Burocracia e Política no Brasil - desafios para o Estado Democrático no Século XXI
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BUROCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL: DESAFIOS PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO NO SÉCULO XXI
Fernando Luiz Abrucio Maria Rita LoureiroRegina Silvia Pacheco
Introdução
Os textos reunidos neste volume tratam da temática da burocracia sob dois
ângulos. De um lado, analisam os seus vínculos com o sistema político e suas
conseqüências para a democracia. De outro, lançam luz sobre o próprio aparato
burocrático, seja do ponto vista teórico seja da sua organização efetiva. Em ambas as
perspectivas, ênfase especial é dada à experiência brasileira, reconstruindo a trajetória
histórica e as questões contemporâneas.
Um dos objetivos enfrentados coletivamente pelos autores é desmontar o mito da
separação estanque entre política e burocracia, ou seja, a idéia de que os políticos
tomam todas as decisões e os burocratas apenas executam ou administram tais decisões.
Assim, a orientação geral aqui adotada questiona a visão que se origina em Woodrow
Wilson, no final do século XIX nos Estados Unidos, de que “a administração está fora
da esfera política e as questões administrativas não são questões políticas”. Esta mesma
perspectiva reducionista da relação entre políticos e burocratas também aparece em
certas interpretações mais apressadas da obra de Max Weber, as quais transformam a
distinção feita por ele acerca dos papéis desses atores em uma separação absoluta.
Wilson foi o primeiro autor a refletir sobre a relação entre políticos e burocratas,
no texto seminal intitulado The Study of Administration (1887). Sua visão seria a de
que a política e a administração deveriam ser claramente separadas1. Esta separação
baseia-se na idéia de que ao mundo político caberia a definição das prioridades da ação
governamental, ao passo que a esfera administrativa ficaria com a implementação das
políticas, a partir da transformação das diretrizes gerais em atos burocráticos. Conforme
aponta Behn (1998:9), esta concepção perpassa várias passagens da obra de Wilson,
entre as quais pode se destacar a seguinte: “os planos da ação governamental não são
1 O argumento a seguir baseia-se não só do trabalho de Wilson (1887), como nas análises de Robert Behn (1988) e Rafael Oliva (2006).
1
administrativos, [ao passo que] que a execução de tais planos é que é administrativa”
(WILSON, 1887:18-9).
Um trabalho recente sobre o tema resume bem a concepção wilsoniana:
“É importante notar que a separação proposta por Wilson não se reduz a uma mera diferenciação entre etapas do processo de produção de políticas. De fato, o ponto central do raciocínio wilsoniano reside na compreensão de que decisões políticas e administrativas possuem natureza distinta – sendo que a especificidade das últimas estaria na possibilidade de que fossem submetidas a tratamento “científico”, o que lhes conferiria um status de neutralidade frente aos objetivos de política propostos. Nesse aspecto, Wilson é enfático ao afirmar que qualquer objetivo de política poderia ser reduzido a uma dimensão “técnica”, indicando, assim, que o núcleo da atividade administrativa corresponderia a identificar a resposta “correta” para os problemas ou desafios definidos no nível da política” (OLIVA, 2006: 31).
Tal como Wilson, Weber identificou na burocracia um ator importante para o
Estado moderno. Ela teria o papel, primeiramente, de evitar que o governo fosse tomado
pela ocupação patrimonial dos cargos públicos, processo que seria substituído pela
seleção pública e universal de um corpo profissional, meritocrático e impessoal. Além
disso, caberia aos burocratas a racionalização da administração pública, por meio de
procedimentos padronizados, substituindo o diletantismo por ações orientadas por
especialistas.
Mas enquanto Wilson propunha uma complementaridade harmoniosa entre
política e burocracia, Weber definia esta relação como um convívio necessário, porém,
marcado por tensões. A principal delas está no campo do controle das decisões
burocráticas, nas quais Weber já percebera um espaço de grande autonomia para os
funcionários públicos, sem que necessariamente os políticos – e, em última instância, os
cidadãos – conseguissem controlar tais ações. Neste sentido, o modelo weberiano
analisa a burocracia não só como um fenômeno funcional ao desenvolvimento do
Estado moderno e do capitalismo – como fez crer a leitura parsoniana de Weber,
hegemônica no século XX –, mas também como um dos grupos de poder mais
estratégicos do mundo contemporâneo2.
É o tema do controle o principal divisor de águas da obra dos dois autores. O
modelo wilsoniano resolvia o dilema do controle de duas formas. A primeira seria
2 A vertente weberiana mais voltada ao estudo da burocracia como ator político foi desenvolvida por vários autores e escolas de diferentes matizes na segunda metade do século XX, como Michel Crouzier, Robert Dahl, Anthony Downs, os autores do Public Choice, a visão do neo-institucionalismo histórico, entre outros.
2
meramente técnica, pela seleção dos melhores e o desenvolvimento da ciência da
administração. A segunda seria por meio das eleições, nas quais os cidadãos
referendariam ou não as ações governamentais, com impactos sobre a forma como a
burocracia implementa as políticas. Nesta concepção, haveria controles ex-ante
(qualidade do recrutamento) e ex-post (processo eleitoral), mas não ao longo do
mandato.
Embora Weber concordasse com estes instrumentos propostos por Wilson, a eles
acrescentava mais um, que é central em sua concepção. Tratava-se da criação de
mecanismos de controles parlamentares da burocracia, instituindo aí formas de
fiscalização ao longo do mandato. Esta proposta continha uma perspectiva segundo a
qual a burocracia nunca será completamente neutra e que seus objetivos podem ganhar
autonomia perante as decisões políticas. É neste ponto que podemos diferenciar mais
precisamente os argumentos weberianos da visão wilsoniana. Mesmo assim, Weber
deixou uma pergunta sem resposta: como controlar os aspectos técnicos utilizados pela
burocracia para os quais os políticos não têm informação ou formação para melhor
orientar a fiscalização?3
A esta pergunta foram dadas três respostas nas últimas décadas. A primeira foi a
multiplicação dos mecanismos de controle democrático, particularmente no momento
do mandato. A chamada accountability horizontal, entre instâncias de poder, cresceu
muito, o que no caso brasileiro pode ser notado nas ações do Ministério Público, dos
Tribunais de Contas e do Judiciário, além do próprio parlamento. O controle vertical do
poder político também foi alterado, com a instauração de controles sociais e de
resultados sobre as políticas púbicas, exercidos de forma ininterrupta (ABRUCIO &
LOUREIRO, 2004).
Uma segunda resposta veio de idéias oriundas de autores da Nova Gestão
Pública. Por esta linha foram feitas propostas para controlar os resultados das ações
burocráticas, aumentar a transparência governamental e incrementar a possibilidade de a
sociedade fiscalizar a administração pública, a fim de evitar que a burocracia torne-se
ensimesmada. Daí que esta corrente preconiza a instauração de uma administração
pública voltada aos cidadãos e não aos desígnios internos da estrutura burocrática.
3 Como uma forma de resolver esta questão, o argumento weberiano aventou a possibilidade de que o controle da técnica burocrática poderia sair de uma competição interburocrática, particularmente entre organizações públicas e privadas. Weber não desenvolveu muito este ponto, só exposto em sua última obra (Parlamento e Governo numa Alemanha reordenada – Weber, 1993). Esta idéia foi recuperada recentemente pela Nova Gestão Pública, por meio de conceitos como o pluralismo institucional na provisão de serviços públicos e formas de competição administrada (cf. Abrucio, 2006).
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Como último remédio ao dilema do controle proposto por Weber, os políticos
cada vez mais procuram obter conhecimento e assessoria técnica para controlar os
burocratas. Na verdade, constata-se no mundo contemporâneo aquilo que Aberbach,
Rockman e Putnam (1981) denominaram de “burocratização da política e politização da
burocracia”. Ou seja, estes autores mostraram que prevalecem hoje nas democracias
ocidentais formas híbridas de relacionamento entre política e administração. Nelas, os
políticos estão cada vez mais fundamentando tecnicamente suas decisões e os
burocratas reforçando seu papel nas decisões políticas, orientando-se pelos sinais
emitidos pelos políticos ou mesmo intermediando interesses de clientelas específicas. E
essa nova realidade obriga os estudiosos a analisar criticamente os efeitos dessa
intersecção dos papéis dos políticos e dos burocratas para o funcionamento do governo
e para a manutenção da ordem democrática.
Do ponto vista mais geral, a concepção weberiana da relação entre política e
burocracia e as três respostas ao dilema do controle proposto por Weber constituem o
fio condutor teórico deste livro, cujo foco empírico é o Brasil. A organização da obra
procurou apresentar textos que articulam a discussão da relação entre política e
burocracia com dois eixos. O primeiro diz respeito à análise do sistema político-
administrativo brasileiro, sendo dois artigos com ênfase na dimensão histórica e outros
dois mais voltados para o período da redemocratização. O segundo eixo refere-se às
reformas recentes da gestão pública, enfatizando questões como transparência,
responsabilização e controle dos governantes, profissionalização e carreiras públicas,
eficiência da ação estatal.
É importante frisar que a temática da gestão pública é estudada aqui não só do
ponto de vista administrativo, mas também, e com grande ênfase, da perspectiva
democrática, na medida em que a melhoria da gestão das políticas públicas e o
aperfeiçoamento dos mecanismos de controle sobre os governantes são dimensões
cruciais do aprofundamento da democracia representativa. Entendida em termos mais
amplos do que a dimensão exclusivamente eleitoral, a democracia representativa supõe
que o controle da probidade, do desempenho e dos resultados das ações governamentais
constitui um momento político central de um ciclo mais amplo da representação
democrática.
Essa noção significa que não se deve perder de vista que o momento eleitoral é
apenas o começo de um processo que continua durante o mandato. Para assegurar que
os representantes, uma vez à frente dos seus cargos, pautem sua conduta pelo “melhor
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interesse de seus representados” é necessário haver instrumentos efetivos e continuados
de controle (URBINATI, 2006). Portanto, o ciclo da representação se completa apenas
quando o povo, a partir dos atos de controle, é capaz de avaliar se os governantes
agiram ou não como seus representantes de fato, decidindo-se por sua recondução ou
destituição do cargo (PRZEWORSKI, STOKES E MANIN, 2004).
O livro procura, assim, conectar análises da ciência política com questões da
gestão pública, que geralmente são feitas, na literatura, de forma isolada. Esse esforço
visa articular temas eminentemente político-institucionais – como democracia,
representação, federalismo e relação entre os Poderes – a aspectos mais específicos da
organização e funcionamento do Estado, tais como perfil da força de trabalho,
organização das carreiras públicas, critérios de nomeação de dirigentes, novos formatos
organizacionais e técnicas gerenciais inovadoras. Estes últimos têm sido tratados pelos
pesquisadores da área de administração pública, muitas vezes de forma normativa ou
apenas descritiva e, portanto, empobrecedora. Por outro lado, muitos cientistas sociais
ignoram aspectos fundamentais do funcionamento do Estado e do governo, como se os
arranjos administrativos fossem meras questões instrumentais. Procura-se aqui submeter
tais objetos empíricos ao diálogo com os conceitos e preocupações da ciência política e,
ao mesmo tempo, atrair a atenção dos analistas políticos para tópicos importantes da
transformação do Estado contemporâneo, particularmente aqueles abordados pela
chamada “Nova Gestão Pública”.
Aqui é necessário realçar dois aspectos. O primeiro refere-se ao ineditismo da
empreitada, ao buscar articular analiticamente essas duas perspectivas científicas. Para
os autores deste livro, gestão pública não é um ramo da administração de empresas
(apesar de assim ser tratada institucionalmente no Brasil), mas antes dialoga
prioritariamente com a ciência política. O segundo aspecto é decorrente daí: há
possíveis complementaridades, mas há também tensões nesta junção, que se expressam
em termos de linguagem, abordagem e recorte temático.
Um exemplo desta tentativa de articulação e de suas tensões é a diversidade do
uso do(s) conceito(s) de burocracia que aparece(m) neste volume. Nos diferentes
capítulos do livro, o conceito de burocracia varia conforme o ponto de vista a partir do
qual é construído. Quando o foco é a organização do Estado, a burocracia tem um
sentido, como corpo permanente do Estado (de carreira ou não); quando o foco é o
sistema representativo, a burocracia pode ser compreendida como os atores não-eleitos
do Estado. Essa pluralidade conceitual pode instigar o leitor a entender a diversidade de
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abordagens e refletir sobre as especificidades e a importância destas duas visões. Neste
sentido, o objetivo não é criar um referencial único para entender a burocracia, mas
explorar as diferentes possibilidades de análise que o tema suscita.
Assim procedendo, este livro preenche uma lacuna da literatura brasileira,
marcada, por um lado, pela ausência de estudos da burocracia nos períodos
democráticos e, por outro, pela centralidade do ponto de vista organizacional em
detrimento de análises mais “politizadas”, ou seja, preocupadas com o papel da
burocracia no jogo democrático.
Cabe mencionar ainda que este livro tem também objetivo didático, pretendendo
ser bibliografia de referência básica, uma vez que praticamente não há publicações no
Brasil que reúnam em um mesmo volume textos que articulem análises da formação
histórica e do funcionamento da burocracia brasileira com as características do sistema
político e seus impactos para a ordem democrática.
Os estudos no Brasil sobre a burocracia, além de serem relativamente escassos
se comparados a outros países – como os Estados Unidos –, referem-se, sobretudo, aos
períodos autoritários, quando o fechamento das vias democráticas de participação, em
partidos ou no legislativo, redireciona a atividade política para dentro do aparato estatal,
obrigando o analista a buscar a compreensão das decisões políticas dentro da burocracia
do Poder Executivo.
Por outro lado, a literatura brasileira se constitui majoritariamente de estudos de
casos de agências governamentais, privilegiando a análise da relação entre Estado e a
sociedade, diferentemente dos estudos produzidos mais recentemente na Europa,
prioritariamente centrados nos problemas de desempenho dos burocratas, e nos EUA,
cujo foco principal está na eficácia ou não dos controles democráticos sobre a
burocracia. A referência à literatura internacional nos permite, portanto, perceber a
prevalência, no Brasil, de uma reflexão sobre a burocracia marcada muito mais pela
preocupação com o papel central do Estado na sociedade do que propriamente em
entender suas “entranhas” ou sua relação com o sistema político. Ao contrário destas
formas de abordagem do tema, neste volume a burocracia é o objeto central de análise,
desdobrando-se em dimensões que se conectam com a questão democrática e a
efetividade das ações do Estado.
O volume está organizado da seguinte forma. A Parte I trata da relação da
burocracia com o sistema político. Seu primeiro capítulo tem como objetivo reconstituir
a formação e a trajetória da burocracia brasileira por meio da análise dos momentos
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mais importantes de reforma da administração pública e da compreensão de suas
principais efeitos para a modernização do aparelho de Estado. Privilegia-se o estudo das
principais mudanças institucionais – principalmente o DASP e o Decreto Lei-200 –,
ressaltando seus aspectos positivos, mas também seus problemas, particularmente o
paradigma comum do modelo reformista brasileiro: centralizador, autoritário e insulado
em relação ao sistema político. Busca-se, assim, problematizar esta proposta de
“modernização conservadora” que foi hegemônica no século XX.
Somente com a redemocratização do país, o paradigma reformista foi mudado,
incluindo um modelo mais democrático, com maior equilíbrio do ponto de vista
intergovernamental e que evitou criar apenas uma elite burocrática protegida dos
políticos. Dessa nova visão resultaram conquistas que, de fato, melhoraram a gestão
pública brasileira. Porém, misturam-se hoje antigos e novos desafios, tanto em termos
de conteúdo como no que tange às estratégias reformistas. O final do capítulo lista quais
seriam as principais prioridades no campo da reforma administrativa no país.
O capítulo 2 analisa os vínculos estabelecidos historicamente entre a burocracia
governamental, os partidos políticos e os grupos de interesse. A partir dos estudos sobre
a emergência e consolidação do Estado e de suas relações com a sociedade, o texto
indica que se, de um lado, há consenso sobre o papel crucial desempenhado pela
burocracia nos processos decisórios de políticas públicas, de outro lado, há divergência
com relação à fonte de seu poder: ora o poder da burocracia advém dos interesses
socioeconômicos que ela própria representa dentro do aparelho de Estado, ora deriva da
decisão estratégica dos chefes do Poder Executivo de tentar garantir, por meio dos
"burocratas de confiança", que sua direção e controle sobre a máquina estejam
assegurados.
Todavia, o capítulo enfatiza que o importante é compreender a natureza e o
alcance do poder dos burocratas na estrutura geral do Estado e na forma em que
funciona o sistema político Em outras palavras, entender a burocracia no Brasil como
policymaker é indissociável dos debates acerca da hipertrofia do Executivo em relação
ao Legislativo e da fraqueza da função governativa dos partidos políticos, não só nos
momentos autoritários, mas igualmente na democracia. São, assim, retomados temas
como clientelismo, insulamento burocrático, corporativismo e meritocracia e os desafios
que impõem para a ordem democrática.
O tema do capítulo 3 refere-se ao controle sobre a administração pública,
dimensão crucial de uma ordem democrática, pois se espera que nos regimes
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democráticos a conduta dos agentes públicos e os resultados de suas políticas sejam
passíveis de verificação e sanção permanentes. Em outras palavras, discute-se aqui o
que a literatura chama de accountability horizontal. O balanço do exame dos controles
democráticos sobre a burocracia no Brasil revela um quadro ainda bastante negativo,
caso se tenha como expectativa uma efetividade sistêmica dos diversos instrumentos de
controle. Isto ocorre porque, embora haja um grande número de mecanismos e formas
de accountability horizontal, eles não operam de forma coordenada ou ao menos
articulada. É bem verdade que os exemplos mencionados demonstram que as
possibilidades proporcionadas por nosso marco constitucional e legal não são poucas,
precisando, contudo, ser efetivadas enquanto instrumentos de responsabilização e
aprimoramento das políticas públicas.
O arcabouço institucional faculta ao Poder Legislativo, ao Tribunal de Contas da
União e ao Ministério Público agirem como instâncias de controle da administração
pública, mas a atuação de todos esses órgãos se dá muito mais no combate à corrupção
do que no controle da qualidade das políticas implementadas pela Administração
Pública. No caso do TCU e do MP, o controle da probidade é mesmo uma função
precípua dos órgãos; já no caso do Legislativo, a passividade no controle político da
administração aparece como mais uma faceta do predomínio do Executivo nas relações
entre os Poderes no Brasil.
O capítulo 4 conclui a Parte I do livro, analisando o surgimento de um novo
modelo de sistema de controle interno no Executivo federal, por meio do exame dos
processos político-institucionais que deram origem ao órgão central desse sistema, a
Secretaria Federal de Controle Interno (SFC). Criada em 1994, no bojo de um conjunto
de reformas legais e organizacionais, a SFC procurou, por um lado, superar o controle
interno meramente formal e legalista, predominante entre as décadas de 1960 e 1980, e,
por outro, buscou criar capacidade estatal de monitorar as políticas públicas e a atuação
da burocracia.
Este capítulo analisa, ainda, o significado da SFC em termos do aperfeiçoamento
das instituições de promoção da transparência e da accountability e como instrumento
potencial de controle político da burocracia. Embora a atividade de controle interno ou
monitoramento não seja política, pois é guiada por critérios técnicos e burocráticos
definidos a priori, ela pode ser usada pelos agentes políticos (como Presidente da
República, ministros e demais dirigentes) como um dos instrumentos para garantir o
alinhamento da burocracia às políticas e aos programas definidos politicamente.
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A parte II, com cinco capítulos, é dedicada à discussão da temática da gestão
pública no Brasil contemporâneo. O capítulo 5 sistematiza os temas emergentes da
chamada Nova Gestão Pública, tais como transparência das ações governamentais,
atuação voltada ao usuário, descentralização de atribuições, horizontalização das
estruturas e ações matriciais, controle e melhoria de processos, aumento das
competências de gestão dos funcionários e a construção de uma administração orientada
por e para resultados. Tomando distância de autores que vêem nesta abordagem uma
ameaça à democracia, o capítulo desenvolve a tese de que a Nova Gestão Pública tem
contribuído para o fortalecimento da ordem democrática, ao melhorar a qualidade da
ação governamental e tornar mais efetiva a ação do Estado, especialmente no que se
refere à prestação de serviços públicos.
O capítulo 6 apresenta uma ampla radiografia do emprego público no Brasil em
perspectiva comparada, tanto em termos internacionais quanto entre as esferas do
governo nacional e os setores da administração pública. A discussão em torno da
evolução do emprego público no país tem sido bastante centrada na magnitude do
contingente de servidores, e o texto mostra que o tema exige uma abordagem mais
complexa, que envolva outros elementos.
Em relação à composição da força de trabalho, demonstra-se que não há um
número excessivo de servidores públicos no país, mas uma distribuição inadequada
entre os diversos setores, com excesso de funcionários nas áreas de suporte
administrativo e operacional. Além dessa má distribuição, a multiplicidade de funções
que o Estado desempenha, e que se ampliou nas últimas décadas, requer distintas
formas de contratação que o arcabouço jurídico atual não contempla, levando os
governos a realizarem uma parcela de suas contratações de forma bastante precária.
Apesar desses graves desequilíbrios, os servidores são, em geral, melhor qualificados e
bem remunerados, se comparados ao setor privado. Essas constatações ajudam a
desconstruir dois estereótipos comuns no Brasil: que o Estado seria ineficiente porque
tem muitos funcionários, e que os funcionários públicos não podem ser eficientes
porque seriam mal pagos e desqualificados.
O texto recomenda que a política de recursos humanos deva estar orientada para
motivar os servidores a apresentar bons resultados, e que estes sejam compatíveis com
as metas da organização. Neste sentido, seriam desejáveis a adoção de instrumentos
orientados para a aquisição de competências e a avaliação de desempenho dos
servidores e das organizações. Ao analisar alguns governos estaduais brasileiros, o autor
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apresenta exemplos interessantes de políticas de desenvolvimento profissional, embora
a maior parte das administrações ainda não adote este modelo.
O capítulo 7 analisa de forma pormenorizada o tema da profissionalização da
burocracia, apontado como crucial para entender a administração pública. De início, o
texto aponta que o Brasil tem sido tomado como caso destacado de profissionalização
da função pública dentre os países latino-americanos, por meio da constituição de uma
burocracia permanente, processo iniciado na década de 1930. Mas o artigo também
realça as disfunções da burocracia brasileira, como a rigidez nas relações de trabalho, o
sistema privilegiado de pensões e aposentadorias, a estabilidade plena e desvinculada de
desempenho, além do conceito restrito de profissionalização baseado no ingresso por
concurso público e na promoção em carreiras estruturadas.
Analisando criticamente os princípios da isonomia e do direito adquirido, além
da politização e do uso clientelístico do emprego público, este capítulo apresenta o
corporativismo como um dos fatores responsáveis pela não consolidação de uma
burocracia profissional de Estado no Brasil, apesar das ações recentes, na esfera federal,
empreendidas pelos governos FHC e Lula. Uma das principais qualidades deste texto é
a separação clara entre as noções de mérito e profissionalização, de um lado, e de outro,
as práticas de proteção ao funcionário.
O capítulo 8 apresenta o debate sobre modelos de carreiras de Estado
considerando, em perspectiva comparada, seu processo de formação no século XIX e as
linhas de mudança ocorridas no final do século XX. A partir deste enfoque, é analisada
a carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG),
criada pelo governo federal brasileiro em 1989, com o objetivo de formular,
implementar e avaliar as políticas públicas, bem como para exercer atividades de
direção e assessoramento em escalões superiores da administração – processo que mais
recentemente foi “copiado” por alguns governos estaduais. A história dos EPPGG
ilustra como a constituição e fortalecimento de uma burocracia profissional relaciona-se
com o sistema político e administrativo, e permite a observação de como a estrutura
desta carreira mescla elementos dos diversos modelos analisados, demonstrando que
não há um único padrão de carreira burocrática.
Por fim, o capítulo 9 busca caracterizar a especificidade de um novo ator no
aparelho de Estado, o dirigente público, mostrando seus dilemas e desafios na interação
cotidiana com políticos, burocratas e demais atores sociais. Para isso, são discutidas
certas variáveis, como o ethos próprio do dirigente público, seus recursos de poder,
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formas de acesso à posição, discricionariedade, responsividade e politização da função,
sempre em comparação com as funções típicas dos burocratas e políticos profissionais,
conforme a definição weberiana. As diferenças entre os dirigentes públicos oriundos das
carreiras do funcionalismo e outsiders também são aprofundadas, destacando-se a
insuficiência do debate sobre o tema no Brasil, a situação atual dos dirigentes públicos
na administração pública federal e algumas experiências internacionais que visam ao
fortalecimento da função diretiva. Os autores concluem defendendo a
institucionalização de sua função como condição necessária para um melhor
funcionamento do Estado num regime democrático.
Cabe ressaltar, por fim, que o livro buscou caracterizar, por vários ângulos, o
que é mais específico na configuração contemporânea das relações entre política e
burocracia no Brasil. Determinados aspectos revelam legados históricos muito fortes,
como o predomínio do Executivo, o número exagerado dos cargos em comissão (cujo
preenchimento em boa parte não é justificada nem controlada publicamente) e a
diferença ainda relevante entre os níveis de governo no que tange às capacidades
estatais. Há também novidades, como o surgimento de novos atores burocráticos para
além do Poder Executivo (como membros do sistema de Justiça e do Tribunal de
Contas), a realização de alguns processos de modernização e profissionalização da
gestão pública – como a criação de carreiras, de sistemas de informação e de novos
desenhos organizacionais, entre os principais pontos – e a introdução de idéias e
medidas ligadas à Nova Gestão Pública.
De todo modo, pode-se concluir que os aspectos positivos e negativos da
administração pública brasileira atual só poderão ser mais bem compreendidos por uma
análise que alie as perspectivas da gestão pública e da ciência política. Afinal, o que se
deseja é um Estado que, no século XXI, seja mais efetivo e mais accountable em
relação à sociedade como um todo, e não apenas para a parcela que historicamente
recebeu mais recursos ou teve acesso privilegiado aos bens públicos.
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