Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

105
Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles? Paulo Eduardo Zanettini Paulo Fernando Bava de Camargo Fábrica Santa Marina: embalagem de vasilhames com palha, ca.1910-1920 (BRANDÃO 1996: 55) CACOS E MAIS CACOS DE VIDRO: O QUE FAZER COM ELES?

Transcript of Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Page 1: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Paulo Eduardo Zanettini Paulo Fernando Bava de Camargo

Fábrica Santa Marina: embalagem de vasilhames com palha, ca.1910-1920 (BRANDÃO 1996: 55)

CACOS E MAIS CACOS DE VIDRO: O QUE FAZER COM ELES?

Page 2: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

ÍNDICE

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..........................................................................................4 Urgente: vidros ...............................................................................................................4 Um longo caminho a percorrer......................................................................................5 De Murano à Santa Marina .............................................................................................6

2. CARACTERÍSTICAS DO VIDRO....................................................................................8 3. TECNOLOGIAS DE PRODUÇÃO: AS TÉCNICAS E SEUS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS ........................................................................................................10

3.1. Tecnologia Manual.................................................................................................11 3.1.1. Artefatos produzidos a partir de sopro humano sem o auxílio de moldes (Séculos XVI-XVIII) ......................................................................................................11 3.1.2. Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de moldes (Séculos XVIII-XX) .......................................................................................................13 3.1.3. Marcas de pontéis..............................................................................................15 3.1.4. Finalizando os vasilhames: gargalos .................................................................17 3.1.5. Marcas de moldes..............................................................................................19 3.1.6. Eliminando marcas de fabricação ......................................................................25 3.1.7. Logomarcas de fabricantes ou produtos ............................................................26 3.1.8. Outras características ........................................................................................28

3.2. Tecnologia Mecânica.............................................................................................30 3.2.1. Prelúdio: máquinas compostas ..........................................................................30 3.2.2. Aspectos da produção semi-automática e automática.......................................31 3.2.3. Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns problemas .......35 3.2.4. Formas, cores e vedações: estandartização da produção.................................38 3.2.5. Comentários finais .............................................................................................42

4. REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO BRASIL................................44

4.1. Primórdios..............................................................................................................44 4.2. O vidro no Brasil a partir do século XIX ..............................................................47

4.2.1. Primeiro Período (1808 – 1890/1900) ................................................................48 Produção ..................................................................................................................48 Mão-de-obra .............................................................................................................49 Técnicas e tecnologias .............................................................................................51 Técnicas e tecnologias: o caso estrangeiro ..............................................................52 Distribuição e consumo.............................................................................................55

4.2.2. Segundo Período (1890/1900 – 1950) ...............................................................58 Matérias-primas ........................................................................................................58 Mão-de-obra .............................................................................................................58 Técnicas e tecnologias .............................................................................................59 Técnicas e tecnologias: o exterior.............................................................................60 Distribuição e consumo.............................................................................................62

2

Page 3: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

ÍNDICE (cont.) 5. DATAÇÃO DE RECIPIENTES DE VIDRO E ORIGEM.................................................65

5.1. Análise química: exemplo de caso.......................................................................65 5.1.1. Análise química evitando equívocos ..................................................................67

5.2. Método prático para análise em laboratório........................................................68 5.2.1. Procedimentos ...................................................................................................69

5.3. Produção e deposição: chave de datação e processos intervenientes............72 6. ESTUDOS DE CASO ....................................................................................................74

6.1. Ficha de análise e sua aplicação..........................................................................74 6.2. Museu da Energia, Itu, SP .....................................................................................74

Breve histórico .............................................................................................................74 Resultados ...................................................................................................................75

6.3. Um lixão da segunda metade do século XX. Salvamento Arqueológico do sítio Villa Branca (SP-JA-04), Jacareí, SP ...........................................................................77

Breve histórico .............................................................................................................77 Resultados ...................................................................................................................79 6.3.1. Logomarcas de fabricantes................................................................................81 6.3.2. Logomarcas de produtos ...................................................................................82

6.4. Parque Estadual de Canudos, Bahia....................................................................87 7. BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................91 8. BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE VIDRO COMENTADA ............................................96 9. ANEXOS......................................................................................................................101

3

Page 4: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Urgente: vidros

O objetivo deste manual, lançado pela primeira vez em 1999, é oferecer à comunidade

arqueológica uma modesta contribuição para a constituição de um quadro referencial de

análise de artefatos de vidro resgatados de sítios histórico-arqueológicos no Brasil,

estimulando a discussão e o aprofundamento do tema, tendo em vista a escassez de

trabalhos do gênero no país. Porém, antes de respondermos à pergunta "o que fazer com

eles?", torna-se necessário identificar os cacos de vidro, caracterizá-los com maior

propriedade, datá-los, obter seu atestado de origem e assim por diante...

A par dos diversos trabalhos dedicados às louças nestas duas últimas décadas, os vidros

foram deixados de lado ou pouco explorados pelos arqueólogos brasileiros, replicando

uma tendência observada na produção norte-americana, com a qual vimos mantendo um

diálogo mais estreito. "Historical archaeologists seem fascinated with ceramics,

sometimes to the exclusion of other important categories of artifacts. Bottle glass, for

example, which lacks the visual and perhaps tactile appeal, provide us with data for

studying chronology, function or both the individual artifact (such as a bottle to hold wine)

and the group use of the object (such as social drinking), and trade networks" (BAUGHER-

PERLIN 1988: 119).

No decorrer da pesquisa, entretanto, tomamos conhecimento de outras iniciativas

análogas, em especial as que estavam a cargo dos arqueólogos Luis Cláudio P. Symanski

e Marcos André T. Souza, que prontamente nos remeteram artigos, até aquele momento

inéditos, que continham informações de grande valiai.

No nosso entender, essa simultaneidade de iniciativas isoladas deixava expressa a

necessidade de se aprofundar a temática e, desde o primeiro lançamento de “Cacos e

mais Cacos”, temos notado uma maior preocupação com o estudo dos artefatos de vidro.

Por outro lado, todos os pesquisadores contatados foram consoantes e unânimes,

concordando num aspecto: o tema teria que ser abordado no Congresso da SAB, em

setembro daquele ano.

4

Page 5: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

De lá para cá parece que os vidros arqueológicos vêm sendo tratados de forma mais

consistente, oferecendo interpretações mais ricas sobre o nosso passado. Talvez agora,

às vésperas de mais um encontro bi-anual da SAB fosse o momento de, novamente,

arqueólogos de todo o Brasil trocarem experiências a respeito do tema.

Um longo caminho a percorrer

Vimos nos perguntando há algum tempo como explorar com maior propriedade o

potencial oferecido por esta categoria de artefatos. Nos anos 1980, vimos-nos às voltas

com o estudo de vasilhames abandonados pelas tropas do governo no palco de

operações da Guerra de Canudos (1897), redigindo algumas impropriedades a respeito.

Contávamos à época, em nosso laboratório em pleno sertão, apenas com as referências

e classificações produzidas pelos pioneiros norte-americanos. Já no início da década de

1990, estimulados pela arqueóloga Tânia Andrade Lima, demos mais alguns passos,

debruçando-nos sobre a vidraria coletada à margem da Calçada de Lorena, na Serra do

Mar. Infelizmente, por motivos de força maior tivemos que nos afastar por completo da

Arqueologia, interrompendo a investigação.

Passados alguns anos, de volta ao campo, sentimo-nos motivados a retomar o assunto,

contando para essa tarefa com o auxílio e entusiasmo do então mestrando em

Arqueologia Paulo Fernando Bava de Camargo.

Assim, durante cerca de seis meses, navegamos pelo universo da produção vidreira,

buscando referências que permitissem abrir as portas para o diálogo com garrafas,

frascos, elementos construtivos (vidraças, por exemplo), resgatados em diversos novos

contextos com os quais passamos a lidar.

Quais traços presentes nas coleções de vidros recuperadas em solo brasileiro seriam

capazes de nos informar acerca de sua fabricação, origem e função? De olho na

produção analítica, almejávamos inicialmente "criar" uma chave de datação absoluta, à

imagem daquela concebida por T. Stell Newman (1970) para garrafas norte-americanas

produzidas a partir do século XIX.

5

Page 6: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Com o andamento da pesquisa percebemos que seria necessário ir mais adiante, para

além da tradução ou transposição mecânica do conhecimento acumulado pelos norte-

americanos durante os últimos 40 anos, aliás, hoje, de fácil acesso, reunido em sua mais

significativa porção em CD-ROMs da Society for Historical Archaeology.

Passamos, então, a indagar especialistas no Brasil e Exterior, efetuamos visitas a fábricas

e ateliês de artistas vidreiros, adentramos nos sites das organizações de classe e

colecionadores e recolhemos um grande volume de informações. A partir daí, repletos de

novos dados, retornamos ao exame de exemplares de algumas coleções arqueológicasii.

Concluído o artigo, percebemos que havíamos deixado muita coisa de fora, vendo-nos

envolvidos na tradicional atmosfera de insatisfação. Embora essa sensação tenha sido

parcialmente desvanecida pela aplicação dos parâmetros de análise sistematizados há

seis anos, em diversos outros contextos arqueológicos, resta ainda muito a ser feito.

Assim, forçosamente já demos início a próxima empreitada, dedicada à sistematização da

produção vidreira européia, notadamente da portuguesa, da francesa e, obviamente, da

brasileira.

De Murano à Santa Marina

Após a difusão dos segredos guardados a sete chaves na ilha de Murano, a técnica de

produção de vidros difundiu-se por toda a Europa a partir da França, passando a

conhecer sucessivas mudanças desde o seu estágio artesanal até a etapa de produção

em escala industrial e automatizada, processo esse iniciado por volta de 1820, marco

temporal adequado à França, Alemanha, Inglaterra e EUA, líderes em tecnologia vidreira.

Nesses países, o consumo crescente assegurou uma veloz superação e substituição de

tecnologia, deixando esses câmbios expressos na produção e nos registros

arqueológicos.

6

Page 7: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

No Brasil, ao contrário do que ocorreu na América do Norte, onde o vidro passou a ser

produzido na Virgínia, a partir de 1609, por exemplo, as primeiras tentativas frustradas se

deram no início do século XIX, ganhando o parque manufatureiro de vidro alguma

expressão apenas no final daquele século. A sua vez, já no século XX, a indústria

nacional se viu subordinada aos processos tecnológicos determinados por inputs gerados

a partir das nações industrializadas.

Por outro lado, a adoção de novas tecnologias não implicou, no caso da indústria vidreira

brasileira, no abandono de técnicas mais rudimentares, tal qual se observa nos centros de

maior dinamismo, sendo possível presenciar um convívio harmônico de processos de

fabricação que nos remetem simultaneamente tanto às tecnologias desenvolvidas no

decorrer do século XIX, como aos processos automatizados de produção. Basta observar

as prateleiras de uma farmácia para divisarmos, lado-a-lado, frascos confeccionados a

partir de moldes e processos manuais e semi-automáticos, até aqueles gerados pelas

sofisticadas tecnologias industriais, hoje monopólio de algumas poucas multinacionais

com a Saint Gobain, Corning, Pilkington e Guardian, dentre outras.

Assim, ainda em 1999 observávamos a existência, no Estado de São Paulo, o mais

industrializado do país, de pequenas manufaturas que sobreviviam produzindo utensílios

com técnicas, processos de trabalho e equipamentos originalmente concebidos e

desenvolvidos no século XIX.

Por último, no decorrer da pesquisa constatamos que, dentre outras particularidades, via

de regra impera o desinteresse e a despreocupação por parte dos fabricantes no trato e

preservação da memória da indústria vidreira nacional: produtos, amostras, maquinários,

registros de fábrica, salvo raras iniciativas, acabaram desaparecendo por completo, ou

pior, foram submetidos ao sucateamento e sistematicamente destruídosiii.

Quiçá resida aí a ausência de motivação para a construção de uma história brasileira do

vidro, restando aos arqueólogos a tarefa de escrevê-la a partir de cacos e mais cacos...

7

Page 8: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

2. CARACTERÍSTICAS DO VIDRO

Em linhas gerais, o vidro é definido pela American Society for the Testing of Materials

(ASTM) como "um material inorgânico formado pelo processo de fusão, que foi resfriado a

uma condição rígida, sem cristalizar"iv.

Os ingredientes, fundidos sob calor extremo, podem ter em sua composição, praticamente

todos os elementos básicos existentes na superfície da Terra. Com a combinação de 99

elementos, a indústria vidreira já desenvolveu mais de 50 mil fórmulas de produção de

vidro.

O vidro exige elementos vitrificantes, fundentes e estabilizantes. Atua como vitrificante a

sílica, introduzida na forma de areia; como fundente, a soda ou potássio, em forma de

sulfato ou carbonato e a cal, em forma de carbonato, é a responsável pela resistência

maior aos ataques de água, estando estes componentes básicos presentes na

composição dos vidros desde a Antigüidade como é possível observar na tabela a seguir.

Composição química do vidro ao longo da História (NF, 1981)

Componentes/Procedências Sílica Cal Potássio Soda Magnésio

Óxido de

ferro/

alumínio

Outros

Egito (XIIª. Dinastia) 68,3 4,9 2 20,2 1 3,2 0,4

Pompéia (79 DC) 69,4 7,3 - 17,2 - 3,7 2,4

Arábia (s. VIII DC) 68 2,6 23,4 - 0,9 4,2 0,9

Veneza (Idade Média) 68,6 11 6,9 8,1 2 1,5 1,9

Cristal Saint Gobain 72,1 12,2 - 15,7 3,8 - -

Na atualidade o vidro conhecido como float glass, produzido em escala industrial, é

resultante da seguinte composição, das quais cem partes de mistura geram 83 partes de

vidro e dezessete partes de perda por volatilização, sendo 72% de sílica, 0,7% de

alumina, 10,7% de cal, 2,6% de magnésio, 13,5% de soda e 0,5% de anidrido sulfuroso.

O ser humano aprendeu a acrescentar a esta composição, quantidades variáveis de

outros elementos que afetam sua cor final, processo adotado com maior intensidade na

produção vidreira a partir do primeiro quartel do século XIX. A introdução de particulares

8

Page 9: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

compostos metálicos, soltos ou dispersos na massa ainda no estado coloidal, permite ao

vidro uma capacidade de absorção seletiva da radiação luminosa, dando origem a cor. O

óxido de cobre gera o rosa-violeta; o óxido de cobalto, o azul intenso; o ouro coloidal

produz variantes de rosa a púrpura; o selênio e o cádmio matizes de vermelho a amarelo-

alaranjado, e assim por diante.

A fusão do vidro ocorre aos 1400/ 1600°C aproximadamente (o maquinário moderno

opera em 1550°C). Após a fusão dos ingredientes, a massa é submetida ao resfriamento

e quando chega aos 900°C adquire uma condição maleável, permitindo sua manipulação.

A partir desse momento, artesãos munidos de seus instrumentos próprios (ponteios,

tesouras, grampos, garras e moldes) aliam sensibilidade e técnica, dando forma às mais

inusitadas peças e utensílios para o dia-a-dia há pelo menos 7 mil anos.

Assim, vemos-nos diante de dois caminhos para a análise do vidro, a nosso ver,

complementares, e não excludentes: de um lado, o aprofundamento do conhecimento

tendo como matéria-prima o estudo quantitativo e qualitativo de composições químicas de

massas vítreas e suas nuances, "única forma segura de identificar e datar artefatos de

vidro", tal qual defende o verrier Pierre Frisch; e de outro, o estudo dos traços derivados

das diferentes técnicas de produção desenvolvidas ao longo do tempo, tema tratado a

seguir.

9

Page 10: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

3. TECNOLOGIAS DE PRODUÇÃO: AS TÉCNICAS E SEUS TRAÇOS

CARACTERÍSTICOS

Passemos agora à descrição de alguns processos e técnicas de fabricação de artefatos

de vidro – sobretudo aqueles adotados para a produção de garrafas e frascos, os

utensílios mais recorrentes nos sítios histórico-arqueológicos – bem como os respectivos

traços de manufatura neles deixados. Note-se que as técnicas que deixaram suas marcas

nos restos materiais, do ponto de vista cronológico estão mais bem adaptadas aos

contextos da América do Norte e adjacências, uma vez que a sistematização do

conhecimento arqueológico sobre o vidro no Novo Mundo decorre principalmente de

pesquisas realizadas nessas regiões. Porém, sempre que possível, reportamo-nos a

contextos arqueológicos brasileiros e técnicas vidreiras utilizadas aqui ou em países

culturalmente muito próximos ao Brasil (França e Portugal). É importante lembrar que há

grande disparidade entre a qualidade das fontes de informação, de forma que as técnicas

usadas no Brasil, Portugal e França, ou não são contempladas pela literatura

arqueológica norte-americana e inglesa, ou entram em conflito com a mesma,

principalmente no quesito cronológico. De qualquer modo, o conhecimento arqueológico

anglo-saxão deve servir de ponto de partida para que comecemos a analisar os vidros

presentes nos sítios arqueológicos brasileiros e para que elaboremos parâmetros cada

vez mais convenientes para estudar os restos materiais ligados às nossas condições

sociais e culturais.

10

Page 11: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

3.1. Tecnologia Manual

3.1.1. Artefatos produzidos a partir de sopro humano sem o auxílio de moldes (Séculos

XVI-XVIII)

Raros e bastante fragmentados nos sítios histórico-arqueológicos originados a partir de

assentamentos dos primeiros séculos, os restos vítreos nos fornecem escassas

informações codificadas em diminutos cacos de coloração verde oliva, opacos e pouco

translúcidos, muitas vezes apresentando uma superfície iridescentev.

Também vimos essa situação de escassez de objetos de vidro se repetir, em um contexto

bem diverso daquele presente em São Paulo dos primeiros séculos de conquista/

colonização, durante o reconhecimento arqueológico realizado nas imediações das ruínas

da casa sede da sesmaria de Garcia D'Ávila (praia do Forte, Bahia), edificação

originalmente erguida no século XVI e ocupada até meados do século XX (ECOPLAM e

CEEC-UNEB 1998).

Nos níveis mais antigos, ao lado de centenas de fragmentos de louça vidrada, faianças e

porcelanas chinesas identificamos apenas um fragmento de vidro, possivelmente de um

cálice. Obviamente, os cacos de vidro estão muito bem representados em estratos

relativos em depósitos derivados da ocupação do Castelo em épocas posteriores. O

mesmo padrão de ocorrência repetiu-se no refugo do convento carmelita de

Massarandupió (BA), erguido durante o século XVII (ROBRAHN-GONZALEZ e

ZANETTINI 1997). Em ambos os casos, borbotaram as louças as louças de vidrado à

base de chumbo e as tradicionais faianças ibéricas decoradas com elementos estilísticos

tomados da Chinavi.

Ao que parece, tanto no ambiente bandeirantino rural, como no monacal e palaciano (os

D'Ávila foram possuidores da maior sesmaria que já existiu no período colonial), os

utensílios vítreos custaram algum tempo para ocupar lugar no interior das casas de

morada e à mesa dos grandes senhorios. Os containeres de barro, de madeira e de ferro

se adequavam melhor às longas travessias oceânicas, assegurando o transporte dos

gêneros e víveres da metrópole aos primeiros colonizadores.

11

Page 12: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Ao que tudo indica esse padrão de deposição só poderia ter se alterado em contextos

arqueológicos relacionados às primeiras décadas do século XVII, quando os Estados da

atual região Nordeste tiveram seu primeiro surto vidreiro, estimulado pelas práticas

adotadas durante o domínio holandês. Embora haja grande número de escavações de

sítios relacionados a esse período – forte das Cinco Pontas, PE (MELLO NETO 1983);

forte Real do Bom Jesus, PE (ALBUQUERQUE e LUCENA 1997, com referências

anteriores); aldeamento de Vila Flor, RN (MARTIN 1988; ALBUQUERQUE, 1991) – neles

não houve o interesse específico em se esmiuçar as questões relacionadas à produção e

consumo de utensílios de vidro nessa época.

Os artefatos desse período eram confeccionados a partir do sopro humano, sem o auxílio

de moldes, podendo ou não apresentar marcas de pontel, uma vez que estas podem ter

sido suprimidas, ou com fogo, ou com polimento (Figura 1).

Figura 1 – Banco de vidreiro (França, século XX). Abaixo, vidreiro finaliza garrafa (ilustração de 1772) (HIER, 1980: 43).

12

Page 13: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Diante do exposto, temos muito pouco a acrescentar sobre vasilhames e utensílios de

mesa trazidos do além-mar ou eventualmente fabricados colônia, permanecendo no

aguardo da publicação dos resultados das pesquisas de sítios quinhentistas e

seiscentistas ora em curso em todo o litoral do Nordeste.

Outros objetos existentes nos sítios formados nos primeiros anos da conquista/

colonização são as miçangas de vidro. Tanto nas narrativas históricas, quanto na

distribuição desses artefatos nos sítios arqueológicos é possível perceber o impacto inicial

causado pelos pequenos objetos de vidro trazidos na bagagem dos colonizadores a partir

de 1500, e que foram utilizados como "moeda", instrumento de barganha, e acabaram por

se transformar em testemunhos cabais e indicadores seguros dos processos de contato

interétnico entre o europeu e o indígena.

3.1.2. Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de moldes (Séculos

XVIII-XX)

Apesar de encontrarmos objetos de vidro produzidos a partir do sopro humano da massa

vítrea, sem o auxílio de moldes, em sítios datados de desde os primórdios do

Descobrimento (alguns raros cacos atribuíveis a garrafões, copos, pés de taças, contas,

etc.), eles se tornam sensivelmente mais freqüentes em contextos arqueológicos

originados por ocupações de fins do século XVII em diante, em grande parte pelos

incrementos das fundições metalúrgicas inglesas, que indiretamente derivaram no

desenvolvimento de fornos mais eficientes para a produção de porcelana e de vidro. Um

outro fator a ser estudado é a criação da fábrica do Covo, no Porto (1690), a qual ainda

estava em produção no início do século XX (PROSTES 1908: 5).

13

Page 14: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Mas a freqüência de objetos de vidro só se torna um padrão arqueológico significativo

quando vemos entrar em cena, no decorrer do século XVIII, talvez um pouco antes, os

artefatos europeus soprados e finalizados em formas ou moldes. Esses artefatos, os

quais passaram a ser trazidos em maiores quantidades ao Brasil, eram produzidos de

acordo com o seguinte processo:

1. A massa vítrea, com o auxílio de um tubo ou cana (esta última, denominação mais

usual), era soprada, gerando um bulbo que era submetido a uma pré-modelagem

por meio da rotação do mesmo sobre uma prancha, ganhando uma forma

preliminar (parison). Este era então introduzido em um molde e novamente

soprado, assegurando um aspecto mais regular ao corpo ou ao recipiente inteiro.

Esses moldes poderiam ser inteiriços ou constituídos por duas ou três partes e os

materiais mais comuns para sua elaboração eram o metal, a madeira revestida

com cortiça e a cerâmica refratária.

2. A operação seguinte consistia na retirada do recipiente, ainda fixado à cana de

soprar, de dentro do molde, passando-se ao reforço da base por meio de pressão

aplicada com um molete de ferro ou outro material. Produzia-se então o chamado

fond piqué, ou fundo picado, traço característico até hoje nos vasilhames industriais

automáticos de várias marcas de vinhos, sobretudo de vinhos espumantes,

havendo inúmeras discussões sobre a real finalidade dessa operação (ver, por

exemplo, JONES 1971).

3. Feito o reforço da base, procedia-se à operação de estruturação da boca ou

gargalo do recipiente através da aplicação de um reforço de vidro, semelhante a

uma tira. Para tal operação, o recipiente precisava ser sustentado por um pontel

fixado à base.

14

Page 15: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Quais são as marcas derivadas dessas operações?

Os primeiros estudos norte-americanos dedicados a essa questão datam da década de

1960 e início dos anos 70, tais como o The Glass Wine Bottle in Colonial America (1961) e

o já clássico A Guide to Artifacts of Colonial America (1986 [1970]), ambos de Ivor N.

Hume. Não menos importantes são os artigos do periódico Historical Archaeology de

autoria de Dessamae Lorrain (1968) e Olive Jones (1971).

Esses autores se dedicaram longamente à análise dos traços derivados do processo de

fabricação sumariamente descrito, identificando e criando tipologias para as marcas

deixadas pela operação de reforço da base (push-ups) e para a sustentação dos

recipientes pelos pontéis (pontil-marks), além dos sinais deixados pelos moldes,

estabelecendo datas para o início e término do uso de cada técnica na cadeia produtiva.

Por sua vez, o mercado norte-americano de vidros antigos impulsionou, a partir dos anos

1980, um grande aprofundamento do tema. Como resultado, temos hoje inúmeras

organizações, publicações temáticas, manuais, sites de intercambio de informações e de

negócios. Também no Brasil vimos surgir, mais recentemente, um ativo mercado de

vidros antigos. Há que se destacar que nem sempre essas atividades estão associadas à

legalidade e à preservação dos bens culturais, entretanto, é dever do arqueólogo não

fechar os olhos a essas práticas, mas propor alternativas que garantam o cumprimento

das leis e a satisfação desse questionável fetiche colecionista.

3.1.3. Marcas de pontéis

Conforme mencionado, artífices da Europa e América do Norte munidos de pontéis

afixados aos vasilhames podiam realizar a finalização e reforço dos gargalos. Ao término

dessa operação, a garrafa era liberada do pontel, restando no fundo do recipiente traços

da incisão/ colagem do instrumento, derivados aos resíduos do ponto de contato do

mesmo com o recipiente. Esses bastões, de acordo com os estudos citados

anteriormente, podiam ser feitos, ou com madeira, ou com vidro, ou com metal, sendo

estes últimos os que possivelmente legaram as marcas mais recorrentes nas bases de

garrafas encontradas em todo o território brasileiro (Figura 2).

15

Page 16: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 2 – Acima, ilustração com diversos tipos de pontel: em vidro; com areia, a própria cana e, por último, o pontel de ferro (JONES 1971: 69).

A técnica do pontel entra em declínio nos EUA a partir de 1850/60 com a introdução de

um novo instrumento para sustentação do recipiente: o snap-case, garra de fixação que

envolvia o corpo do objeto, permitindo a finalização dele. Com a introdução e difusão

dessa ferramenta, o fundo das garrafas se viu liberto da ação e efeitos dos pontéis,

cedendo paulatinamente espaço para a inserção de inscrições (capacidade, nome da

fábrica ou ateliê, etc.). No caso da produção norte-americana, o abandono do pontel é

concomitante ao final da Guerra de Secessão (1860-1865), uma provável conseqüência

das mudanças ocorridas na indústria voltada para o esforço de guerravii (Figura 3).

16

Page 17: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

(Figura 3 – Snap-case ou garra de fixação, ferramenta introduzida no final da década de 1850 nos EUA (MENDES e RODRIGUES 1992: 142).

3.1.4. Finalizando os vasilhames: gargalos

Outro traço bastante evidente, decorrente do processo manual de fabrico em molde é a

adoção de reforço da boca da garrafa, envolvendo a aplicação a posteriori de uma

pequena parcela de vidro (tira) ao redor do gargalo, garantindo o fortalecimento dessa

parte do artefato para receber, ou rolhas de cortiça, ou couro, ou pano, estes dois últimos,

embebidos em parafina. A partir de 1860 alguns recipientes passaram a ter seus gargalos

feitos à parte, sendo posteriormente colados ao corpo, numa das primeiras tentativas de

estabelecer uma proto “linha de montagem” (Figura 4).

17

Page 18: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

(Figura 4 – Gargalos com tiras de reforço, oriundos de garrafas produzidas em molde inteiriço (ZANETTINI 1998: 129).

Entre 1830/40 surgem diversos tipos de ferramentas que possibilitam um melhor

acabamento dos gargalos (POLAK 1997: 20-21). Ao invés das bocas receberem toscas

tiras de vidro como reforço, a partir desse momento uma segunda camada de vidro passa

a ser aplicada nelas, as quais são torneadas com ferramentas conhecidas como ferros de

tornear ou marisar até adquirirem formatos parecidos com os que vemos hoje. Há

manuais da indústria vidreira que não mencionam a aplicação de uma segunda camada

de vidro à boca da garrafa a ser torneada (PROSTES 1908: 31). Esse tipo de acabamento

continua em voga até o término da produção manual (Figura 5a e b).

Figura 5a e b – Acima, dois tipos distintos de alicates ou ferros de marisar (a, PROSTES 1908: 31) (b, POLAK 1997: 221).

18

Page 19: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Os gargalos torneados com ferros de marisar apresentam traços horizontais ao longo de

suas superfície – tal como os sulcos dos antigos discos de vinil – decorrentes do contato

do metal frio da ferramenta com o vidro quente. Uma outra marca característica desse tipo

de gargalo, mas que nem sempre é perceptível, é um sulco no interior do mesmo, bem na

área final de contato da ferramenta com o pescoço do recipiente, talvez decorrente de

alguns tipos de alicates de marisar que produziam gargalos mais elaborados.

Finalmente, os gargalos produzidos em separado dos recipientes legaram duas marcas

paralelas, bem nas áreas de colagem deles com os pescoços. Essas marcas, entretanto,

não são muito comuns de serem encontradas nos objetos exumados dos contextos

arqueológicos brasileiros, o que nos leva a crer que esse tipo de técnica não foi muito

comum na produção destinada ou originada no Brasil.

3.1.5. Marcas de moldes

A delimitação temporal do uso de moldes é bastante complexa, levando os autores

especializados a entrar em conflito. Segundo Lorrain (1968), o molde inteiriço ou único

teria sido largamente usado entre 1790 e 1810. Os outros dois tipos – molde duplo ou

bifásico e molde triplo ou trifásico – teriam surgido por volta de 1810, sendo utilizados

concomitantemente até 1840/50, quando o trifásico cai em desuso. Já o bifásico teria

permanecido em uso até o fim da produção manual.

Sherene Baugher-Perlin (1988) por sua vez coloca que os moldes inteiriços teriam sido

utilizados desde fins do século XVII até meados do século XIX; os duplos, de 1750 até

1880; e os triplos, de 1820 até 1860/ 70. Essa periodização nos parece mais adequada

para analisar o caso brasileiro, tal como pudemos constatar na Calçada do Lorena. É

desse extenso sítio paulista que provém o exemplar apresentado na figura 6. Através de

análise química de sua composição, a Frish Verrier apresentou um laudo (1993)

atestando que aquele fragmento é de uma garrafa produzida na França, no último quartel

do século XIX (ZANETTINI 1998), datação mais próxima à periodização proposta por

Baugher-Perlin (Figura 6).

19

Page 20: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 6 – Fundos de garrafas contendo marcas de pontel. Um dos exemplares permitiu a reconstituição da garrafa original (ZANETTINI 1998: 133).

Os moldes inteiriços – que poderiam ser apenas cilindros ou prismas com ambas ou

apenas uma das extremidades abertas – praticamente não deixavam marcas nos objetos,

gerando dúvidas com relação à sua identificação, uma vez que se assemelham àqueles

artefatos elaborados livremente, sem molde. A única marca que poderia persistir é aquela

decorrente do preenchimento total do molde. Nesse caso uma linha horizontal é

distinguível por todo o diâmetro da junção do corpo com os ombros (BAUGUER-PERLIN

1988: 262). Essa marca também é encontrada nas garrafas feitas com moldes trifásicos

(Figura 7a e b).

Figura 7a – Exemplo de marcas deixadas por molde inteiriço (BAUGUER-PERLIN 1988).

20

Page 21: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 7b – Vidreiro soprando garrafa em molde único de madeira (PROSTES 1908: 29).

Já os moldes triplos – que nada mais são do que a articulação de um molde inteiriço com

dois moldes longitudinais para os ombros e o pescoço – apresentam as marcas acima

descritas, além de dois riscos verticais, opostos, que partem da divisa do corpo com os

ombros chegando quase até o fim do gargalo, decorrentes justamente da união das

partes do molde que formam o topo da garrafa (LORRAIN, 1968; BAUGHER-PERLIN,

1988; POLAK, 1997) (Figura 8a e b).

21

Page 22: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 8a – Exemplo de marcas deixadas por molde triplo (BAUGUER-PERLIN 1988).

Figura 8b – Corte longitudinal em molde triplo unido por charneiras (PROSTES 1908: 31).

Uma característica comum aos artefatos confeccionados ou pelo molde inteiriço, ou pelo

molde triplo é que o diâmetro da base tende a ser menor que o diâmetro da interface

entre o corpo e os ombros dos recipientes. Segundo Appert e Henrivaux (1894) esse

aumento progressivo do diâmetro facilitava a retirada da garrafa do molde.

Outra característica em comum entre os artefatos feitos com esses tipos de moldes é a

presença, por vezes, de linhas espiraladas ao longo dos corpos dos mesmos. Embora

ainda sejam necessárias mais observações a respeito desse tipo de marca, deduz-se que

elas são provenientes de movimentos usados para tirar os recipientes de dentro dos

moldes, os quais são resultantes de um movimento de rotação associado a um

movimento de extração. Sem querer dar muitos nomes a coisas que, de tão corriqueiras

para os vidreiros, eram banais para serem por eles nomeadas, podemos chamar esses

traços de vestígios de extração com rotação. Pode estar aí uma das chaves para

diferenciar melhor, por exemplo, os artefatos feitos sem moldes dos feitos com moldes

inteiriços ou triplos, uma vez que as marcas entre uns e outros podem ser muito tênues.

22

Page 23: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Existe uma característica que pode às vezes sanar dúvidas quanto à técnica que se

utilizou na confecção de um artefato. Em alguns casos, quando temos muitos fragmentos

dos corpos de vasilhames e nenhuma base ou gargalo, não conseguimos estabelecer se

eles são provenientes de peças feitas com moldes inteiriços ou triplos ou se elas foram

elaboradas sem molde algum. Se dentre esses fragmentos houver alguns que têm a

aparência de “metal martelado”, então estes, apesar de não apresentarem os traços

característicos legados pelas junções dos moldes, foram fabricados com moldes que

estavam frios e foi essa particularidade que legou essa aparência (FRANK 1982). Isso

nem sempre ajuda, pois o objeto elaborado em seguida ao nosso objeto-exemplo

certamente não apresentaria essas características, porque o molde já estaria aquecido,

mas essa é uma dica que pode pelo menos apontar ao arqueólogo em qual direção seguir

(contexto da primeira ou da segunda metade do século XIX?, por exemplo).

Apesar de serem conhecidos desde meados do século XVIII, foi só em 1814 (patente de

1822) que a Ricketts Company, de Bristol, Inglaterra, atendendo à demanda do mercado

de bebidas alcoólicas como vinhos, cervejas, cidras, etc., conseguiu produzir um molde

duplo eficiente (LORRAIN 1968). Esse molde eliminou a fase de elaboração manual da

base da garrafa, o fond piqué ou push-up, pois o fundo já saia do mesmo com a forma

final. O processo desenvolvido por Henry Rickett também contribuiu para o

aprimoramento da produção de garrafas nos aspectos relacionados à estabilidade,

simetria e padronização de dimensões e medidas.

Os moldes duplos, grosso modo imprimem duas linhas verticais opostas, que correm da

base em direção ao gargalo do recipiente. Uma terceira linha marca a base do recipiente

diametralmente, unindo as demais. Posteriormente essa última linha deixa de existir,

porque os fabricantes passam a usar uma terceira parte nos moldes de duas partes (o

que soa como contra-senso): um disco para formar a base dos recipientes (BAUGHER-

PERLIN 1988: 262-264). Com o passar do tempo e conseqüente incremento técnico, as

marcas verticais passam a cada vez mais se aproximar do gargalo dos recipientes, fato

que indica que os fabricantes conseguiam produzir moldes cada vez mais bem ajustados,

possibilitando modelar uma maior porcentagem do recipiente, progressivamente

dispensando as finalizações feitas à mão livre (POLAK 1997: 20) (Figura 9a e b).

23

Page 24: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 9a – Exemplo de marcas deixadas por molde duplo (BAUGUER-PERLIN 1988).

Figura 9b – Seqüência do avanço das marcas deixadas em recipientes feitos com moldes duplos ao longo do tempo (válida para a produção dos EUA) (POLAK 1997: 20).

Finalizando este tópico, nunca podemos deixar de ter em mente que o conhecimento

arqueológico está sempre em construção. Como conseqüência, essas considerações

sobre cronologia do uso dos moldes também ficam sujeitas às análises dos diversos

contextos arqueológicos que têm sido localizados e estudados nos últimos anos,

principalmente com o incrível avanço da arqueologia de contrato. Com isso queremos

dizer que não podemos nos aferrar tanto às cronologias estrangeiras – elas são apenas o

ponto de partida.

24

Page 25: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Isso ficou bastante claro quando nos deparamos com uma grande quantidade de

fragmentos de vasilhames elaborados com moldes trifásicos em sítios arqueológicos

brasileiros das últimas décadas do século XIX ou início do século XX. Como veremos

adiante, esse tipo de molde foi usado em máquinas compostas acionadas manualmente,

as quais foram construídas durante os anos de transição do trabalho manual para o semi-

automático (APPERT e HENRIVAUX, 1894). Entretanto, a existência delas jamais é citada

em estudos dos países de língua inglesa.

3.1.6. Eliminando marcas de fabricação

Conforme já mencionado para objetos de vidro produzidos a partir do sopro humano livre,

vale aqui ressaltar que alguns vidreiros recorriam, por vezes, a processos de polimento a

fogo, a fim de extrair as indiscretas marcas deixadas pelos moldes e pelo processo de

fabricação. Esse procedimento ainda é bastante usual no caso dos cristais (tipo de vidro

que contém uma maior quantidade de chumbo em sua composição), que são melhor

acabados, não raro trazem a assinatura do verrier ou da fábrica e, consequentemente, de

valor substancialmente superior, destinado às classes mais afortunadas.

Na década de 1840 são desenvolvidas, no hemisfério norte anglo-saxão, técnicas que

permitem a eliminação das marcas indesejadas resultantes do contato da massa do vidro

quente com os moldes frios. Estes eram esquentados antes de receber a massa e/ ou

recebiam uma camada de cortiça que se queimava e dava tempo do molde esquentarviii.

No entanto, de acordo com os contextos arqueológicos brasileiros, esse padrão de

excelência parece que não foi sistematicamente aplicado na produção ordinária. Aliás, no

caso da produção de alguns tipos de recipientes, os que demandavam um rápido

resfriamento para formar uma têmpera forte, era mesmo necessário que o molde

estivesse frio (PROSTES 1908: 58).

Para os recipientes comuns, principalmente garrafas de bebidas alcoólicas, Evinson

patenteia, em 1879, um método para eliminar as marcas deixadas pelos moldes. Bastava

untar as faces internas deles com uma pasta especial que diminuía o atrito dos objetos

com as paredes metálicas dos moldes e, terminada a insuflação, rodavam-se os

recipientes ainda dentro das respectivas formas, fazendo com que as marcas sumissem

25

Page 26: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

(POLAK 1997: 12). Entretanto, algumas linhas horizontais intermitentes podem se formar

no corpo do vasilhame (BAUGHER-PERLIN 1988: 264).

Também concorrem para a eliminação de marcas de moldes processos de abrasão,

sendo comum encontrarmos outros continentes, tais como copos, produzidos no decorrer

do século XIX, submetidos a polimentos da base a frio. Esse processo é hoje utilizado

para reparos e para a extração de riscos em vidros planos, ou vidros do tipo cristal,

fabricados manualmente.

3.1.7. Logomarcas de fabricantes ou produtos

Recipientes feitos manualmente até 1850/60 não costumam conter logomarcas, pois foi

só com a difusão da garra de fixação (snap-case) que as superfícies externas das bases

ficaram sistematicamente livres das marcas dos pontéis sem a necessidade de uma outra

etapa – polimento – ser incluída no processo produtivo. Novamente fomos buscar um

exemplo na Calçada do Lorena, o qual não contém sinais de pontel mas apresenta iniciais

gravadas, possivelmente indicando ou o vidreiro, ou manufatura (ZANETTINI 1998)

(Figura 10).

Figura 10 – Base de garrafa cilíndrica, elaborada com tecnologia manual, onde estão impressas as iniciais “PF”. Calçada do Lorena, São Paulo (ZANETTINI 1998: 134).

Mas para toda a regra, há pelo menos uma exceção. Permitimos-nos estabelecer a

hipótese de que as incisões ou marcas em relevo – desenhos mais ou menos regulares

do tipo quadrifólio – situadas sob a marca deixada pela extração do pontel e que estão

quase sempre presentes nas garrafas de molde único tipo case bottles (JONES 1971),

tratar-se-iam, de fato, de logomarcas do vidreiro ou fabricante. A literatura arqueológica

atribui essa marca a qual nos referimos à operação de push-up mas, para realiza-la,

tendo-se em mente as etapas de produção ainda hoje seguidas pelos artesãos, não seria

26

Page 27: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

necessário um outro instrumento: o próprio pontel, invaginando a base, serviria para o

push up. Portanto, a marca quadrifólia poderia muito bem ser uma assinatura.

Ao que parece esse sinal descrito poderá contribuir para a identificação de garrafas

bastante comuns em solo brasileiro. Foram identificados exemplares desse tipo: no Rio

Grande, RSix; na fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, em Guarujá, SPx; na já

citada Calçada do Lorena; e foram achados dois exemplares de bases durante vistoria

que efetuamos à convite do IPHAN para a demarcação e tombamento do arraial de São

Francisco Xavier da Chapada (MT), erguido no primeiro quartel do século XVIII

(ZANETTINI 1991) (Figura 11).

Figura 11 – Base de garrafa, coletada em superfície, no arraial de São Francisco Xavier da Chapada. O artefato foi recolhido por um dos autores durante a demarcação desse sítio histórico-arqueológico.

Outro grande marco para o aparecimento das logomarcas, bem como da inclusão das

assinaturas ou das referências dos produtos contidos nos vasilhames é a difusão do uso

dos moldes, os quais podiam gravar elaboradas inscrições em milhares e milhares de

peças.

27

Page 28: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Para a identificação de logomarcas de fabricação contamos com o Glasmarken Lexicon,

de Carolus Hartmann, publicado pela Arnoldsche Art Publishers. O catálogo exibe 3000

logomarcas e nomes comerciais da Europa e dos EUA, abrangendo a produção vidreira

entre 1600 e 1945. Curiosamente, a Calçada do Lorena nos legou um isolador de vidro

para linha de transmissão elétrica cuja marca não estava contemplada no Lexicon. Esse

fato foi comunicado pelo engenheiro Pierre Frisch aos editores do catálogo para que eles

o incluíssem numa próxima edição.

3.1.8. Outras características

Em linhas gerais, garrafas elaboradas com sopro humano apresentam bases contendo

grandes quantidades de vidro (pesadas, se comparadas aos produtos mais recentes);

formatos irregulares e dissimétricos em relação ao seu eixo longitudinal. As raras garrafas

inteiras encontradas, quando postas em pé deixam evidentes os efeitos da interferência

humana direta na sua elaboração. No decorrer dos anos, outras técnicas de reforço da

base foram introduzidas passando a oferecer maior estabilidade aos recipientes,

notadamente às garrafas (Figuras 12 a, b e c).

Figuras 12 a e b – Bases de garrafas cilíndricas encontradas na Calçada do Lorena, apresentando fond piqué (ZANETTINI 1998: 141).

28

Page 29: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 12 c – Esquema de elaboração do fond piqué com o próprio pontel (PROSTES 1908: 31).

Outro traço característico observável em garrafas produzidas e utilizadas no decorrer dos

primeiros séculos de nossa colonização é a "coloração" natural que exibem,

predominando recipientes em tons e matizes diversos de verde ou âmbar, mais ou menos

translúcidos, decorrentes de impurezas presentes na composição das areias empregadas

(ver adiante).

Com base nesses atributos derivados da técnica de confecção, é possível identificar com

relativa facilidade garrafas produzidas no exterior e postas à venda nos mercados

coloniais a partir do século XVIII.

No caso norte-americano, após quatro décadas de exaustivos estudos sobre os push-ups,

pontil-marks, marcas de moldes e sobre a tipologia das formas finais dos vasilhames, aos

arqueólogos foi possível passar a explorar todo o potencial desses artefatos dentro das

mais diversas abordagens teóricas. Entretanto, mais uma vez ressaltamos que as datas

atribuídas para câmbios tecnológicos materializados nos artefatos manuais, precisamente

conhecidas no caso das vidrarias norte-americanas ou inglesas, não podem ser aplicadas

mecanicamente ao caso brasileiro.

29

Page 30: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

3.2. Tecnologia Mecânica

3.2.1. Prelúdio: máquinas compostas

No final do século XIX, na transição entre a produção industrial manual para a semi-

automação, uma série de mecanismos, já adotados há algum tempo naquela ocasião,

foram unidos e articulados em máquinas compostas, formando um capítulo bastante

interessante da história vidreira, mas pouco abordado pela literatura arqueológica ou

pelos historiadores do vidro.

Um exemplo desse tipo de máquina foi citado acima, a máquina descrita por Appert e

Henrivaux em fins do século XIX e que será apresentada mais adiante. Entretanto, ao que

tudo indica máquinas compostas existiram em praticamente todos os países e não eram

coisas extraordinárias nas vidrarias (PROSTES 1908: 31-32). Elas eram a resposta para

aumentar a produção e garantir o espaço dessas indústrias num mundo que ficava

extremamente competitivo. Essas máquinas diminuíam a quantidade de mão-de-obra

necessária no processo, mas ainda não possibilitavam o uso de operários não-

especializados, pois a fabricação continuava dependendo muito do saber fazer do

vidreiro.

O reflexo material disso é a sobrevida de marcas, tais como as deixadas pelos moldes

trifásicos, oriundas de técnicas que já não estavam mais em uso nos EUA ou Inglaterra,

em objetos produzidos na França, Espanha, Portugal, Argentina e Brasil, dentre outros.

30

Page 31: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

O significado disso transcende a discussão que muitas vezes toma conta dos manuais de

arqueologia: o avanço tecnológico e a evolução das técnicas numa seqüência normal e

ascendente. Ora, o que está em jogo na análise de contextos arqueológicos tais como os

brasileiros, são as relações sociais e as afinidades culturais. Apesar dos norte-americanos

e ingleses saírem à frente na produção semi-automática e automática, o que está

expresso nos sítios arqueológicos do Brasil são o consumo de cerveja nacional e vinhos

portugueses e franceses envasados em recipientes feitos nos países que produziram os

respectivos conteúdos. A presença norte-americana só será sentida com mais força após

a Segunda Guerra Mundial; até lá estaremos muito mais ligados à França que, para

compensar sua relativa defasagem tecnológica, exportava eficientemente padrões

culturais “de ponta”.

3.2.2. Aspectos da produção semi-automática e automática

É no decorrer do século XIX que observamos a transição do modo de produção artesanal

para o industrial. A partir daí, mas, principalmente, nas últimas décadas do século XIX,

que se impõem as produções semi-automáticas e automáticas, começando por EUA e

Inglaterra, depois se espalhando pelo mundo aforaxi.

Tanto a produção semi-automática quanto a automática partem do mesmo pressuposto:

ao contrário da produção manual, a parte feita no final, o gargalo, passa a ser feita em

primeiro lugar. Assim, a produção altamente mecanizada segue três passos (Figura 13).

Figura 13 – Esquematização de produção automatizada (MILLER e SULLIVAN 1984).

31

Page 32: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

1. A massa vítrea é despejada no molde do gargalo e do parison, sendo a partir daí

moldada, ou pela pressão do ar, ou pela sucção, ou pela pressão de êmbolo (press

blow), dando forma final ao gargalo e ao parison. O parison tem a função de

distribuir a massa para que ela comece a apresentar sua forma final: no caso de

uma garrafa, o parison alonga a massa dando-lhe formato levemente cilíndrico

(Figura 14);

2. Ainda com o molde do gargalo fixo no mesmo, o molde do parison é removido

(Figura 15);

3. O molde final junta-se ao molde do gargalo em torno do parison e então a garrafa é

soprada, pela pressão do ar, até atingir seu formato definitivo. É a partir do molde

final que são aplicadas as inscrições e elementos decorativos/ estilísticos que dão

identidades exigidas por um novo contexto de mercado a cada vasilhame/

conteúdo (Figura 16).

A grande diferença das semi-automáticas para as automáticas é que as primeiras

necessitavam que trabalhadores semi-especializados as alimentassem com a massa

derretida de vidro e as colocassem em movimento. As automáticas Owens, por exemplo,

eram construídas sobre os tanques de derretimento da massa e possuíam mecanismos

que dispensavam a alimentação manual, necessitando de pouco pessoal para seu

manuseio e manutenção. Cada máquina semi-automática precisava de uma equipe de

três operários.

32

Page 33: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

As primeiras máquinas semi-automáticas apareceram na década de 80 do século XIX.

Esse processo se iniciou com a patente da máquina semi-automática do norte-americano

Philip Arbogast, em 1881, mas que só começou a ter participação significativa na

elaboração de potes a partir de 1893. Quase na mesma época (1886), no Reino Unido,

Howard Ashley também desenvolvia uma máquina semi-automática para produzir

garrafas que, no entanto, só passou a ter expressiva parcela da produção a partir de 1899

(MILLER e SULLIVAN 1984: 85).

33

Page 34: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Mesmo com o aparecimento das automáticas Owens (patenteadas em 1903; início de

produção em 1904), as semi-automáticas permaneceram em uso porque:

1. A concessão de uso das máquinas Owens era muito cara;

2. As automáticas Owens só eram rentáveis produzindo grandes quantidades, sendo

que elas foram criadas em uma época em que as pequenas encomendas de

milhares de pequenos comerciantes, cada qual necessitando de um tipo diferente

de recipiente, movimentavam boa parte da indústria vidreira;

3. A última razão é que a demanda era tal que para atender ao mercado que ambas

as formas de produção tiveram espaço por um certo período de tempo. Após 1904

e até a primeira metade da década de 1920, o sistema de automação completa

passa a dominar nos países de ponta na produção vidreira.

Os custos elevados das máquinas Owens inviabilizavam para grande parte das

manufaturas a sua aquisição. Uma das soluções encontradas foi a de “automatizar” as

máquinas semi-automáticas com um sistema de alimentadores automáticos (feeders), os

quais transportavam a massa derretida até as máquinas sem a ajuda de operários. A

partir de 1915 vemos surgir diversos desses sistemas, apesar deles serem conhecidos

desde 1903. Entretanto, é só a partir da década de 1920 que eles começam a ocupar

espaço no mercado, superando, inclusive, as revolucionárias máquinas Owens. É

inclusive com o desenvolvimento dos alimentadores automáticos que começam a ser

produzidas máquinas automáticas mais simples, com menor capacidade de produção e

menor custo de fabricação. O desenvolvimento dos feeders foi tão importante para a

indústria vidreira que, de acordo com estimativas de especialistas do ramo, no início dos

anos 1970 mais de 90% da produção mundial de recipientes de vidro havia adotado essa

inovação.

Outra invenção voltada para o campo dos alimentadores, e que procurou solucionar os

problemas da recém-criada automação, foi o desenvolvimento de um tipo de máquina

com muitos moldes que não necessitava ser totalmente parada para que fossem trocados

um ou alguns moldes. É no ano de 1925, que Henry Ingle, da Hartford Empire Company,

desenvolve as máquinas I. S. (Individual Section). Nessa máquina cada seção (que era

34

Page 35: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

constituída por maquinismos que desenvolviam as três fases da produção) podia ser

parada individualmente, sem prejudicar o funcionamento das outras. Essas máquinas

tiveram imenso sucesso, sendo vendidas para todo o mundo: a máquina Monish, da

empresa inglesa de mesmo nome, foi adotada em Portugal e a norte-americana Lynch foi

adquirida por empresas brasileiras tais como a Santa Marina. Essas máquinas mais

eficientes e mais baratas acabaram por tornar a produção automatizada predominante,

mesmo em países periféricos.

3.2.3. Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns problemas

Apesar dos equipamentos semi-automáticos e automáticos serem bastante distintos entre

si, sobretudo do ponto de vista da divisão do trabalho e, consequentemente, do

incremento que a segunda obteve em relação à primeira no tocante à capacidade de

produção X custos de produção, não há marcas diferenciadas entre os objetos feitos por

uma ou outra técnica.

Recipientes feitos por qualquer um dos processos possuem:

1 e 2) Uma ou duas marcas horizontais que contornam a junção do gargalo com o

pescoço, resultante(s) do molde específico para o mesmo. Para garrafas de bebidas, tais

como as de cerveja, essa marca pode ter sido eliminada pelo polimento a fogo. É

importante ressaltar que essa marca, isoladamente, não indica que o recipiente tenha sido

fabricado por qualquer uma das técnicas em questão: uma patente de 1860 deixa clara a

presença dessa marca em artefatos feitos manualmente, mas que tiveram os gargalos

feitos em um molde separado e depois colado ao pescoço do vasilhame.

3 e 4) Marcas verticais que percorrem o corpo da garrafa do gargalo até quase a base,

resultantes da união do molde duplo final. Podem existir marcas verticais pouco definidas,

paralelas às deixadas pelo molde final, decorrentes das partes do molde do parison.

5) E, por último, uma marca de confecção horizontal, um pouco acima da base, resultante

da união do molde duplo do corpo a forma que define a da base (lembrem-se do contra

senso!) (Figura 17).

35

Page 36: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 17 – Marcas deixadas pelos processos semi-automático e automático em uma garrafa (MILLER e SULLIVAN 1984).

De uma maneira geral os recipientes – íntegros e/ ou com inscrições – feitos por um ou

outro processo só podem ser diferenciados através de catálogos de colecionadores ou

documentação primária obtida junto aos fabricantes. Porém, existem alguns sinais

passíveis de detecção no caso das máquinas automáticas, tais como as marcas

características deixadas pela máquina Owens, por exemplo: uma cicatriz de formato

circular, não alinhada com o centro da base, deixada pelas lâminas que cortam a massa

vítrea incandescente quando o molde já está cheio.

A outra marca típica dos recipientes feitos automaticamente é derivada do funcionamento

de uma válvula: um polígono polifacetado, pouco regular, que quase pode ser confundido

com uma circunferência, encontrado na superfície externa de bases de alguns tipos de

potes e garrafas de leite datados entre as décadas de 1930 e 1950.

36

Page 37: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Finalmente, contamos no caso brasileiro com uma mudança tecnológica recente que

elimina uma tênue marca deixada no corpo das garrafas produzidas automaticamente,

gerando uma perturbação na superfície dos recipientes denominada pressed-band plow.

A tecnologia Nero-Neck foi recentemente adquirida pela CIV e também adotada pela Saint

Gobain e CISPER. Esse avanço, ainda não contemplado pela literatura arqueológica,

oferece-nos desde já uma marcação para a diferenciação de garrafas automáticas feitas

antes e depois do final da década de 1990. Assim, quem sabe, num futuro próximo, as

chamadas “áreas perturbadas por acúmulo de entulho” poderão ser melhor situadas no

tempo...

Figura 18 – Tinteiro, frasco e garrafas encontradas em assentamentos de populações tradicionais litorâneas em Sauípe, BA (ROBRAHN-GONZÁLEZ e ZANETTINI 1997).

37

Page 38: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

3.2.4. Formas, cores e vedações: estandartização da produção

No final do século XIX, no que tange a diversidade de formas, cores e vedações, o quadro

delineado era o seguinte: qualquer negociante que desejasse possuir o seu recipiente

com formato exclusivo, mesmo que em pequenas quantidades, poderia obtê-lo. Contava

também com várias alternativas de vedação para os recipientes, mas não dispunha de

uma grande gama de cores, uma vez que as vidrarias dependiam muito de circunstâncias

naturais – areias com maior ou menor grau de impurezas – ou do acréscimo de minerais

pouco estáveis, tais como o magnésioxii.

A produção obtida com tecnologia manual era flexível o bastante para acomodar os

desejos de diversos pequenos empresários, independentemente das quantidades

encomendadas ou da qualidade do produto. Com a semi-automação e, principalmente,

com a automação, esse quadro muda forçosamente.

O desenvolvimento desses processos de produção não é um sintoma isolado, próprio da

indústria vidreira. Os outros ramos industriais também se automatizavam a fim de suprir

as demandas cada vez maiores. As fábricas de processamento de alimentos e de bebidas

investiam em tecnologia, tornando a produção mais rápida. No entanto, com a

automação, perdia-se a capacidade de diversificar. As pequenas demandas eram

eliminadas em detrimento dos grandes pedidos por vasilhames uniformes.

Dentro desse quadro de estandartização global é que vemos a indústria vidreira

simplificar as formas de seus produtos, eliminar boa parte das vedações possíveis, e se

render ao vidro incolor para uma grande parcela de embalagens. No final do século XIX e

início do XX, bastava aos negociantes desejosos em obter seus recipientes exclusivos,

com dizeres e tamanhos específicos, enviar às vidrarias uma cópia de seu sonho

entalhada em madeira. Para aqueles que não tivessem dinheiro suficiente para adquirir

seus moldes exclusivos, as fábricas davam a opção de utilizar moldes padronizados aos

quais eram acoplados dizeres tais como o nome do fabricante e o local de fabricação do

produto (plate molds). Com a chegada da automação, o número de vidrarias que realizava

esse serviço diminuiu. As únicas que atendiam essa parcela do mercado eram as poucas

fábricas manuais sobreviventes, que por sua vez continuaram mais um tempo no páreo

justamente porque atendiam aos pedidos exclusivos... ou bizarros.

38

Page 39: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Apesar desse sopro de vida, nos EUA, no decorrer dos anos 1920, quase já não mais

existiam fábricas que produzissem pequenas encomendas de recipientes específicos,

podendo contar com modelos exclusivos apenas as grandes empresas tais como a Coca-

Cola e a Heinz, já que suas encomendas excediam a casa das 14.400 garrafas, faixa

mínima da produção automática. Os pequenos compradores tinham que se contentar com

os recipientes "standard", diferenciando seus produtos com rótulos de papel.

Uma das razões que determinou o desaparecimento dos recipientes exóticos foi a

elevação dos custos para se fabricar os conjuntos de moldes das semi-automáticas e

automáticas, compostos por três moldes distintos: o do gargalo, o do parison e o final,

isso para cada tipo e para cada tamanho.

Outra razão deriva das exigências do mercado industrializado: produção seriada, sem

perda de tempo com a troca dos moldes. As máquinas Owens, que dominaram absolutas

o mercado até os anos 1920, eram imensas e produziam grandes quantidades. Se

apenas um molde tivesse que ser trocado, toda a máquina deveria ser parada. Daí, até o

molde e a máquina entrarem em sintonia, produzindo poucas peças rejeitáveis, ter-se-ia

desperdiçado um tempo precioso para o fabricante.

Além dos períodos de ajustes causarem peças de qualidade duvidosa, certos formatos de

recipientes geravam grande quantidade de produtos defeituosos, tais como os

quadrangulares ou os facetados. O domínio absoluto dos continentes cilíndricos se deu a

partir dessa condição da automação, sem contar as possibilidades de melhor

armazenamento, manuseio e transporte derivadas da ausência de arestas e cantos.

Mesmo no caso dos continentes cilíndricos, pequenas alterações das formas dos

produtos estandartizados também eram um problema para os fabricantes, pois elas

gastavam de 10 a 20% mais material, o que encarecia a produção e o produto final.

Além desses fatores inerentes à produção vidreira de larga escala, havia a pressão dos

fabricantes dos conteúdos para que fossem produzidos recipientes mais fáceis de serem

adaptados aos mecanismos das ações pré-envasamento: os continentes tinham que ser

lavados, rotulados, pasteurizados, vedados, etc., em larga escala, o que envolvia a

colocação dos mesmos em outras máquinas, as quais deveriam estar ajustadas aos

39

Page 40: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

diferentes tamanhos e formatos. Com a normatização dos recipientes essas tarefas foram

simplificadas, até certo ponto.

No caso das vedações esse processo é bem nítido: na produção manual existiam

diversos tipos de vedações, utilizadas nos inúmeros formatos e tamanhos de recipientes.

Com o aparecimento de máquinas semi-automáticas e automáticas e a estandartização

das formas dos recipientes, foram desaparecendo as tampas mais exóticas e se

consagraram as mais adaptáveis aos processos de confecção do vidro e de produção de

vedações em larga escala, na qual deveria prevalecer um encaixe preciso da tampa no

recipiente repetido milhares de vezes, sem variações. Na seleção automática das

vedações triunfaram as tampas de rosca, não importando a matéria-prima (alumínio,

plástico, etc.), as chapinhas metálicas (crown cap, patente inglesa de 1892) e as sempre

presentes rolhas.

Tendo em vista os fatores acima mencionados podemos traçar um quadro das mudanças

dos formatos dos recipientes. Primeiramente a produção em larga escala utilizou-se dos

antigos formatos, mais populares, mas concebidos para os recipientes feitos à mão,

fazendo com que os velhos e impopulares tipos fossem gradualmente desaparecendo na

medida em que também desapareciam as vidrarias manuais. Com o desenvolvimento da

automação e o aumento da competição entre as indústrias, esses formatos

conservadores de grande sucesso passam a ceder espaço aos novos tipos, concebidos já

dentro de um espírito artístico apropriado à produção em larga escala. No caso dos EUA,

as inovações estilísticas começam a aparecer no final dos anos 1920, início dos 30,

sofrendo um declínio a partir da Segunda Guerra. Na indústria brasileira, manifestações

de design especificamente industrial surgiram somente a partir da década de 1950.

No final do milênio passado e no início deste, a embalagem constitui um elemento chave

na construção de um produto final. A título de exemplo tomemos a multinacional Coca-

Cola. Fabricantes e produtores de embalagem vêm se dedicando há alguns anos à busca

de soluções técnicas e econômicas capazes de reverter a forma tradicional de envase

desse produto em alumínio, de forma a aplicar à lata o quase centenário vasilhame de

vidro, permitindo uma associação imediata ao conteúdo. Mais do que nunca, a

manutenção de formas perceptíveis para determinados conteúdos se torna fundamental

para a própria sobrevivência de produtos num mercado de grande escala, voraz e

competitivo. Haja vista o sal de fruta Eno, o Biotônico Fontoura, o Leite de Magnésia de

40

Page 41: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Phillips e assim por diante. Em todos esses casos o vidro se mostrou, nas últimas

décadas, menos competitivo, sendo substituído por embalagens plásticas. Porém, os

formatos originais dessas panacéias de amplo consumo tiveram que obrigatoriamente ser

mantidos.

Quanto às cores dos recipientes, ocorre uma mudança drástica. O predomínio do

transparente é indiscutível, ficando as outras cores reservadas para produtos que não

poderiam ser tão expostos à luz solar – caso dos vinhos tintos e cervejas em geral – ou

aqueles que já tinham uma imagem de produto definida junto ao público consumidor,

como no caso do frasco azul do Leite de Magnésia de Murray do começo do século XX,

substituído pelo de Phillips.

Com o incremento da indústria de processamento de alimentos, sobretudo durante as

décadas de 1950-1970, os fabricantes se devotaram à produção de continentes cada vez

mais translúcidos e/ ou transparentes, ampliando a visualização do produto, assim

percebida pelo consumidor como garantia da qualidade e integridade daquilo que foi

envasado – muito embora existam perigos ocultos pela boa aparência. Entretanto, no

início da automação da indústria vidreira, os métodos à disposição dela não eram

eficientes o bastante para gerar produtos de qualidade em larga escala.

A cor do vidro é determinada pela quantidade de impurezas – óxidos metálicos,

principalmente o de ferro – presentes em grande parte das areias. Dependendo da

saturação, os vidros variam de verde a âmbar. Antes da era da automação o vidreiro tinha

algumas alternativas para lidar com as cores de seus produtos: 1) aceitar a cor que

resultara da fusão, seja ela qual for; 2) clarear a massa através de uma melhor oxidação;

3) mascarar os efeitos das impurezas ferrosas com outros óxidos metálicos, como o

cobalto, por exemplo; 4) utilizar areias com o mínimo de ferro possível – solução mais

adotada; e, por último, 5) neutralizar um verde claro com o púrpura claro ou rosa do

magnésio (primeiro a ser utilizado) ou do selênio (que começou a ser utilizado por ser

mais estável e mais fácil de se trabalhar nas máquinas). É só com a aplicação do selênio

que a produção automática em larga escala de recipientes incolores ganha a qualidade

necessária. Anteriormente, com a aplicação do magnésio, elemento instável, os artefatos

que ficassem expostos ao sol por muito tempo tendiam a adquirir tonalidades de púrpura,

retornando a sua coloração inicial.

41

Page 42: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

3.2.5. Comentários finais

No âmbito do mundo capitalista a difusão do vidro está diretamente relacionada à

burguesia, que adota o vidro para si com grande entusiasmo, difundindo-o já na fase

avançada da primeira Revolução Industrial, com o desenvolvimento da navegação a

vapor e, sobretudo, com a ferrovia.

No decorrer do século XIX as vidraças e clarabóias invadiram não só os palácios, como

as edificações urbanas européias e brasileiras, respondendo no âmbito doméstico e no

universo do trabalho a novos processos de intermediação, amplificando ou mascarando a

comunicação nas áreas das cidades, permitindo um novo relacionamento diuturno de uma

classe em ascensão com os espaços de caráter público e seu domínio sobre eles. Ruas e

praças exigiram o uso de mangas de vidro para a proteção das chamas das luminárias,

que por sua vez garantiam o controle e manipulação dessas áreas à distância, sem a

necessidade da constante presença física de um guardião da ordem. Dentro das

residências cortesãs, os frascos de perfumes, as colônias, remédios e panacéias

destacam novos padrões de higiene; novos modos e rituais à mesa passam a ser

pontuados, integrando a louçaria à vidraria: cálices e copos, cada qual para uma bebida;

as próprias bebidas, cada uma num tipo de continente; os potes, trazendo novos hábitos e

sabores do além mar, assegurando aos artefatos de vidro sua posição e função no mundo

burguês ou, no caso do Brasil, no mundo aburguesado. Essa temática é minuciosamente

perseguida e explorada há mais de uma década pela arqueóloga Tania Andrade Lima

(1997, com referências anteriores) e, mais recentemente, pela nova safra de

pesquisadores sul-riograndenses, tais como Symanski (1998a; 1998b).

Mas esse domínio burguês sobre as propriedades do vidro, que veio com a

industrialização, também se vai com ela, na esteira da ascensão do processo produtivo

automático: a massificação do uso de artefatos de vidros torna-o banal para garantir o

controle da burguesia sobre o povo miúdo em geral. No caso brasileiro essa

popularização do vidro se dá com um descompasso de praticamente meio século em

relação aos países industrializados, apresentando vigor somente no decorrer do século

XX, mais precisamente após a Segunda Grande Guerra.

42

Page 43: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Tendo em vista esse processo apresentamos a seguir algumas referências para a

constituição de uma história do vidro no Brasil e suas relações com a produção

internacional, tema que será explorado com maior propriedade em novo artigo.

43

Page 44: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

4. REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO BRASIL

4.1. Primórdios

O vidro chega ao Brasil juntamente com os primeiros colonizadores europeus. Uma das

mercadorias utilizadas no escambo com o indígena eram as famosas miçangas feitas de

vidro, das quais alguns exemplares foram encontrados no sítio de contato interétnico

Mineração, em Iguape, litoral sul de São Paulo (Figura 19).

Figura 19 – Contas de vidro encontradas no sítio Mineração, Iguape, SP pela equipe da arqueóloga Maria Cristina M. Scatamacchia no início da década de 1990 (SCATAMACCHIA 1994). Escala desconhecida.

A manufatura das miçangas é feita da seguinte maneira: um bocado de massa de vidro,

após ser apanhado do cadinho é furado no meio; depois é pregado um pontel numa das

extremidades e essa massa é estirada até formar um tubo de vidro comprido, mas com

diâmetro muito reduzido. Esse tubo é seccionado e os pedaços, por sua vez, são cortados

em pedacinhos menores ainda, de acordo com o que se quer fazer – contas ou miçangas

cilíndricas. Os pedacinhos de vidro são então colocados dentro de tubos de metal cheios

de argila e pó de carvão para que os furinhos não se fechem com o reaquecimento. Esses

tubos são fechados nas extremidades e levados ao fogo, quando imprime-se movimentos

de rotação a eles de forma que os objetos lá dentro percam as arestas. Após esse

processo os artefatos perdem o brilho, que é recuperado com a imersão dos mesmos

sucessivas vezes em recipientes com areia e em recipientes com sêmea (flor da farinha)

(PROSTES 1908: 88-89).

A importância da fabricação das contas e miçangas e do uso delas nas trocas com os

indígenas do Brasil quinhentista ainda é um assunto pouco abordado nos trabalhos de

arqueologia, mas sua importância deve ter sido vital para a conquista/ colonização de

novas terras, uma vez que o próprio Pedro Prostes, já em pleno século XX, cita o valor

44

Page 45: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

que as contas, vidrilhos e miçangas possuíam no comércio com as colônias africanas de

Portugal.

Avançando um pouco mais no tempo, contamos com referências a objetos de vidro nos

inventários de paulistas do final do século XVI e início do XVII, mas a verdade é os

expoentes mais elevados da capitania contentavam-se com a posse de apenas um ou

dois cálices de vidro (LEVY 1943: 214; BRUNO 1974).

A primeira tentativa de produção de vidro em solo colonial brasileiro se dá em 1637, sob o

domínio holandês. Com a chegada do Governador Geral Maurício de Nassau, instalam-se

em Olinda e Recife quatro artesãos que confeccionavam copos, frascos e vidros para

janelas. Entretanto, com a expulsão dos holandeses, em 1654, eles são obrigados a

encerrar as atividades e acompanhar seus patrícios (SANDRONI 1989: 39).

Nos primeiros 250 anos da ocupação européia no Brasil, o uso do vidro parece ter sido

bastante restrito – com exceção do período de domínio holandês. Maior uso do vidro só

vamos encontrar a partir do auge da exploração aurífera, nas Minas Gerais. Em 1752,

quase 50 anos depois da fundação de Mariana, chegam inteiros vidros para ornar a nova

catedral. E em 1756, vidro plano é utilizado na construção do palácio dos Governadores,

na hoje chamada cidade de Ouro Preto (SANDRONI 1989: 42). Com uma utilização mais

freqüente desse material, não é de se estranhar que, no final do século XVIII, existisse

uma corporação de vidreiros em Minas Gerais (LEVY 1943: 216).

Na cidade do Rio de Janeiro, que a partir de 1763 se tornou capital do então recém

estabelecido Vice-Reino do Brasil, o uso do vidro passa a ser difundido pelos altos

estratos sociais, agora mais ligados aos refinamentos do gosto europeu.

Como conseqüência da elevação à capital, mais impulsos à utilização do vidro foram

dados no período de 1790-1801, quando a iluminação pública com óleo de baleia começa

a ser instalada no Rio de Janeiro. Para proteger a chama das luminárias, utilizam-se

quebra-luzes de vidro (SANDRONI 1989: 53).

Mas a grande difusão do uso do vidro só viria a partir de 1808, com a chegada da família

real portuguesa, a abertura dos portos e a revogação da proibição à instalação de

manufaturas no Brasil (1785). Entretanto, há que se trabalhar melhor essa afirmação

45

Page 46: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

através da investigação dos sítios arqueológicos brasileiros que elucidem o papel do

contrabando nos hábitos e no comportamento da sociedade colonial. Talvez o uso maciço

do vidro no Brasil recue alguns anos...

Com relação à origem de fabricação, as garrafas encontradas no Brasil, trazidas

primeiramente e oficialmente pelas embarcações portuguesas durante os séculos XVIII e

XIX, acredita-se que devem ter sua origem de fabricação em diversas manufaturas

européias, sobretudo, da França, Inglaterra, Alemanha, possivelmente também Bélgica e

Áustria, abrigando em seu interior produtos portugueses ou diretamente relacionados ao

país de origem de fabrico do recipiente. Um exemplo dessa situação é fornecido pelo

excerto a seguir.

Um anexo à carta de Henry Hill (adido comercial norte-americano no Brasil) a James

Madison (17/11/1809), traz uma lista da quantidade e dos tipos de artigos exportados dos

EUA para Salvador e para a Corte, da quantidade de dinheiro gerado por estas

mercadorias comercializadas, a aceitação delas nesses mercados e a aceitação dos

mesmos tipos de produtos manufaturados de outros países:

“Artigos de vidro ............Vende-se qualquer quantidade de artigos alemães de qualidade

inferior, variados, quebra luzes para castiçal, copos

pequenos para vinhos, frasqueiras de baixo preço,

espelhos quadrados e redondos com moldura dourada,

espelhos para penteadeiras, outros com moldura em

papier maché, de 6, 12 ou 18 polegadas” (WRIGHT 1978:

216).

Esse exemplo mostra como seria difícil a criação de uma indústria nacional, mas também

deixa patente as dificuldades de Portugal em impor sua parca produção aos mercados

coloniais. Além disso, apesar de antiga, a produção vidreira portuguesa ganhou

significação apenas no final do século XVIII, com a instauração da Real Fábrica de Vidros

da Marinha Grande (Atual Fábrica-escola Irmãos Stephens), dirigida pelos membros da

família inglesa Stephens (MENDES 1992), devendo-se a "esta indústria a preparação da

mão-de-obra vidreira portuguesa" (MEMÓRIAS 1815: 270).

46

Page 47: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Nesse sentido, acreditamos que garrafas produzidas em Portugal somente devem ter

passado a afluir com freqüência no decorrer do século XIX, concorrendo em nítida

desvantagem com as demais vidrarias européias, sobretudo, as francesas, tal qual se

observou, por exemplo, na Calçada do Lorena.

4.2. O vidro no Brasil a partir do século XIX

Apesar de pouco estudada pelos autores que tratam da industrialização brasileira, a

indústria do vidro está entre os ramos industriais que apresenta crescimento contínuo

durante este processo que, grosso modo, inicia-se com a vinda da família real

portuguesa, em 1808. Desde os primórdios do século XIX até hoje, a produção de vidro

só tem crescido em volume, apesar da ameaça recente dos recipientes feitos com

derivados de petróleo.

Dentro desses quase 200 anos de produção vidreira brasileira podemos estabelecer três

períodos distintos:

A – O primeiro, circunscrito entre o início do século XIX até 1890/1900; caracterizado

pelas iniciativas pioneiras, a descoberta de jazidas de areias livres de metais pesados, a

importação e especialização de mão-de-obra e produção exclusivamente manual.

B – O segundo, de 1890/1900 até 1940/50; quando se destaca a consolidação da

indústria vidreira através da criação de grandes fábricas tais como a Santa Marina, a

CISPER e a Nadir Figueiredo. Caracteriza-se esse período também pela importação de

tecnologia de ponta e a distribuição maciça de produtos através da navegação de

cabotagem, da rede ferroviária em franca expansão e da rede rodoviária em criação.

C – E o terceiro, de 1950 até o presente, por nós vivenciado, correspondendo à fase de

consolidação da produção vidreira na forma de oligopólios mundiais, como a Saint Gobain

(FRA) e a Corning (EUA), sendo a produção dessas empresas altamente automatizada,

atendendo somente às grandes encomendas, contando com amplo sistema de

distribuição.

47

Page 48: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Mas, torna-se necessária uma ressalva:

A chegada de tecnologia de ponta, da semi-automação e da automação não elimina por

completo a produção manual, processo desenrolado muito rapidamente nos EUA e no

Reino Unido. Aliás, como veremos adiante, essa é uma característica da indústria vidreira

dos países que mais comerciavam com o Brasil, tais como Portugal.

Dessa forma, falar em atraso da indústria vidreira brasileira é se entregar a uma

conclusão precipitada, da mesma forma que também o seria classificá-la como uma das

integrantes do grupo chefe, já que aqui vivenciamos apenas surtos de modernização

consoantes àqueles percebidos pelas nações dominantes.

São tratados a seguir os dois primeiros períodos da produção nacional a partir de três

parâmetros básicos: a produção, a distribuição das mercadorias e o consumo.

4.2.1. Primeiro Período (1808 – 1890/1900)

Produção

Tendo jazidas de areia em abundância, madeira para aquecer os fornos (sendo que suas

cinzas forneceriam a potassa e a soda) e cal a vontade, os fabricantes dependiam apenas

da terra refratária vinda do exterior. Mas esta última, utilizada para a confecção dos

cadinhos nos quais seriam misturadas e derretidas as matérias-primas, era um dos

insumos essenciais. Somente esses potes, confeccionados com esse material especial,

suportariam as altas temperaturas dos fornos e, mesmo assim, eles precisavam ser

substituídos a cada oito semanas porque também se transformavam em vidro. Seu custo

de reposição era alto, sendo que sua confecção demorava pelo menos oito meses.

Grande parte das tentativas fracassadas, no século XIX, devem-se a esse fator (POLAK

1997: 8).

48

Page 49: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Mão-de-obra

Ao longo de toda a história da indústria vidreira no Brasil, necessitou-se de mão-de-obra

estrangeira, ou para alavancar a produção, ou para aperfeiçoá-la.

Mas nesse primeiro momento, conhecimento estrangeiro não era sinônimo de introdução

de técnicas de ponta na produção nacional. A revolução industrial e seu modo de

produção seriado e em larga escala, somado ao desenvolvimento dos meios de

transporte impulsionados pelo vapor, proporcionaram um aumento considerável no poder

de produção e de distribuição das mercadorias de alguns poucos países. Com preços

mais competitivos e maior poder de distribuição, os vidros ingleses, e depois os norte-

americanos dominaram os mercados mundiais, eliminando a possibilidade de

sobrevivência de manufaturas regionais. Países que não conseguiram reorganizar suas

manufaturas rapidamente dentro do modelo capitalista industrial contemporâneo, tais

como Portugal, Itália, Espanha e França, tiveram boa parte de seus estabelecimentos

fechados. Luis Felipe Alencastro aponta que as manufaturas portuguesas, no final do

século XVIII e início do XIX foram bastante prejudicadas pela concorrência dos produtos

estrangeiros (principalmente ingleses), o que fez com que elas perdessem importantes

mercados e fechassem suas portas. Sem emprego, operários especializados e artesãos

escolheram a imigração temporária para o Brasil durante as primeiras décadas do século

XIX (1988, 35). Dentre eles encontraremos vidreiros que vieram tentar a vida no

Ultramarxiii.

Esses mestres europeus realmente traziam um conhecimento novo para o Brasil, mas

que era ultrapassado em relação às técnicas de produção em larga escala, o que não

quer dizer que esse pessoal não pudesse produzir peças de qualidade. Aliás, essa era a

única escapatória para a sobrevivência no mercado. Quando não se dispunha de meios

para se produzir e distribuir mercadorias em grande quantidade, apelava-se à capacidade

artística individual, o que em parte explica a diversidade de objetos fabricados pelas

manufaturas nacionais na Exposição de 1861 (Figura 20).

49

Page 50: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 20 – Tipos de objetos de vidro fabricados pela indústria brasileira na década de 1860 (SANDRONI 1989: 51).

Em 1861, no Rio de Janeiro, a Exposição Nacional mostrou em que nível estava a

produção brasileira de vidraria, manufaturada por empresas tais como Bento Pupo de

Moraes e Cia.; Castro Leite e Cia.; Castro Paes e Cia. (praia Formosa, Rio de Janeiro –

posteriormente renomeada como Fábrica São Domingos); São Roque (Rio de Janeiro);

Bela Vista (Angra dos Reis, RJ); Augusto da Rocha Fragoso (Petrópolis, RJ) e Bernasconi

(espelhos), além de outras em São Paulo e na Bahia. Vários tipos de objetos de vidro

eram confeccionados, revelando que a indústria nacional estava conseguindo produzir

tanta variedade quanto a estrangeira. Apesar disso, nenhuma peça de vidro foi escolhida

para representar o Brasil na Exposição Universal, ao contrário de alguns chapéus

nacionais (RECORDAÇÕES 1977: 111), os produtos manufaturados de melhor qualidade

que eram produzidos no território nacional, àquela época (LUZ 1975).

Com a expansão do mercado e aumento da imigração, viriam ao Brasil mais vidreiros

estrangeiros, esses já com um saber fazer menos defasado e que trabalhariam lado a

lado com os estrangeiros já radicados e seus aprendizes brasileiros, ambos detentores de

técnicas tradicionais.

50

Page 51: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Técnicas e tecnologias

Garrafas e frascos eram confeccionados pelo sopro humano, ou livre, ou com o auxílio de

moldes inteiriços que davam forma aos corpos desses recipientes, proporcionando maior

uniformidade. O uso de moldes duplos ou trifásicos ainda não pôde ser apurado. É

provável que eles só tenham aparecido a partir do momento em que se tornaram

necessários recipientes com volumes absolutamente bem definidos e/ ou formas

diversificadas.

O pontel foi largamente utilizado, mais tarde cedendo espaço à garra de fixação (snap-

case), muito embora ainda não tenhamos informações suficientes para determinar a

época de adoção desse instrumento no Brasil – concomitantemente ao seu

desenvolvimento (por volta das décadas de 1850/60), ou mais tardiamente. O mesmo se

aplica à utilização de ferramentas para a confecção de gargalos.

Nos períodos seguintes, essas técnicas de produção estarão lado a lado com as

máquinas semi-automáticas e automáticas. Uma das características da produção

nacional, até hoje, é a sobrevivência de técnicas ultrapassadas juntamente com as de

ponta. A título de exemplo, em Salto, no interior de São Paulo, uma fábrica molda faróis

para automóveis em máquinas semi-automáticas, isso em plena era da automação total

da indústria vidreiraxiv. Segundo o mesmo informante, no Sul do país ainda existiam

fábricas que produziam garrafões para vinho com máquinas semi-automáticas.

Com a abundância de madeira, não era necessária a utilização de carvão nos fornos (o

que já ocorria na Inglaterra desde o século XVII (FRANK 1982)). No entanto, as

temperaturas obtidas com lenha eram inferiores às conseguidas com o emprego de

carvão, o que não proporcionava um bom derretimento e mistura dos ingredientes,

conseqüentemente gerando produtos de qualidade inferior.

Não temos certeza da aplicação de fornos de têmpera nestas primitivas manufaturas e o

emprego de fornos regenerativos está descartado, até o próximo período.

51

Page 52: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Técnicas e tecnologias: o caso estrangeiro

Até o momento, nossos estudos indicam que foi somente no Segundo Período

(1890/1900 – 1950) que a indústria nacional adotou boa parte das mudanças tecnológicas

ocorridas ainda durante o século XIX. No entanto, esse quadro talvez fosse ainda mais

acentuado em outros países: tomando como parâmetro a iconografia de fins do século

XIX e início do século XX, deduz-se que a produção de Portugal, país com o qual o Brasil

manteve – e ainda mantém – fortes laços comerciais, também não havia assimilado por

completo essas novas técnicas. A figura exibe o funcionamento de uma vidraria

portuguesa em fins do século XIX, produzindo garrafas ainda com moldes inteiriços para o

corpo e um forno de fogo direto (Figura 21).

Figura 21 – “Ilustração de algumas etapas e equipamentos da produção vidreira portuguesa (PROSTES 1908).

52

Page 53: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Examinando o caso francês, as idéias de atraso tecnológico e as cronologias e tipologias

da arqueologia norte-americana se tornam um tanto quanto difusas. Relembrando,

segundo Dessamae Lorrain (1968), os moldes triplos deixaram de ser utilizados, nos

EUA, entre 1840 e 1850. Para Baugher-Perlin (1988), o uso deles decaiu a partir de fins

da década de 1860. Já para Appert e Henrivaux (1894), era bastante atual uma máquina

composta que produzia garrafas através de moldes triplos (Figura 22 a e b).

Figura 22 a

Figura 22 b – Perfis da máquina composta desenvolvida na França ca.1890. Esse instrumento – que ainda utilizava moldes triplos já em desuso na indústria dos EUA e do Reino Unido – garantia maior uniformidade às garrafas e mais agilidade à produção. Sua existência revela novas etapas, até agora esquecidas, do desenvolvimento da indústria vidreira.

Do ponto de vista tecnológico, é-nos apresentada uma máquina sofisticada para a época

a qual poderia produzir em escala comercial, ao contrário das recém inventadas máquinas

semi-automáticas. Apesar de ainda depender de grande número de operários e do

53

Page 54: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

gargalo ter que ser feito com ferros de marisar, com ela se produzia garrafas de grande

uniformidade e equilíbrio, o que ainda era um problema para as vidrarias da época.

Vemo-nos assim diante de alguns problemas, já que tanto a produção de garrafas por

moldes triplos simples, quanto a confecção em moldes triplos articulados em máquina,

deixavam as mesmas marcas. Talvez a única diferença entre os objetos feitos com um e

outro arranjo de molde triplo esteja no fundo invaginado de alguns tipos de garrafas, muito

melhor elaborado no segundo caso.

Nesse sentido, fomos mais uma vez obrigados a estreitar laços com a bibliografia técnica

devotada à produção vidreira francesa, buscando elementos sobre sua evolução e

câmbios tecnológicos, tal como originalmente fizemos com a literatura arqueológica norte-

americana e inglesa, embora não contemos com trabalhos franceses de arqueologia pós-

medieval dedicados à temática, o que causa alguns contratempos na hora de confrontar

as fontesxv.

A fim de exemplificar quais implicações essa multiplicidade de processos produtivos do

vidro traria para a identificação e datação de recipientes resgatados de sítios

arqueológicos brasileiros, lançamos mão de uma situação concreta vivenciada pelos

autores.

Durante as prospecções realizadas no quintal do Museu da Energia, em Itu, SP, sobrado

erguido em meados do século XIX, deparamo-nos com uma garrafa, produzida por molde

triplo para conter originalmente bebida gasosa não alcoólica, em uma área de descarte de

material construtivo relacionada talvez a um único evento – grande reforma – ocorrido no

final do século XIX ou início do século XX (ZANETTINI 1999a).

O referido recipiente parecia ser mais antigo do que os outros artefatos presentes na

sondagem, principalmente se confrontado com a tipologia dos fragmentos de utensílios de

faiança fina. Assim cogitamos, com base nos trabalhos norte-americanos que então

dispúnhamos, que aquela garrafa teria sido reutilizada por um período máximo de 70 anos

(ca.1840-ca.1910) ou um período mínimo de 30 anos (ca.1860-ca.1890), ambos muito

extensos para uma garrafa comum. Cogitou-se também do vasilhame ter sido produzido

por alguma fábrica nacional ou de algum país pouco desenvolvido na produção vidreira.

54

Page 55: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

No entanto, a partir do exame da obra francesa já mencionada, tornou-se possível

elaborar uma nova hipótese em relação a sua origem e à data de fabricação.

Na verdade a garrafa em questão era um produto comum para fins do século XIX ou início

do XX, não contemplado nas tipologias dos arqueólogos norte-americanos simplesmente

porque recipientes com marcas de moldes triplos não mais aparecem nos contextos por

eles estudados. Já no caso brasileiro, especialmente no caso paulistano, os sítios desse

período estão repletos de garrafas trifásicasxvi.

A interpretação presente nesta edição do artigo bate de frente com o texto original. Na

versão anterior nos pautamos muito pela idéia de produção de ponta e marginal,

colocando a contraposição entre elas como a chave para entender o contexto

arqueológico brasileiro. Isso é de certa forma inevitável para um manual ou guia, pois o

que está em jogo são as tipologias dos artefatos e suas cronologias. Seguindo essa linha,

admitimos um erro: colocar a produção francesa de finais do século XIX como uma

produção “de ponta”. Em verdade, se tomarmos como fim do processo a semi-automação

e a automação, só havia EUA e Reino Unido no “grupo de elite”, talvez seguido pela

Alemanhaxvii. O melhor mesmo para estabelecer uma cronologia brasileira é partir para

uma análise mais ampla, que saia da evolução das técnicas e tecnologias e se encaminhe

para questões que envolvam o modo de produção, as quais abrangem também cultura e

consumo.

Distribuição e consumo

Vários autores colocam que, numa época em que a maior parte das inovações

tecnológicas não revertia diretamente para um aumento de produção, foi o

desenvolvimento do transporte impulsionado por vapor, tanto na água quanto na terra, o

fator primordial para o desenvolvimento da indústria vidreira. O Brasil não constituía

exceção, tendo o comércio sido favorecido imensamente a partir da década de 1860

quando da implantação das primeiras linhas férreas. No entanto, outros fatores, de caráter

regional vieram a aumentar a demanda de recipientes de vidro.

Além da questão do transporte, a partir da década de 1850 a predominância da

monocultura cafeeira gerou a necessidade do transporte de gêneros de subsistência por

longas distâncias.

55

Page 56: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Em parte do centro-sul do país, com todos os recursos econômicos voltados à produção e

exportação de café, a própria subsistência se via ameaçada pelos efeitos da monocultura.

Como o comércio com o café produzia um excedente econômico extraordinário, tudo

poderia ser importado, a não ser os itens que fossem muito volumosos para serem

transportados por navio e que fossem passíveis de serem produzidos localmente, tais

como tijolos e garrafas de vidro, apesar desses objetos volumosos também terem sido

importados, num primeiro momento.

Dentro do sistema produtivo de monocultura para exportação, os recipientes de vidro

passaram a ser importantíssimos para a distribuição dos gêneros alimentícios. O vinho,

por exemplo, chegava aos portos em tonéis. Para ser distribuído, era acondicionado em

garrafas, quando não raro acabava sendo "batizado" com aguardente e alguns produtos

químicos. Segundo Frèdèric Mauro, esse tipo de falsificação ocorria principalmente no Rio

de Janeiro e na Bahia (1991: 242). Dessas localidades parte do vinho era levado para o

interior, onde o consumo de bebidas alcoólicas era bastante mais acentuado do que nas

cidades litorâneas.

Esse fenômeno do abastecimento já havia sido observado nos EUA por ocasião da

descoberta de ouro no Oeste daquele país. Como a região só se dedicava à exploração

aurífera, todo o alimento tinha que vir da costa Leste, ou de outros países. Para agüentar

a longa viagem, os produtos tinham que ser processados e acondicionados em

recipientes de folha-de-Flandres ou de vidro (LORRAIN 1968).

Por um outro lado, a riqueza gerada pelo café acelerou o processo de expansão de

algumas cidades, apesar delas não terem estrutura para comportar um aumento

populacional tão rápido. O resultado foi o desenvolvimento de meios urbanos carentes de

condições de higiene básicas, tornando-os focos de doenças. Somando-se esse fator à

importação do hábito europeu de se consumir panacéias para a prevenção de doenças e

para o bom funcionamento do organismo (isso desde a abertura dos portos, no início do

século), o resultado é um largo consumo de remédios. Quando não vinham engarrafados

do exterior, chegavam em tonéis. Nas boticas, eles eram distribuídos em frascos

menores, indispensáveis para a dispersão desses produtos. O vinho moscatel, por

exemplo, chegava em tonéis, posteriormente sendo acondicionado em frascos facetados

56

Page 57: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

– embora muitas vezes ele já viesse envasado, da França, em frascos de vidro

transparente ou cristal (DEVEZA 1976: 36; SANDRONI 1989: 45).

Também podemos atribuir às guerras um papel importante na expansão do consumo de

produtos envasados. A necessidade de abastecer as tropas em regiões longínquas fez

com que muitos alimentos ou bebidas fossem processados e estocados em latas ou

vidros e são nessas ocasiões em que a pesquisa e a aplicação de novos métodos se

intensificamxviii. A guerra com o Paraguai (1864-1870), um conflito de quase seis anos,

além de ter movimentado grandes quantidades de provisões para os campos de batalha,

produziu um significante incremento nas indústrias brasileiras, inclusive na do vidroxix.

Outro fator importante para distribuição de vidros foi a criação de uma rede comercial

internacional que ligava diretamente, sem a intervenção da metrópole portuguesa,

representantes de grandes casas comerciais européias em solo nacional às respectivas

casas. No caso dos ingleses, isso se deu com a concessão de tarifa de importação de

15% aos seus produtos (19/02/1810). Esse tratado foi renovado em 1827 e perdurou até

1843, garantindo mais de três décadas de facilidades às mercadorias inglesas, o que

acabou por consolidar essa poderosa rede comercial ligada ao Reino Unido. Esses

comerciantes, juntamente com os portugueses – os quais nunca deixaram de obter

vantagens econômicas, mesmo depois da Independência, principalmente com o comércio

de estiva, ou seja, comprando diretamente dos armazéns anexos à alfândega (DEVEZA

1976: 43) –, eram maioria no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX. Já

os franceses passaram a ter acesso oficial aos mercados brasileiros em 1814, com a

derrota definitiva de Napoleão (DEVEZA 1976: 2). Entretanto, amargaram duras perdas

até o acordo de 1826, o qual taxava as mercadorias daquele país também em 15%. A

partir dessa data é que o quadro comercial muda sensivelmente, apesar da vantagem

inglesa, principalmente nos artigos industrializados, já estar consolidada.

57

Page 58: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

4.2.2. Segundo Período (1890/1900 – 1950)

Matérias-primas

A madeira, ainda disponível em grande quantidade, continuou a ser utilizada como

combustível em vidrarias de pequeno porte. Nas grandes indústrias tais como a Santa

Marina (1892) e a CISPER (1917), possuidoras de fornos avançados, o uso do carvão

mineral e do coque era regra geral, abandonada somente nos períodos de guerra.

Durante a Primeira e a Segunda Guerra ficou inviável a importação de certas matérias-

primas, o que prejudicou a continuidade da produção e a quantidade de mercadorias

confeccionadasxx. No entanto, foram nesses momentos de crise em que as fábricas

partiram para a diversificação da produção: sobretudo na Segunda Guerra Mundial, certos

recipientes que antes eram importados, principalmente aqueles para remédios, passaram

a ser fabricados em território nacional para atender à demanda de fábricas que não mais

conseguiam comprá-los fora do paísxxi. O Brasil, do início do conflito até 1942, chegou

mesmo a exportar vidro (BRANDÃO 1996: 72).

Mão-de-obra

Embora já houvesse brasileiros treinados na fabricação do vidro, a mão-de-obra

estrangeira continuou a ser empregada, em parte por necessidade, em parte por

preconceito. De qualquer forma, a desigualdade de condições de trabalho era patente: em

1901 ocorre uma greve na Santa Marina devido à disparidade dos salários dos brasileiros

e dos estrangeiros (os últimos ganhavam mais) (BRANDÃO 1996: 59). Por esse incidente

é de se imaginar que brasileiros e imigrantes executassem os mesmos trabalhos, com

resultados muito próximos, mas com pagamentos distintos, fato que justificaria o

confronto.

Com o tempo apenas os engenheiros especializados, portadores de novos

conhecimentos, e os administradores de empresas passaram a vir do exterior, deixando o

serviço pesado para o pessoal da terra já treinado e, principalmente, para as máquinas

semi-automáticas e automáticas.

58

Page 59: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Técnicas e tecnologias

É nesse período que começam a ser introduzidas técnicas realmente inovadoras,

bastante avançadas no contexto internacional da produção vidreira. No entanto, a

velocidade de substituição de técnicas antigas era bastante reduzida em comparação à

dos países mais desenvolvidosxxii. Algumas dessas inovações que atingiram a indústria

nacional são descritas a seguir.

No ano de 1906 chegaram as primeiras máquinas semi-automáticas Severin à Santa

Marina, apenas 7 anos após esse tipo de máquina entrar em produção comercial. De

acordo com Brandão "o grande forno chegou a ter 16 Severins, conjunto que

impressionava para a época" (1996: 55). De fato, em 1904, nos EUA, existia um total de

200 máquinas semi-automáticas em produção (MILLER e SULLIVAN 1984: 88).

Mas essas máquinas semi-automáticas representavam um estágio inicial da produção

mecânica a caminho da automatização, o que significa que a ruptura dos velhos

esquemas de divisão do trabalho ainda estava por vir. Se na confecção manual eram

necessários times de 4 a 5 operários especializados (APPERT e HENRIVAUX 1894;

PROSTES 1908), na semi-automática eram necessários 3 para cada máquina, com

pouca especialização (MILLER e SULLIVAN 1984).

A produção automática só chegou ao Brasil em 1918, quando se iniciou a fabricação de

garrafas de cerveja com uma máquina Owens instalada na recém-criada CISPER (Cia.

Industrial São Paulo e Rio) (SANDRONI 1989: 71). A partir desse momento, a empresa

vidreira que quisesse brigar pelo domínio do mercado teria que partir para a automação

total. É com esse espírito que, em 1921, a Santa Marina adquiriu as suas primeiras

máquinas automáticas.

Pensando nos contextos arqueológicos brasileiros pós década de 1920, é a partir desse

período que teremos uma presença maciça do vidro nacional, tornando o importado uma

exceção. Também na fabricação de utensílios de faiança fina temos, a partir do fim da

Primeira Guerra Mundial, o predomínio de material nacional (ZANETTINI 2004).

59

Page 60: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Apesar da forte automatização vista a partir desse período no Brasil, as velhas técnicas

de produção não seriam abandonadas. Segundo Brandão, na década de 1960 existiam

por volta de 150 vidrarias em território nacional, sendo que a maioria ainda produzia por

métodos tradicionais (1996: 82). No entanto, esse não era apenas um problema brasileiro,

como veremos a seguir.

Técnicas e tecnologias: o exterior

A partir desse período, não nos faltam dados para traçar um panorama nacional e

internacional, do ponto de vista das inovações técnicas e tecnológicas. Tomemos como

fontes, manuais franceses destinados ao ensino da confecção em massa de vidros e

algumas outras características.

APPERT e HENRIVAUX (1894) MANUAL

MECÂNICA

DAMOUR (1929-1936)

MANUAL

MECÂNICA

MECÂNICA SEMI-AUTOMÁTICA

MECÂNICA AUTOMÁTICA

BARY e HERBERT (1941) MECÂNICA AUTOMÁTICA

Do final do século XIX até a década de 1920, temos a substituição gradual da produção

manual e mecânica pela introdução de máquinas semi-automáticas e automáticas e,

durante a década de 1930, temos a substituição da semi-automática pela automação

completa, não restando traços dos antigos processos produtivos. Apesar do intervalo

temporal considerável entre a primeira publicação e a segunda, podemos ter um quadro

mais completo da indústria vidreira francesa se levarmos em conta que a Santa Marina

comprou, da França, suas primeiras máquinas semi-automáticas em 1906.

60

Page 61: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Entretanto, no caso dos EUA, as mudanças são mais rápidas. Se em 1917, apenas de 5 a

10% da produção dependiam do sopro humano, 10 anos mais tarde a automação havia

dominado a grande maioria das indústrias. Numa inspeção realizada no ano de 1926 em

25 indústrias de vidro, apenas uma utilizava máquinas semi-automáticas em grande

escala, segundo Boris Stern em Productivity of Labor in Glass Industry (1927) (MILLER e

SULLIVAN 1984: 88). No caso da Inglaterra, a situação era mais ou menos a mesma: por

volta de 1925 ela estava perto da automação completa, restando apenas algumas

indústrias que se utilizavam da fabricação manual, como as que produziam para a

indústria farmacêutica – também nos EUA o ramo farmacêutico foi o último a ter seus

recipientes produzidos automaticamente (MILLER e SULLIVAN 1984: 90), considerado

até hoje o segmento mais conservador do mercado consumidor de recipientes de vidro.

O caso de Portugal é completamente diferente. Segundo Pedro Prostes em seu livro

Indústria do Vidro, datado de 1908, obra destinada à instrução profissional, são

mencionadas a produção manual, utilizando-se de todos os tipos de moldes (inteiriços,

duplos, triplos) e a produção mecânica com máquinas compostas, talvez muito

semelhantes às descritas por Appert e Henrivaux. Eram usados compressores para

recipientes grandes, ou compressor e molde para "objectos de fórma mais irregular ou

variada" (1908: 58), mas não há nenhuma menção a qualquer máquina semi-automática.

Uma pista dessa situação é fornecida pela Santos Barosa, fábrica portuguesa que se

especializou na produção de embalagens. Máquinas semi-automáticas só começaram a

produzir em 1938 e as automáticas (o que não significa que as primeiras deixaram de

produzir), só começaram a operar em 1945 (MENDES e RODRIGUES 1989: 130-134), ou

seja, quase 20 anos depois da fabricação automática dominar os EUA.

Através desse quadro sucinto – pois não entraremos na questão dos fornos e feeders – é

possível antever os problemas relacionados à identificação e interpretação de artefatos de

vidro no contexto brasileiro caso as tipologias e chaves de datação norte-americanas

sejam indistintamente aplicadas.

61

Page 62: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Distribuição e consumo

Assim como em outros países, foi o aperfeiçoamento das redes de transporte que

impulsionou a expansão do consumo do vidro. O incremento da malha ferroviária e a

criação da rede de estradas de rodagem possibilitaram uma farta distribuição do vidro

para cantos que até aquele momento não eram abastecidos com tais artefatosxxiii.

Outro fator que ocasionou a expansão do consumo de produtos acondicionados em

recipientes de vidro – principalmente alimentos e remédios – foi o aumento do número de

agentes atuantes no mercado. Com a abolição do trabalho escravo e a imigração, um

número maior de pessoas trocaria sua força de trabalho por dinheiro, possibilitando a

aquisição de bens antes distantes da realidade por eles vivida.

Foi também neste período que se intensificou a urbanização do país. Com a expansão

das cidades, algumas soluções arquitetônicas foram incorporadas com maior vigor às

construções, tais como o uso de vidro plano para vidraças e clarabóias. Um outro

fenômeno gerado pela urbanização foi a elevação dos preços dos terrenos urbanos e o

conseqüente distanciamento das áreas produtivas rurais das cidades. Esses dois

fenômenos combinados geravam problemas de abastecimento e distribuição. Sem tempo,

conhecimento ou espaço para cultivar produtos agrícolas, a população se via obrigada a

comprá-los. Mas esses alimentos começaram a ser produzidos em regiões cada vez mais

distantes dos centros urbanos, o que obrigava os produtores a enviá-los aos centros de

distribuição e não mais diretamente aos consumidores, através das feiras e mercados

locais. Dos mercados estes produtos deveriam ser distribuídos em menores porções, o

que gerou uma demanda maior por continentes, dentre os quais estão os recipientes de

vidro.

Esse também é o caso das farmácias de manipulação, que produziam remédios em

grandes quantidades para serem distribuídos aos consumidores em recipientes menores:

quanto mais a cidade crescia, maior era a demanda por remédios e panacéias.

62

Page 63: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Todas estas mudanças acabam por impulsionar o desenvolvimento de uma indústria do

vidro no Brasil economicamente significativa, passando a suplantar as importações de

recipientes e começando a produzir maquinário para a elaboração desse material. A fim

de enxergarmos estas mudanças, tomaremos como exemplo o desenvolvimento da

indústria vidreira em São Paulo.

Em muitos locais afastados dos portos, antes da criação das redes terrestres de

transporte, prosperavam pequenas manufaturas que abasteciam os restritos mercados

locais. A partir da chegada das linhas de trem, grande parte dessas manufaturas

desapareceu, uma vez que os produtos importados chegavam em grandes quantidades e

com preços competitivos (LUZ 1975).

Mas, em São Paulo, as suas poucas indústrias nativas não desapareceram com a invasão

maciça dos produtos importados (principalmente com a chegada dos caminhos de ferro,

em 1867). Aliás, o que ocorreu foi justamente o contrário. Uma das explicações para isso

é que o café não era uma atividade econômica tão rentável a ponto de possibilitar a

importação de algumas coisas realmente muito volumosas, pesadas e/ ou rústicas, tais

como os recipientes de vidro, indispensáveis para distribuir mercadorias que chegavam

em tonéis ou que aqui eram produzidas em grandes quantidades. Sendo assim, as

indústrias que prosperaram em São Paulo, de 1870 até 1920, foram justamente aquelas

que produziam mercadorias com essas qualidades.

O que particularmente nos interessa é que, muitas vezes, os produtos nacionais, tais

como as cervejas, beneficiavam-se com essa fabricação local dos recipientes e também

com outra promissora indústria: a das gráficas que falsificavam rótulos. Dessa forma as

mercadorias nacionais, àquela época nitidamente inferiores às importadas podiam se

beneficiar do status das últimas (DEAN 1975: 16).

Nem ao menos as crises econômicas mundiais abalavam certos segmentos da produção

industrial. Entre 1929 e 1933, no ramo de processamento de minerais não metálicos,

somente cresceram as atividades "voltadas à fabricação de cimento, gesso e vidro e de

britamento e aparelhamento de pedras" (NOZOE 1984: 56-57). Tal crescimento pode ser

explicado pela contínua expansão da área construída da cidade de São Paulo.

63

Page 64: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Outros fatores que de certa forma proporcionaram uma emancipação da produção

nacional através do acúmulo de know-how e da pesquisa de fontes de matérias-primas,

foram as guerras mundiais. Em princípio, como já foi dito acima, as guerras em outros

países com os quais o Brasil tinha relações comerciais, estimularam a produção nacional.

No entanto, as matérias-primas para a produção, importadas desses países em conflito,

também chegavam com menor freqüência, fato que tendeu a diminuir o volume de

produção. A grande virada se deu com o término dos conflitos, quando a escassez de

matérias-primas terminou e pôde despontar o resultado do investimento em pesquisa,

dispensando-se, de certa forma, a constante importação de conhecimentos, dando

margem ao desenvolvimento de tecnologia nacional. Apesar do quadro favorável, no

Terceiro Período (1950 – 2005), toda a tentativa de desenvolvimento de tecnologia

nacional foi solapada pela entrada de empresas multinacionais no mercado brasileiro,

caso que será melhor estudado em artigo posterior.

64

Page 65: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

5. DATAÇÃO DE RECIPIENTES DE VIDRO E ORIGEM

Apesar do conjunto de marcas derivadas de confecção ser eficiente para a datação relativa

de artefatos vítreos, sobretudo se os mesmos tiverem sido fabricados pela indústria norte-

americana, rica de documentação dos processos e evoluções técnicas, trilhamos um outro

caminho – absoluto – rumo à identificação e datação dos vidros.

5.1. Análise química: exemplo de caso

Em 1992 estabelecemos contato com Pierre Frisch, engenheiro formado pela Escola de

Vidros de Zurique e considerado um dos maiores especialistas em tecnologia vidreira no

país, atuando como consultor das principais empresas do ramo.

Quando lhe apresentamos a coleção de vidros obtida ao longo da Calçada do Lorena, na

Serra do Mar, Frisch ofereceu-se para realizar a análise de uma base de garrafa do tipo

case bottle.

Foram enfocados os seguintes aspectos: 1) o aspecto visual; 2) a tecnologia adotada para

confecção; e por último, 3) a análise química quantitativa e qualitativa, realizada segundo

as normas e procedimentos técnicos internacionais definidos para esse segmento da

indústria.

A base examinada não apresentava ataques aparentes do meio ambiente circundante de

onde fora resgatada, exibindo cor verde escura e espessura grossa irregular.

Com relação à tecnologia adotada, o laudo expedido determinava se tratar de exemplar

"soprado manualmente com cana vidreira em uma forma quadrada, e posteriormente

ponteada no fundo para possibilitar o acabamento da boca da garrafa" (laudo de 1993).

65

Page 66: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Com relação à composição química do exemplar foram obtidos os seguintes resultados:

Elementos SiO2 Al2O3 CaO MgO BaO Na2O K2O Fe2O3 FeO TiO2 SO3

% 65,82 2,71 21,83 3,11 0,18 3,04 1,86 0,93 0,30 0,20 0,024

A análise qualitativa feita com base na comparação entre os resultados obtidos e os

catálogos históricos internacionais permitiu o seguinte veredicto: "Trata-se de garrafa

produzida no último quartel do século passado [XIX], na região central da França".

Os vidros guardam em suas composições características químicas derivadas das matérias-

primas encontradas na região de fabrico: orgânicas, determinadas pelas madeiras e

gramíneas utilizadas na Antiguidade, por exemplo; e minerais, determinadas pelas fontes

de sílica européias, por exemplo. Até mesmo na produção industrializada, que emprega

produtos químicos para a composição e correção da massa, pode-se encontrar

particularidades referentes ao local de fabrico: o vidro produzido na Costa Leste norte-

americana difere quimicamente de seu concorrente, produzido na costa oposta, por

exemplo.

Conforme Bezborodov, importante estudioso russo, o vidro “assemelha-se às condições da

província bioquímica (solo, vegetação, cinzas, etc.), diferenciando-se regionalmente”

(FRISCH 1999). Ainda segundo esse autor, as análises químicas não devem se limitar

somente aos componentes principais, incluindo-se também microelementos. Foram eles

que permitiram a Bezborodov estabelecer 762 fórmulas de vidros para a Antigüidade,

classificando-as nos seus grupos principais e regiões.

As proporções obtidas na análise da garrafa encontrada na Serra do Mar guardam assim

íntima relação com as matérias-primas da França central, dotada de areias com alto teor de

ferro (o exemplar analisado possui 0,93% de Fe2O3 e 0,30% de FeO). O cerco se completa

com a alta taxa de CaO (21,83%), o qual excede em muito os padrões adotados na

moderna indústria (dificilmente ultrapassam os 10%).

66

Page 67: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

5.1.1. Análise química evitando equívocos

A base analisada foi coletada durante o processo de evidenciação do leito da Calçada do

Lorena, trecho pavimentado em 1792 do antigo Caminho do Mar. Junto com essa base

foram recolhidas outras que também se encontravam em meio a um pacote de sedimentos

rolados de um patamar superior e depositados sobre o pavimento. Esses indícios

conduziram à localização de um assentamento outrora existente no topo da Serra, apenas

sumariamente caracterizado na época, pois fugia ao escopo dos serviços contratados.

Além das bases foram recolhidos dois gargalos reforçados e outros fragmentos que

permitiriam reconstituir quase que integralmente um exemplar. Associadas às garrafas

foram coletadas abas de pratos de faiança decorada em azul cobalto, classificadas por

Eldino da F. Brancante à época como sendo de origem portuguesa do século XVII. Esses

últimos artefatos guiaram nossas considerações sobre o sítio.

Embora deslocados de sua área de descarte original, o conjunto indicava que lá, no topo

da serra, havia um assentamento estabelecido bem antes da pavimentação da estrada, no

final do século XVIII, mesmo porque esse acesso ao planalto paulistano já era utilizado

desde os primórdios da fundação de São Paulo de Piratininga. Essa datação relativa foi

possível especialmente por causa da análise das faianças, pois ainda não havia sido

realizada a análise química do fragmento de garrafa. No entanto, após a datação absoluta

da base de case bottle, modificou-se sensivelmente a periodização determinada: tratava-se

de sítio que poderia ter suas origens no século XVII, mas que estava definitivamente

ocupado no século XVIII e continuou sendo ocupado durante o século XIX, o que dilatava

consideravelmente o período de ocupação do local.

À época do trabalho arqueológico, a base da garrafa em questão parecia ser produto de

uma indústria vidreira muito antiga, que poderia ser associada automaticamente a vestígios

do século XVII ou XVIII. De fato a “invenção” dessa forma remonta ao século XVII/ XVIII,

mas, o que não sabíamos é que seu período de fabricação foi muito extenso. Hoje, com o

avanço das pesquisas brasileiras, principalmente no campo das análises não destrutivas, o

horizonte é menos nebuloso. A exemplo disso temos o trabalho de Symanski (1998a, no

prelo).

67

Page 68: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Case bottles similares à que foi encontrada na Calçada do Lorena foram exumadas do

Solar Lopo Gonçalves (Porto Alegre, RS), ocupado entre 1840 e 1892. Segundo resultados

obtidos pela aplicação da Fórmula de Datação Média de Louçasxxiv de South (1972) à

amostra de vidros, o pico de ocupação do lugar teria ocorrido por volta do ano de 1870.

Ora, nesse período os recipientes de base quadrangular eram destinados ao

acondicionamento de genebra – bebida bastante popular durante o oitocentos no sul – ou

ao envasamento do rum, segundo o arqueólogo Marcos André T. Souza (SYMANSKI

1998a: 14).

O ensaio realizado por Frisch, entretanto, deixa-nos claro o potencial da análise química

como forma segura de datação dos vestígios vítreos, reforçando ainda mais a necessidade

de nos envolvermos mais profundamente com a bibliografia referente à indústria vidreira.

5.2. Método prático para análise em laboratório

Tendo em vista que a análise química de um artefato implica necessariamente em sua

destruição, Pierre Frisch desenvolveu o seguinte método para a classificação de artefatos

obtidos em pesquisas arqueológicas, passível de ser desenvolvido em qualquer laboratório,

envolvendo simplesmente a coordenação de reações químicas.

O método, segundo Frisch, determina de maneira simples a que grupo de vidro pertence

a amostra a ser analisada, sem destruição da mesma, como ocorrido no caso

anteriormente descrito.

O método não tem fins de análise qualitativa ou quantitativa. No caso de análise mais

detalhada dever-se-a recorrer aos métodos de análise química divulgado pelas associações tecnológicas de vidro, tal qual aplicado ao exemplar da Calçada.

68

Page 69: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Os grupos mais comuns são:

- Vidros sodocalcicos, hoje os mais freqüentes;

- Vidros calcio potássicos;

- Vidros plumbeos;

- Vidros borosilicatos; e

- Vidros de quartzo.

5.2.1. Procedimentos

1. Uma pequena área da superfície do vidro (alguns milímetros quadrados são

suficientes) deve ser raspada com uma lima (de preferência diamantada).

Na área raspada pinga-se uma gota de uma solução de éter de iodo; para lavar a

substância anteriormente aplicada, pinga-se uma gota de Éter.

Caso a reação produza uma coloração avermelhada, ela nos indica um vidro de conteúdo

básico; caso a reação não produza qualquer coloração, a amostra pertence ao grupo dos

vidros de quartzo.

2. Coloca-se uma gota de solução de 1O% de ácido fluorídrico. Uma turvação

imediata indica a presença de um vidro rico em óxidos pesados ou terrestres

(Potássio, Bário, Chumbo, Estanho, etc.), em oposição a vidros carentes de óxidos

metálicos, quando a solução não apresenta nenhuma turvação.

3. Molha-se um fio de platina com a solução obtida pela reação do item 2, levando-o

com cuidado a uma chama (bico de Bunsen). Se ocorrer uma luminosidade curta,

de cor verde, temos a indicação da presença de ácido bórico. Reconhece-se a

soda pela luminosidade de cor amarela. Quantidades maiores de Potássio são

reconhecidas, usando-se o mesmo processo, olhando-se através de um vidro de

cobalto, que irá nos fornecer uma luz de cor violeta.

69

Page 70: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

4. Junta-se ao produto da reação do item 2, uma gota de ácido sulfídrico*. Uma

coloração preta indicará Chumbo (Vidro de óxido de Chumbo). Vidros sem Chumbo

não apresentam coloração, mas vidros afinados com Antimônio apresentam

coloração amarelo-avermelhada.

Caso se queira proceder ao exame, deve-se usar partes da amostra, colocando-a em

recipientes pequenos e apropriados. Repetir os procedimentos do item 2, só que desta

vez, a reação deve ocupar um tempo mínimo de 5 minutos.

O produto obtido é lavado com 3 cm3 de H2O para dentro de um cadinho de Teflon ou de

platina. Nessa solução adicionamos bicarbonato de sódio, deixando um pequeno excesso

após uma reação espumante. Agora cozinhamos o conteúdo (± 2 minutos) até obter uma

coagulação. Podemos confirmar a reação completa com uma solução de azul-de-

metileno. Se, ao pingar uma gota dessa solução no conteúdo, o azul-de-metileno não se

precipitar, teremos a certeza de que a reação está completa. Caso contrário, devemos

prosseguir com o aquecimento.

Deixamos então decantar a solução e lavamos o resíduo por três vezes com 3 a 5 cm3 de

H2O, recolhendo o produto num cadinho. Secamos o produto, evaporando-o a 100°C com

o acréscimo de 10 gotas de ácido clorídrico. O resíduo obtido se trata com 3cm3 de H2O,

adicionando duas gotas de ácido clorídrico diluído. O resto não solúvel é ácido silícico.

Devemos filtrar então a solução para prosseguir as determinações.

No caso da presença de Antimônio ou Chumbo devemos eliminar esses metais da

solução clorídrica com ácido sulfídrico e somente a partir de então a solução pode ser

usada para os próximos passos**.

5. Colocamos a solução em um tubo de ensaio adicionando uma gota de ácido

clorídrico, aquecendo a mesma até o ponto de ebulição. Obtendo uma precipitação

forte de cor branca, temos a presença de óxido de Bário.

70

Page 71: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

6. Com a solução do item 5 filtrada (somente no caso da precipitação), misturamos

agora uma gota de solução de ferricianeto de potássio. Um muco branco indica

Óxido de Zinco; se temos uma leve tendência para o azul, temos a presença de

ferro.

7. A eventual filtragem da solução do item 6*** é levada à ebulição com o acréscimo

de três gotas de uma solução amoniacal. A precipitação de flocos brancos indica

Óxido de Alumínio.

8. A eventual filtragem da solução do Item 7 é aquecida lentamente com uma gota de

uma solução de ácido oxálico. Se tivermos, após 2 minutos, turvação branca,

podemos reconhecer a presença de Óxido de Cálcio.

9. Em uma eventual filtragem da solução do Item 8 teremos, após a adição de duas

gotas de uma solução de fosfato sódico, uma precipitação granular, a indicação da

presença da Óxido de Magnésio.

Observações:

* O ácido sulfídrico pode ser também substituído por uma solução de 0,1g de sulfito de

sódio branco, diluído em 10cm3 de H2O destilada e neutralizada com uma a três gotas de

ácido clorídrico.

** No caso da ausência de Chumbo ou Bário podemos usar a solução 2 eliminando o

ácido silícico, colocando-a em um cadinho de platina e a secando com o acréscimo de

duas gotas de ácido clorídrico com uma posterior calcinação. Obtemos assim, um resíduo

solúvel em uma solução de ácido clorídrico servindo, também, para as reações dos Itens

5 a 9.

*** A purificação da solução com a presença de Óxido de Zinco pode ser facilitada com

algumas gotas de uma solução fraca de Nitrato de Prata, provocando uma precipitação

em forma de flocos, permitindo uma filtragem posterior.

71

Page 72: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Esse método desenvolvido especialmente para a utilização em campo/laboratório,

produzirá importantes resultados se for adotado pelos arqueólogos históricos de forma

sistemática. Assim será possível construir categorias referenciais capazes de enquadrar

os restos vítreos resgatados em sítios de diferentes períodos e o estabelecimento de

padrões para os mesmos. A sua adoção permitirá, em última instância, a constituição de

um quadro mais claro com relação à origem, distribuição e consumo de vidros

estrangeiros ao longo de nossa história.

5.3. Produção e deposição: chave de datação e processos intervenientes

A utilização de mudanças tecnológicas para o estabelecimento de chaves de datação de

utensílios foi desenvolvida pioneiramente por T. Stell Newman (1970), que propôs um

período mediano de superação de uma técnica por outra mais eficaz na produção de

garrafas, a partir das condicionantes do mercado consumidor norte-americano. O

crescimento da demanda para produtos engarrafados favoreceu e promoveu um rápido

turn over de garrafas enquanto o sistema de distribuição foi hábil em faze-las chegar ao

consumidor final sem maiores atrasos.

O autor, entretanto contava na época com um apurado conhecimento das inovações

introduzidas nas garrafas norte-americanas, detendo-se nos fatores que poderiam interferir

no processo de descarte: 1) atrasos em alguma mudança particular de manufatura após a

adoção de uma nova técnica e fábricas ainda lidando com tecnologias já superadas; 2)

estoques de garrafas feitas com técnicas mais antigas pela fábrica detentora de uma nova

técnica; ou ainda 3) o tempo de estocagem nas fábricas produtoras até o seu destino final,

as envasadoras; 4) o tempo decorrido entre o preenchimento dos conteúdos e sua entrega

ao varejo; 5) o tempo decorrido entre o transporte até os pontos de venda e; 6) a possível

reutilização do vasilhame antes de seu descarte definitivo, dilatando o tempo de vida útil do

recipiente. Cartesianamente, Newman estabeleceu uma generalização média do tempo

decorrido entre a produção e o descarte definitivo de vasilhames em torno de 10 anos.

Exemplificando, uma garrafa norte-americana feita com sopro humano em molde de duas

partes não poderia existir antes de 1845, nem poderia ter sido fabricada depois de 1903,

quando começaram a funcionar as máquinas Owens. Usando o desvio padrão, esse

exemplar fictício muito provavelmente foi descartado entre 1845 e 1913. Usando múltiplos

72

Page 73: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

traços de manufatura é possível considerar um espaço menor de tempo: caso a garrafa

apresente marcas de snape case holding device o prazo é reduzido para algo entre 1855 e

1913. Ainda, se a garrafa contar com gargalo do tipo chapinha (crown cap), reduzimos mais

ainda seu período de uso, ficando ele circunscrito a 1895-1913.

Ao nosso ver o último fator arrolado por Newman – reutilização dos recipientes – constitui o

maior responsável pela dilatação do prazo e sobrevida de um vasilhame de vidro até o seu

descarte definitivo, envolvendo distintos níveis de reutilização: ciclagens, usos secundários

e reciclagem, assuntos tratados posteriormente por diversos autores, e explorados

recentemente por Symanski e Osório (1996) através dos vidros provenientes de sítios de

Porto Alegre. Anos atrás, estudando o campo de batalha de Canudos (1897), deparamo-

nos com indícios da transformação de cacos de garrafas em utensílios de corte e

descarnamento, remanescentes materiais das práticas de sobrevivência adotadas nos

acampamentos militares, provavelmente na fase terminal da guerra, fato abordado adiante

(CEEC-UNEB 1996).

73

Page 74: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

6. ESTUDOS DE CASO

6.1. Ficha de análise e sua aplicação

No intuito de estabelecer um procedimento sistemático de observação dos atributos e

marcas presentes em uma coleção de fragmentos e utensílios de vidro, idealizamos uma

ficha de análise de vidro, a qual foi inicialmente aplicada aos artefatos resgatados na

prospecção no quintal do Museu da Energia de Itu. A mesma ficha, ligeiramente

modificada, foi aplicada aos restos de uma área de descarte de material histórico,

identificada quando do salvamento arqueológico do sítio pré-colonial SP-JA-04, em

Jacareí, SP. As modificações da ficha aplicada a esse sítio visam à reconstituição de

recipientes a partir das formas apresentadas (Anexo 1 e 2).

6.2. Museu da Energia, Itu, SP

Breve histórico

O edifício pertence à Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo (FPHESP),

constituindo um de seus núcleos museológicos (Museu da Energia). Está situado à rua

Paula Sousa, n°.669, no perímetro do sítio histórico da fundação da cidade de Itu, Estado

de São Paulo.

Trata-se de exemplar remanescente do ciclo econômico do açúcar, inclusive com planta e

partido arquitetônico característicos desse período, sendo datado de 1847 (inscrição na

bandeira da porta principal), tendo pertencido ao tenente Antonio Correia Pacheco e Silva,

natural de Itu, "em 1874 (…) registrado como eleitor sob a profissão de capitalista, cuja

renda anual alcançava 20.000$000 réis” (apud TOSCANO 1981: 82 in ZANETTINI 1999a).

Conforme levantamentos, o sobrado foi doação testamentária da Srª. Ignácia Joaquina

Corrêa Pacheco a seu sobrinho Francisco de Assis Pacheco Jr. (1907), que por sua vez

vendeu-o à Companhia Ituana de Força e Luz em 1908.

74

Page 75: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Em 1927 o edifício passou a integrar o acervo da São Paulo Tramway Light and Power Co.

Ltd., quando essa assumiu o controle acionário da Cia. ltuana. Em 1981 o imóvel foi

incorporado à Eletropaulo Eletricidade de São Paulo S.A. por ocasião da transferência da

Light para o Governo do Estado de São Paulo, sendo doado, em 1998 à FPHESP pela

Eletropaulo, atual Empresa Bandeirante de Energia S/A.

Resultados

Esperávamos retirar do casarão uma coleção significativa de frascos e garrafas que

permitissem testar a eficácia da ficha, sobretudo, para os restos relacionados à ocupação

do século XIX, além do exame de padrões comportamentais já observados em sítios

análogos para o período.

Apesar do caráter prospectivo da pesquisa, o quintal não rendeu o esperado, expondo

uma faceta particular da sociedade aristocrática ituana da segunda metade do século XIX,

uma vez que não se observou a recorrência dos padrões de consumo já verificados em

outros sítios semelhantes no Rio de Janeiro, Nordeste e Sul do Brasil.

Os fragmentos de vidros arqueológicos, ao contrário, corroboram uma visão de que a alta

sociedade ituana, apesar da riqueza gerada pelo ciclo paulista da produção de açúcar e,

posteriormente, pela cultura cafeeira, era alheia (ou até mesmo avessa) às inovações

materiais que chegavam freqüentemente da Europa nos portos brasileiros, pelo menos até

a introdução do transporte por via férrea, o que se dá em 1873, com a ligação dessa

cidade à Jundiaí, estação final da SP Railwayxxv.

Essa afirmação se torna mais clara diante da pouca expressão dos artefatos identificados

no sítio.

Nos estratos arqueológicos mais antigos, que abrangem possivelmente os séculos XVI e

XVII, mas, seguramente, o século XVIII e a primeira metade do XIX, encontramos poucos

vestígios vítreos, não fugindo ao padrão da grande maioria dos sítios paulistas que

abrangem esta escala temporal.

75

Page 76: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Já nos estratos que abrangem tipicamente meados do século XIX – época na qual foi

erigido o sobrado que hoje abriga o Museu da Energia – não encontramos os indícios

compatíveis com os padrões de consumo esperados para indivíduos que ocupavam

àquela habitação. Apesar da importância, tanto social, quanto econômica, dos moradores

do sobrado, os restos de vidros arqueológicos são extremamente pobres, quantitativa e

qualitativamente.

Enquanto na cidade do Rio de Janeiro, desde a abertura dos portos, em 1808 (sem contar

o contrabando!), podemos verificar uma abundância de formas, cores e tipos de frascos,

potes ou garrafas de vidro (ANDRADE LIMA 1995a), é só a partir do final do século XIX

que vamos encontrar em Itu essa mesma diversidade existente na Corte.

Apesar da grande riqueza adquirida com o comércio do açúcar, a mentalidade e os

padrões de comportamento ituanos não foram modificados da mesma forma que a

mentalidade das elites cariocas. A tralha doméstica do casarão nos mostrou, ao contrário,

a franca adoção de utensílios de terracota (grande quantidade de potes, panelas e outros

utensílios). Já os registros arqueológicos de vários sítios da cidade do Rio de Janeiro

mostram que, assim que novos produtos arribavam da Europa em nossos portos, eram

avidamente consumidos por uma população que queria se europeizar. De forma contrária,

em Itu, vimo-nos diante de evidências de uma população avessa ao consumismo,

praticando uma acumulação de capital calcada na aquisição de terras.

O segundo fator é decorrente da ligação de Itu com o porto de Santos através de via

férrea. É a partir desse momento que notamos um enriquecimento dos vestígios vítreos

nos estratos arqueológicos. Do ponto de vista da estratificação, na maior parte das áreas

pesquisadas do quintal, esse período mistura-se com o início/ meados do século XX

devido às perturbações geradas pelas interferências construtivas, dificultando um

refinamento da leitura. No entanto, nas sondagens 2 e 6, localizadas em áreas pouco

perturbadas pelos jardins, foi possível detectar alguns recipientes típicos do final do século

XIX, tais como garrafas feitas com sopro humano em moldes.

Com o trem, além dos recipientes de vidro chegarem em maiores quantidades e com

menor risco de se quebrarem, os produtores de Itu podiam mandar suas mercadorias com

maior freqüência para o porto de Santos. Tal operação exigia o aumento do meio

76

Page 77: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

circulante (dinheiro) na praça, o que dava maior mobilidade às operações econômicas

(DEAN 1975). Fábricas foram criadas com esse dinheiro, além do comércio ter sofrido

melhorias. O trem consolida o capitalismo de tipo ocidental moderno na até então

provinciana Itu. É a partir desse momento que a diversidade de trocas exigida pelo sistema

capitalista consolida padrões de consumo que fogem do tosco artefato de barro e

procuram o requinte da fina porcelana francesa, as últimas padronagens de decoração de

faiança fina, as faianças policromicas e as garrafas de vidro para armazenar as gasosas.

Apesar desse registro vítreo se enriquecer, ele deixa transparecer um certo descompasso

entre as novas idéias e as velhas práticas, entre um novo consumo e o antigo modo de

vida do ituano. Não foram encontrados restos de frascos de remédios ou perfumes, tão

comuns nos sítios arqueológicos fluminenses. Esses objetos só começam a aparecer em

registros arqueológicos recentes, da década de 1920/30 para o presente, quando o

desenvolvimento da indústria vidreira nacional, sobretudo paulista, ganha impulso.

6.3. Um lixão da segunda metade do século XX. Salvamento Arqueológico do sítio

Villa Branca (SP-JA-04), Jacareí, SP

Breve histórico

A coleção de vidros ora apresentada foi coletada durante o salvamento arqueológico de

uma aldeia da tradição Tupiguarani (SP-JA-04), situada no interior da antiga Fazenda Villa

Branca, em Jacareí, no Vale do Paraíba.

Além das atividades diretamente relacionadas ao reconhecimento e salvamento do referido

sítio, a equipe realizou levantamentos voltados à reconstituição dos quadros de ocupações

e usos da fazenda para épocas posteriores à ocupação indígena, tendo em vista a

constatação, por parte do arqueólogo Wagner Gomes Bornal da Fundação Cultural Jacareí

(responsável pela identificação e cadastramento do sítio), de algumas evidências isoladas

tais como louças oitocentistas presumivelmente de procedência inglesa e louças

portuguesas do início do século XX.

77

Page 78: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

A Fazenda Villa Branca foi adquirida em outubro de 1974 pelo empresário Jorge Kalil,

proprietário da Ligage Intermediação Mercantil, Promoções e Empreendimentos Ltda., e

pertence aos herdeiros do mesmo até hoje, sendo estes co-responsáveis pelo

empreendimento imobiliário implementado no local.

Supõe-se que sede hoje existente tenha sido erguida entre as décadas de 1930/40,

passando por reformas em meados da década de 1950.

Não foi possível identificar durante as etapas de reconhecimento e salvamento, quer por

meio de varredura superficial da área global ou sondagens controladas, vestígios e

estruturas que pudessem ser afiliadas à ocupações anteriores ao século XX.

E os restos arqueológicos históricos resgatados ainda nos informam que, durante um curto

espaço de tempo, Villa Branca foi abandonada por seus proprietários. Comenta-se que a

residência "permaneceu fechada e ocupada por marginais", período em que

provavelmente ficou desguarnecida a faixa de terreno fronteira da propriedade junto à

estrada, transformando-se ela em um "lixão" onde foram descartadas toneladas de entulho

construtivo e dejetos domésticos.

Conforme mencionado, o material histórico-arqueológico coletado corresponde a

processos de consumo exógenos, ou seja, ele não foi originado a partir do descarte dos

restos materiais derivados das atividades diárias dos proprietários e trabalhadores da

fazenda. Provém o entulho, em sua maior parte, de residências urbanas de padrão socio-

cultural mediano de Jacareí e/ou imediações.

Monturos de entulho estão presentes por a área frontal da propriedade, ladeada pela

Rodovia SP 66 (antiga Rio-São Paulo), observando-se algumas zonas de concentração

diferenciais, estando algumas delas, porventura, diretamente relacionadas às edificações

de colonos outrora existentes. Todavia, as perturbações verificadas posteriormente na

área do empreendimento (obras de infra-estrutura, tais como arruamento, asfaltamento e

esgoto) e também as atividades de estocagem e aragem para a implantação/manutenção

das pastagens, constituíram empecilhos para um exame mais apurado dos refugos dessas

unidades domésticas.

78

Page 79: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Resultados

Foram coletados cerca de 2.416 fragmentos, universo representado por restos vítreos,

louças, metais e artefatos elaborados com derivados de petróleo (borracha e plástico) que

serviram como elementos diagnósticos para o estabelecimento de uma cronologia de sua

deposição, funcionando como um exercício metodológico.

A datação relativa, obtida a partir da análise das logomarcas presentes no material

cerâmico, remete-nos a produtos confeccionados entre 1920 e 1974, aproximadamente,

periodização indicada pelo início, pico e término de funcionamento de fábricas tais como a

Santo Eugênio (que fechou suas portas em 1973), a cerâmica de Conrado Bonadio (1940-

?) e por algumas fábricas de Mauá e Jundiaí. Afinando essa datação temos o período de

instauração do “lixão”, que deve estar situado entre a década de 1960 e início dos anos 70.

Com relação á data final de deposição, sabe-se que a utilização do local para despejo de

entulho não excedeu a 1974, quando a fazenda foi adquirida por Kalil e foi novamente

introduzida a figura do administrador na área, o qual permanece até hoje, garantindo o

controle sobre a propriedade e impedindo novos bota-foras.

Os fragmentos e recipientes de vidro identificados nos remetem em sua maioria às

décadas de 1950/70. Juntamente com eles observamos artefatos mais antigos, tais como

vidraças decoradas, as quais nos fazem recuar no tempo (época de produção certamente

anterior a 1950), sugerindo ter havido um boom de reformas/ demolições em Jacareí no

período referido, possivelmente reflexo do “milagre econômico” vivenciado nos anos 1970.

Adotamos para a classificação e análise do acervo vítreo a ficha de análise já mencionada,

ligeiramente modificada, aplicando-a em 70% da coleção global. Foram então analisados

cerca de 800 fragmentos/ objetos inteiros, sendo observados atributos tecnológicos e

traços derivados de fabricação, aspectos morfológicos e funcionais.

79

Page 80: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Artefato Garrafa Frasco Pote Copo/ Cálice Adorno Plano Outros

Parte Inteiro 79 1 2 3 Corpo 52 19 2 20 8 2

Gargalo 15 37 9 2 5 Base 24 53 10 3 4

Não identificado/tampa 60 28 7 19 25 76 Forma

Cilíndrica 76 86 1 22 1 4 Quadrada 1 7 4 Sextavado 5

Específica/oitavado 7 85 12 7 33 Coloração

Incolor 29 138 3 32 21 30 69 Verde 74 6 1 6 Âmbar 45 51 1 1 Azul 6 4 1 3

Outras/branco/misto 2 1 1 Tipo de Vedação Chapinha metálica 10

Rolha 3 14 Rosca/tampa plástica 1 49 1 1 Tampa de borracha 21

Nenhuma 1 Sinais de confecção

Pontel 2 Ferramenta 1 1 Molde único 1 1 3 Molde duplo 18 52 2 Molde triplo 1

Parison e molde 27 3 Prensa

Indefinidos 17 6 1 1 7 1 Técnica Manual 1 1(?) 2 (?) 2

Semi-automático 5 (?) Automático 10 56 1 11 2 Float glass 9

Não identificada 33 23 1 3 3 10 7 Inscrições

Molde (base e parede) 88 83 5 4 15 14 Aplicadas a posteriori Conteúdo original Bebidas alcólicas 22 1 (?)

Refrigerantes 13 Remédio 83 1

Cosmético 16 Produto de limpeza Comestível/mesa 2 15 19 1 17

Indefinido 83 28 3 7 14 Procedência

Nacional 4 60 8 1 Estrangeira 1 Indefinida 38 13 2 3 15 9

80

Page 81: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Foi possível reconstituir, a partir dos fragmentos, cerca de 151 garrafas, 216 frascos, 3

potes, 48 copos, 34 objetos de adorno, 25 porções de vidro plano (vidraça) e 90

elementos relativos a peças automotivas, aparatos de iluminação e outros componentes

não identificados (Gráfico).

0

50

100

150

200

250

Garrafas Frascos Potes Copos /Cálices

Adornos Planos Outros

Artefatos de vidro

Foram também observadas as seguintes marcas impressas, via de regra na base dos

utensílios.

6.3.1. Logomarcas de fabricantes

Foram identificadas 15 logomarcas, das quais 8 conhecemos a origem do fabricante. Para

a identificação das demais serão necessárias consultas às entidades e arquivos

relacionados aos segmentos de produção (indústria vidreira propriamente dita, setor

farmacêutica, alimentício, automotivo, etc.), uma vez que elas nos reportam a empresas já

desaparecidas ou a produtos que não são mais fabricados.

81

Page 82: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Apresentamos a seguir às marcas observadas:

FÁBRICA LOGOMARCA INÍCIO DA

PRODUÇÃO PRODUTOS QUANTIDADE

Wheaton W 1952 Farmácia e

cosméticos 52

Santa Marina SM 1896/1901

Farmácia,

Cosméticos e

alimentos/bebidas

28

Nadir Figueiredo

(1935) N

1907/1913/1935

Alimentos, artigos

de mesa 1

Cisper C/CISPER/CI/Ci 1918 Artigos de

mesa/garrafas

6

Kadoro K 1965 Copos 4

?

A.G.W. ? Farmácia 1

?

V ? Farmácia 1

…DLAMP

(England) Idem

No Brasil após

1960 (sealed

beam)

Automotiva 1

? T.A.L. ? Farmácia/

Cosméticos 2

C J ? 1

Constivel ? Copo 1

I J ? Perfumaria 1

6.3.2. Logomarcas de produtos

São apresentadas, adiante, algumas inscrições constantes nos corpos dos recipientes

vítreos (marcas decorrentes de gravações negativas feitas nos moldes), indicando, em

alguns casos, tratarem-se elas de inscrições referentes aos conteúdos envasados e não

às marca dos fabricantes propriamente ditos.

82

Page 83: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

PRODUTO OU

FÁBRICA

LOGOMARCA

OBSERVADA

CONTEÚDO

DO RECIPIENTE QUANTIDADE OBS:

S/marca - Americano Copo 1 1

S/marca - etti Alimentos

S/marca (?) Dinistene B12

Pravaz Recordatti

Farmácia

(ampola) 1

Produzidos após

1939 no Brasil

S/marca

Ibimedical

Cremizin/Florenzi

ni

Farmácia Inscrições na

tampa plástica

- grappette Refrigerante 1 No corpo do

recipiente

S/marca Perfume de Flores Cosmético 1 No corpo do

recipiente

S/marca LORENZ…

AUL… Farmácia 1 Na base

C J Goyana Escritório

(adesivo) 1 No corpo

V Tic Tac Farmácia 1 No corpo

S/marca

Mel poejo para

creanças OU

Mel poejo para as

crianças

Farmácia 2

Apresenta

variação na

inscrição

(atualização

português)

Bristol e Myers do

Brasil S.A.(?) MUM desodorante Cosmético 1

Tampa em vidro

leitoso

S/marca …LAVEL ? 1

S/marca Glostura Escritório

(adesivo)

S/marca Caçula "mamadeira'' 1 Contém dosímetro

S/marca Colgate Cosmético 1

(Santa Marina)

SM Panvermina Remédio 1

(Santa Marina) Marinex Artigo de mesa

(prato) 1

Produzidos após

1952 pela Santa

Marina (Pyrex)

Kadoro Opaline Xícara 1

Os exemplares acima descritos nos remetem, em sua maioria, à produção de caráter

industrial, com tecnologia mecânica automática, onde predominam os moldes duplos.

83

Page 84: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Do acervo total selecionamos os objetos inteiros ou os artefatos em melhores condições,

criando uma coleção de referência para o acervo da Fundação Cultural de Jacareí. Essa

coleção, em quase toda a sua totalidade, remete-nos à produção pós-1950 da indústria

nacional.

O maior número de recipientes bem conservados é relativo ao segmento produtivo

voltado à indústria farmacêutica e de cosméticos, representado na nossa amostra por

frascos de formas diversas com capacidades inferiores, via de regra, a 100ml, destinados

a conteúdos secos (pó ou drágeas) e líquidos.

Os frascos de maiores proporções nos remetem às panacéias como os centenários

Biotônico Fontoura, Leite de Magnésia de Phillips e sucedâneos, de venda livre e

irrestrita, sem posologia e substituídos para embalagens plásticas no decorrer das

décadas de 1970/80. Constam ainda flaconetes e ampolas, recipientes produzidos no

Brasil com maior regularidade apenas após a Segunda Grande Guerra.

Somam-se ainda os frascos destinados a produtos de higiene e beleza, além de objetos e

utensílios de adorno doméstico, possivelmente bonbonieres, potiches e outros utensílios,

confeccionados em forma ou prensa, quase sempre mimetizando em vidro barato objetos

de cristal facetado, não acessíveis aos potenciais usuários identificados através da

análise.

A predominância de frascos destinados à indústria farmacêutica expõe algumas facetas

dos processos intervenientes na formação do depósito, fato que será explorado com a

continuidade do trabalho. Por outro lado, devido às suas menores proporções e formas,

tendem a se fragmentar menos, permitindo um diagnóstico mais claro, ao passo que

garrafas se partem em dezenas de pedaços destituídos de informações (Figura 23, 24 e

25).

84

Page 85: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 23 – Coleção de referência de frascos recolhidos na área do “lixão” durante o salvamento arqueológico do sítio Villa Branca, em Jacareí. Em sua quase totalidade constituem exemplares de continentes produzidos industrialmente com tecnologia automática. Alguns exemplares sugerem produção manual (apresentam marcas de pontel) ou semi-automática.

Figura 24 – No alto, exemplares de frascos produzidos para a indústria farmacêutica. Predominam os produzidos pela Wheaton, instalada no Brasil no decorrer da década de 1950.

85

Page 86: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 25 – Frascos de coloração âmbar destinados à indústria farmacêutica e de cosméticos.

Vale acrescentar que, no campo da indústria vidreira nacional voltada para o segmento

farmacêutico, todos os indícios sugerem haver uma grande influência norte-americana na

transferência de tecnologia, enquanto que no caso da produção de garrafas e outros

continentes destinados à indústria de alimentos, uma influência maior da tecnologia

européia.

Além de recipientes, observa-se nesse registro, associada a material construtivo, uma

grande diversidade de vidraças lisas e com decoração, exibindo técnicas artesanais

(polimento, por ex.) e industriais (float glass), tecnologia empregada desde o início da

década de 1980 na unidade industrial da CEBRACE de Jacareí.

Finalmente, vale acrescentar que apesar da amostra nos remeter à produção recente,

foram identificados alguns fragmentos produzidos por meio de técnicas artesanais, fato

que não é de se estranhar pelos diversos motivos apontados anteriormente. Confessamos

ainda hesitar na precisa diferenciação de traços de fabricação, principalmente daqueles

presentes em frascos.

86

Page 87: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

A menor expressão, observada nessa jazida, de vasilhames destinados a refrigerantes e,

sobretudo, às cervejas, está diretamente relacionada ao processo de re-uso adotado no

mercado nacional de cerveja, hoje consumindo cerca de 10 bilhões de litros, ou cerca de

60 litros anuais per capita (1999). Cerca de 80% da cerveja comercializada no país ainda

se faz através dos vasilhames retornáveis e, contradizendo às previsões do final do

século passado, ainda não há um substituto para velha “ampola” de 600ml.

6.4. Parque Estadual de Canudos, Bahia

O último case a ser sumariamente descrito é motivado pela reparação a ser feita com

relação ao diagnóstico de exemplares vítreos erroneamente descritos como semi-

automáticos coleção obtida em 1987 no Parque Estadual de Canudos (CEEC-UNEB

1996).

As condições pedogenéticas locais não permitem a formação sistemas deposicionais, a

partir dos quais são elaboradas as clássicas estratigrafias por camadas da arqueologia.

Nesse sentido, estão depositados, no nível atual e pedregoso, desde lascas e utensílios

atribuídos à Tradição Itaparica, até projéteis e estojos alemães derivados do conflito

bélico ali travado (1896/97) e fragmentos de garrafas de refrigerantes e frascos de

perfume Coty das décadas de 1950/60.

Há cerca de dez anos, porém, quando demos início aos trabalhos de reconhecimento e

delimitação do Parque Estadual de Canudos (a pesquisa foi retomada em 1997, uma

década após ter sido iniciada), deparamo-nos com áreas de concentração de vestígios

vítreos e louças inglesas e holandesas associadas a enterramentos, sobretudo, no Vale

da Morte, local historicamente assinalado na cartografia como adotado para os hospitais

de sangue e acampamentos militares entre janeiro e outubro de 1897.

Contando com esse recorte temporal preciso, procedemos à coleta intensiva dos vestígios

ali presentes.

Conforme já mencionado, separados os cacos partidos e facetados devido ao pisoteio e

ao atrito com o solo pedregoso, deparamos-nos com alguns fragmentos, notadamente um

corpo de garrafa apresentando uma serrilha regular ao longo de uma das extremidades.

87

Page 88: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Atentos ao fato, buscamos explicações, encontrando nas zonas de combate referências

ao aproveitamento de telhas das casas de Canudos para a produção de beiju de raízes

do umbuzeiro. Ilhados, sem comida, sem água e a espera de reforços que não chegavam,

os praças devem ter se utilizado dos fragmentos de garrafas de vidro, reciclando-os na

forma de facas, raspadores e outros utensílios necessários a sua sobrevivência.

Uma reparação, porém, deve ser feita ao procedimento de classificação por nos adotado

na época, distinguindo exemplares semi-automáticos de outros automatizados com base

na aplicação mecânica da bibliografia.

No nosso entender, constituiriam as garrafas em produtos semi-automáticos, tendo em

vista o período preciso de sua deposição, apresentando maior regularidade de forma,

exibindo ou não marcas de molde, sendo possível observar no ponto de contato do

gargalo com o pescoço, marcas derivadas da operação de junção, notando-se que o

bocal foi produzido por ferramenta, apresentando regularidade no diâmetro interno.

Uma das marcas decorrentes desse processo é a presença de pequenas parcelas de

vidro escorrendo pelo pescoço (tal qual ocorre quando utilizamos cola em excesso na

junção de algum objeto).

As garrafas existentes em Canudos, sobretudo aquelas recolhidas no Vale da Morte

(deixamos de lado as demais encontradas em unidades habitacionais anteriores ao

conflito), constituem exemplares feitos com sopro humano em forma, com a aplicação de

gargalos com o auxílio de ferros de marisar ou de tornear, sem que possamos identificar a

sua exata procedência, mas que efetivamente foram descartados em 1897. Esses traços,

que nos fizeram incorrer nesse erro, todavia, poderão colaborar para o melhor

conhecimento e datação de artefatos trazidos ou produzidos em território nacional,

justamente quando se iniciava a implantação do parque vidreiro industrial na região

sudeste do Brasil.

É fato digno de nota ressaltar que, à época, efetuamos uma grande busca na

documentação primária do arquivo do Exército, não identificando nenhuma menção à

aquisição de garrafas de vidro ou aos conteúdos a elas relacionados, tampouco dados

sobre o consumo de bebidas alcoólicas na tropa. Parece-nos óbvia a ausência de menção

às bebidas alcoólicas nos registros oficiais, porém, tal qual nos campos de batalha norte-

88

Page 89: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

americanos, as garrafas existem em profusão no solo pedregoso da caatinga (Figuras 26

a 29).

Por enquanto, é só...

Figura 26 – Monturo de cacos de vidro do sítio Fazenda Velha, habitação erguida possivelmente no final do século XVIII, abandonada por anos e reocupada até a década de 1970. Nesse caso é possível observar tanto garrafas manuais do século XIX, como exemplares automáticos do século XX, sugerindo um padrão específico de descarte de artefatos de vidro em ambientes domésticos.

Figura 27 – Esses gargalos, erroneamente tratados como pertencentes a garrafas produzidas com tecnologia mecânica semi-automática, foram coletados na fazenda Macambira, a qual foi ocupada até a destruição de Canudos. Nota-se as marcas deixadas pelos ferros de marisar.

89

Page 90: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Figura 28 – Faculdade de Medicina da Bahia em 1897 (LEVINE 1992: 181). A fotografia mostra a utilização de garrafas de bebidas para o acondicionamento de produtos farmacêuticos, alertando para o fato de que os fragmentos encontrados no Parque E. de Canudos podem nos remeter à localização dos hospitais de sangue e não a dos acampamentos.

Figura 29 – Fim da Guerra de Canudos (1897). Flagrante registrado pelo fotógrafo Flávio de Barros mostra oficiais realizando uma refeição sentados em uma tosca mesa. Esta cena parece arranjada pelo fotógrafo, pois a disposição harmoniosa dos apetrechos, incluindo aí as garrafas, sugere a retomada do controle sobre a situação, como se as fotos estivessem sendo tiradas para narrar uma história em capítulos.

90

Page 91: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

7. BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Marcos; VELEDA, Lucena. 1988 Forte Real do Bom Jesus: resgate arqueológico de um sítio histórico. Recife: CEPE. 1997 Arraial Novo do Bom Jesus. Consolidando um processo, iniciando um futuro. Recife: Ed. Graftorre. ALBUQUERQUE, Paulo T. de Souza. 1991 A faiança portuguesa dos séculos XVI a XIX em Vila Flor, RN. Recife. Dissertação (Mestrado em História). CFCH-UFPE. ALENCASTRO, Luiz. F. 1988 Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos CEBRAP, nº. 21. ANDRADE LIMA, Tania. 1989 A tralha doméstica em meados do século XIX: reflexos da emergência da pequena burguesia do Rio de Janeiro. Dédalo, São Paulo, publicação avulsa do MAE-USP, 1, p. 205-230. 1993 Arqueologia histórica no Brasil: balanço bibliográfico (1960-1991). Anais do Museu Paulista, Revista de História e Cultura Material, São Paulo, Nova Série, vol. 1, p. xxx-xxx. 1995a Humores e Odores: ordem corporal e ordem social no rio de janeiro, século XIX. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, II (3): 44-96, Nov. 1995-Fev. 1996. 1995b Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX". Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, vol. 3, p. 129-191. 1995c Arqueologia histórica no Brasil: uma experiência de ensino. ANDRADE LIMA, T. (org.). Cotidiano doméstico e cultura material no século XIX. Columbia: The South Carolina Institute of Archaeology and Anthropology. 1997 Chá e simpatia: uma estratégia de gênero no Rio de Janeiro oitocentista. Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova série, vol.5, p. 93-129. ANDREATTA, Margarida Davina. D. 1986 A Casa do Grito, Ipiranga: Programa de Arqueologia Histórica no Município de São Paulo. Revista do Arquivo Municipal, 197, Sec. Municipal de Cultura, p. 151-172. 1986 Arqueologia Histórica – Cidade de São Paulo. Arqueologia (CEPA/ UFPR), 5, p. 113-115. . 1991 Projeto de Arqueologia da Serra do Itapeti. Capela de Santo Alberto, Mogi das Cruzes, São Paulo. Programa e Resumos da VI Reunião Cientifica da Sociedade Brasileira de Arqueologia (SAB), SAB/ FINEP/ UNESA, Rio de Janeiro. APPERT, Léon; HENRIVAUX, Jules. 1894 Verre et verrerie. Paris: Gauthier-Villars et Fils. ÁLVARES DE AZEVEDO, Manoel A. 1976 Cartas de Álvares de Azevedo. São Paulo: Academia Paulista de Letras. Vol. 1. ÁLVAREZ, José Sierra. 1992 El complejo vidriero de Campóo (Cantabria), 1844-1928. Una aportación a la historia de la industria española del vidrio. Revista de Historia Industrial, Universitat de Barcelona, nº. 2. P. 63-85.

91

Page 92: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

BARY, Paul; HERBERT, Jean. 1941 La verrerie. Paris: Dunod. BAVA DE CAMARGO, Paulo F. 1998 Subsídios para a história do vidro no Brasil (séculos XIX e XX). São Paulo: s.c.e. Relat. Técnico. Bolsa-auxílio Zanettini A./ Documento A. A. Ltda. BAUGHER-PERLIN, Sherene. 1988 Analyzing glass bottles for chronology, function, and trade networks. DICKENS Jr., Roy J. Studies in Historical Archaeology, Archaeology of Urban América. Nova York: Academic Press. P. 259-327. BRANDÃO, Ignácio de Loyola. 1996 Santa Marina, 100 anos. Um futuro transparente. São Paulo: DBA. BRUNO, Ernani da Silva. 1974 Equipamentos de trabalho nos inventários e testamentos coloniais. São Paulo: Museu da Casa brasileira/ Sec. de Estado da Cultura/ DPH-PMSP. BUENO, Francisco de A. Vieira. 1976 A cidade de São Paulo. São Paulo: Academia Paulista de Letras. Vol. 2. BUSCH, Jane. 1987 Second time around: a look at bottle reuse. Historical Archaeology, vol. 21, nº. 1, p. 67-80. CEEC-UNEB. 1996 Arqueologia Histórica da Guerra de Canudos: estudos preliminares. Salvador: Portifolium Ed. CEEC-UNEB. 2002 Arqueologia e reconstituição monumental do Parque Estadual de Canudos. Salvador: UNEB. DAMOUR, Emilio. 1929 Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechnique. 1º. vol. 1932 Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechnique. 2º. vol. 1936 Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechnique. 3º. vol. DEAN, Warren. 1975 A industrialização de São Paulo. São Paulo: EDUSP/ Difel. DEVEZA, Guilherme. 1976 Um precursor do comércio francês no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. Col. Brasiliana, vol.362. ECOPLAM; CEEC-UNEB. 1998 Reconhecimento arqueológico e cadastro de sítios, propriedade Landco, município de Mata de São João Bahia. Salvador: s.c.e. Relat. técnico. ESPLENDOR. 2000 O esplendor do vidro – cristais Fratelli Vita. São Paulo: Pinacoteca de Estado. Catálogo de exposição. 92

Page 93: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

EXPOSIÇÃO. 1998 Exposição Vista Alegre – porcelana portuguesa, testemunho da história. São Paulo: Pinacoteca do Estado. Catálogo de exposição. FRANK, Susan. 1982 Glass and archaeology. Londres: Academic Press. FRISCH, Pierre. 1992 Identificação de diversos tipos de vidro. São Paulo: Frish Verrier. Relat. técnico. FUNARI, Pedro P. Abreu (org.). 1998 Cultura material e arqueologia histórica. Campinas: IFCH-UNICAMP. HIER. 1980 Hier pour demain: arts, tradition et patrimoine. Paris: Réunion des musées nationaux. Catalogue de l'exposition du Grand Palais. HUME, Ivor Nöel. 1986 A Guide to artifacts of Colonial America. Nova York: Borzoi/ Knopf. JACOBUS, André Luiz. 1997 Resgate arqueológico e histórico do registro de Viamão (Guarda Velha, Santo Antônio da Patrulha, RS). Taquara. Dissertação (Mestrado em História). IFCH-PUC. Versão revista e ampliada. JONES, Olive R. 1971 Glass bottle push-ups and pontil marks. Historical Archaeology, vol. 5, p. 62-73. 1981 Essence of peppermint, a history of medicine and its bottles. Historical Archaeology, vol. 15, nº. 2, p. 1-57. 1983 London mustard bottles. Historical Archaeology, vol. 17, nº. 1, p. 69-85. LA VERRERIE. 1999 La verrerie de Trinquetaille, entre tesselles et tessons. Le journal des arlésiens, janeiro, nº. 21. LEVINE, Robert. 1992 Vale of Tears: The Canudos Massacre in Northeast Brazil Revisited. Miami University. LEVY, Fortuneé. 1943 Vidros e Cristais. Anuário do Museu Imperial de Petrópolis. LORRAIN, Dessamae. 1968 An archaeologist guide to nineteenth century american glass. Historical Archaeology, vol. 2, p. 35-44. LUZ, Nícia V. 1975 A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Alfa Omega. MARTIN, Gabriela. 1988 A Missão Carmelita de Vila Flor: primeiros resultados do projeto arqueológico-histórico. Clio, nº. 10, p. 143-157.

93

Page 94: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

MAURO, Frèdèric. 1991 O Brasil no tempo de dom Pedro II (1831-1889). São Paulo: Cia. Das Letras/ Círculo do Livro. MCKEARIN, Helen; WILSON, Kenneth W. 1978 American bottles and flasks and their ancestry. New York: Crown Publishers. MELLO Neto, Ulysses Pernambucano de. 1983 O Forte das Cinco Pontas: um trabalho de arqueologia histórica aplicado à restauração do monumento. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife/ Sec. de Estado da Cultura. MEMÓRIAS 1815 Memórias econômicas da Academia Real de Ciências de Lisboa. Fac símile. MENDES, José M. A.; RODRIGUES, Manuel F. 1992 Santos Barosa. 100 anos no vidro. Marinha Grande: Santos Barosa. MILLER, George. L.; SULLIVAN, Catherine. 1984 Machine-made glass containers and the end of production for mouth-blown bottles. Historical Archaeology, vol. 18, nº. 2, p. 83-96. MILLER, George. L.; PACEY, Antony. 1985 Impact of mechanization in the glass container industry: the Dominion Glass Company of Montreal, a case study. Historical Archaeology, vol. 19, nº. 1, p. 38-50. MÜLLER, Daniel Pedro. 1978 Ensaio d’ um Quadro Estatístico da Província de São Paulo [1837]. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo. NF Indústria e Comércio. 1981 O vidro. São Paulo: s.c.e. Relat. técnico. NEWMAN, T. Stell. 1970 A dating key for post-eighteenth century bottles. Historical Archaeology, vol. 4, p. 70-75. NOZOE, Nelson H. 1984 São Paulo: economia cafeeira e urbanização. Estudos de estrutura tributária e das atividades econômicas na capital paulista (1889-1933). São Paulo: IPE-USP/ PNPE. PITTMAN, William E. 1990 Review: JONES, Olive. Cylindrical english wine and beer bottles (1986). Historical Archaeology, vol. 24, nº. 1, p. 121-123. POLAK, Michael. 1997 Bottles: identification and price guide. Nova York: Avon Books. 2a. edição. PROJETO. 2002 Projeto Fronteira Ocidental - arqueologia e história - Vila Bela da Santíssima Trindade/ MT. São Paulo: Zanettini Arqueologia/ Governo de Mato Grosso. Relat. técnico – final da Fase 1. PROSTES, Pedro. 1908 Indústria do vidro. Lisboa: Bibliotheca de Instrucção e Educação Profissional. 94

Page 95: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

ROBRAHN-GONZALEZ, Erika M.; ZANETTINI, Paulo E. 1997 Projeto Sauípe, BA. Salvamento arqueológico – primeira fase. São Paulo: Documento A. A. Ltda. Relat. técnico. 1999 Reconhecimento e salvamento arqueológico do sítio Villa Branca (SP-JA-04), município de Jacareí, SP – relatório final. Relat. técnico. 1999 Jacareí às vésperas do descobrimento: a pesquisa arqueológica no sítio Santa Marina. Jacareí: O Expresso. RECORDAÇÕES. 1977 Recordações da Exposição de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos Amigos do Livro. SANDRONI, Cícero. 1989 O Vidro no Brasil. Metavídeo Prod. Ltda./ CISPER. SCATAMACCHIA, Maria C. Mineiro. 1994 O encontro entre culturas: índios e europeus no século XVI. São Paulo: Atual. SMITH, Robert C. 1997 Documentos Baianos. Revista do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional, nº. 26, p. 268-288. SYMANSKI, Luis C. Pereira. 1998a Bebidas, panacéias, garrafas e copos: a amostra de vidros do solar Lopo Gonçalves. Artigo submetido à revista de Estudos Monçoneiros (no prelo). 1998b Espaço privado e vida material em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: EDIPUCRS. Col. Arqueologia, 5. SYMANSKI, Luis C. Pereira; OSÓRIO, Sérgio R. 1996 Artefatos reciclados em sítios históricos de Porto Alegre. Revista de Arqueologia (SAB), 9, 1-6, p. 43-55. WRIGHT, Antonia F. P. de Almeida. 1978 Desafio americano à preponderância britânica no Brasil – 1808-1850. São Paulo: Cia. Ed. Nacional. Col. Brasiliana, vol.367. ZANETTINI, Paulo E. 1991 Ouro e Ciência no meio da mata. Revista Nova Ciência, ano II, nº. 9, p. 12-16. 1998 Calçada do Lorena: um caminho para o mar. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). MAE-USP. 1999a Relatório final do projeto Prospecções Arqueológicas no Quintal do Museu da Energia, cidade de Itu. São Paulo: s.c.e. Relat. técnico. 1999b Pesquisa arqueológica no Museu da Energia, núcleo de Itu: primeiras notas. Revista Memória Energia, FPHESP, nº. 26, jan.-ago., p. 52-61. 2004 Prospecções arqueológicas – sítio Petybon, bairro da Lapa, cidade de São Paulo. São

Paulo: s.c.e. Relat. técnico.

95

Page 96: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

8. BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE VIDRO COMENTADA

O pesquisador Marcos André T. Sousa vem reunindo, há alguns anos, informações com vistas à elaboração de um catálogo de vidros voltado para a arqueologia. Julgamos oportuno, mediante consulta ao mesmo, incluir esta relação bibliográfica comentada no presente artigo. British Glass 1992 Making Glass. 3rd edition. Knight Design, London. Trata-se de um livro (pequeno) sobre a indústria de vidro de uma forma geral, mas que traz uma excelente explicação sobre alguns métodos de fabricação de garrafas semi-automáticas e automáticas e que foi seguida por muitos autores (Miller e Sullivan e Jones e Sullivan nesta relação); o mesmo para o método pressed glassware; dá ainda boas explicações sobre técnicas mais contemporâneas como fabricação de lâmpadas elétricas. Busch, Jane 1991 Second Time Around: A Look at Bottle Reuse. Approaches to Material Culture

Research for Historical Archaeologists. George Miller et al. (comp.). The Society for Historical Archaeology , Pennsylvania, USA.

Trata da questão da reutilização. Discute a “sobrevida” de vasilhames nos Estados Unidos nos séc. XVIII e XIX, com destaque para o comércio de garrafas e suas implicações na análise destes artefatos. Muito citado em diversos estudos. Fike, Richard E. 1987 The Bottle Book. A Comprehensive Guide to Historic, Embossed Medicine Bottles.

Gibbs M. Smith, Salt Lake City, USA. É um catálogo para identificação de medicinais. Antes do catálogo há um capítulo dedicado à interpretação de cor e forma. O catálogo, bastante amplo, foi criado com base em coleções arqueológicas e anúncios. No fim há uma bibliografia comentada que é excelente. Embora seja uma ótima fonte para identificação de peças, deve ser usado com cautela, pois eu já encontrei algumas imprecisões; o leitor deve ser também persistente ao consulta-lo porque o índice é muito confuso. Handall, Mark E. 1971 Early Marbles. Historical Archaeology, 5: 102-106. Discute as técnicas de manufatura, tipos e cronologias das bolas de gude de pedra, cerâmica e de vidro, ressaltando o potencial deste tipo de artefato para definição de cronologias. Hill, Sarah 1982 An Examination of Manufacture-Deposition Lag for Glass Bottles From Late Historic

Sites. Archaeology of Urban America: The Search for Pattern and Process. Roy J. Dickens Jr. (ed.), Academic Press, New York. P. 291-327.

Trata-se de um estudo sobre o intervalo manufatura-deposição existente em três sítios. Anterior ao estudo, discute a aplicação da fórmula South para as garrafas, os vários processos pelos quais passa o vasilhame até ser depositado no sítio (incluindo a reciclagem), seus conteúdos e inferências possíveis. No estudo, aplica a fórmula South, discorrendo a seguir sobre o comportamento das freqüências em que cada grupo de artefatos aparece em cada sítio. Sua interpretação está centrada na observação de padrões de consumo.

96

Page 97: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Hume, Ivor Noel 1969 Artifacts of Colonial America. Vintage Books, New York, USA. P. 60-76. Há capítulos dedicados às garrafas de bebidas alcoólicas e medicinais. No primeiro, destaque para as formas datadas de garrafas “de vinho” que permitem que acompanhemos a evolução deste tipo de artefato; destaque também para as case bottles – ele faz algumas considerações sobre este tipo de garrafa e na literatura pouco encontramos sobre elas; nos medicinais ele apresenta também algumas discussões e ilustrações de peças dos séculos XVII, XVIII e início do XIX, também com aparições muito raras na literatura. Jones, Olive R. 1971 Glass Bottle Push-ups and Pontil Marks. Historical Archaeology, 5: 62-73. Este artigo é um clássico. Define e discute os push-ups e marcas de pontel. Inicialmente fornece uma explicação sobre o porque da presença dos push-ups que mais complica do que esclarece; em seguida apresenta os tipos de push-ups e de pontéis utilizados em garrafas e como reconhece-los na peça, com respectivas medidas e traços diagnósticos; apresenta também cronologias para cada tipo. É um trabalho de referência para quem precisa entender as marcas de push-up e de pontel, útil sobretudo para quem trabalha com o séc. XVIII e primeira metade do XIX. Jones, Olive R. 1983 The Contribution of The Ricketts Mould to the Manufacture of the English “Wine”

Bottle, 1820-1850. Journal of Glass Studies, 25: 167-77. É um artigo ótimo sobre os moldes Ricketts, fornecendo cronologias muitos estreitas. Jones, Olive R. 1983 London Mustard Bottles. Historical Archaeology, 1983: 69-84. Específico sobre as garrafas de mostarda, cuja forma é bastante peculiar. Apresenta suas principais características e a história de sua produção na Inglaterra e Estados Unidos (sobre as garrafas de mostarda ver também Jones, 1993 nesta relação). Jones, Olive R. 1986 Cylindrical English Wine e Beer Bottles. 1750-1850. National Historic Parks and

Sites Branch/ Environment Canadá - Parks, Canadá. A grande polêmica. É um estudo que foi realizado em garrafas “de vinho” cilíndricas inglesas datadas (se não me engano quase todas com selos) e outras não datadas visando estabelecer critérios de datação. Ela apresenta sucintamente as técnicas de manufatura do período e o uso dos vasilhames e como a cronologia foi estabelecida. A seguir apresenta cronologias para o topo, corpo e fundo. Discute ainda métodos de mensuração (melhor descritos em Jones e Sullivan nesta relação) e capacidades. Embora a cronologia para a forma das garrafas seja muito interessante, deve ser visto com muita cautela porque a autora se refere exclusivamente às garrafas inglesas, longe de ser uma fórmula mágica, pois sabemos que pelo menos os padrões franceses eram diferentes em muitos aspectos.

97

Page 98: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Jones, Olive R.; Catherine Sullivan et al. 1989 The Parks Canada Glass Glossary. Revised edition. Canadian Parks Service,

Ottawa, Canada. É uma obra extremamente completa, muito útil para identificação e classificação. Apresenta as formas e técnicas de manufatura, como podemos identifica-las nas peças e cronologias, com tópicos para as garrafas, tableware, tampas e vidro plano. As técnicas de laboratório, incluindo as mensurações são também descritas. É um excelente ponto de partida para a criação de sistemas de classificação de coleções históricas e de descrições comparáveis. Jones, Olive R. 1993 Commercial Foods, 1740-1820. Historical Archaeology, 27(2): 25-41. Apenas um tópico do artigo é dedicado ao vidro, mas é interessante porque integra como via analítica a identificação dos vasilhames aos anúncios. Ao discutir o vidro ela associa forma, tamanho e capacidade das peças aos conteúdos, dentro da proposta do artigo; faz ainda algumas considerações sobre a questão da reutilização de garrafas, extremamente importante (para esta discussão ver também Adams, W. Historical Archaeology Strove for Maturity in the Mid-1980s. Historical Archaeology, 27(1): 30 e nesta relação Busch e Hill). Lorrain, Dessamae 1968 An Archaeologist Guide to Nineteenth Century American Glass. Historical

Archaeology, 2: 35-44. É um excelente panorama das técnicas para vidro no séc. XIX e acho que o primeiro trabalho preciso publicado para arqueólogos; muito do que ela apresentou já foi refinado, mas ainda hoje esse trabalho é muito citado. Trata basicamente das técnicas de manufatura, apresentando as principais e aponta quais são os traços diagnósticos, com destaque para os cortes longitudinais que são muito elucidativos; ela não se restringe só às garrafas; inclui também tampas; no fim apresenta rapidamente algumas sugestões para categorias hierárquicas. Miller, George L. e Catherine Sullivan 1991 Machine-Made Glass Containers and the end of Production for Mouth-Blown

Bottles. Approaches to Material Culture Research for Historical Archaeologists. George Miller et al. (comp.). The Society for Historical Archaeology; Pennsylvania, USA.

É um ótimo trabalho. Discute especificamente as garrafas feitas em máquinas (automáticas e semi-automáticas) e é leitura obrigatória para quem trabalha com identificação de garrafas do fim do século XIX e início do XX. Explica, de forma muito clara, todos os processos, as máquinas e suas patentes. Newman, T. Stell 1970 A Dating Key for Post-Eighteenth Century Bottles. Historical Archaeology, 4: 70-

75. Apresenta uma chave de datação para garrafas, com uma introdução discutindo o problema do intervalo manufatura-deposição (nessa época acho que ainda não se usava esse termo – ela não o usa, mas a discussão é muito útil para essa questão). A chave de datação apresenta algumas falhas, é simplificadora e, por esses motivos, não acho aconselhável usa-la, mesmo porque não sei em que medida isto vale para o Brasil, mas é interessante para confronto com outras cronologias.

98

Page 99: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Schavelzon, Daniel 1991 Arqueologia Histórica de Buenos Aires. La Cultura Material Porteña de Los Siglos

XVIII y XIX. Corregidor, Buenos Aires. P.104-142. Identifica e data alguns atributos, discutindo cor, técnicas de manufatura e forma dos vasilhames, assim como seus conteúdos, confrontando os artefatos identificados em escavações na Argentina com anúncios. Com ilustrações de peças reconstituídas. Algumas das cronologias que ele apresenta são equivocadas, devendo ser consideradas com cautela, mas é interessante porque se referem à América Latina. Spector, Janet D. 1976 The Interpretative Potential of Glass Trade Beads in Historical Archaeology.

Historical Archaeology, 10: 17-27. Sobre contas de vidro. Propõe duas abordagens para análise: uma etno-histórica e outra arqueológica, buscando contribuir para os métodos descritivos e passos iniciais da análise de contas. Dá algumas contribuições para a questão das cronologias e estabelecimento de identidade cultural (com foco na cultura indígena). Sprague, Roderick 1985 Glass Trade Beads: A Progress Report. Historical Archaeology, 19(2): 87-102. Sobre contas de vidro. É um excelente panorama das técnicas de manufatura desta classe de artefatos e tipos; fornece também cronologias; conclui com algumas sugestões de níveis de análise, incluindo análise de laboratório, histórica e cultural. Staski, Edward 1991 Just what Can a 19th Century Bottle Tell Us ? Approaches to Material Culture

Research for Historical Archaeologists. George Miller et al. (comp.). The Society for Historical Archaeology, Pennsylvania, USA.

Trata-se de um estudo sobre o consumo de bebidas alcoólicas com base em pesquisas do lixo contemporâneo do Garbage Project. O objetivo do artigo é discutir etnicidade. A partir daí o autor apresenta algumas possibilidades de análise dos artefatos de vidro. Muito citado em diversos estudos. Toulouse, Julien 1970 Fruit Jars. Thomas Nelson Inc., New Jersey, USA. É um catálogo bastante completo para identificação deste tipo de artefato. Anterior ao catálogo a autora apresenta os principais vidreiros e sua história, assim como os tipos. O catálogo é uma referência insubstituível para quem está ocupado em identificar potes de frutas. Toulouse, Julien 1972 Bottle Makers and Their Marks. Thomas Nelson inc, New York. É também uma referência única e da maior importância para identificação de marcas. Muito completo. É raríssimo. White, John R. 1978 Bottle Nomenclature: A Glossary of Landmark Terminology for the Archaeologist.

Historical Archaeology, 12: 58-67. Discute brevemente o problema da terminologia na literatura: a falta de uniformidade e definições precisas, apresentando em seguida um glossário ilustrado, que embora extremamente reduzido, se propõe a prestar auxilio neste campo. Não dá para ser seguido à risca, mas é interessante para resolver dúvidas.

99

Page 100: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

Wyatt, Victor 1966 From Sand Core To Automation: A History of Glass Containers. Glass

Manufacturers’ Federation, London. É uma excelente introdução. Discute a origem e evolução da manufatura de peças de vidro (com destaque para a Inglaterra) e das principais formas: garrafas “de vinho” (com um tópico sobre capacidades), cerveja, soft drinks, conservas, leite, medicinais e toucador; em seguida fala da tecnologia das peças feitas em máquinas, chegando até os dias atuais. ENCICLOPÉDIA: Existem outras, mas acho que a do Diderot e D’Alembert é a mais interessante. Eles descrevem uma oficina de manufatura de vidro com muitos detalhes. Sobre formas, vale a pena dar uma conferida na obra de 1865 (sem autor). Ambas existem na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro). Diderot e D’Alembert 1772 Verrerie en Bouteiles Chaufée en Charbon de Terre. Recueil de Planches Sur Les

Sciences, Les Arts Libéraux et Les Arts Méchaniques, Avec Leur Explication. Vol.10.

Sem Autor 1865 Estampas de Sciencias Artes e Ofícios. Paris. BOTTLE TICKET: Aqui não estamos mais tratando de garrafas, mas tal como as tampas e rótulos estas peças formaram partes integrantes de garrafas. O bottle ticket era uma espécie de “colar” que ficava no pescoço da garrafa e que também pode ser encontrado em sítios históricos. Há uma excelente obra sobre o assunto na Biblioteca Nacional, que apresenta muitos padrões e cronologias: Victoria and Albert Museum 1958 Bottle Tickets. Victoria and Albert Museum. London.

100

Page 101: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

9. ANEXOS

ANEXO 1

101

Page 102: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

ANEXO 2

102

Page 103: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

103

i Luis Cláudio P. Symanski aplicou com sucesso a fórmula de Stanley South aos artefatos vítreos exumados do quintal do Solar Lopo Gonçalves, em Porto Alegre, explorando no artigo também aspectos relacionados aos padrões de higiene e saúde dos ocupantes da residência do século XIX (no prelo, ver bibliografia). Symanski publicou recentemente na Revista de Arqueologia da SAB um instigante trabalho sobre reciclagem de artefatos de vidro em sítios arqueológicos de Porto Alegre, constituindo a primeira referência do gênero na literatura arqueológica brasileira (ver bibliografia). Marcos André T. Souza vem reunindo e organizando há alguns anos referências bibliográficas, fontes primárias textuais e iconográficas sobre o tema e deverá nos brindar em breve com um Catálogo de Vidros. Antes, porém, forneceu alguns dados para esta pesquisa, além de uma bibliografia comentada, a qual inserimos como anexo do presente trabalho. ii Foram examinados exemplares e fragmentos recolhidos em diversos contextos, envolvendo desde refugos de unidades de habitação localizadas em áreas urbana e rural, apresentando os ocupantes distintos níveis de status sócio-econômico; restos colhidos nas imediações de um pouso de tropas do século XIX e em um "barracão de obras" erguido no início do século XX. Também incorporamos ao presente artigo referências a respeito do exercício metodológico de análise de coleção obtida em um lixão na cidade de Jacareí (décadas de 1960/1970). Menções são feitas às garrafas coletadas em áreas de acampamentos militares derivados do conflito bélico ocorrido no final do século XIX em Canudos (Bahia). Também são feitas menções, ao longo do texto, sobre artefatos colhidos em assentamentos caiçaras situados em Sauípe, no litoral norte baiano. Idem para fragmentos recolhidos no aldeamento carmelita de Massarandupió (litoral norte baiano). Somam-se os vestígios oriundos do lixo doméstico identificado no quintal de uma habitação no centro histórico da cidade de Itu (São Paulo) e dois exemplares de bases de garrafas recolhidas durante o cadastramento (1991) do arraial de São Francisco Xavier da Chapada, implantado em 1734, na Serra da Borda, no vale do Guaporé (Mato Grosso). Outras referências são feitas ao longo do texto e os casos citados abarcam o período cronológico do século XVII ao XX. iiiAlgumas empresas de tradição produziram obras de referência para datas comemorativas como a CISPER e a Santa Marina (ver bibliografia). iv www.abividro.org.br, extraído em 1999. Infelizmente a referência não mais existe. v Vale alertar que a iridescência, aspecto recorrente e observável na superfície de fragmentos vítreos não nos serve como indicador seguro de antiguidade de um recipiente. O processo está relacionado às reações químicas provocadas pelo contato do artefato com a terra e a atmosfera. Observamos recentemente um processo bastante acelerado de iridescência em fragmentos de uma garrafa durante as escavações no Museu da Energia, em Itu. Em menos de 24 horas, o vasilhame passou a soltar "escamas" de vidro multicolorido, enquanto aguardava sua catalogação, devendo-se o fato à umidade relativa do ar no período. vi As pesquisas arqueológicas foram realizadas em propriedade da Landco, contígua ao Forte de Garcia D´Ávila (Fundação Garcia D´ Ávila) durante a realização de EIA/ RIMA coordenado pelos professores Paulo Zanettini e Ivan D. Cancio Soares, diretor do CEEC de Salvador. Dentre as condicionantes estabelecidas para a avaliação dos impactos do então novo empreendimento hoteleiro existia a exigência de se averiguar as possíveis interferências do mesmo sobre o sítio histórico arqueológico tombado pelo IPHAN. vii www.antiquebottles.com/bottons, extraído em 1999. viii http://www.cmog.org/, extraído em 1999. ix Segundo Marlon Pestana, aluno do arqueólogo Pedro Mentz Ribeiro, em exposição no Congresso da SAB de 2003. x Entre 1997 e 1998, Paulo F. Bava de Camargo teve a oportunidade de analisar a coleção proveniente das escavações da referida fortaleza realizadas em 1988. xi Para uma discussão aprofundada do caso norte-americano ver MILLER, G. L. e SULLIVAN, C. Machine-made glass containers and the end of production for mouth-blown bottles. Historical Archaeology, 1984, volume 18, nº. 2, p. 83-96.

Page 104: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

104

xiiPara uma abordagem desse tema ver MILLER, G. L. e PACEY, A. Impact of mechanization in the glass container industry: The Dominion Glass Company of Montreal, a case study. Historical Archaeology, 1985, volume 19, nº. 1, p. 38-50. xiii Em 1819, Jacinto dos Santos, oficial que veio da fábrica da Marinha Grande, Leiria, Portugal, instala uma manufatura vidreira no Rio, mas esta não foi adiante. Dois anos depois, Francisco Xavier da Fonseca, sócio da fábrica de vidros cristalinos e vidraças Nogueira e Filho e Cia, de Lisboa, registra pedido de abertura de manufatura (21/03 de 1821). No entanto, esta empreitada também fracassa (SANDRONI 1989: 50). xiv Depoimento, por telefone, do Sr. Benedito Stucchi, de Itu, criador da referida máquina (1999). xv Além das peculiaridades da arqueologia francesa – e, de um modo geral, da européia –, temos outros fatores impeditivos quanto à abordagem da indústria vidreira: a especificidade do artesanato e da indústria francesa e o tipo de fonte analítica que dispomos. Falando sobre a produção de vidro na França, pós 1850, a Enciclopaedia Britannica (1959: 419), dá uma pista sobre os problemas interpretativos: “But in France, perhaps because the tradition of industrial glassmaking was comparatively weak, inventive genius manifested itself mainly in the work of individual artists, and thereby a new spirit was introduced into the modern conception of glass”. Neste caso específico, apesar do verbete mostrar que o caminho seguido pela indústria vidreira francesa foi diferente do seguido pela inglesa ou norte-americana, as centenárias “picuinhas” entre ingleses e franceses “contaminam” nossa fonte de análise. xvi Citando apenas os trabalhos mais recentes, foram encontrados alguns exemplares: no sitio Mackenzie, localizado por ocasião do Diagnóstico Arqueológico para a Linha Amarela (4) do Metrô (2004); no sítio Vergueiro, localizado por ocasião do Diagnóstico Arqueológico para a Linha Verde (2) do Metrô (2004); e no sítio Instituto Bom Pastor, no bairro do Ipiranga (2004-2005). Os dois primeiros trabalhos foram realizados pela empresa Documento e o último pela Zanettini. xvii Nesta nova versão manteremos o caráter “evolutivo” do texto, pois modificar sua estrutura seria produzir um trabalho completamente diferente, empreitada que será levada a cabo mais adiante. Apesar dessa confessa limitação teórico-metodológica original, o texto continua servindo para enxergarmos os vestígios vítreos com olhos mais críticos e para que busquemos extrair mais informações deles. xviii Na França, em 1810, época em que se desenrolavam as guerras napoleônicas, Nicolas Appert descobre método para conservar alimentos, o que aumenta a demanda por recipientes de vidro (LORRAIN 1968). xix Um panorama dessa nova situação econômica é fornecido por um relato de 1877, do então ministro da agricultura, T. J. Coelho de Almeida, que desfia um rol de fábricas em território nacional. Nele constavam algumas manufaturas que são interessantes para o estudo do consumo e da produção de vidros, tais como as de "produtos químicos, de instrumentos óticos (...), de vidros (...)". Indiretamente ligadas à produção vidreira estavam as fábricas de bebidas: "A genebra nacional já substituía a de Hamburgo (...) A cerveja nativa, embora inferior à estrangeira, propagava-se, graças aos seus preços mais baixos; (...)" (LUZ 1975: 40). xx Durante a Iª. Guerra Mundial houve dificuldades na aquisição do sulfato de soda, que vinha da França e da Alemanha; da terra refratária, que vinha da França; e do carvão, proveniente de vários cantos da Europa (BRANDÃO 1996: 65). Na IIª. Guerra Mundial faltava barrilha (BRANDÃO 1996: 72), "cinza feita da haste da barrilheira./ Nome comercial dos carbonatos de sódio e de potássio" (Enciclopédia Larousse, 1982: 250). xxiSegundo Brandão (1996: 71), ao tratar da produção da Santa Marina no início da IIª. Guerra Mundial "se produzia, com exclusividade e em grande escala, frascos para o mais revolucionário medicamento até então descoberto, a penicilina. E, também, os vidros azuis do Leite de Magnésia de Phillips, um dos remédios mais vendidos da época". xxii A título de comparação, em 1917, algo entre 5% e 10% da produção norte-americana de vidro dependiam do sopro humano (MILLER e SULLIVAN 1984: 89). xxiii Em 1908, o país possuía 16.780,842 km de estradas de ferro, tendo este número aumentado para 37.414 km em 1957. Em 1930, existiam 113.242,9 km de estradas de rodagem de todo o tipo. Já em 1960, esse número vai para 476.938 km (fonte: Col. Nosso Século, ed. Abril). xxiv Ferramenta estatística desenvolvida especialmente para a arqueologia histórica. Comumente aplicada às faianças finas, mostrou no referido trabalho seu poder de sistematização de dados provenientes também dos vidros.

Page 105: Cacos e Mais Cacos de Vidro, Paulo Bava e Paulo Zanettini

Cacos e Mais Cacos de Vidro: o que fazer com eles?

105

xxv www.estaçõesferroviárias.com.br/i/itu, extraído em 2005.