Byington - Prefácio do Livro: Cérebro, Inteligência e Vínculo Emocional na Dependência de...

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Da psicologia à neurologia simbólica no estudo da drogadição Carlos Amadeu Botelho Byington Prefácio Este livro, além do mérito de publicar os re- sultados das pesquisas dos autores e de seus co- legas convidados, tem ainda um outro, que é a coragem de confrontar na Neurologia a dissociação mente-corpo, que domina as Ciên- cias Naturais e a Medicina desde o final do século dezoito. Esta dissociação dificulta o estudo conjunto da neurofisiologia e dos fatores ideativos-emocionais, individuais e culturais que compõem o distúrbio da droga-adição. Quando a Ciência tomou o poder na Uni- versidade e daí expulsou a Inquisição, ela passou a subordinar a verdade exclusivamente à objetividade, e dela excluiu a subjetividade e a totalidade subjetivo-objetivo. Apesar de hoje a filosofia da pesquisa científica buscar resgatar esse subjetivo banido, como por exemplo, na Fenomenologia de Husserl e de Heidegger, e nas Ciências Sociais de um modo geral, falta ainda a formulação da dimensão subjetivo- objetivo para formar a consciência a partir da coisa-em-si, que no caso do sistema nervoso inclui neurônios, neurotransmissores e tudo mais que o compõe, inclusive a dimensão ideativa-emocional, individual e cultural. Para perceber os achados neurológicos anatômicos e fisiológicos junto com seus com- ponentes ideativos-emocionais, ampliei os con- ceitos tradicionais de símbolo e de função psicológica para símbolo e função estruturantes, que incluem a parte concreta junto com os significados de todas as coisas e forças que as operam. Os símbolos estruturantes são elabora- dos pelas funções estruturantes, coordenadas por arquétipos, e os significados produzidos por sua elaboração formam a identidade do Ego e do Objeto (o Outro) na Consciência. Concebe- se, assim, a Ciência Simbólica, que descreve o Processo de Humanização do Cosmos e que inclui a Medicina Simbólica e, por conseguinte, também a Neurologia simbólica. Este processo, formulado na obra de Teilhard de Chardin, descreve a formação da Consciência a partir da evolução da vida e da complexificação progres- siva do Sistema Nervoso das espécies. A Neurologia simbólica continua a idéia de Freud esboçada no Projeto para uma Psicolo- gia Científica, de 1895: “A finalidade deste projeto é estruturar uma psicologia que seja uma ciência natural, isto é, que represente os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, dando assim a esses processos um caráter concreto e inequívoco”. O conceito de Psicologia proposto pelo Projeto de Freud é a Neurologia simbólica aqui conceituada.

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Da psicologia à neurologiasimbólica no estudo da drogadição

Carlos Amadeu Botelho Byington

Prefácio

Este livro, além do mérito de publicar os re-sultados das pesquisas dos autores e de seus co-legas convidados, tem ainda um outro, que é acoragem de confrontar na Neurologia adissociação mente-corpo, que domina as Ciên-cias Naturais e a Medicina desde o final doséculo dezoito. Esta dissociação dificulta oestudo conjunto da neurofisiologia e dos fatoresideativos-emocionais, individuais e culturaisque compõem o distúrbio da droga-adição.

Quando a Ciência tomou o poder na Uni-versidade e daí expulsou a Inquisição, elapassou a subordinar a verdade exclusivamenteà objetividade, e dela excluiu a subjetividade ea totalidade subjetivo-objetivo. Apesar de hojea filosofia da pesquisa científica buscar resgataresse subjetivo banido, como por exemplo, naFenomenologia de Husserl e de Heidegger, enas Ciências Sociais de um modo geral, faltaainda a formulação da dimensão subjetivo-objetivo para formar a consciência a partir dacoisa-em-si, que no caso do sistema nervosoinclui neurônios, neurotransmissores e tudomais que o compõe, inclusive a dimensãoideativa-emocional, individual e cultural.

Para perceber os achados neurológicosanatômicos e fisiológicos junto com seus com-ponentes ideativos-emocionais, ampliei os con-ceitos tradicionais de símbolo e de função

psicológica para símbolo e função estruturantes,que incluem a parte concreta junto com ossignificados de todas as coisas e forças que asoperam. Os símbolos estruturantes são elabora-dos pelas funções estruturantes, coordenadaspor arquétipos, e os significados produzidos porsua elaboração formam a identidade do Ego edo Objeto (o Outro) na Consciência. Concebe-se, assim, a Ciência Simbólica, que descreve oProcesso de Humanização do Cosmos e queinclui a Medicina Simbólica e, por conseguinte,também a Neurologia simbólica. Este processo,formulado na obra de Teilhard de Chardin,descreve a formação da Consciência a partir daevolução da vida e da complexificação progres-siva do Sistema Nervoso das espécies.

A Neurologia simbólica continua a idéia deFreud esboçada no Projeto para uma Psicolo-

gia Científica, de 1895: “A finalidade desteprojeto é estruturar uma psicologia que sejauma ciência natural, isto é, que represente osprocessos psíquicos como estadosquantitativamente determinados de partículasmateriais especificáveis, dando assim a essesprocessos um caráter concreto e inequívoco”. Oconceito de Psicologia proposto pelo Projeto deFreud é a Neurologia simbólica aquiconceituada.

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No caso das droga-adições, a Neurologiaque se atém à físico-química se limita ao estudoda dependência emocional e orgânica principal-mente em função do que ocorre com osneurotransmissores do paciente em virtude doconsumo da droga. Já uma Neurologia simbóli-ca necessita incluir na compreensão da droga-adição o significado emocional das vivênciasindividuais, familiares e socioculturais queacompanham o uso da droga e o papel que elasdesempenham no desenvolvimento dapersonalidade e da cultura. Não se trata de darexclusividade dos significados simbólicos paraa Psiquiatria ou para a Psicologia, e sim, aocontrário, de compreendê-los e estudá-losdentro do Sistema Nervoso, junto com o funci-onamento dos neurotransmissores.

A Neurologia simbólica propõe a analogiadas estruturas do Sistema Nervoso com oshardwares dos computadores, e o programa dossoftwares com as reações cognitivas e emocio-nais adquiridas. Estabelecemos assim umainclusão da Cultura na Neurologia, aopercebermos que o Sistema Nervoso incorporaprogressivamente, desde o nascimento, oaprendizado realizado nas gerações passadas.Trata-se, portanto, de um Sistema Nervosointensamente “recheado de significados simbó-licos, pois reconhece e assume tudo o que é etem”.

A divisão entre a Psiquiatria e a Psicologiade um lado, e a Neurologia de outro, preservounesta, indevidamente, o predomínio daorganicidade em detrimento da psicodinâmica.Infelizmente, a Psiquiatria, hoje, ao sereaproximar da Neurologia pelo maior conheci-mento dos neurotransmissores, ao invés de tra-zer consigo o conhecimento psicodinâmico ad-

quirido durante os séculos dezenove e vinte,tem dele se afastado.

Para conceituar a Neurologia simbólica, ba-seada nos conceitos de símbolo e de funçãoestruturantes, é necessário reconhecer e incluirno conhecimento do Sistema Nervoso todas asdescobertas da Psicologia e da Psiquiatria. Épreciso romper o paradigma positivista,segundo o qual aquilo que ainda não foiconstatado pela neurofisiologia não deve serincluído na Neurologia.

A Psicologia Simbólica reconhece o Proces-so de Elaboração Simbólica para formar aConsciência como o centro e a finalidadeúltima de toda a atividade neurológica ebiológica. Sua coordenação é feita peloQuatérnio Arquetípico Regente composto pelosArquétipos Matriarcal, Patriarcal, de Alteridadee de Totalidade, que operam através daatividade criativa e centralizadora do ArquétipoCentral. O Arquétipo Matriarcal, matriz coorde-nadora do desejo e da sensualidade, opera prin-cipalmente através do sistema neurovegetativo.O Arquétipo Patriarcal, que coordena a organi-zação psíquica e a execução de tarefas, seexerce principalmente através do sistemacérebro-espinhal. O Arquétipo de Alteridade,que coordena a interação das polaridades,inclusive da grande polaridade matriarcal-patriarcal, ou seja, neurovegetativa cérebro-es-pinhal, funciona através das interações daslateralidades, como por exemplo, da decussaçãodas pirâmides, do Corpo Caloso e dos inúmeroscircuitos associativos. Restam o Arquétipo daTotalidade, que rege a Consciênciacontemplativa do Todo e o Arquétipo Central,que coordena a relação dos eventos existenciaiscom o desenvolvimento prospectivo da persona-

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lidade, como bem descreveu Jung ao enfatizarem toda a sua obra que o principal instintohumano é o Instinto da Individuação.

O desafio médico e humanista da Neurolo-gia simbólica é assumir e pesquisar estas gran-des descobertas da Psicologia. No processo deglobalização, que favorece a integração plane-tária do conhecimento, a setorização daNeurologia dentro de uma torre de marfimneurofisiológica é cada vez mais inadmissível.Dentro do Humanismo Simbólico, que relacionatoda e qualquer parte com o Todo através deseus significados, a setorização do saber temcada vez menos lugar por propiciar a alienaçãodo Ser.

O assunto se complica extraordinariamentequando tentamos compreender o fenômeno daSombra pela Neurologia simbólica, seguindo aintenção de Freud quando buscou uma explica-ção neurológica para a defesa da repressão (in-consciente reprimido) no Projeto.

Segundo a Psicologia Simbólica, a Sombrase forma com suas defesas inconscientes pelafixação da elaboração de determinados símbolose funções estruturantes, que passarão a ser ex-pressos inconscientemente pela compulsão derepetição descoberta por Freud. Embasar ofenômeno da fixação ao lado da elaboraçãocriativa dos símbolos no funcionamento dosneurotransmissores é hoje um grande desafio,principalmente quando nos damos conta que afixação, além de ser responsável pelas adições,é a sede do crime e do mal na personalidade.Pesquisar neurofisiologicamente o fenômeno dafixação simbólica significa, por conseguinte,abrir a Neurologia para estudar a funçãoestruturante da ética.

No entanto, para se compreender fisiológicae emocionalmente as droga-adições, o maiordesafio da Neurologia simbólica é saber a loca-lização e o funcionamento do Arquétipo Cen-tral no Sistema Nervoso. É que os símbolos efunções estruturantes que os droga-aditosdenominam “barato”, e que buscam paraproduzir o estado alterado de Consciência queos vicia, referem-se a um estado de euforia,bem-estar, paz, totalidade, auto-realização efelicidade, a uma sensação de que tudo está noseu lugar, de que o mundo é coerente, de seestar encarnado em si mesmo e no Cosmos:exatamente os símbolos e funções estruturantesque trazem à Consciência a noção da existênciae do funcionamento centralizado e sistêmico doArquétipo Central. A droga propicia àConsciência a vivência que as pessoas muitodiferenciadas conquistam após um grande es-forço de amadurecimento.

O ser humano tem necessidade de Deus.Funda tantas religiões porque, para realizar opotencial da sua plenitude, projeta no Universoo Arquétipo Central do Self, descoberto porJung, e que coordena o funcionamento daPsique e, por conseguinte, do Sistema Nervoso.

Não se trata de “reduzir” Deus ao cérebro,mas sim de embasar as características todo-po-derosas de ubiqüidade, atribuídas às divindadesem todas as culturas, a um arquétipo quecoordena todo o Processo de ElaboraçãoSimbólica. Para o droga-adito, a droga é o seusalvo-conduto para a presença mágica datranscendência e da divindade. Para ajudá-lo énecessário admitir que esse arquétipo existe ebuscar o seu funcionamento no SistemaNervoso através dos neurotransmissores. Oterapeuta que quer tratar da droga-adição e que

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não sabe como relacionar as pessoas com a To-talidade está em grande desvantagem para com-petir com o poder simbólico das drogas. Não épor acaso que tantas religiões conseguem a curade droga-aditos pela conversão. É importantepara o neurologista saber que isto não ocorreuporque a cura “caiu do céu”, e sim porque, aoestabelecer a religação da Consciência com oArquétipo Central através do símbolo dadivindade, o sacerdote deu ao paciente osignificado existencial que a droga químicamagicamente lhe proporciona. Só quem temessa relação simbólica com a vida e aTotalidade pode dizer a um droga-adito: “Lar-gue o que você sente com a droga para buscaressa mesma vivência no trabalho e na relaçãocom as pessoas que você preza.”

Para entender a droga-adição além daneurofisiologia, é necessário compreender ofuncionamento dos símbolos dentro da persona-lidade, da família, da cultura e do Planeta comoSistemas de Totalidade representativos do Ar-quétipo Central do Self. Esses sistemas sãoafetados de uma forma ou de outra pelasdrogas, que também são símbolos que alterama Consciência e a Sombra, formando-as etransformando-as nas várias dimensõeshumanas.

As duas grandes funções simbólicas que di-rigem o Arquétipo Central na coordenaçãoneuro-endócrina do organismo são o amor e opoder. O amor rege a interação afetiva com aspessoas, o corpo e a natureza, e o poder coorde-na a busca de um lugar ao sol pelo esforço docrescimento de cada um. A droga-adiçãosubstitui magicamente estas duas funçõesferidas, cujo conhecimento simbólico énecessário para a sua reparação.

A dimensão familiar do Arquétipo Centralpermite à Neurologia simbólica relacionar a re-ação química dos neurotransmissores com a cri-se de adolescência e o consumo de drogas,como uma arma poderosa na polarização com afamília. Só assim podemos compreender que amesma arma usada para fortalecer a auto-estimae a formação da identidade da maioria dos ado-lescentes pode se transformar no vício que a al-guns escraviza e destrói.

Dentro do Self Cultural, a compreensãosimbólica das drogas também nos permite en-tender a busca mágica da ligação da Consciên-cia com o Arquétipo Central dentro da ideolo-gia da cultura materialista e imediatista deconsumo, condicionada pela ideologia de mer-cado neoliberal que, por sua desumanização,desqualifica a dignidade do trabalho, ao mesmotempo em que corrompe valores culturais quepromovem a beleza e o sentido da vida.

Outro ponto importante a ser destacado é acompreensão que a Neurologia simbólica pode tere, através dela, esclarecer a Medicina e Culturasobre o gravíssimo e crescente problema geradopela receita indiscriminada de antidepressivos. Se,por um lado, a pesquisa neurofisiológica tem pro-duzido drogas prodigiosas que tornaram as indús-trias de medicamentos mais lucrativas que as in-dústrias de armamentos, por outro, ela apresentauma terrível Sombra que aproxima a emblemáticaimagem do médico à figura hedionda donarcotraficante, pelo fato de fomentar oembotamento da Consciência e a alienação que,tal como a droga-adição, inibe pela dependênciade psicofármacos o potencial de auto-realizaçãodo Ser.