Bucolismo e vida quilombola: Entre águas e estiagens o ...cotidiano. Quem vive o lugar contempla a...

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1 Bucolismo e vida quilombola: Entre águas e estiagens o velho Curiaú em Macapá/AP 1 Luciano Magnus de Araújo 2 (UNIFAP/AP) O Curiaú para quem o desfruta é uma dessas comunidades que influencia o pensamento de permanência. Ficar e aproveitar o movimento da natureza em abundância, lugar que mesmo as modernidades não fizeram sumir o bucolismo, o ar interiorano e comunitário. Lugar onde tradições e novidades se encontram nas obras da negritude. Quilombo urbano da cidade de Macapá/AP, Área de Proteção Ambiental (APA), que ao mesmo tempo mostra, exibe, deixa ver os ares de ruralidade. Vida pacata que se desdobra entre ciclos de águas e estiagens, mas que compõem uma dinâmica particular da localidade. Em meio a composições fotográficas e diálogos com autores como Raymond Williams (2011), Bittencourt (1998), Trindade (2015), Castells (1999) o Quilombo do Curiaú será revisto como síntese entre rural, campesino, bucólico e urbano, moderno, e de certa forma dinâmico. Este é um trabalho em andamento, que segue as estações... PALAVRAS-CHAVE: Fotografia, Quilombo do Curiaú, Bucolismo. O tempo e o lugar O mundo em volta é percepção. Significar esse mundo com olhar é exercício cotidiano. Quem vive o lugar contempla a natureza de uma ligação particular, coletiva, ancestral, nova, renovada, por vezes. Entre passantes e nativos o lugar guarda para o bom observador a possibilidade do exercício desse entendimento dos sentidos. O visível e o invisível estão postos como opostos complementares. Viver o lugar no tempo, o tempo no lugar são desafios complexos. A fonte de estímulos compreende um saber, um aprendizado e uma apreensão. Aprender a ver o que está ali, sempre, posto, dado, contigente ou onipresente; mas, perceber mesmo o invulgar não é assim tarefa fácil. Que facilidade haveria em gastar tempo olhando, observando? Para quem afeito a contemplar, estabelecer relações por meio do olhar-ver é um meio de saber do mundo. A poesia rotineira, as lacunas do dia-a-dia, o aparente indecifrável do próximo-distante fazem parte daquele desafio proposto. Aprender-apreender, aqui está o desfio do olhar. Nesse contexto a fotografia assume um recurso potencialmente interessante na relação de um espaço-tempo de natureza particular. 1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 Antropólogo, mestre em Ciências Sociais, professor da Universidade Federal do Amapá UNIFAP. Coordenador do NAIMI-UNIFAPNúcleo de Estudo e Pesquisas em Antropologia Visual, da imagem e Som, Memória e Identidades - http://naimi-unifap.blogspot.com.br/ . [email protected]

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    Bucolismo e vida quilombola: Entre águas e estiagens o velho Curiaú

    em Macapá/AP1

    Luciano Magnus de Araújo2(UNIFAP/AP)

    O Curiaú para quem o desfruta é uma dessas comunidades que influencia o pensamento

    de permanência. Ficar e aproveitar o movimento da natureza em abundância, lugar que

    mesmo as modernidades não fizeram sumir o bucolismo, o ar interiorano e comunitário.

    Lugar onde tradições e novidades se encontram nas obras da negritude. Quilombo

    urbano da cidade de Macapá/AP, Área de Proteção Ambiental (APA), que ao mesmo

    tempo mostra, exibe, deixa ver os ares de ruralidade. Vida pacata que se desdobra entre

    ciclos de águas e estiagens, mas que compõem uma dinâmica particular da localidade.

    Em meio a composições fotográficas e diálogos com autores como Raymond Williams

    (2011), Bittencourt (1998), Trindade (2015), Castells (1999) o Quilombo do Curiaú será

    revisto como síntese entre rural, campesino, bucólico e urbano, moderno, e de certa

    forma dinâmico. Este é um trabalho em andamento, que segue as estações...

    PALAVRAS-CHAVE: Fotografia, Quilombo do Curiaú, Bucolismo.

    O tempo e o lugar

    O mundo em volta é percepção. Significar esse mundo com olhar é exercício

    cotidiano. Quem vive o lugar contempla a natureza de uma ligação particular, coletiva,

    ancestral, nova, renovada, por vezes. Entre passantes e nativos o lugar guarda para o

    bom observador a possibilidade do exercício desse entendimento dos sentidos. O visível

    e o invisível estão postos como opostos complementares. Viver o lugar no tempo, o

    tempo no lugar são desafios complexos. A fonte de estímulos compreende um saber, um

    aprendizado e uma apreensão. Aprender a ver o que está ali, sempre, posto, dado,

    contigente ou onipresente; mas, perceber mesmo o invulgar não é assim tarefa fácil.

    Que facilidade haveria em gastar tempo olhando, observando? Para quem afeito a

    contemplar, estabelecer relações por meio do olhar-ver é um meio de saber do mundo.

    A poesia rotineira, as lacunas do dia-a-dia, o aparente indecifrável do próximo-distante

    fazem parte daquele desafio proposto. Aprender-apreender, aqui está o desfio do olhar.

    Nesse contexto a fotografia assume um recurso potencialmente interessante na relação

    de um espaço-tempo de natureza particular.

    1Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual

    da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA 2 Antropólogo, mestre em Ciências Sociais, professor da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP.

    Coordenador do NAIMI-UNIFAP– Núcleo de Estudo e Pesquisas em Antropologia Visual, da imagem e

    Som, Memória e Identidades - http://naimi-unifap.blogspot.com.br/ . [email protected]

    http://naimi-unifap.blogspot.com.br/mailto:[email protected]

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    Assim, segundo Bittencourt (1998, p. 201)

    A fotografia é resultado do olhar do fotógrafo e seu significado é

    consequência da interpretação dada pelo espectador. No trabalho etnográfico,

    a imagem fotográfica pode ser utilizada para expressar declarações

    visualmente a para alcançar um entendimento. Ao expressar declarações,

    fotografias são inseridas em uma estrutura de significação analítica,

    tornando-se, assim, uma representação da visão de mundo própria do autor da

    imagem. Ao alcançar um entendimento, fotografias servem como símbolos

    intermediários na pesquisa de campo, requerendo interpretações explicitas e

    interativas no processo de elaboração da imagem. A combinação dos modos

    de interpretação documentário e reflexivo abre diferentes dimensões de

    significados aos quais a imagem fotográfica pode ser analisada. Essa

    abordagem traz uma perspectiva frutífera para o uso de fotografias como

    dado etnográfico e novos critérios para a compreensão de outros e de nossos

    discursos visuais.

    O que levar em consideração sobre as tais interpretações explicitas e interativas

    quando o que está no jogo de cena são paisagens e ambientes vistos por certa vida

    espraiada no tempo, com ares interioranos, bucólicos?

    Para o observador vale captar a exuberância ao lado do mais resguardado, do

    encontro, entremeios, daquilo que somente está ali, é daquela localidade, sua realidade

    eloquente. O observador é consumido pelo lugar quando se dispõe, quando se doa na

    condição de transeunte, de flâneur, de desbravador inquieto que aprende

    instantaneamente com o que vê.

    O casamento dessa postura algo espontânea com a fotografia configura

    conjunto valoroso para explorar espaços e tempos.

    Bucolismo e seus ares

    Animais, vida campestre, natureza à farta. O individuo humano ainda não é

    senhor desse lugar, por mais que esteja presente em seus sentidos e significados. O

    elemento natural ainda impera. Na força do pertencimento do lugar, naquilo que as

    tradições fortalecem vínculos, trajetórias comunitárias, saberes e fazeres, seguem no

    tempo o cotidiano e seus ares sob a tônica dos movimentos da natureza.

    Distante da cidade que constrange maneiras de ser, o lugar assim

    compreendido por sua novidade entre ciclos naturais, sazonalidades, traz certa aura que

    ainda convida às descobertas. Mas o que é ser do lugar? O que o movimento particular

    constitui como condição de uma coletividade? Nesse campo há uma dimensão ainda de

    identidade como processo. Segundo Castells (1999, p. 25),

    A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela

    história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela

    memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e

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    revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são

    processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que

    reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos

    culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de

    tempo/espaço.

    Daí que as dimensões possíveis de entendimento e percepção sobre certa aura

    bucólica que possa ser absorvida no Curiaú faz parte desses aspectos amplamente. A

    coletividade que ali vive é protagonista de todos os aspectos que possam compor uma

    visão de mundo, de tempo/espaço onde o que vigora são nuances opostas daquilo que

    objetivamente caracterizam a vida urbana em seus aspectos mais nocivos ao bem estar;

    há outro entendimento e vivência do tempo, não mais como gargalo das

    individualidades, mas como variável de integração e sempre poderosa religação com as

    coisas contextuais: a terra, as águas, as vastidões, a fauna, a flora, os mistérios, o

    lendário, as histórias, a oralidade...

    Dos bucolismos e seus ares, o convite está posto para um passeio nas terras do

    Curiaú.

    Um ensaio de etnografia caminhante...

    O individuo caminha por entre as vias do Curiaú, em verdade a vida principal,

    a estrada única que compõe o ir pela comunidade, esse pedaço da AP 070 , a conhecida

    Rodovia do Curiaú. Ali margeiam casas, por vez vegetação nativa, por vez alagados ou

    vastidão, a depender da estação do ano. A vida simples impera. A vida pacata, por mais

    que o movimento de automóveis esteja presentes em seu ir e vir. Há ali um balneário

    que nos finais de semana é bem procurado, lazer reconhecido em toda cidade, muito

    mais em períodos de cheia, quando no grande inverno as águas altas permitem

    prazerosos banhos e reuniões familiares. Pessoas nas portas das casas, lugares coletivos,

    a venda com a bebida de sempre, a conversação restabelecedora de vínculos.

    Em tempos encontram-se pessoas em meio ao caminhar, noutros o lugar é

    protagonista. Nesse sentido, cabe aguçar os sentidos, cabe deixar-se invadir pelo que há

    demais em volta.

    Segundo Trindade (2015, p.44),

    Curiaú, que está localizado a 8 km do centro de Macapá, capital do estado do

    Amapá. Divide-se entre seis vilas: Curiaú de Dentro, Curiaú de Fora,

    Extremas dos bairros do Ipê e Novo Horizonte, Mocambo e Canteiro Central.

    No quilombo do Curiaú vivem cerca de 150 famílias, com uma população de

    600 pessoas20. O acesso ao Curiaú se dá por meio terrestre, pela rodovia

    estadual Alceu Paulo Ramos (AP-70) e pela rodovia federal (BR-210). Por

    meio fluvial pelos rios Curiaú e Amazona.

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    A presente pesquisa caminha, em processo, no Curiaú de Dentro e no Curiaú

    de Fora, daqui a pouco observará as relações fronteiriças com outros bairros e demais

    espaços no entorno.

    Fonte: http://mapasapp.com/satelite/amapa/curiau-macapa-ap/

    O passeio coloca-se assim...

    http://mapasapp.com/satelite/amapa/curiau-macapa-ap/

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    Composições

    Vastos campos úmidos. Lugares que guardam um chão ancestral. Entre cheias e

    estiagens vive aquele povo do Curiaú. Hoje águas, amanhã...

    Aqui em épocas de estiagem vagam pessoas e bichos, bichos e pessoas. O lugar

    ganha de tempos em tempos novos habitantes...

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    O tempo arrastado das coisas da natureza, o tempo além do tempo, o tempo na

    vida que escorre...

    O que haveria mais para lá? Quem é esse que olha de cá? O que vê?

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    Sombras etéreas, de pessoas e árvores, logo vão deixar de ser...

    Pessoas, lazer e mais do mesmo, do mesmo de onde não se quer sair...

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    Um olhar simpático que foi questionado se podia ser registrado, um sim revelado

    como se vê, e a vida mais além...

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    A vida nas casas, familiaridades, modernidades, simplicidades...

    A fé como que a guardar e proteger o lugar...

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    As gentes do lugar em seus movimentos num dia domingo...

    A mudança assim vindo...

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    Possibilidades...

    Como pesquisa em andamento outros aspectos ainda serão inseridos tendo em

    vista movimentos diversos desse mesmo cotidiano. Importante ver que mesmo diante da

    proximidade com o espaço urbano o contraponto de estabelece: a ruralidade, uma

    vivência do tempo diversa do que é mais comum nos centros urbanos. Para algumas

    pessoas o Curiaú poderia ser reconhecido como um refúgio possível em meio a

    dinâmica cotidiana da vida urbana. Cabe observar a relação com os de dentro e os

    visitantes, essas dinâmicas de relação, a relação casa e rua, a relação homem-fauna-flora

    como condição se vida, a continuidade da vida nessa rica sazonalidade...

    Referências

    BITTENCOURT, Luciana Aguiar. Algumas considerações sobre o uso da imagem

    fotográfica na pesquisa antropológica. In: FELDMAN-BIANCO, Bela; LEITE, Miriam

    L. Moreira. Desafios da Imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais.

    Campinas: Papirus, 1998, 197-212pp.

    CASTELLS, M. O poder da identidade. Volume II, 2ª ed. Tradução Klauss Brandini

    Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

    MAPA DO CURIAÚ. Disponível em: Acesso em: 16 set 2016

    TRINDADE, Joseline Simone Barreto. Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O

    Direito de Dizer e Fazer a Roça no Quilombo do Curiaú – AP. Disponivel em:

    Acesso em: 15 set 2016

    WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo:

    Companhia das Letras, 2011.

    http://mapasapp.com/satelite/amapa/curiau-macapa-ap/http://mapasapp.com/satelite/amapa/curiau-macapa-ap/http://bcficat.ufpa.br/arquivos/Joseline%20Simone%20Barreto%20Trindade.pdf