"Caça aos cafés que alugam quartos insalubres", no jornal CONTACTO.

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18 GRANDE REPORTAGEM 19 GRANDE REPORTAGEM 21 de Janeiro de 2009 21 de Janeiro de 2009 Imigrantes portugueses a morar em quartos alugados em cafés vivem situações de precariedade "Quem está mal, muda-se" José (nome fictício), de 58 anos, está no Luxemburgo há apenas 10 meses, mas já passou por três pen- sões em cafés diferentes. Deixou a mulher, três filhos e dois netos em Portugal para "procurar sustento e tentar endireitar a vida": o negócio de sapatos que explorava no Norte do país, uma empresa familiar, "correu mal", a mulher está desempregada, e o apartamento em que vivem não está ainda pago. No Luxemburgo começou por la- var pratos, a ganhar salário mínimo (cerca de 1.300 euros líquidos por mês), e os quartos alugados foram a única opção para não ficar na rua. "Vim para o Luxemburgo através de um casal amigo, mas quinze dias depois abandonaram-me. Cheguei a ter de lhes pedir uma ajuda finan- ceira, porque estive um mês sem conseguir arranjar trabalho, mas ao fim de duas semanas fiquei com a impressão de que queriam ver-se livres de mim", conta em voz pau- sada. Foi viver para um quarto num café em Differdange explorado por portugueses, mas a estadia só durou três semanas. Uma zaragata entre o proprietário e um dos hóspedes atraiu a atenção da comuna, que detectou um número excessivo de pessoas hospedadas, e José acabou por ter de sair. Contrariado: parti- lhava um quarto de 12 m 2 com outra pessoa, dividia a única casa- de-banho com mais "oito ou nove", mas não se queixava das condições nem dos 550 euros que pagava pela cama e alimentação, "muita, mas de má qualidade". "Quando a gente é imigrante tem de ter espírito de sacrifício. Como é que se pode chegar a qualquer parte do mundo sem conhecer ninguém, de mãos a abanar, e ainda vir com exigências? Então que não venha; fique no seu país, se lá lhe dão melhores condições de vida!", pro- testa. Quando lhe recordamos que os imigrantes têm os mesmos direitos que qualquer cidadão e que a lei luxemburguesa proíbe o arrenda- mento de alojamentos insalubres ou exíguos (ver caixa), José insiste: "Quem está mal, muda-se: se ti- vesse dinheiro também preferia ir para um hotel, assim tenho de me sujeitar". Até porque não fala ne- nhuma das línguas do país, "que o tempo é pouco", e o que ganha depois de pagar a renda ("adianta- da") "mal chega para enviar alguma coisa para Portugal". "Metade vai para o quarto, algum para a higiene pessoal, telefonemas para a família e um café ou uma cerveja com conta, e sobra muito pouco mesmo fazendo contas à vida". De Differdange foi viver para um café em Oberkorn: pagava 575 eu- ros por um quarto com duas pesso- as, "maior que o anterior, com cerca de 18 m 2 ". A dieta, quase sempre à base de carne de porco ("por ser mais barata") é que não melhorou. "Peixe é quando o rei faz anos, carne de vaca nem vê-la, e lá vem o frango de vez em quando para desenjoar do porco", conta. Ri-se quando lhe perguntamos se havia sopa ou legumes: "luxos". O estoicismo do imigrante portu- guês resistiu mesmo ao "mau ambi- ente" do café, mas não à "má educação da proprietária", também portuguesa. Fartou-se. No café em que agora está, em Esch, elogia as óptimas condições dos quartos, "grandes e com chão flutuante", e a comida. O quarto duplo custa 650 euros com alimen- tação, mas o proprietário, "um jo- vem excelente", aceitou protelar o pagamento da renda – José está desempregado. "Se eu soubesse fa- lar francês, outro galo me cantaria: tenho facilidade de palavra mas aqui tenho de me fazer pequenino, porque preciso", diz. A maioria dos imigrantes portu- gueses hospedados em cafés traba- lham na construção. "Muitos têm de fazer fila de manhã para usar o lavatório ou vir cá abaixo ao café", conta um português que tem aju- dado muitos destes hóspedes nas diligências com a comuna de Differ- dange, mas prefere o anonimato. "As pessoas não se queixam porque não falam a língua e não sabem a quem se dirigir", conclui. Paula Telo Alves Em Esch e Differdange, um milhar de imigrantes (a maioria portugueses) vivem em quartos alugados insalubres e sem condições de segurança Cafés de tirar o sono A maioria dos imigrantes a viver em cafés, explorados na maioria dos casos por portugueses, têm nacionalidade portuguesa e trabalham na construção Foto: Paulo Lobo Capa da brochura informativa distribuída pela Polícia em Esch-sur-Alzette para esclarecer os imigrantes sobre as condições legais da locação de quartos Esch e Differdange abriram caça aos cafés que alugam quartos insalubres. Por cima dos estabelecimentos, a maioria explorados por portugueses, as autoridades descobriram condições de tirar o sono. Em Differ- dange há 17 pessoas a par- tilhar uma só sanita e du- che, e quartos com 1,5 m de altura. Em Esch a au- tarquia teme uma tragédia. A maioria dos cerca de mil hóspedes nestas condições são portugueses recém-che- gados ao Luxemburgo a trabalhar na construção: pagam entre 300 a 650 eu- ros para dormir num quarto com mais duas a quatro pessoas, com ou sem alimentação. " É um caso de exploração de por- tugueses por portugueses", acusa Roberto Traversini, ve- reador para os Assuntos Sociais de Differdange. "Eles vêm para cá e não conhecem ninguém, não falam a língua, têm medo da Polícia, e acabam a viver em condições miseráveis", denuncia. O edil iniciou há um ano uma campanha de fiscalização dos cafés que alugam quartos – a maioria, garante, explorados por portugueses –, e o que descobriu chocou-o. "Havia um local com 17 pessoas e uma só sanita e duche. Tinham umas águas-furtadas com 1,5 m de altura onde viviam duas pessoas. E não era dos sítios piores, porque pelo menos era relativamente limpo", conta ao CONTACTO. O "pior" dos 32 estabelecimentos já fiscalizados pelas autoridades sa- nitárias da autarquia e da Polícia, entre os 34 cafés registados, era um antigo cabeleireiro convertido em dormitório pelo proprietário do café ao lado – um "corredor de 12 metros por 2,5 com tabiques a cada dois metros", sem janelas. Os dez "quar- tos" assim formados duplicavam de capacidade com beliches, ao preço de 350 euros por cama. A viver entre dois tabiques, as autoridades encon- traram uma grávida de oito meses e o companheiro, ambos portugueses. "Fechámos imediatamente o local e encontrámos um estúdio para o casal", conta o vereador. Noutro café, "uma família portuguesa de três pessoas, um casal com um bebé de três meses, estava a viver num quarto de 9,5 m 2 , e há duas ou três semanas que não tinham água quente", pros- segue Traversini. INSALUBRIDADE E INSEGURANÇA A maioria dos 440 hóspedes a viver por cima dos cafés de Differdange são "imigrantes portugueses que tra- balham no sector da construção", garante o vereador, tal como os 550 habitantes dos cafés em Esch-sur- Alzette, a segunda maior cidade do país e uma das que conta com maior percentagem de portugueses (32,7 %), assegura Vera Spautz. "Há alguns luxemburgueses e afri- canos, mas a maioria dos hóspedes são portugueses com contratos tem- porários nas empresas de constru- ção", disse ao CONTACTO a verea- dora dos Assuntos Sociais de Esch. Pagam entre 300 a 650 euros "por uma cama", com ou sem alimenta- ção. "As pessoas não pagam pelo quarto, pagam pela cama, e há quar- tos de 9 m 2 com quatro pessoas", explica Roberto Traversini. Em con- dições frequentemente insalubres e que não respeitam as normas de segurança: são "prédios velhos em estado degradado, com humidade e infiltrações, e espaços minúsculos", diz o vereador. Uma avaliação que se repete em Esch-sur-Alzette. "Encontrámos de tudo: insalubridade, problemas de higiene e de segurança", denuncia Vera Spautz, que iniciou a campanha de fiscalização há um ano e meio nos 55 cafés de Esch que propõem quar- tos. "Em três ou quatro cafés, eram casas que deviam ser terraplanadas e reconstruídas, tal era a falta de segu- rança. Tremo de pensar no que po- derá acontecer um dia se houver um incêndio: seria uma tragédia. Não podemos continuar a fechar os olhos". "NÃO PODEMOS FECHAR OS CAFÉS" Mas se as autarquias do Sul do país não fecham os olhos às más condi- ções deste tipo de pensões, têm recusado até agora encerrar os dor- mitórios por cima dos cafés, por falta de alternativas para as centenas de imigrantes a receber salário mínimo que ali encontram um tecto a preços do tamanho da bolsa. "A verdade, é preciso dizê-lo, é que estes problemas existem devido à penúria da habitação, sobretudo no sector do arrendamento, onde as rendas são desmesuradamente eleva- das", admite a vereadora socialista. E as alternativas sociais são insuficien- tes. "Esch-sur-Alzette dispõe de 440 alojamentos sociais, mas temos uma lista de espera de 400 famílias, e a procura não pára de aumentar", prossegue Spautz. "Sabemos que além dos cafés há também 'vendedo- res do sono' privados que alugam camas por oito horas", denuncia. Em Differdange, o dilema é o mesmo. "Não queremos fechar os cafés nem pôr ninguém na rua, até porque não temos alternativas sufici- entes a nível de alojamento social", assegura o vereador de Differdange. Dos 32 cafés fiscalizados até agora em Differdange, só um foi encerrado pela Polícia – o dormitório improvi- sado no antigo cabeleireiro. O propri- etário do café que alojava uma famí- lia de três pessoas num único quarto recebeu, tal como os restantes que não respeitavam as condições de higiene e segurança, apenas um avi- so. "É preciso dizer que é um dos proprietários que vimos que seguiu as indicações que lhe demos, e que vai fazer obras de renovação", explica o vereador ecologista. "VENDEDORES DO SONO" RECUSAM FAZER OBRAS À passagem dos inspectores sanitári- os, os proprietários são notificados para melhorar as infra-estruturas dos estabelecimentos, sob a ameaça de encerramento ou processo de contra- venção. Mas algumas das obras efec- tuadas não passam da fachada, ga- rante Pedro (nome fictício), residente em Differdange "desde que nasceu", e que tem ajudado muitos dos imi- grantes que vivem em cafés a regista- rem-se na comuna. "Há situações em que a Polícia lá foi fiscalizar, e o proprietário do café disse aos hóspedes que tinham de passar o fim-de-semana a pintar ou tinham de sair de lá para fora", contou ao CONTACTO. "Muitos não têm dinheiro para fazer obras, por- que não são donos do prédio e pagam rendas elevadas", explica. A maioria dos cafés são proprie- dade das grandes cervejarias nacio- nais ("brasseries"), a quem os comer- ciantes que exploram os cafés pagam renda. Sem o "comércio do sono", muitos teriam de fechar portas, afirma Roberto Traversini. "O problema da maioria dos cafés é que não podem sobreviver só a vender cervejas: têm mau aspecto, são sítios degradados, e pouca gente os frequenta. Para pagar a renda às cervejarias, têm de alugar quartos", admite o vereador para os Assuntos Sociais de Differdange. Os fornece- dores de cerveja "sabem-no e tole- ram-no, apesar de proibirem a sub- locação no contrato de arrendamen- to, para se eximirem a eventuais responsabilidades em caso de aci- dente", insurge-se Roberto Traversi- ni. "Eles sabem muito bem que não é possível [aos proprietários dos cafés] pagar a renda sem alugar quartos, mas recusam fazer obras". A autarquia já contactou as cerve- jarias que detêm a propriedade dos edifícios para tentar encontrar uma solução para o problema, mas conti- nua à espera de resposta. Em Esch-sur-Alzette, a autarquia foi mais longe, e vai mover acções judiciais contra as cervejarias propri- etárias dos edifícios degradados, adi- antou ao CONTACTO a vereadora da cidade. "Os pequenos proprietários de ca- fés não têm dinheiro para fazer obras, e as cervejarias recusam-se a fazê-las. São eles os verdadeiros 'vendedores do sono' contra os quais é preciso agir", acusa Vera Spautz. "E vamos levar a tribunal os donos de alguns cafés que encheram os bolsos nos últimos anos à custa desta pobre gente", completa. Em Esch, a Polícia iniciou proces- sos de contravenção contra quatro cafés, três dos quais explorados por portugueses e um por um cidadão jugoslavo, disse ao CONTACTO Pa- trick Majerus, chefe do Comissariado de Polícia de Esch-sul. As infracções registadas são puníveis com pena de multa entre 63 euros e 125 mil euros e pena de prisão que pode ir de oito dias a seis meses, ao abrigo do regulamento de 25 de Fevereiro de 1979 sobre as condições de salubri- dade e higiene dos alojamentos de locação, segundo a mesma fonte. Para alertar os imigrantes para os seus direitos, a autarquia e a Polícia lançaram um folheto informativo que está a ser distribuído nos cafés, em português e francês (ver caixa). "O nosso objectivo é proteger os imigrantes. As pessoas que chegam não conhecem os seus direitos", frisa o comissário. Mas entre a escassez de alojamen- tos a preço razoável e a penúria dos novos imigrantes, o negócio dos "vendedores do sono" está aí para durar. Paula Telo Alves Polícia desmantela comércio de moradas fictícias Moradas falsas a 300 euros Durante a fiscalização aos cafés que alugam quartos, a Polícia detectou centenas de casos de residentes que já não moravam nos estabelecimen- tos em que estavam declarados. Em muitos casos, trata-se de "moradas fictícias para obter o Rendimento Mínimo Garantido (RMG) ou outros benefícios sociais", garante o verea- dor dos Assuntos Sociais de Differ- dange, Roberto Traversini. Segundo o vereador, obter uma "falsa morada" pode custar entre 150 a 300 euros, e há muitos imigrantes dispostos a pagar o preço para usufruir de um endereço no Luxemburgo, assegura. De acordo com o vereador, em Differdange foram detectados "uma centena de casos de pessoas que não residiam nos locais indica- dos". "A esmagadora maioria dos cafés que visitámos nem sequer tem re- gisto do número de hóspedes. Nin- guém sabia dizer-nos quantas pes- soas lá viviam. Só num dos cafés é que a proprietária tinha registo", disse o edil ao CONTACTO. O verea- dor precisou ainda que 31 dos 32 cafés visitados no último ano eram explorados por portugueses, e ape- nas um por italianos, "o único que tinha registo dos hóspedes alberga- dos". Em Esch-sur-Alzette, a Polícia detectou 158 casos de hóspedes que já não residiam no local decla- rado, mas o número de moradas falsas compradas de forma fraudu- lenta é desconhecido. "Há alguns casos [de venda de moradas], mas não podemos gene- ralizar. Há pessoas a viver em França que pagam aos proprietários dos cafés para obterem uma mo- rada falsa [no Grão-Ducado] que lhes garanta o acesso ao RMG ou a outros benefícios sociais", disse a este jornal Vera Spautz, vereadora dos Assuntos Sociais da segunda maior cidade do país. As declarações de residência fal- sas ou desactualizadas foram entre- tanto irradiadas do registo da po- pulação das duas autarquias. Para evitar novos casos de comércio de moradas falsas, as duas localidades iniciaram entretanto um sistema de fiscalização que passa por não acei- tar novas declarações de residência em cafés que tenham atingido o nível máximo de ocupação previsto por lei. "Mas mesmo aí há quem já tenha conseguido contornar o problema: quando não podem declará-los nos cafés, os proprietários declaram- nos como se residissem em casa deles, e põem-nos a viver nos ca- fés", alerta o vereador de Differdange. P.T.A. Condições legais para alugar quartos De acordo com a legislação luxem- burguesa, os quartos para alugar devem ter: • uma área de 12 m 2 para o primeiro ocupante e de 9 m 2 por cada ocupante suplementar; • altura do chão ao tecto de no mínimo 2,20 m; • acolher no máximo 4 ocupan- tes ; • uma janela que possa ser aberta, com tamanho correspon- dente a pelo menos 1/10 da super- fície do chão; • estar equipado com corrente eléctrica e ter aquecimento; • estar equipado com o seguinte mobiliário, por ocupante: uma cama individual; um armário que possa ser fechado à chave; uma mesa e uma cadeira; um colchão; cobertor e travesseiro. Além disso, o prédio deve inclu- ir: • um WC e duche com aqueci- mento por cada seis ocupantes; • um lavatório por cada 2 ocu- pantes; • possibilidade de estender e secar a roupa; • limpeza diária a carga do proprietário ou do gerente; • água potável e instalação de evacuação de água. O prédio deve ainda respeitar as condições gerais de segurança contra riscos eléctricos, de gás e de incêndio. Muitos dos cafés têm condições insalubres Foto: Polícia de Esch

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18 G R A N D E R E P O R T A G E M 19G R A N D E R E P O R T A G E M21 de Janeiro de 200921 de Janeiro de 2009

Imigrantes portugueses a morar em quartos alugados em cafés vivem situações de precariedade

"Quem está mal, muda-se"José (nome fictício), de 58 anos,está no Luxemburgo há apenas 10meses, mas já passou por três pen-sões em cafés diferentes.

Deixou a mulher, três filhos e doisnetos em Portugal para "procurarsustento e tentar endireitar a vida":o negócio de sapatos que exploravano Norte do país, uma empresafamiliar, "correu mal", a mulher estádesempregada, e o apartamento emque vivem não está ainda pago.

No Luxemburgo começou por la-var pratos, a ganhar salário mínimo(cerca de 1.300 euros líquidos pormês), e os quartos alugados foram aúnica opção para não ficar na rua.

"Vim para o Luxemburgo atravésde um casal amigo, mas quinze diasdepois abandonaram-me. Cheguei ater de lhes pedir uma ajuda finan-ceira, porque estive um mês semconseguir arranjar trabalho, mas aofim de duas semanas fiquei com aimpressão de que queriam ver-selivres de mim", conta em voz pau-sada.

Foi viver para um quarto numcafé em Differdange explorado por

portugueses, mas a estadia só duroutrês semanas. Uma zaragata entre oproprietário e um dos hóspedesatraiu a atenção da comuna, quedetectou um número excessivo depessoas hospedadas, e José acaboupor ter de sair. Contrariado: parti-lhava um quarto de 12 m2 comoutra pessoa, dividia a única casa-de-banho com mais "oito ou nove",mas não se queixava das condiçõesnem dos 550 euros que pagava pelacama e alimentação, "muita, mas demá qualidade".

"Quando a gente é imigrante temde ter espírito de sacrifício. Como éque se pode chegar a qualquer partedo mundo sem conhecer ninguém,de mãos a abanar, e ainda vir comexigências? Então que não venha;fique no seu país, se lá lhe dãomelhores condições de vida!", pro-testa.

Quando lhe recordamos que osimigrantes têm os mesmos direitosque qualquer cidadão e que a leiluxemburguesa proíbe o arrenda-mento de alojamentos insalubres ouexíguos (ver caixa), José insiste:

"Quem está mal, muda-se: se ti-vesse dinheiro também preferia irpara um hotel, assim tenho de mesujeitar". Até porque não fala ne-nhuma das línguas do país, "que otempo é pouco", e o que ganhadepois de pagar a renda ("adianta-da") "mal chega para enviar algumacoisa para Portugal". "Metade vaipara o quarto, algum para a higienepessoal, telefonemas para a famíliae um café ou uma cerveja comconta, e sobra muito pouco mesmofazendo contas à vida".

De Differdange foi viver para umcafé em Oberkorn: pagava 575 eu-ros por um quarto com duas pesso-as, "maior que o anterior, com cercade 18 m2". A dieta, quase sempre àbase de carne de porco ("por sermais barata") é que não melhorou."Peixe é quando o rei faz anos,carne de vaca nem vê-la, e lá vem ofrango de vez em quando paradesenjoar do porco", conta. Ri-sequando lhe perguntamos se haviasopa ou legumes: "luxos".

O estoicismo do imigrante portu-guês resistiu mesmo ao "mau ambi-

ente" do café, mas não à "máeducação da proprietária", tambémportuguesa. Fartou-se.

No café em que agora está, emEsch, elogia as óptimas condiçõesdos quartos, "grandes e com chãoflutuante", e a comida. O quartoduplo custa 650 euros com alimen-tação, mas o proprietário, "um jo-vem excelente", aceitou protelar opagamento da renda – José estádesempregado. "Se eu soubesse fa-lar francês, outro galo me cantaria:tenho facilidade de palavra masaqui tenho de me fazer pequenino,porque preciso", diz.

A maioria dos imigrantes portu-gueses hospedados em cafés traba-lham na construção. "Muitos têmde fazer fila de manhã para usar olavatório ou vir cá abaixo ao café",conta um português que tem aju-dado muitos destes hóspedes nasdiligências com a comuna de Differ-dange, mas prefere o anonimato."As pessoas não se queixam porquenão falam a língua e não sabem aquem se dirigir", conclui.

■ Paula Telo Alves

Em Esch e Differdange, um milhar de imigrantes (a maioria portugueses) vivem em quartos alugados insalubres e sem condições de segurança

Cafés de tirar o sono

A maioria dos imigrantes a viver em cafés, explorados na maioria dos casos por portugueses, têm nacionalidade portuguesa e trabalham na construção Foto: Paulo Lobo

Capa da brochura informativa distribuída pela Polícia em Esch-sur-Alzette paraesclarecer os imigrantes sobre as condições legais da locação de quartos

Esch e Differdange abriramcaça aos cafés que alugamquartos insalubres. Porcima dos estabelecimentos,a maioria explorados porportugueses, as autoridadesdescobriram condições detirar o sono. Em Differ-dange há 17 pessoas a par-tilhar uma só sanita e du-che, e quartos com 1,5 mde altura. Em Esch a au-tarquia teme uma tragédia.A maioria dos cerca de milhóspedes nestas condiçõessão portugueses recém-che-gados ao Luxemburgo atrabalhar na construção:pagam entre 300 a 650 eu-ros para dormir numquarto com mais duas aquatro pessoas, com ousem alimentação.

"É um caso de exploração de por-tugueses por portugueses",acusa Roberto Traversini, ve-

reador para os Assuntos Sociais deDifferdange.

"Eles vêm para cá e não conhecemninguém, não falam a língua, têmmedo da Polícia, e acabam a viver emcondições miseráveis", denuncia.

O edil iniciou há um ano umacampanha de fiscalização dos cafésque alugam quartos – a maioria,garante, explorados por portugueses–, e o que descobriu chocou-o.

"Havia um local com 17 pessoas euma só sanita e duche. Tinham umaságuas-furtadas com 1,5 m de altura

onde viviam duas pessoas. E não erados sítios piores, porque pelo menosera relativamente limpo", conta aoCONTACTO.

O "pior" dos 32 estabelecimentosjá fiscalizados pelas autoridades sa-

nitárias da autarquia e da Polícia,entre os 34 cafés registados, era umantigo cabeleireiro convertido emdormitório pelo proprietário do caféao lado – um "corredor de 12 metrospor 2,5 com tabiques a cada dois

metros", sem janelas. Os dez "quar-tos" assim formados duplicavam decapacidade com beliches, ao preço de350 euros por cama. A viver entredois tabiques, as autoridades encon-traram uma grávida de oito meses e o

companheiro, ambos portugueses. "Fechámos imediatamente o local

e encontrámos um estúdio para ocasal", conta o vereador. Noutrocafé, "uma família portuguesa de trêspessoas, um casal com um bebé detrês meses, estava a viver num quartode 9,5 m2, e há duas ou três semanasque não tinham água quente", pros-segue Traversini.

INSALUBRIDADE EINSEGURANÇA

A maioria dos 440 hóspedes a viverpor cima dos cafés de Differdangesão "imigrantes portugueses que tra-balham no sector da construção",garante o vereador, tal como os 550habitantes dos cafés em Esch-sur-Alzette, a segunda maior cidade dopaís e uma das que conta com maiorpercentagem de portugueses(32,7 %), assegura Vera Spautz.

"Há alguns luxemburgueses e afri-canos, mas a maioria dos hóspedessão portugueses com contratos tem-porários nas empresas de constru-ção", disse ao CONTACTO a verea-dora dos Assuntos Sociais de Esch.

Pagam entre 300 a 650 euros "poruma cama", com ou sem alimenta-ção. "As pessoas não pagam peloquarto, pagam pela cama, e há quar-tos de 9 m2 com quatro pessoas",explica Roberto Traversini. Em con-dições frequentemente insalubres eque não respeitam as normas desegurança: são "prédios velhos emestado degradado, com humidade einfiltrações, e espaços minúsculos",diz o vereador.

Uma avaliação que se repete emEsch-sur-Alzette. "Encontrámos detudo: insalubridade, problemas dehigiene e de segurança", denunciaVera Spautz, que iniciou a campanhade fiscalização há um ano e meio nos

55 cafés de Esch que propõem quar-tos. "Em três ou quatro cafés, eramcasas que deviam ser terraplanadas ereconstruídas, tal era a falta de segu-rança. Tremo de pensar no que po-derá acontecer um dia se houver umincêndio: seria uma tragédia. Nãopodemos continuar a fechar osolhos".

"NÃO PODEMOS FECHAR OS CAFÉS"

Mas se as autarquias do Sul do paísnão fecham os olhos às más condi-ções deste tipo de pensões, têmrecusado até agora encerrar os dor-mitórios por cima dos cafés, por faltade alternativas para as centenas deimigrantes a receber salário mínimoque ali encontram um tecto a preçosdo tamanho da bolsa.

"A verdade, é preciso dizê-lo, é queestes problemas existem devido àpenúria da habitação, sobretudo nosector do arrendamento, onde asrendas são desmesuradamente eleva-das", admite a vereadora socialista. Eas alternativas sociais são insuficien-tes.

"Esch-sur-Alzette dispõe de 440alojamentos sociais, mas temos umalista de espera de 400 famílias, e aprocura não pára de aumentar",prossegue Spautz. "Sabemos quealém dos cafés há também 'vendedo-res do sono' privados que alugamcamas por oito horas", denuncia.

Em Differdange, o dilema é omesmo. "Não queremos fechar oscafés nem pôr ninguém na rua, atéporque não temos alternativas sufici-entes a nível de alojamento social",assegura o vereador de Differdange.

Dos 32 cafés fiscalizados até agoraem Differdange, só um foi encerradopela Polícia – o dormitório improvi-sado no antigo cabeleireiro. O propri-etário do café que alojava uma famí-lia de três pessoas num único quartorecebeu, tal como os restantes quenão respeitavam as condições dehigiene e segurança, apenas um avi-so.

"É preciso dizer que é um dosproprietários que vimos que seguiuas indicações que lhe demos, e quevai fazer obras de renovação", explicao vereador ecologista.

"VENDEDORES DO SONO"RECUSAM FAZER OBRAS

À passagem dos inspectores sanitári-os, os proprietários são notificadospara melhorar as infra-estruturas dosestabelecimentos, sob a ameaça deencerramento ou processo de contra-venção. Mas algumas das obras efec-tuadas não passam da fachada, ga-rante Pedro (nome fictício), residenteem Differdange "desde que nasceu",e que tem ajudado muitos dos imi-grantes que vivem em cafés a regista-rem-se na comuna.

"Há situações em que a Polícia láfoi fiscalizar, e o proprietário do cafédisse aos hóspedes que tinham depassar o fim-de-semana a pintar outinham de sair de lá para fora",contou ao CONTACTO. "Muitos nãotêm dinheiro para fazer obras, por-que não são donos do prédio epagam rendas elevadas", explica.

A maioria dos cafés são proprie-dade das grandes cervejarias nacio-nais ("brasseries"), a quem os comer-ciantes que exploram os cafés pagamrenda. Sem o "comércio do sono",muitos teriam de fechar portas,afirma Roberto Traversini.

"O problema da maioria dos cafésé que não podem sobreviver só avender cervejas: têm mau aspecto,

são sítios degradados, e pouca genteos frequenta. Para pagar a renda àscervejarias, têm de alugar quartos",admite o vereador para os AssuntosSociais de Differdange. Os fornece-dores de cerveja "sabem-no e tole-ram-no, apesar de proibirem a sub-locação no contrato de arrendamen-to, para se eximirem a eventuaisresponsabilidades em caso de aci-dente", insurge-se Roberto Traversi-ni.

"Eles sabem muito bem que não épossível [aos proprietários dos cafés]pagar a renda sem alugar quartos,mas recusam fazer obras".

A autarquia já contactou as cerve-jarias que detêm a propriedade dosedifícios para tentar encontrar umasolução para o problema, mas conti-nua à espera de resposta.

Em Esch-sur-Alzette, a autarquiafoi mais longe, e vai mover acçõesjudiciais contra as cervejarias propri-etárias dos edifícios degradados, adi-antou ao CONTACTO a vereadora dacidade.

"Os pequenos proprietários de ca-fés não têm dinheiro para fazerobras, e as cervejarias recusam-se afazê-las. São eles os verdadeiros'vendedores do sono' contra os quaisé preciso agir", acusa Vera Spautz. "E

vamos levar a tribunal os donos dealguns cafés que encheram os bolsosnos últimos anos à custa desta pobregente", completa.

Em Esch, a Polícia iniciou proces-sos de contravenção contra quatrocafés, três dos quais explorados porportugueses e um por um cidadãojugoslavo, disse ao CONTACTO Pa-trick Majerus, chefe do Comissariadode Polícia de Esch-sul. As infracçõesregistadas são puníveis com pena demulta entre 63 euros e 125 mil eurose pena de prisão que pode ir de oitodias a seis meses, ao abrigo doregulamento de 25 de Fevereiro de1979 sobre as condições de salubri-dade e higiene dos alojamentos delocação, segundo a mesma fonte.

Para alertar os imigrantes para osseus direitos, a autarquia e a Polícialançaram um folheto informativoque está a ser distribuído nos cafés,em português e francês (ver caixa).

"O nosso objectivo é proteger osimigrantes. As pessoas que chegamnão conhecem os seus direitos", frisao comissário.

Mas entre a escassez de alojamen-tos a preço razoável e a penúria dosnovos imigrantes, o negócio dos"vendedores do sono" está aí paradurar. ■ Paula Telo Alves

Polícia desmantela comércio de moradas f ict ícias

Moradas falsasa 300 euros

Durante a fiscalização aos cafés quealugam quartos, a Polícia detectoucentenas de casos de residentes quejá não moravam nos estabelecimen-tos em que estavam declarados. Emmuitos casos, trata-se de "moradasfictícias para obter o RendimentoMínimo Garantido (RMG) ou outrosbenefícios sociais", garante o verea-dor dos Assuntos Sociais de Differ-dange, Roberto Traversini.

Segundo o vereador, obter uma"falsa morada" pode custar entre150 a 300 euros, e há muitosimigrantes dispostos a pagar opreço para usufruir de um endereçono Luxemburgo, assegura.

De acordo com o vereador, emDifferdange foram detectados"uma centena de casos de pessoasque não residiam nos locais indica-dos".

"A esmagadora maioria dos cafésque visitámos nem sequer tem re-gisto do número de hóspedes. Nin-guém sabia dizer-nos quantas pes-soas lá viviam. Só num dos cafés éque a proprietária tinha registo",disse o edil ao CONTACTO. O verea-dor precisou ainda que 31 dos 32cafés visitados no último ano eramexplorados por portugueses, e ape-nas um por italianos, "o único quetinha registo dos hóspedes alberga-dos".

Em Esch-sur-Alzette, a Polícia

detectou 158 casos de hóspedesque já não residiam no local decla-rado, mas o número de moradasfalsas compradas de forma fraudu-lenta é desconhecido.

"Há alguns casos [de venda demoradas], mas não podemos gene-ralizar. Há pessoas a viver emFrança que pagam aos proprietáriosdos cafés para obterem uma mo-rada falsa [no Grão-Ducado] quelhes garanta o acesso ao RMG ou aoutros benefícios sociais", disse aeste jornal Vera Spautz, vereadorados Assuntos Sociais da segundamaior cidade do país.

As declarações de residência fal-sas ou desactualizadas foram entre-tanto irradiadas do registo da po-pulação das duas autarquias. Paraevitar novos casos de comércio demoradas falsas, as duas localidadesiniciaram entretanto um sistema defiscalização que passa por não acei-tar novas declarações de residênciaem cafés que tenham atingido onível máximo de ocupação previstopor lei.

"Mas mesmo aí há quem já tenhaconseguido contornar o problema:quando não podem declará-los noscafés, os proprietários declaram-nos como se residissem em casadeles, e põem-nos a viver nos ca-fés", alerta o vereador deDifferdange. ■ P.T.A.

Condições legaispara alugar quartos

De acordo com a legislação luxem-burguesa, os quartos para alugardevem ter:

• uma área de 12 m2 para oprimeiro ocupante e de 9 m2 porcada ocupante suplementar;

• altura do chão ao tecto de nomínimo 2,20 m;

• acolher no máximo 4 ocupan-tes ;

• uma janela que possa seraberta, com tamanho correspon-dente a pelo menos 1/10 da super-fície do chão;

• estar equipado com correnteeléctrica e ter aquecimento;

• estar equipado com o seguintemobiliário, por ocupante: umacama individual; um armário que

possa ser fechado à chave; umamesa e uma cadeira; um colchão;cobertor e travesseiro.

Além disso, o prédio deve inclu-ir:

• um WC e duche com aqueci-mento por cada seis ocupantes;

• um lavatório por cada 2 ocu-pantes;

• possibilidade de estender esecar a roupa;

• limpeza diária a carga doproprietário ou do gerente;

• água potável e instalação deevacuação de água.

O prédio deve ainda respeitar ascondições gerais de segurançacontra riscos eléctricos, de gás e deincêndio.

Muitos dos cafés têm condições insalubres Foto: Polícia de Esch