, h algumas dcadas era a pesca

    artesanal e industrial que marcava a paisagem

    e a economia da parte interna da Baa de Gua-

    nabara. Nos seus vrios manguezais, que ainda

    no haviam sido aterrados, muitos moradores

    viviam de caar caranguejos e siris e de extrair

    ostras e mexilhes (Sev, 2013). Os grupos

    de pescadores artesanais que ainda resistem

    nessa atividade, na Baa de Guanabara, vivem

    em conflito permanente contra a apropriao

    privada e a poluio dos bens de uso comum

    que a indstria do petrleo e petroqumica ge-

    ra nesse territrio (Pinto, 2013; Soares, 2012;

    Chaves, 2011).

    Desse modo, convm reforar que no

    so apenas os governantes e grandes empres-

    rios que tm interesses no territrio da Baa de

    Guanabara, existem outros grupos sociais que

    interagem nesse campo, interessados em perpe-

    tuar os usos habituais que ocorrem ali. Contudo,

    Book final.indb 23Book final.indb 23 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201524

    esses outros atores, muitas vezes, encontram-

    -se em condies de desvantagem por no te-

    rem os capitais15 necessrios para disput-la em

    igualdade de condies. Para ilustrar essa infor-

    mao, citaremos dois exemplos.

    O primeiro episdio selecionado ser

    a audincia pblica do Comperj, realizada

    no Ministrio Pblico Estadual do RJ, no dia

    6/8/2012. Nesse evento, a sociedade civil or-

    ganizada de Maric, que luta para que o esgo-

    to industrial do Comperj no seja lanado nos

    corpos hdricos desse municpio, recebeu como

    resposta do Inea que a empresa cumpre, de

    forma rigorosa, o que determina a norma da

    Resoluo do Conselho Nacional de Meio Am-

    biente (Conama) n. 357, e que por isso o Esta-

    do autorizou o licenciamento ambiental da em-

    presa. Em contrapartida, as lideranas sociais e

    os pescadores presentes contra-argumentaram

    dizendo que essa resoluo do Conama no

    levava em considerao aspectos subjetivos,

    que somente quem vivencia e trabalha naquele

    territrio conhece tais como o poder das ma-

    rs em dispersar os contaminantes na regio,

    bem como as rotas dos cardumes de peixe que

    sero atingidas. Alertaram ainda que, caso a

    obra do emissrio para lanamento de esgotos

    fosse ali realizada, a poluio alcanaria in-

    meras praias do lado leste da Baa de Guana-

    bara, dentre outros impactos.

    Sobre esse ponto, ficou notrio que

    os discursos e argumentos dos profissionais

    que detm o conhecimento tcnico so ba-

    seados exclusivamente na lei em vigor, e que

    quando h o cumprimento das determinaes

    tcnicas legais, no cabe espao para quais-

    quer outros tipos de questionamentos. Em

    contrapartida, os atores sociais que tm o

    conhecimento tradicional falam em nome dos

    saberes adquiridos na experincia diria com

    os recursos da natureza e insistem na rele-

    vncia de seus argumentos, pois temem uma

    tragdia ambiental na regio. Contudo, neste

    caso especfico (emissrio submarino para lan-

    amento de efluentes industriais em Maric),

    observamos que os pescadores podem at re-

    clamar, tm o direito de falar e expor sua opi-

    nio em eventos destinados ao debate pblico,

    mas no tm poder suficiente para alterar um

    projeto to importante para o Estado quanto

    o Comperj. Nessa audincia pblica, vimos

    ainda o Estado defendendo os interesses das

    indstrias em detrimento dos anseios dos ou-

    tros grupos sociais ali representados.

    Outro exemplo so os pescadores arte-

    sanais da Baa de Guanabara, um grupo que

    sofre diretamente os efeitos da industrializa-

    o nesse territrio e que tem sido alvo de

    ameaas e atentados por contestar e tentar

    impedir os projetos que inviabilizam a pesca

    nessas guas. A essa categoria tem sido dado

    o papel de denunciar a apropriao privada

    desse territrio e lutar pela garantia das con-

    dies que permitam a reprodutibilidade de

    suas prticas sociais. O principal grupo orga-

    nizado de resistncia supremacia da inds-

    tria de petrleo e petroqumica nas cercanias

    da Baa de Guanabara a Associao de Ho-

    mens e Mulheres do Mar (Ahomar). Apesar de

    esse grupo reclamar e participar de diversas

    reunies e audincias pblicas, o constrangi-

    mento poltico que eles criam no tem poder

    suficiente para modificar o projeto em curso

    na metrpole. Pelo contrrio, muitos membros

    j sofreram atentados de morte, pescadores

    foram brutalmente assassinados e sua prin-

    cipal liderana necessita de escolta armada

    diariamente.

    Book final.indb 24Book final.indb 24 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 25

    No prximo item deste artigo, com base

    na anlise dos dados do Cadastro de Usurios

    de gua, refletiremos sobre a intensificao

    dos usos de suas guas na RMRJ.

    Usos e usurios de gua na metrpole fl uminense

    Toda a efervescncia de projetos e investi-

    mentos supracitados tem influncia direta na

    direo que os fluxos da gua na metrpole

    tomam. Ainda mais quando pensamos na

    situa o atual de estresse hdrico vivido na

    RMRJ (Coppetec, 2013). Nesse contexto, cabe

    refletir sobre quais so as regies beneficia-

    das, bem como quem so os atores que detm

    o poder de deciso sobre o fluxo que a gua

    toma na RMRJ.

    Para iniciar uma reflexo sobre desigual-

    dades ambientais relacionadas com a gua

    na RMRJ, cabe um olhar mais atento sobre a

    Baixada Fluminense (lado oeste da RMRJ), um

    exemplo marcante de insero da gua em

    processos de controle poltico e circulao de

    capital, influenciados diretamente por relaes

    desiguais de poder de deciso em termos de

    acesso e uso da gua. Alm do mais, no caso

    da gua, as condies desiguais de apropriao

    no s acentuam as dificuldades de uso por

    uma parte da populao, como tambm resul-

    tam em situaes de maiores riscos associados

    ao uso do territrio para fins de moradia (Fra-

    calanza et al., 2013).

    Na Baixada Fluminense localizam-se

    cursos dgua intensamente poludos, que de-

    saguam na Baa de Guanabara (bacia hidro-

    grfica dos rios Iguau, Botas e Sarapu), fruto

    da presena de um parque industrial bastante

    complexo e da ausncia de polticas efetivas

    de saneamento bsico, ambos os fatos contri-

    buindo de forma significativa para a poluio

    do esturio. H ainda, nessa regio, um proble-

    ma histrico de falta de gua, em razo do

    abastecimento de gua intermitente em muitos

    bairros e de excesso de gua, devido s re-

    correntes enchentes durante os meses chuvo-

    sos do vero.

    Assim, neste tpico, os fluxos da gua

    serviro como fio condutor para uma anlise

    das situaes tidas como de injustia ambien-

    tal, vividas pelos moradores da regio. Para

    tanto, realizaremos uma analogia entre as di-

    rees dos fluxos de pessoas e o fluxo de gua

    que cruza o lado oeste da RMRJ.

    Em um primeiro momento, destacamos a

    situao de dependncia econmica da Baixa-

    da Fluminense em relao ao Rio de Janeiro e

    seu papel de fornecedora de mo de obra ba-

    rata para a capital, uma vez que a fraca econo-

    mia local obriga grande parte de seus morado-

    res a realizar longos deslocamentos em busca

    de emprego e renda (Simes, 2006). Aqui cabe

    ressaltar que a cidade do Rio de Janeiro tem

    caractersticas especiais no contexto metropo-

    litano devido centralidade econmica e po-

    ltica que exerce diante dos demais municpios

    (Lago, 2009). Nesse caso, so os moradores da

    Baixada que sofrem o nus de ter que se des-

    locar para trabalhar em locais distantes de sua

    residncia, encontrando dificuldades diversas

    nesse deslocamento de casa para o trabalho

    devido, principalmente, precariedade do sis-

    tema de transporte pblico intermunicipal e

    engarrafamentos no trnsito em quase toda a

    RMRJ (fatos esses rotineiramente divulgados

    na prpria grande mdia).

    Book final.indb 25Book final.indb 25 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201526

    Por outro lado, quando observamos o

    deslocamento da gua para abastecimento

    domstico na regio, o fluxo se inverte. Isso

    porque a populao da Baixada est situada

    geograficamente nas proximidades do prin-

    cipal manancial de gua da RMRJ, o Sistema

    Guandu,16 mas no se beneficia dessa situao,

    uma vez que inmeros bairros da Baixada Flu-

    minense sofrem escassez crnica dos servios

    de abastecimento de gua (Porto, 2001; Ioris

    e Costa, 2008). Enquanto isso, nos bairros da

    zona norte, centro e sul da cidade do RJ, rea

    considerada mais nobre, cujos bairros so

    chamados de fim de linha pela Cedae, por

    estarem distantes geograficamente das fontes

    de gua bruta da Estao de Tratamento de

    gua Guandu (ETA Guandu), dificilmente falta

    gua (Costa e Ioris, 2010). Desse modo, a pro-

    ximidade geogrfica do principal sistema de

    abastecimento no garantia de que a gua

    chegar de maneira regular e com qualidade

    confivel nas residncias.

    Esse exemplo nos mostra que atravs

    das prticas de apropriao do mundo mate-

    rial, historicamente constitudas, que se con-

    figuram os processos de diferenciao social

    dos indivduos, atravs da distribuio, acesso,

    posse e controle de territrio, fontes, fluxos

    e estoques de recursos materiais (Acselrad,

    2004). Pode-se assim afirmar que os sujeitos,

    ou agentes sociais, so constitudos em funo

    das relaes que estabelecem no espao social

    (Bourdieu, 1999).

    As tabelas abaixo confirmam esta situa-

    o: grande parte da gua que abastece a Re-

    gio Hidrogrfica V (RMRJ) captada em mu-

    nicpios da Baixada, mas o municpio que mais

    realiza lanamentos o RJ. Ou seja, a gua,

    que pesada e requer uma logstica complica-

    da para se deslocar, captada na Baixada, serve

    para fomentar o protagonismo econmico da

    capital no contexto nacional e internacional.

    Aqui, vale reforar que a zona oeste do Rio de

    Janeiro no produtora de gua, uma vez

    que o Sistema Guandu, localizado no munic-

    pio de Nova Iguau, beneficiado com uma

    transposio de gua do rio Paraba do Sul. De

    todo modo, mesmo que artificial, a Baixada

    Fluminense que abriga o principal manancial

    de gua da metrpole. A prxima figura mostra

    a carga total de lanamento de efluentes dos

    principais municpios usurios de gua.

    Book final.indb 26Book final.indb 26 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 27

    Figura 2 Os cinco municpios com maior vazo de captao de gua(litros/hora)

    Fonte: Inea (2013); elaborao do autor.

    3.500.000.000,00

    3.000.000.000,00

    2.500.000.000,00

    2.000.000.000,00

    1.500.000.000,00

    1.000.000.000,00

    500.000.000,00

    0,00

    Total Geral Nova Iguau NiteriRio de Janeiro Guapimirim Cachoeiras de Macacu

    Litros

    Figura 3 Os cinco municpios com maior vazo de lanamento de efl uentes(litros/hora)

    Fonte: Inea (2013); elaborao do autor.

    1.600.000.000,00

    1.400.000.000,00

    1.200.000.000,00

    1.000.000.000,00

    800.000.000,00

    600.000.000,00

    400.000.000,00

    200.000.000,00

    0,00

    Total Geral Rio de Janeiro Nova Iguau Niteri Duque de CaxiasSo Gonalo

    Litros

    Book final.indb 27Book final.indb 27 07/05/2015 09:20:0307/05/2015 09:20:03

  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201528

    Observando as Figuras 2 e 3, conclui-se

    que a gua proveniente dos municpios perif-

    ricos (Nova Iguau e Guapimirim, principalmen-

    te) usada e descartada na capital, o Rio de

    Janeiro. Mesmo considerando que a capital tem

    mais habitantes, se comparada aos municpios

    perifricos, ainda assim possvel comprovar

    o argumento dos autores ligados Ecologia

    Poltica da gua, de que tanto a distribuio

    dos servios que envolvem o saneamento b-

    sico, quanto as obras de infraestrutura em uma

    cidade podem sinalizar (e fomentar) diferen-

    ciao social e de classe. Tal pressuposto con-

    firma a necessidade de observao do quadro

    social, pois, de acordo com a abordagem aqui

    adotada, o fluxo de gua no contexto urbano

    expressa diretamente fluxos de poder entre

    grupos sociais e fluxos de recursos financeiros,

    atravs da ocupao desigual do espao e da

    deciso a respeito de investimentos pblicos

    (Swyngedouw, 2004).

    Nesses termos, preciso levar em conta

    que, quando se trata de analisar os problemas

    ambientais no meio urbano, preciso ter em

    mente que as responsabilidades so parcial-

    mente coletivas. Isso porque, certos agentes

    se encontram em posio privilegiada para in-

    terferir na dinmica territorial, de forma mais

    atuante e com mais poderes do que outros. Por

    ser base da produo da diferenciao social

    dos indivduos, a desigual distribuio de poder

    sobre os recursos configura assim as diversas

    formas sociais de apropriao do mundo ma-

    terial (Acselrad, 2004a, p. 15). De forma com-

    plementar, o futuro das cidades depender,

    em grande parte, dos conceitos constituintes

    do projeto de futuro dos agentes relevantes na

    produo do espao urbano (Acselrad, 2009,

    p. 47).

    E justamente sobre os agentes rele-

    vantes, ou seja, aqueles que detm o poder de

    decidir para onde vai a gua disponvel, qual

    direo ser tomada por seus fluxos na metr-

    pole, o eixo condutor das discusses realizadas

    no prximo tpico.

    O protagonismo da Cedae na RMRJ

    Vale reforar que, em decorrncia da efer-

    vescncia olmpica e econmica da cidade,

    novas empresas surgem e o mercado de tra-

    balho torna-se bastante aquecido, fato esse

    que potencializa a migrao de profissionais

    de diversas reas para a capital fluminen-

    se, principalmente, e demais municpios da

    RMRJ. Consequentemente, o mercado imo-

    bilirio tambm entra em franca expanso,

    com o lanamento de centenas de novos

    empreendimentos, majoritariamente localiza-

    dos na regio da Barra da Tijuca, rea nobre

    que concentra grande parte dos equipamen-

    tos olmpicos. Tudo isto impacta diretamente

    a demanda e distribuio de gua na RMRJ.

    Nesse momento, relevante recordar que sob

    o ponto de vista da Ecologia Poltica da gua,

    o fluxo de gua no contexto urbano expressa

    diretamente fluxos de poder entre grupos so-

    ciais, assim como fluxos de recursos financei-

    ros (Swyngedouw, 2004).

    Para confirmar o aumento da demanda

    por gua, o grfico abaixo apresenta o aumen-

    to do nmero de empreendimentos que com-

    pem o Cadastro Nacional de Usurios de Re-

    cursos Hdricos (CNARH), ou seja, usurios que

    solicitaram a outorga de uso da gua para fins

    de licenciamento ambiental, ou apenas regula-

    rizaram sua solicitao junto ao Inea.

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  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 29

    Cabe aqui reforar que a presso sobre a

    rede fluvial (descarte de esgotos e efluentes in-

    dustriais) e a demanda pela produo de gua

    potvel como insumo, provavelmente, iro gerar

    conflitos de uso, uma vez que, dificilmente, ser

    possvel atender a todos os demandantes. Isso

    porque, conforme nos lembra Castro (2010), a

    vazo do rio Guandu continua a mesma, e tais

    projetos, com investimentos pblicos e privados,

    demandam enormes volumes de gua. Histori-

    camente, a transposio das guas do Paraba

    do Sul para o Guandu significou a possibilidade

    de sobrevivncia e expanso da cidade. No en-

    tanto, o quadro atual incerto quanto capa-

    cidade de suporte do atual sistema de abaste-

    cimento, em relao s possveis demandas de

    gua, e diminuio da vulnerabilidade social

    quanto ao saneamento bsico, vide a grave cri-

    se de abastecimento de gua existente em So

    Paulo desde o final do ano de 2013.

    Ento, se o cenrio no favorvel pa-

    ra garantir a demanda de gua necessria

    para atender a toda a populao e a todos

    os projetos em execuo, com o agravante de

    que a metrpole paulista tambm sofre es-

    tresse hdrico, necessitando lanar mo das

    guas do Paraba do Sul, cabe refletir sobre a

    segunda parte da questo proposta no incio

    deste tpico. Assim, se no h gua dispon-

    vel para atender a todos os demandantes da

    metrpole fluminense, quem so os atores

    com o poder de decidir quais reas geogr-

    ficas sero contempladas ou quais sero os

    projetos contemplados? Para tentar respon-

    der a essa questo, utilizaremos novamente

    dados do cadastro de usurios de gua, dis-

    ponibilizado pelo Inea, para melhor visualizar

    quais so os principais setores usurios de

    gua na RMRJ e como a circulao dos flu-

    xos da gua na metrpole.

    Figura 4 Evoluo do CNARH no estado do Rio de Janeiro(nmero de usurios cadastrados por ano)

    Fonte: Inea (2013).

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  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201530

    primeira vista, foi notria a superiori-

    dade do setor saneamento bsico, diante

    dos demais usurios, conforme Figura 5.

    Ao verificar o nome das empresas cadas-

    tradas, percebemos que a Cedae prestadora

    de servios de abastecimento pblico e esgo-

    tamento sanitrio, quem domina fortemente as

    operaes de captao e lanamento de guas

    na RHBG. Sediada na cidade do Rio de Janeiro,

    a Cedae uma sociedade annima de econo-

    mia mista e capital aberto, sem aes listadas

    em Bolsa de Valores, cujo acionista majorit-

    rio o Estado do Rio de Janeiro, responsvel

    pela gesto da Companhia e detentor de 99%

    do capital votante e de 99% do capital total.

    O restante do capital pulverizado entre 648

    acionistas privados, em sua maioria pessoas

    fsicas (Cedae, 2011). A Cedae garante o abas-

    tecimento de gua a uma populao de cerca

    de 13 milhes de pessoas, atende a 64 dos 92

    municpios do Estado com abastecimento de

    gua e obteve, em 2011, um faturamento m-

    dio mensal de R$293 milhes (Cedae, 2011).

    Desse modo, podemos afirmar que a

    Cedae quem define, em grande parte, os sen-

    tidos dos fluxos de gua na metrpole. Ou

    seja, essa empresa, por sua atividade e gran-

    deza, tem determinado, na prtica, as maiores

    finalidades do uso da gua. Segundo dados

    da prpria Cedae (2011), a empresa afirma

    atender com abastecimento de gua 86,3%

    da populao (residentes nos municpios con-

    tratantes do servio); e com relao ao esgo-

    tamento sanitrio, declara que 52,1% dos

    Figura 5 Vazo de captao (m) por tipo de uso da gua na RHBG

    Fonte: Inea (2013); elaborao do autor.

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  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 31

    usurios esto conectados rede de esgoto.

    Ainda segundo dados fornecidos pela prpria

    empresa, o ndice de perdas de guas da or-

    dem de 31,2% (Cedae, 2011). As perdas fsicas

    de gua na rede paulista, por exemplo, chegam

    a absurdos 45%, em pelo menos metade da

    sua regio metropolitana. Para Castro (2010),

    essas perdas so um crime ambiental; j Lutti

    (2014) declara que os administradores dessas

    empresas pblicas de abastecimento ou de

    economia mista, como o caso da Sabesp e

    outros agentes polticos deveriam ser pessoal-

    mente responsabilizados por seus atos temer-

    rios, cujos resultados afetam a sociedade e o

    dinheiro pblico.

    No caso da Cedae, foi possvel verificar,

    em nossos trabalhos de campo, a insatisfao

    da populao dos bairros da periferia da Bai-

    xada Fluminense, com relao a essa empresa.

    Cabe mencionar a falta de transparncia e di-

    ficuldade de dilogo na relao entre Cedae e

    consumidores residenciais. Muitos moradores,

    mesmo pagando a conta de gua, no recebem

    gua nas suas casas. A Cedae s atende s re-

    clamaes (isto no significa que ela solucione

    os problemas) daqueles moradores que esto

    com suas contas de gua em dia. Os inadim-

    plentes no podem nem sequer fazer uma

    queixa relacionada a um cano estourado, fal-

    ta de gua ou a qualquer outro problema (Ioris

    e Costa, 2009; Costa e Ioris, 2011). Muitos mo-

    radores mencionaram que por diversas vezes

    se organizaram em protestos e contrataram

    nibus para levar as pessoas sede da Cedae

    no Rio de Janeiro. Em uma ocasio, eles rece-

    beram como recomendao dos funcionrios:

    "orar para chover, que o melhor que vocs

    podem fazer..." (entrevista com os residentes

    em Duque de Caxias, 6/7/2008).

    No caso especfico das periferias da

    RMRJ, o resultado de tanto descompasso e des-

    continuidade nas polticas pblicas de sanea-

    mento bsico metropolitano a cena, ainda

    muito comum, de moradores saindo de sua ca-

    sa com uma sacolinha plstica de supermerca-

    do amarrada aos ps para proteger os sapatos,

    evitando assim chegar ao trabalho ou escola

    com os ps sujos por lama. Em entrevista com

    o Secretrio Municipal de Participao Social

    da Prefeitura de Nova Iguau,17 por exemplo,

    esse afirmou que na Baixada Fluminense o

    conceito de cidadania ainda est muito asso-

    ciado ao fato de o morador no ter lama na

    porta de sua casa.

    Consideraes fi nais

    As anlises realizadas apontam que os fluxos

    de guas que serpenteiam a Regio Hidrogr-

    fica da Baa de Guanabara foram, e continuam

    sendo, apropriados como parte de uma estrat-

    gia que privilegia a produo capitalista do es-

    pao. Tendo como base incentivos e polticas de

    Estado que fomentam a continuidade da gran-

    de explorao territorial direcionada insero

    brasileira na economia global. Contudo, crticas

    vm sendo apontadas referentes aos poucos

    espaos polticos abertos para o debate sobre

    esses investimentos, apesar da existncia de

    inmeros arranjos polticos ditos participativos,

    criados nas dcadas de 1990 e 2000.

    O projeto (dito) de desenvolvimento

    em curso na metrpole envolve fomentar a

    industria lizao na Regio Hidrogrfica da

    Baa de Guanabara e inviabilizar outros tipos

    de usos e usurios de gua, tais como os pes-

    cadores artesanais que se mostram presentes.

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  • Maria Anglica Maciel Costa

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 201532

    No depoimento do pescador Alexandre An-

    derson, lder da Ahomar, realizado na OAB em

    agosto de 2012, esse reforou o papel exerci-

    do pela atual coalizo de poder, composta

    pelos governos federal, estadual, municipal e

    grandes empresrios, no contexto da poltica

    desenvolvimentista em curso na RMRJ. Lem-

    brou ainda que a industrializao do entorno

    da Baa de Guanabara sofreu grande impulso

    na ltima dcada e vem minando a possibili-

    dade de realizao de outros tipos de uso da

    gua na Baa.

    Os desafios desse sistema de gesto de

    guas implementados a partir da Poltica Na-

    cional de Recursos Hdricos, baseado numa

    gesto que se pretende democrtica e descen-

    tralizada, so de difcil soluo no curto pra-

    zo e extrapolam a escala da metrpole, bem

    como a capacidade das instituies hdricas

    em resolv-los, tais como os Comits de Ba-

    cia Hidrogrfica. Envolvem, antes de tudo,

    uma escala supranacional, cujo contexto tem

    se mostrado impregnado com os ideais das

    polticas econmicas neoliberais. relevante

    salientar que mesmo uma poltica de guas

    bem-sucedida no capaz de interferir naque-

    les setores colocados pela estrutura do Estado

    como fora da esfera decisria participativa. Na

    Baa de Guanabara, por exemplo, h mltiplas

    institucionalidades e diversas polticas pblicas

    nela incidentes.

    De forma geral, a busca por uma me-

    lhor governana (noo fundamental do

    aparato de regulao e gesto de recursos h-

    dricos, como se pode verificar no texto da Lei

    9433/1997) produziu uma significativa mudan-

    a de discurso nos ltimos anos, mas sem que

    se identifiquem oportunidades concretas para

    democratizar o poder de deciso e vontade

    do Estado em compartilh-lo, vide a falta de

    protagonismo do CBH Guanabara no campo de

    gesto de guas (Costa, 2013).

    A insustentabilidade da gua , portanto,

    no apenas relacionada com o mau estado dos

    sistemas hdricos e a precariedade dos servios

    pblicos metropolitanos, mas est profun da-

    men te enraizada nos padres de uso e conser-

    vao da gua em um contexto de forte desi-

    gualdade de poder entre usurios de gua vi-

    de o protagonismo exercido pela Cedae e os

    formuladores de polticas pblicas.

    Ademais, observa-se que o fundamen-

    to da Poltica Nacional de Recursos Hdricos

    (Brasil, 1997) que diz que, em um contexto

    de escassez, o uso prioritrio da gua dever

    ser o abastecimento humano e a dessedenta-

    o de animais no cumprida j que difi-

    cilmente h falta de gua para as indstrias.

    J o cidado comum, que necessita da gua

    para sobrevivncia diria, nomeado pelas

    empresas de saneamento bsico por usu-

    rio e dever se encaixar em uma categoria

    preestabelecida - usurio residencial, comer-

    cial ou industrial, e pagar pelo seu uso, con-

    sequentemente. Observa-se assim que, com

    as reformas liberalizantes, a cidadania foi res-

    significada e os direitos transformam-se em

    uma fico retrica; em lugar de sujeitos de

    direitos surge a figura do usurio de servios

    (Telles, 1999). Assim, a excessiva burocrati-

    zao e racionalizao formal do direito, do

    Estado, da administrao pblica, dentre ou-

    tros, implica uma adaptao do modo de vida

    e de trabalho aos pressupostos econmicos

    e sociais gerais da economia capitalista, ge-

    rando assim um desprezo cada vez maior pela

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  • Da lama ao caos: um esturio chamado Baa de Guanabara

    Cad. Metrop., So Paulo, v. 17, n. 33, pp. 15-39, maio 2015 33

    essncia qualitativa das coisas e das pessoas

    (Lukcs, 1974). Nesse contexto, o objetivo de

    despoluir a Baa de Guanabara no deveria

    ser tratado com uma meta olmpica, e, sim,

    uma meta cidad.

    Sem identificar a politizao dos pro-

    blemas relacionados aos fluxos da gua na

    metrpole, a discusso e a formulao de res-

    postas ficam circunscritas a temas superficiais

    e que no conduzem a solues efetivas.

    Maria Anglica Maciel CostaUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Ncleo de Estudos e Pesquisas em Turismo, Laborat-rio Estado, Trabalho, Territrio e Natureza. Seropdica/RJ, [email protected]

    Notas

    (1) importante aqui explicar que neste trabalho o recorte espacial selecionado no se limita apenas ao espelho d`gua da Baa de Guanabara, e, sim, sua Regio Hidrogrfi ca. O Ins tuto Estadual do Ambiente (Inea), rgo gestor responsvel pela pol ca ambiental em nvel estadual do Rio de Janeiro (RJ), em 2006, dividiu o estado do RJ em 11 Regies Hidrogrfi cas. Nomeou de Regio Hidrogrfi ca da Baa de Guanabara (RHBG) a rea que inclui, alm da prpria Baa (espelho dgua), 17 municpios (total ou parcialmente) e oito bacias hidrogrfi cas. Observando os contornos dado RHBG, uma primeira questo a ser levantada envolve a escala de gesto, ou seja, refere-se ao fato de que a RHBG corresponde , pra camente, aos mesmos contornos geogrfi cos da RMRJ.

    (2) Para os autores, o territrio usado seria o prprio meio tcnico-cien fi co informacional que, em contextos metropolitanos, ganha dimenso e vitalidade devido aos ml plos usos e, sobretudo, disputa de usos.

    (3) Com apoio parcial do CNPq, edital CT-Hidro, sob orientao dos professores Henri Acselrad e Antnio Ioris.

    (4) O CNARH foi desenvolvido pela Agncia Nacional de guas (ANA), em parceria com autoridades estaduais gestoras de recursos hdricos. O obje vo principal permi r conhecer o universo dos usurios das guas superfi ciais e subterrneas em uma determinada rea, bacia ou mesmo em mbito nacional. O contedo do CNARH inclui informaes sobre a vazo u lizada, local de captao, denominao e localizao do curso d'gua, empreendimento do usurio, sua a vidade ou a interveno que pretende realizar, como derivao, captao e lanamento de efl uentes. O preenchimento do cadastro obrigatrio para pessoas sicas e jurdicas, de direito pblico e privado, que sejam usurias de recursos hdricos, sujeitas ou no outorga (ANA, 2003).

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