Caça Ao Rato - Revista de História

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Caça ao rato No início do século XX, os cariocas trocavam roedores por dinheiro e ajudavam no combate à peste Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva 8/4/2011 “Rato, rato, rato!” Ao ouvir esse grito no Rio de Janeiro no início do século XX, nada de olhar para o chão nem ficar em um pé só. O melhor seria correr atrás do rato, dar‐lhe uma paulada e entregá‐lo ao “ratoeiro”, provável autor do grito. Esse funcionário pagava a quem recolhesse ratos na rua e revendia os animais para o governo. A simples iniciativa tirou de circulação mais de 1,6 milhão desses animais entre 1903 a 1907, diminuindo os casos de peste bubônica. Mas também aguçou a malandragem dos cariocas: muitos chegaram a fabricar ratos de papelão e cera para vender. A esperteza desses enganadores não era o problema mais grave. Parte da população e até alguns cientistas se recusavam a aceitar que a cidade estava assolada pela mesma peste que aterrorizou a Europa na Idade Média e no início da Idade Moderna, com muito mais mortes que no Rio de Janeiro. Segundo o escritor Daniel Defoe (1659?‐1731), só no ano de 1665, em Londres, a doença teria dizimado cerca de 68 mil pessoas de uma população total de 450 mil. Já no Rio de 1900, que tinha uma população de 690 mil habitantes, um pouco maior que a da capital inglesa no século XVII, 360 pessoas morreram em 1903, o pior ano da epidemia. Até 1907, foram duas mil mortes. Como era difícil estabelecer o diagnóstico e muitas famílias escondiam seus doentes, talvez este número tenha sido até maior, mas não o suficiente para impressionar a população e a comunidade científica. O governo do presidente Campos Sales (1898‐1902) também demorou a admitir que a chegada da peste representava um perigo. A doença desembarcou no Brasil em outubro de 1899 pelo porto de Santos (SP), provavelmente trazida por algum viajante do Porto, em Portugal. A primeira vítima no Rio de Janeiro foi registrada em janeiro de 1900, mas o ministro da Justiça, Epitácio Pessoa (1865‐1942), disse que o foco inicial na capital havia sido combatido “satisfatoriamente” e a doença “exterminada em seu nascedouro”. No entanto, o aparecimento de novos casos em abril, que vitimaram não só imigrantes vindos de Portugal, mas também brasileiros, levou o governo a reconhecer oficialmente, em 21 de maio, que a peste estava instalada na cidade. Os primeiros esforços para acabar com a doença foram pouco objetivos. A maior dificuldade era definir que tarefas cabiam à Higiene Municipal e à Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), órgão federal responsável pelo combate às grandes epidemias. O médico Nuno de Andrade (1851‐ 1922), diretor da DGSP de 1897 a 1903, só podia dar ordens aos serviços de saúde municipais com autorização do prefeito, o que só ocorria nos momentos mais críticos das epidemias. A falta de integração entre os órgãos de saúde voltava a ser regra depois que os casos diminuíam. Diante dessas dificuldades, a estratégia do governo contra a peste foi a mesma usada para combater outra epidemia, a da febre amarela. Os doentes eram removidos e isolados, e suas casas e bens passavam por desinfecção ou eram destruídos. Essas medidas dificultaram a expansão da peste, mas não a exterminaram. A cada mês de agosto, um mês frio, quando as pessoas ficavam mais tempo juntas em casa, a doença voltava a atacar. Quando Rodrigues Alves (1848‐1919) assumiu a Presidência da República em 1902, sua meta era o saneamento da capital federal. Naquele momento, o Brasil tinha como projeto político a sua modernização segundo os padrões europeus. As epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, como a

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    Caa ao ratoNo incio do sculo XX, os cariocas trocavam roedores por dinheiro eajudavam no combate peste

    Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva

    8/4/2011

    Rato, rato, rato! Ao ouvir esse grito no Rio de Janeiro no incio do sculo XX, nada de olharpara o cho nem ficar em um p s. O melhor seria correr atrs do rato, darlhe uma paulada eentreglo ao ratoeiro, provvel autor do grito. Esse funcionrio pagava a quem recolhesseratos na rua e revendia os animais para o governo. A simples iniciativa tirou de circulao maisde 1,6 milho desses animais entre 1903 a 1907, diminuindo os casos de peste bubnica. Mastambm aguou a malandragem dos cariocas: muitos chegaram a fabricar ratos de papelo ecera para vender.

    A esperteza desses enganadores no era o problema mais grave. Parte da populao e at algunscientistas se recusavam a aceitar que a cidade estava assolada pela mesma peste que aterrorizoua Europa na Idade Mdia e no incio da Idade Moderna, com muito mais mortes que no Rio deJaneiro. Segundo o escritor Daniel Defoe (1659?1731), s no ano de 1665, em Londres, adoena teria dizimado cerca de 68 mil pessoas de uma populao total de 450 mil.

    J no Rio de 1900, que tinha uma populao de 690 mil habitantes, um pouco maior que a dacapital inglesa no sculo XVII, 360 pessoas morreram em 1903, o pior ano da epidemia. At1907, foram duas mil mortes. Como era difcil estabelecer o diagnstico e muitas famliasescondiam seus doentes, talvez este nmero tenha sido at maior, mas no o suficiente paraimpressionar a populao e a comunidade cientfica.O governo do presidente Campos Sales (18981902) tambm demorou a admitir que a chegada dapeste representava um perigo. A doena desembarcou no Brasil em outubro de 1899 pelo portode Santos (SP), provavelmente trazida por algum viajante do Porto, em Portugal. A primeiravtima no Rio de Janeiro foi registrada em janeiro de 1900, mas o ministro da Justia, EpitcioPessoa (18651942), disse que o foco inicial na capital havia sido combatido satisfatoriamentee a doena exterminada em seu nascedouro. No entanto, o aparecimento de novos casos emabril, que vitimaram no s imigrantes vindos de Portugal, mas tambm brasileiros, levou ogoverno a reconhecer oficialmente, em 21 de maio, que a peste estava instalada na cidade.

    Os primeiros esforos para acabar com a doena foram pouco objetivos. A maior dificuldade eradefinir que tarefas cabiam Higiene Municipal e Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP),rgo federal responsvel pelo combate s grandes epidemias. O mdico Nuno de Andrade (18511922), diretor da DGSP de 1897 a 1903, s podia dar ordens aos servios de sade municipaiscom autorizao do prefeito, o que s ocorria nos momentos mais crticos das epidemias. A faltade integrao entre os rgos de sade voltava a ser regra depois que os casos diminuam.

    Diante dessas dificuldades, a estratgia do governo contra a peste foi a mesma usada paracombater outra epidemia, a da febre amarela. Os doentes eram removidos e isolados, e suascasas e bens passavam por desinfeco ou eram destrudos. Essas medidas dificultaram aexpanso da peste, mas no a exterminaram. A cada ms de agosto, um ms frio, quando aspessoas ficavam mais tempo juntas em casa, a doena voltava a atacar.

    Quando Rodrigues Alves (18481919) assumiu a Presidncia da Repblica em 1902, sua meta erao saneamento da capital federal. Naquele momento, o Brasil tinha como projeto poltico a suamodernizao segundo os padres europeus. As epidemias que atingiam o Rio de Janeiro, como a

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    febre amarela, a varola e a peste, eram vistas como indcios de atraso. Para mudar a situao,o presidente indicou para prefeito do Distrito Federal o engenheiro Francisco Pereira Passos(18361913), que comandou uma ampla reforma na cidade. O sanitarista Oswaldo Cruz (18721917) foi nomeado para a direo da DGSP, e assumiu o cargo em maro de 1903 com totalresponsabilidade sobre o combate s doenas epidmicas na capital.

    Alm das medidas que j vinham sendo cumpridas, como as desinfeces e os isolamentos,Oswaldo Cruz combateu de maneira enrgica os vetores, isto , os organismos que hospedam osvrus e as bactrias que causam as doenas. Criou as brigadas de matamosquitos para combatera febre amarela e a figura do caadorcomprador de ratos. Ele usou como base as descobertasdo cientista francosuo Alexandre Yersin (18631943), que havia identificado o bacilo da pesteem 1894, provando que sua transmisso ocorria pelas pulgas do rato. Mas a ideia de caar essesroedores no era nova. J havia sido testada e aprovada pelos americanos nas Filipinas.

    Os ratoeiros foram criados por um decreto de setembro de 1903. Eles tinham como obrigaorecolher 150 ratos por ms, pelos quais recebiam 60 milris, o que serviria para comprar umacesta bsica na poca. O salrio, considerado baixo, era um estmulo para que capturassem maisratos, j que recebiam 300 ris por animal excedente, o que permitia comprar trs cafezinhos.Por isso, no paravam de sair s ruas principalmente na zona porturia, onde a incidncia dapeste era maior munidos de ratoeiras, venenos e potes com creolina, onde colocavam os ratoscapturados. E ainda levavam uma pequena corneta, que usavam para anunciar sua chegada.

    A medida criou um novo mercado e, claro, virou tema de carnaval, como na polca Rato, rato,rato, composta por Casemiro da Rocha (18801912) em 1904. A msica usava como refro oprego dos ratoeiros e terminava com uma aluso ao comrcio dos roedores:

    Rato, rato, rato / Por que motivo tu roeste meu ba?Rato, rato, rato / Audacioso e malfazejo gabiru.Rato, rato, rato / Eu hei de ver ainda o teu dia finalA ratoeira te persiga e consiga, / Satisfazer meu ideal.(...)Rato velho, descarado, roedor/ Rato velho, como tu faz horror!Vou provarte que sou mau / Meu tosto garantidoNo te solto nem a pau.

    A nova profisso tambm foi eternizada pelo escritor Paulo Barreto (18811921), que assinavacom o pseudnimo Joo do Rio, em seu livro de crnicas A alma encantadora das ruas, de 1908:A mais nova (...) dessas profisses, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grandecidade, a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e aDiretoria de Sade. Ratoeiro no um cavador um negociante. Passeia pela Gamboa, pelasestalagens da Cidade Nova, pelos cortios e bibocas da parte velha da urbs, vai at ao subrbio,tocando um cornetinha com a lata na mo. Quando est muito cansado, sentase na calada eespera tranqilamente a freguesia, soprando de espao a espao no cornetim.

    Alm de cantar e escrever sobre os ratos, alguns cariocas aproveitavam tambm para levarvantagem nesse comrcio. Criavam os roedores em currais e at os importavam de cidadesvizinhas, como Niteri. Entre os animais incinerados no Desinfectrio Central estavam algunsfeitos de papelo e cera.

    Um dos principais empresrios deste ramo ganhou as pginas dos jornais da poca. Conhecidoapenas como Amaral, acabou preso pelo contrabando de ratos. Desvios como esse eramamplamente noticiados pelos jornais, que aproveitavam para criticar a iniciativa de OswaldoCruz.

    No entanto, os nmeros comprovam que a campanha foi um sucesso. Nos primeiros meses em

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    que esteve em vigor, de setembro a dezembro de 1903, de acordo com relatrios de OswaldoCruz, foram capturados e incinerados mais de 24 mil ratos. J no ano seguinte, esse totalchegou a quase 296 mil. Em 1907, quando a operao comeou a diminuir, foi divulgado onmero oficial de 1,6 milho de ratos incinerados nos quatro anos anteriores. O cronista LusEdmundo (18781961), entusiasta da reforma de Passos, afirmou que s na zona dosbacalhoeiros da Rua do Mercado e na de certos trapiches da Sade se conseguiu um nmero deratos maior que o da populao do Distrito, que na poca estava em torno de 800 mil pessoas.

    Toda essa caa teve resultados positivos: medida que o nmero de ratos diminua na cidade, aquantidade de bitos por causa da peste declinava progressivamente, passando de 360 em 1903,quando a operao comeou, para 73 em 1907. Mesmo com muita gente querendo se aproveitarda epidemia, a poltica foi um sucesso para a sade pblica.

    Dilene Raimundo do Nascimento pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e autora dolivro As pestes do sculo XX (Editora Fiocruz, 2005).Matheus Alves Duarte da Silva graduando em Histria pela UFRJ e bolsista de IniciaoCientfica CNPq/Fiocruz, na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

    Saiba Mais Bibliografia

    BENCHIMOL, Jaime. Reforma urbana e revolta da vacina na cidade do Rio de Janeiro. In:FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil republicano: o tempo doliberalismo excludente da Proclamao da Repblica Revoluo de 1930. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 2003.DEFOE, Daniel. Um dirio do ano da peste. Porto Alegre: L&PM, 1987.EDMUNDO, Lus. O Rio de Janeiro do meu tempo. Braslia: Conquista, 2003.RIO, Joo do. A alma encantadora das ruas. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.

    Saiba Mais Internet

    Oua a msica Rato, rato, de Casemiro da Rocha e Claudino Costa, em

    www.rhbn.com.br/ratorato

    http://www.rhbn.com.br/ratorato