CABOCLO ANGÉLICO “BAIXA” NO KARDECISMO PARA “ANUNCIAR” A UMBANDA - Oliveira Jose Henrique

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    CABOCLO ANGLICO BAIXA NO KARDECISMO PARA ANUNCIAR A UMBANDA 1

    Jos Henrique Motta de OliveiraMestre em Histria Comparada UFRJ

    [email protected]

    Descer sobre ti o Esprito Santo, e a virtude do Altssimo te cobrir com a suasombra; pelo que tambm o Santo, que de ti h de nascer, ser chamado Filho de

    Deus. (Lucas 1:35)

    Resumo: Neste artigo ofereceremos um novo olhar sobre a anunciao da umbanda: a manifestao doCaboclo das Sete Encruzilhadas no mdium Zlio de Moraes, numa sesso da Federao Esprita de Niteri, nodia 15 de Novembro de 1908. Como todo mito-fundador, a narrativa entremeia a realidade com fantasia. Mas oque interessa o valor simblico que o mito representa para os atuais adeptos, cuja importncia se compara aonascimento de Jesus, para os cristos. Nesta perspectiva, proponho uma anlise alternativa quelas realizadaspor Diana Brown e Emerson Giumbelli, nas quais a relevncia simblica do evento fora suplantada por questesrelativas consolidao da classe mdia carioca. As teorias de Pierre Bourdieu sobre o funcionamento do camporeligioso me auxiliaram na tarefa de justificar o ostracismo vivido por Zlio de Moraes dentro do movimentoumbandista: o que estava em j ogo naquele momento era a busca pela legitimidade de uma religio perifrica, eno quem fora o fundador da Umbanda.

    1 Introduo

    A manifestao de espritos de negros e de ndios, to comuns na Umbanda, j ocorria

    espontaneamente nos rituais da macumba desde meados do sculo XVIII. Longe de ser um cultoorganizado, a macumba era um agregado de elementos da cabula bantu, do Candombl jeje-nag, dastradies indgenas e do Catolicismo popular, sem o suporte de uma doutrina capaz de integrar osdiversos pedaos que lhe davam forma. desse conjunto heterogneo, acrescida de elementos egressosdo Kardecismo,2 que nascer a nova religio.

    Mas de onde vem a Umbanda? Acredita-se que o vocbulo umbanda designasse, entre osafricanos, sacerdote que trabalha para a cura. Na macumba, o vocbulo embanda ou umbandatambm designava o chefe do terreiro ou, simplesmente, sacerdote. Nunca uma modalidade religiosa.

    O umbandista Matta e Silva relata no livroUmbanda e o Poder da mediunidade que o vocbuloumbanda, como bandeira religiosa, no aparece antes de 1904. Entretanto, no depoimento deste

    mesmo autor, encontra-se o registro de que, em 1935, conhecera um mdium com 61 anos de idade, denome de Nicanor, que praticava a Umbanda desde os 16 anos, ou seja, desde 1890, incorporando oCaboclo Cobra Coral (Matta e Silva, 1987, p. 14). Outro autor umbandista, Diamantino Trindade,reproduziu no livroUmbanda e Sua Histria parte de uma entrevista do jornalista Leal de Souza

    1 Este artigo foiescrito a partir de um captulo de nossa dissertao de mestrado Entre a Macumba e oEspiritismo: uma anlise comparativa das estratgias de legitimao da umbanda durante o Estado Novo,defendida no Programa de Histria Comparada da UFRJ, em 2007.2 Foi este ltimo grupo que se apropriou do ritual da macumba, imps-lhe uma nova estrutura e, articulando umnovo discurso, deu incio ao processo de legitimao, que se consubstanciar com a fundao de FederaoEsprita de Umbanda (1939).

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    publicada no Jornal de Umbanda, em Outubro de 1952 na qual afirmava que o precursor da LinhaBranca fora o Caboclo Curuguu,3 que trabalhou at o advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas(Trindade, 1991, p. 56). O vocbulo umbanda vai ganhar status de religio quando o Caboclo das SeteEncruzilhadas manifestado no mdium Zlio de Moraes, no dia 15 de novembro de 1908, anuncia 4 o

    incio de uma nova prtica religiosa. Este evento representa, hoje, para o Movimento Umbandista5 omarco fundador da religio, um divisor de guas entre a macumba que era compreendida na pocacomo baixo -espiritismo cuja prtica nem sempre estava direcionada para fins elevados e oEspiritismo de Umbanda, voltado para a prtica do amor ao prximo.

    Misto de lenda e de realidade, a anunciao da Umband a sofre algumas variaes de narradorpara narrador, mas a estrutura bsica se mantm inalterada. Zlio de Moraes, aos 17 anos, comeouapresentar alguns distrbios os quais a famlia acreditou que fossem de ordem mental e encaminhou o

    rapaz para um hospital psiquitrico. Dias depois, no encontrando os seus sintomas em nenhumaliteratura mdica, foi sugerida famlia que lhe encaminhasse a um padre para um ritual de exorcismo. Opadre, por sua vez, no conseguiu nenhum resultado. Tempos depois Zlio foi levado a uma benzedeiraconhecida na regio onde morava que lhe diagnosticou o dom da mediunidade e lhe recomendou quetrabalhasse para a caridade.

    Por sugesto de um amigo de seu pai, Zlio foi levado a Federao Esprita de Niteri, no dia15 de novembro de 1908. Ao chegar Federao foi convidado pelo dirigente daquela instituio aparticipar da sesso. Logo em seguida, contrariando as normas do culto, Zlio levantou-se dizendo queali faltava uma flor. Foi at um jardim apanhou uma rosa branca e colocou-a no centro da mesa. Aatitude do rapaz provocou uma estranha confuso no local: ele incorporou um esprito esimultaneamente diversos mdiuns apresentaram incorporaes de caboclos e preto-velhos. Advertidopelo dirigente do trabalho, a entidade incorporada no rapaz perguntou por que era proibida a presenadaqueles espritos. Outro mdium, que tinha o dom da vidncia, quis saber da entidade o porqu delafalar daquele modo, pois via que era um padre jesuta e lhe perguntou o nome. A resposta foi:

    (...) se julgam atrasados os espritos de pretos e ndios, devo dizer que amanh estarei na casa desteaparelho, para dar incio a um culto em que estes pretos e ndios podero dar sua mensagem e, assim,

    cumprir a misso que o plano espiritual lhes confiou. Ser uma religio que falar aos humildes,simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmos encarnados e desencarnados. E sequerem saber meu nome que seja Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque no haver caminhosfechados para mim.6

    3 Sobre o Caboclo Curuguu, no foram obtidas outras informaes que pudessem esclarecer a ao destamanifestao espiritual.4 Tomo emprestado aqui o significado de anunciao a semelhana do que ocorreu com a passagem bblicaquando o Anjo Gabriel apareceu a Virgem Maria para anunciar a vinda do messias: Jesus.5 Entendemos como Movimento Umbandista a unio dos adeptos da nova religio a fim de se protegerem contraa represso policial. Esta unio se consolidou na criao da Federao Esprita de Umbanda (1939), narealizao do Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda (1941) e na produo e divulgao detodo um discurso legitimador das prticas umbandistas, que se traduziram na publicao de livros, jornais,revistas, programas de rdios etc.6 GUIMARES, Luclia e GARCIA, der Longas (Revisado por Mestre THASHAMARA).Um pouco daHistria de Zlio de Moraes . Disponvel em . Acesso em 31 Ago. 2002.

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    Niteri (atual Instituto Esprita Bezerra de Menezes), Yeda Hungria, na ocasio a Federao ainda nodispunha de sede prpria, ocupando uma sala na Rua da Conceio Centro de Niteri ; portanto,no haveria condies do jovem Zlio buscar rapidamente uma flor para enfeitar a mesa. Assim,somos levados a pensar que, se realmente o fato ocorreu, pode no ter acontecido na Federao, mas

    talvez em algum centro esprita filiado a esta, cujo nome se perdeu ao longo da repetio destatradio oral.10

    No que diz respeito afirmao de Diana Brown de que a fundao da Umbanda tenhaocorrido em meados da dcada de 1920, por iniciativa de um grupo de kardecistas, sou levado a

    discordar da pesquisadora. Vejamos: em artigo publicado no livroO Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda , editado pelo jornalista Leal de Souza em 1933, o autor afirma que o Caboclo dasSete Encruzilhadas baixava h 23 anos em uma casa pobre nos arredores de Niteri (Souza, 1933, p.

    78). Isto , pelo menos, desde 1910. Acredito que Brown tenha sido levada a se enganar, pois o

    perodo coincide com a transferncia da Piedade para outro endereo ainda em So Gonalo.Outro fator que poderia ter contribudo para a confuso da pesquisadora estadunidense seria,

    talvez, o perodo em que ocorreu a criao de tendas filiadas Piedade, cuja maioria se deu ao longodaquela dcada. Segundo o mito, o Caboclo das Sete Encruzilhadas havia orientado seu mdio para aabertura de outras tendas com a finalidade de propagar a nova religio. Ao todo, foram criadas setetendas por orientao da entidade. At mesmo os responsveis pela direo dos novos templos foramindicados pelo caboclo. Assim, temos: Tenda Nossa Senhora da Guia, com Durval de Souza; TendaNossa Senhora da Conceio, com Leal de Souza; Tenda Santa Brbara, com Joo Aguiar; Tenda SoPedro, com Jos Meireles; Tenda Oxal, com Paulo Lavois; Tenda So Jorge, com Joo SeverinoRamos; e Tenda So Jernimo, com Jos lvares Pessoa.11 Alm destas, vrias tendas foramfundadas sob orientao do Caboclo das Sete Encruzilhadas em So Paulo, Minas Gerais, EspritoSanto, Rio Grande do Sul e Par (Trindade, 1991, p. 69).

    Com relao proximidade de Zlio de Moraes com o Kardecismo, alm do fato do cabocloter se manifestado em uma sesso esprita, se justifica apenas pela f professada por seu pai, JoaquimFerdinando Costa, que realizava encontros em sua casa para a leitura da obra de Allan Kardec.12 Segundo Zilmia de Moraes Cunha nica filha viva do mdium seu pai nunca fora kardecista. Pelocontrrio, a famlia era tradicionalmente catlica. Ela sublinha, contudo, que aps a manifestao do10 Segundo Yeda Hungria, na poca, a instituio j realizava sesses espritas em suas dependncias. Entretanto,estas reunies no geravam atas. Portanto, no h como afirmar se houve sesso naquele dia. Quanto a registros dedistrbio provocado por espritos indesejados, no haveria tambm motivo para serem realizado, uma vez que amanifestao desses espritos e a conseqente doutrinao era prtica usual na mesa kardecista. Assim, seria lcitosupor que a possvel manifestao de um caboclo na sesso esprita passaria despercebida, porque era comum amanifestao de espritos tidos como atrasados nas sess es. Contudo, penso que no seria comum a manifestaode um caboclo anunciando a criao de uma nova religio, a menos que ningum tenha levado a srio.11 No h registros confiveis sobre as datas de fundao de todas as tendas, sabe-se apenas que a primeira foiinaugurada em 1918 e a ltima em 1935, ou seja, Zlio de Moraes levou 17 anos para cumprir a determinao daentidade responsvel pelos trabalhos.12 Ubiratan Machado sublinha que na virada do sculo XIX para o XX era comum realizao de reunies paraestudar as obras de Allan Kardec sem que isso representasse converso ao Espiritismo, muitos reafirmavam quecontinuavam catlicos. Cf. MACHADO, 1997, p. 224.

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    Caboclo das Sete Encruzilhadas, muitos kardecistas passaram a freqentar assiduamente a Piedade,vindo alguns deles ingressaram no corpo medinico da casa. Diamantino Trindade refora a hiptesede proximidade de Zlio com o Catolicismo, tanto na presena de muitas imagens de santos no altar daPiedade, quanto no habito de homenagear santos catlicos ao nomear os templos filiados Piedade

    (Idem, ibidem, p. 68). Cabe lembra tambm que o Caboclo das Sete Encruzilhadas no era um espritoqualquer, segundo o mito, ele fora o padre jesuta Gabriel Malagrida em reencarnaes anteriores.

    A presena do Catolicismo no mito da anunciao da Umbanda pode ser observada tambm

    num quadro onde fora pintado mediunicamente a imagem do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Apintura apresenta um indgena no primeiro plano, tendo no plano intermedirio um mastro com abandeira do Brasil tremulando e logo adiante sete caminhos unidos a um nico ponto de origem e, noplano de fundo, h elementos relativos natureza do nosso pas. O quadro simbolicamenteriqussimo, permitindo inmeras interpretaes. O que nos interessa aqui, entretanto, so os sete

    caminhos que o caboclo tem para percorrer no sentido de propagar a Umbanda. A unio destescaminhos, a encruzilhada, lembra-nos a praa de muitas igrejas do interior, que oferece aos fiis seteopes de trajetos para chegar at o templo. Estes caminhos fazem referncia aos sete dons do EspritoSanto: Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Cincia, Piedade e Temor, cujos valores, soprocurados no culto ao Divino Esprito Santo. A anlise desta simbologia nos sugere a interpretao deque o Caboclo das Sete Encruzilhadas seria a manifestao de um esprito santo, talvez um an jo, queviria anunciar o incio de uma religio que falaria aos humildes. Portanto, totalmente distante das

    interpretaes que qualificavam as entidades da Umbanda como demonacas.

    3 Uma anlise comparativa da relevncia da anunciao da Umbanda

    A pergunta que se faz neste momento qual a relevncia de se identificar quem, quando oucomo se iniciou o Movimento Umbandista? Acredito que a resposta esteja no valor simblico atribudopelos atuais adeptos manifestao do Caboclo das Sete Encruzilhadas na pessoa de Zlio de Moraes.Este simbolismo pode ser avaliado pelo calendrio litrgico da religio, no qual o dia 15 de Novembroaparece ao lado das tradicionais datas comemorativas dos Orixs, com direito a realizao de sessofestiva cuja finalidade render homenagens tanto ao Caboclo das Sete Encruzilhadas quanto ao mdium. possvel encontrar em alguns terreiros at a fotografia do Zlio ornamentando o conga.13

    Mesmo que seja somente um mito de origem, como prope Diana Brown, a manifestao d oCaboclo das Sete Encruzilhadas no pode ser relativizada, uma vez que para os umbandistas a datatem o mesmo valor simblico do Natal para os cristos, do Rosh Hashan para os judeus e da Hgirapara os muulmanos.14 Portanto, no me satisfaz a anlise que Emerson Giumbelli (2003) propes

    13 O cong o local onde se encontra o altar e onde tambm ficam os mdiuns durante as sesses.14 O Natal marca o nascimento de Jesus para os cristos; o Rosh Hashan o ano novo judaico contado a partirda fuga dos hebreus do Egito; e a Hgira, dos muulmanos, marca a fuga de Maom de Meca para Medina.

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    sobre o mito fundador da Umbanda e a importncia de Zlio de Moraes para o MovimentoUmbandista.

    Para Giumbelli, o mito fundador centrado na figura de Zlio de Moraes e da manifestao doCaboclo das Sete Encruzilhadas uma construo tardia, que se inicia contemporaneamente morte

    do mdium (1975) e que corresponderia a um perodo de disperso doutrinria e ritual e de umadiviso institucional (2003, p.189). No vejo, a princpio, consistncia nessa justificativa para sebuscar nas origens da Umbanda um elemento aglutinador para o Movimento Umbandista. Seobservarmos a estrutura organizacional do movimento, perceberemos que a unio dos umbandistassempre foi circunstancial; haja vista o excessivo nmero de Federaes, Confederaes, Unies eConselhos existentes.15 As questes doutrinrias e rituais desde a realizao do Primeiro CongressoBrasileiro do Espiritismo de Umbanda (1941) sempre foram tensas entre o grupo que defendia orompimento da Umbanda com as prticas mais africanizadas e aqueles que delas no abriam mo.

    significativa a posio do umbandista Tancredo da Silva Pinto o Tata Tancredo no livroFundamentos de Umbanda , sobre as propostas de desafricanizao divulgadas nas palestras daqueleCongresso. Oautor diz que acha graa quando ouve os lderes da Umbanda Branca dizendo que areligio sofre influncia das tradies africanas. Para ele a Umbanda africana, um patrimnio da

    raa negra (FREITAS e PINTO, 1957, p. 58). Tancredo, inclusive, vai rom per com a FederaoEsprita de Umbanda e fundar a Congregao Esprita de Umbanda do Brasil.

    Giumbelli continua sua anlise discorrendo uma vasta bibliografia etnogrfica na qual Zlio deMoraes e o Caboclo das Sete Encruzilhadas no aparecem antes da dcada de 1970, ambos tiveram deesperar as pesquisas de Diana Brown e Renato Ortiz para passar a existir na literatura acadmica.Depois, se debrua sobre vrias obras umbandistas e sobre o Jornal de Umbanda veculo oficial daUnio Espiritualista Umbanda do Brasil, herdeira de Federao Esprita de Umbanda , nos quais onome de Zlio de Moraes no aparece ou, quando citado, aparece de forma discreta. O autor concluique as referncias ao mdium, principalmente aquelas encontradas no Jornal de Umbanda, apenasreconhecem a antiguidade dos vnculos de Zlio de Moraes com a Umbanda, contudo jamaischegaram a ponto de al-lo posio de fundador da religio.

    Mas do que isso, insinuam uma subordinao de Zlio ora sua condio de mdium (como tantooutros na umbanda), ora sua condio de intermedirio de uma entidade espiritual (que, diga-se, nolhe devia exclusividade). Sendo assim, compreende-se por que mesmo os textos que tratam dasorigens ou da histria da umbanda, ou do Caboclo das Sete Encruzilhadas, no jornal da UEUB nofinal da dcada de 1950 no se sentem obrigados a mencionar o nome de Zlio.16

    Diante da extensa documentao apresentada pelo autor no h o que se discutir, mas cabe apossibilidade de se propor outra interpretao para a ausncia de Zlio de Moraes nas obras de seus

    15 Cf. BIRMAN (1985, p.80-121).16 GIUMBELLI, Emerson. Zlio de Moraes e as Origens da Umbanda no Rio de Janeiro. In:Caminhos daAlma . So Paulo: Selo Negro, 2003, p. 194.

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    contemporneos. Antes, porm, devo lembrar que o Leal de Souza,17 relatou ao Jornal de Umbanda,na edio de Outubro de 1952, que coubera ao Caboclo das Sete Encruzilhadas a incumbncia deorganizar a Linha Branca de Umbanda, seguindo as determinaes dos guias superiores que

    regem o planeta.

    Quando se apresentou pela primeira vez, em 15 de novembro de 1908, para iniciar sua misso,mostrou-se como um velho de longa barba branca; vestia uma tnica alvejante, que tinha em letrasluminosas a palavra Caridade. Depois, por longos anos, assumiu o aspecto de um caboclo vigoroso;hoje uma claridade azul no ambiente das Tendas.18

    Na mesma entrevista, Leal de Souza vai fazer referncia a Pai Antnio, um preto-velho, que semanifestou no mesmo dia em que fora fundada a Piedade. Pai Antnio, o principal auxiliar do

    Caboclo das Sete Encruzilhadas, e que baixa no mesmo aparelho, Zlio de Moraes, e que eu j vidiscutir medicina com doutores. o esprito mais poderoso do meu conhecimento (SOUZA. Apud

    TRINDADE, 1991, p. 57). Portanto, existe pelo menos uma referncia no Jornal de Umbanda sobre amanifestao do Caboclo das Sete Encruzilhadas, no mdium Zlio de Moraes, no dia 15 deNovembro de 1908, com a finalidade de organizar a Linha Branca de Umbanda. Mas concordo comGiumbelli, pouco, quase nada!

    Assim, recorro s teorias de Pierre Bourdieu (2004) sobre o funcionamento do campo religiosopara me auxiliar na tarefa de propor uma interpretao alternativa do ostracismo vivido por Zlio deMoraes. Bourdieu nos ensina que toda seita que alcana xito tende a tornar -se Igreja, depositria eguardi de uma ortodoxia, identificada com as suas hierarquias e seus dogmas (Idem. Ibidem, p. 58).

    Parto do princpio de que as publicaes umbandistas estudadas por Giumbelli foram produzidas numperodo em que a Umbanda j desfrutava de alguma legitimidade institucional. A partir do modelobourdiano, comparo a Federao Esprita de Umbanda com a hierarquia eclesistica 19 e Zlio deMoraes com a figura do profeta, isto , aquele que pelo exerccio legtimo do poder religioso que nonosso caso a manifestao de uma entidade espiritual que se apresenta como fundadora da Umbanda

    teria condies de competir no campo religioso com o monoplio doutrinrio difundido pelaUmbanda institucionalizada, pondo em risco a legitimidade da nova religio.

    Bourdieu argumenta que para a conservao do monoplio de um poder simblico e da

    existncia da instituio eclesistica, caberia Igreja buscar recursos para suprimir a ao do profeta,seja pela sua eliminao ou pela sua subordinao e reconhecimento da legitimidade do monoplioeclesistico. Ora, foi isto que ocorreu com Zlio de Moraes. Ele se subordinou s orientaes dahierarquia eclesistica, isto , da cpula da Federao Esprita de Umbanda, at mesmo porque teria

    17 Na poca, Leal de Souza dirigia a Tenda Esprita Nossa Senhora da Conceio, uma das filiais que formam osepto de casas fundadas pelo caboclo das Sete Encruzilhadas.18 SOUZA, Leal. Jornal de Umbanda, Outubro de 1952. Apud TRINDADE, 1991, p. 56.19 Minha comparao se sustenta no fato de encontrarmos no primeiro artigo do estatuto daquela instituio, oobjetivo de unificar e superintender os templos de umbanda, bem como orientar o ritual e a liturgia, unificandoem todos os seus aspectos essenciais (Cf. UNIO, 1944, p. 84).

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    ajudado a fundar a instituio, seguindo as orientaes do guia espiritual.20 Situao inversa sofreuTancredo da Silva Pinto, que no rompeu apenas com a Federao Esprita de Umbanda, mas com aprpria Umbanda ao criar o culto de Omoloc.21

    Zlio de Moraes, segundo depoimentos de pessoas que tiveram oportunidade de conviver com

    ele, tinha personalidade tmida e modesta. Era uma pessoa que no gostava dos holofotes da

    ostentao pblica, comenta o jornalista Ronaldo Linares, autor de uma curta biografia do mdium,publicada no livroOs Decanos . 22 No era da personalidade de Zlio arvorar-se em lder da Umbanda,ou no era este o desejo do plano espiritual, ponderou Ly gia Cunha, neta do mdium em conversainformal com o autor desta dissertao.

    Acredito, portanto, que no era interesse da cpula umbandista fazer grandes reverncias aomdium Zelio de Moraes, pois, como deixa claro Bourdieu, representaria um risco legitimidade daprpria instituio, uma vez que a legitimidade religiosa poderia se deslocar da Igreja instituda para o

    profeta. Em contrapartida subordinao de Zlio ao poder da hierarquia eclesistica, lhe foramconcedidos em vida pequenos reconhecimentos pelos servios prestados a Umbanda, com nome-lo

    para o posto de inspetor da federao, conceder a Tenda Esprita Nossa Senhora da Piedade o

    diploma de filiada nmero um, ou conferindo -lhe o ttulo de decano dos Babalas da Unio(GIUMBELLI, 2003, p. 193-194). A partir do momento que a direo da Piedade transferida para asfilhas do mdium (Zlia e Zilmia de Moraes) e ele parte para um exlio voluntrio na Regio

    Serrana do Rio de Janeiro, vindo a falecer alguns anos depois, abre-se espao para a cpulaumbandista reconhecer a manifestao do Caboclo das Sete Encruzilhadas como fundadora da religioe Zlio de Moraes como seu pioneiro. Essa atitude vem reforar o carter legitimador da hierarquiaumbandista, uma vez que ela instituiu o dia 15de Novembro como o Dia Nacional da Umbanda, emassemblia a realizao durante o 3 Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, em 1973, noMaracanzinho. Este fato ocorreu dois anos antes da morte do mdium.

    4 Consideraes finais

    No queremos aqui defender a tese de que as prticas umbandistas no existiam antes daanunciao da Umbanda pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas. Pelo contrrio, reconhecemos que a

    manifestao de espritos de indgenas e pretos j ocorria a algum tempo nos rituais da macumba e nas

    20 Encontra-se nos Anais do 1 Congresso do Espiritismo de Umbanda, uma meno a interveno do caboclodas Sete Encruzilhadas na fundao da Federao Esprita de Umbanda. Antes de iniciar a palestra, orepresentante da Tenda Esprita So Jorge, Antnio Barbosa, rende homenagem ao caboclo dizendo: (...) rendohomenagens ao Guia Espiritual, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, o idealizador da Federao Esprita deUmbanda. Cf. Anais , 1942, p. 165.21 Omoloc, culto afro-brasileiro que admite no mesmo ambiente tanto as prticas do Candombl quanto a daUmbanda. Cf. OMULU, Caio de.Umbanda Omoloc Liturgia e Convergncia . So Paulo: cone, 2002.22 LINARES, Ronaldo. Como Conheci Zlio de Moraes. In; SARRACENI (Org.).Os Decanos . So Paulo:Madras, 2003. p. 17-27.

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    sesses do Espiritismo popular. O que procurei enfatizar neste artigo foi que a manifestao daquelecaboclo marcou o rompimento entre aquilo que era compreendido como baixo -espiritismo com o quese convencionou chamar de Espiritismo de Umbanda na obra dos intelectuais da nova religio. Para

    mim, a diviso clara: o que havia antes era uma seita, fruto de um ritual heterogneo, praticada por

    segmentos subalternos da sociedade; o que passou a existir depois foi uma religio que se apropriou dafilosofia Kardecista e de dogmas cristos, sendo professada por elementos da classe mdia em ascenso.Nesta perspectiva, a figura do mdium Zlio de Moraes, e do guia espiritual que lhe assistiu durante avida, adquire papel de relevncia na trajetria do Movimento Umbandista. Foi a partir da ao deste,dentre outros pioneiros, que se intensificou a busca pela legitimao da nova religio, minimizando-seassim a ao da Delegacia de Txicos e Mistificaes sobre os terreiros e a intolerncia dos segmentosconservadores da sociedade.

    Ao longo do processo de consolidao da religio umbandista, foi atribudo a Federao

    Esprita de Umbanda a dupla funo: (1) de representante dos interesses dos adeptos junto aos rgospblicos; (2) e de rgo normatizador das prticas umbandistas. Por esse motivo, acredito que osinteresses coletivos sobrepujaram aos interesses particulares, no cabendo, portanto, uma figuramessinica para a Umbanda. Acredito, igualmente, que Zlio de Moraes estava ciente de seu lugar nareligio, mas em nenhum momento arvorou-se em Papa da Umbanda nem almejou altos postos naadministrao daquela instituio representativa. No quero dizer que ele fosse uma pessoa abnegada ealtrusta ao ponto de no ser atrada pelo brilho da notoriedade, mas a humildade foi sua maior virtude.Talvez tenha se espelhado no exemplo do Caboclo das Sete Encruzilhadas que se apresentava dizendo:sou apenas um caboclo brasileiro.

    5 Bibliografia

    BIRMAN, Patrcia. Registrado em cartrio, com firma reconhecida: a mediao poltica das Federaesde Umbanda. Umbanda e Poltica . Rio de Janeiro: ISER, n. 18, 1985. p 80-121.

    BROWN, Diana. Uma histria da Umbanda no Rio.Umbanda e Poltica . Rio de Janeiro: ISER, n. 18,1985. p 9-42.

    BOURDIEU, Pierre.A Economia das Trocas Simblicas . 5 ed. So Paulo: Perspectiva, 2004.

    CONGRESSO BRASILEIRO DO ESPIRITISMO DE UMBANDA, 1. 1941, Rio de Janeiro.Anais... Rio de Janeiro: Federao Esprita de Umbanda, 1942.

    FREITAS, Byron Torres de; e PINTO, Tancredo da Silva.Fundamentos de Umbanda . Rio deJaneiro: Souza, 1957.

    GIUMBELLI, Emerson. Zlio de Moraes e as Origens da Umbanda no Rio de Janeiro. In:Caminhos

    da Alma . So Paulo: Selo Negro, 2003.

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    GUIMARES, Luclia e GARCIA, der Longas (Revisado por Mestre THASHAMARA).Um poucoda Histria de Zlio de Moraes . Disponvel em . Acesso em 31 Ago.2002.

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