Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

8

Click here to load reader

Transcript of Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

Page 1: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

ESCOLA NORMAL SUPERIOR

LICENCIATURA EM LETRAS

BRUNO DE SOUSA ANDRADE

MANAUS, JUNHO DE 2010

Page 2: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

ESCOLA NORMAL SUPERIOR

LICENCIATURA EM LETRAS

BRUNO DE SOUSA ANDRADE

Trabalho apresentado ao Prof. Dr. Allison Leão, como requisito parcial para obtenção de nota na disciplina Literatura Brasileira II, referente à Avaliação Parcial 2.

MANAUS, JUNHO DE 2010

Page 3: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

Desde a publicação em 1899, Dom Casmurro, de Machado de Assis, apresenta o grosso

de sua pluralidade crítica baseado na dúvida: “Capitu traiu ou não Bento Santiago?”.

Considerando esta uma questão secundária, além de impossível resolução, objetiva-se aqui

problematizar a estruturação literária machadiana, tendo em vista a importância da inter-relação

dos elementos narrativos para o que caracteriza a escrita de Machado nesta obra: a interrogação.

Logo no capítulo primeiro, “Do Título”, depara-se com os recursos iniciais utilizados por

Machado com intuito de preparar um ambiente narrativo propício à imprecisão. Bento Santiago

inicia o romance com um fato ocorrido num trem, envolvendo ele e um rapaz conhecido por si.

Até então, ao que parece, mantém-se uma narrativa comum. Entretanto, a partir do último

parágrafo, percebe-se que não se trata de um mero narrador, mas sim de algo além: um autor-

ficcional. Pode-se dizer que, pelo distanciamento engendrado entre ambos os autores, Assis e

Santiago, este segundo ganha espaço para construir uma personalidade tão independente que se

desliga do primeiro e passa a criar uma narrativa própria.

Além disso, Machado se utiliza de um recurso bastante recorrente e reconhecível em suas

narrativas: a quebra do triângulo básico da literatura (autor, obra e público). Nessa obra em

especial, há um efeito de compromisso extremo. Santiago, dirigindo-se ao leitor (público),

dizendo “E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua” (2006, p.

1), evoca-o, desde o título, para outra esfera de participação: a da autoria. E ainda, quando diz “...

tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias, assim

podes preencher as minhas.” (2006, p. 145), Dom Casmurro divide a responsabilidade pelo

discurso lacunar, fazendo com que o leitor admita ser tão falho quanto ele próprio o é, ou se

propõe a ser.

A partir da consideração sobre uma estreita relação entre leitor e autoria ficcional de Dom

Casmurro, faz-se importante contextualizar a que leitor se está referindo. Este, o brasileiro do

século XIX, encontrava-se num ambiente literário em que o pensamento em voga era o de uma

literatura feita através de contratos prévios com a realidade ficcional. No Naturalismo, por

exemplo, havia a tendência de apagar o limite entre o real e a ficção, na medida em que se

colocava o ficcional como discurso da própria realidade. O possível acordo entre leitor e texto

era apagado em prol do fundamento de certeza que sustenta a obra naturalista. Já em Dom

Casmurro percebe-se uma postura mais radical e complexa, já também presente e de maior

percepção em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesta outra obra machadiana, ao anunciar-se

Page 4: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

defunto e concomitantemente narrador, institui-se no Brasil uma forma peculiar de narrativa, que

chega a beirar o inverossímil. O discurso presente tanto em Dom Casmurro quanto em Memórias

Póstumas de Brás Cubas é arriscado, pois ao mesmo tempo em que se desprende da relação

diretiva com a realidade – indo de contracorrente aos naturalistas –, cria-se uma nova realidade,

cheia de verdades em si própria.

Em Dom Casmurro, isso ocorre quando Bento Santiago se propõe a “atar as duas pontas

da vida”, ou seja, fazer um livro de memórias. Entretanto, diz-se menos virtuoso que deveria ser.

Observa-se no trecho, “Não, não, a minha memória não é boa” (2006, p. 145), a argúcia

discursiva do narrador, que, estando em primeira pessoa, faz-se, ao mesmo tempo, tanto crer-se

quanto contradizer-se, levando o narrado à ambiguidade e, por fim, à interrogação.

Retomando o acordo machadiano com o leitor, e relacionando-o ao exposto no parágrafo

anterior, pode-se dizer que Machado de Assis ultrapassa o “contrato acomodatício” – aquele em

que há meramente fruição literária como passatempo – e cria na cabeça no leitor brasileiro do

século XIX uma incerteza, exatamente por não ele saber ao certo o que se estava contratando.

Uma narrativa dessa forma só é admitida por tanto tempo, porque há intensa e proposital

participação autoral do leitor, bem como de excelentes recursos literários – por exemplo, o corte

provocado pelos capítulos curtos, a fim de “domar” o leitor, trazendo-lhe novamente a sensação

de tranqüilidade convidativa típica da narrativa machadiana.

Assim, torna-se possível também estabelecer outra relação e análise: do desenvolvimento

da crítica à obra machadiana aqui tratada, dividindo-a em duas fases: a primeira, da publicação

até 1960; e a segunda, desde essa época até hoje. Schwarz, em Duas Meninas, tece breves

questionamentos sobre essa questão:

“Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o

romance, uma professora note-americana (por ser mulher? por ser estrangeira?

por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago – o

Casmurro – com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as

implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis” (1997, p. 9)

Como expõe Gledson, “muito poucos brasileiros foram capazes de realizar em 1900 – ver

sua própria realidade em termos suficientemente críticos para questionar Bento enquanto

Page 5: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

narrador” (2006, p.20), ou seja, por décadas, o leitor brasileiro – situado em um cenário

machista, conservador e patriarcal – teve participação ativa como cúmplice da traição de Capitu,

logo, da insuspeita discursiva de Bento Santiago. Somente após uma leitura crítica de alguém à

parte a realidade brasileira, tornou-se possível enxergar a outra face da moeda. Helen Caldwell e

John Gledson, ambos estrangeiros, com visões distintas, mas complementares, marcaram a época

pós-60 da crítica machadiana.

Sem desprender-se da relação com o todo já exposto, encontra-se, em outras críticas mais

recentes, uma abordagem sobre procedimento retórico de Dom Casmurro. Visto como forma de

apagar o caminho que distancia a verossimilhança da verdade, ou seja, de considerar o que for

verdadeiro para autor-ficcional será a absoluta verdade, Silviano Santiago, em Retórica da

Verossimilhança, cria o conceito de “apriorismo”. Essa verdade precedente, ou apriorismo, para

Dom Casmurro – detentor da verdade – é a traição de Capitu. No entanto, se a culpa de Capitu

fosse verdade em todos os níveis, não haveria a mínima sombra de remorso para o narrador.

Sombra podendo assim ser entendida literalmente no contexto da obra, quando Dom Casmurro

diz “Aí vinde outra vez inquietas sombras” (2006, pg. 2), fazendo uma metáfora com seu próprio

remorso.

A não dissolução total da dúvida ante a traição de Capitu é um dos fatores que move a

obra; ou seja, tentar definir se ela é inocente ou culpada significa fechar os olhos para o que de

mais magnífico a obra possui; é ignorar que, se isso fosse resolvido, o romance sequer pudesse

existir. Pois, pesar de o foco dele ser contra a Capitu, sua escrita acaba funcionando contra si

próprio. A retórica da verossimilhança assim se chama, pois tem como base não a verdade em si,

mas o uso do que é verossímil para persuadir – neste caso, tanto o leitor quanto ele mesmo.

Por um lado, Dom Casmurro se baseia em fatos, fundamentos e argumentos verdadeiros;

por outro, ele se vale de outro termo de Silviano Santiago, que é a “imaginação”. Pois Casmurro

não possui um fato concreto da traição de Capitu – ao contrário do que acontece em outras obras

de Machado, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Apesar de utilizar

a imaginação no lugar do que é verossímil e verdadeiro, esses elementos são “invisibilizados”

através do discurso que ele utiliza; outro traço importantíssimo.

Bento Santiago é um advogado, com formação seminarista, fruto da pequena burguesia

brasileira do século XX. Nele está presente a representação de um duplo obscuro, que, se

perceptível ao leitor, põe em cheque toda a narrativa: de um lado, Bento alegoriza o sistema

Page 6: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

religioso, jesuítico, da cultura brasileira; e de outro, ele é a representação do bacharelesco.

Ambos possuem a marca da tradição da persuasão, do uso da palavra como forma de obter não a

verdade, mas de alcançar o convencimento.

O que nos remete a outra análise muito bem feita por Silviano Santiago, presente no

mesmo livro anteriormente citado, referente à mudança de profissão no contexto literário

brasileiro. Até então, a profissão caracterizada na literatura era a de Médico, possuidor do

discurso que põe às claras, que mostra a verdade – traço naturalista. Essa mudança em Machado

é muito significativa, porque agora se apresenta um profissional que utiliza a palavra como

instrumento. Portanto, o discurso de Dom Casmurro consegue esconder, “invisibilizar” a

imaginação como verdade, pois se trata de uma retórica que esconde e que faz com que seu

discurso passe a ser ambíguo: ao mesmo tempo de acusação – por acusar Capitu – e de defesa –

por defender a si próprio de uma acusação não feita, mas precavida, que por ventura surja de

alguma dúvida do leitor – a mais provável, de que ele seria um ciumento.

Outro traço potencializador para isso a ser observado é que, parafraseando Helen

Caldwell, no transcorrer do livro, faz-se necessário atentar para as atitudes de Santiago; enquanto

ele é muito pródigo na representação do alheio, existe uma personagem que fica oculta durante

toda a obra, essa personagem é ele próprio. Narrador, em um nível, e Bentinho em outro; por

exatamente escondê-lo, finda em revelá-lo. Ou seja, o esforço de o narrador esconder-se pode ser

justamente uma traição.

Ao relacionar os elementos em análise e ao considerar a opinião de Roncari que “o plano

da história que é vivido mais imediatamente pelas personagens não é o dos fatos políticos nem o

das grandes mudanças sociais (...), mas o da crise do modelo de constituição familiar, no caso, da

família patriarcal” (2007, p. 251), fica difícil, sem as reflexões expostas até então, fazer uma

análise social, política e cultural. Entretanto, tendo essas formulações em mãos, pode-se

analogamente relacionar a família patriarcal com esses objetos de análise. A respeito disso, o

livro se divide em dois panoramas: o primeiro, na relação de autoridade e submissão; e o

segundo, na inversão do primeiro panorama.

Num plano inicial, reside à casa de Matacavalos, Dona Glória, mãe de Bentinho e mulher

detentora de terrenos, escravos e outros bens de grande valor, que atua o papel de patriarca

familiar. Típico do cenário da época, por sua posição social, ela possui, além seu filho, outros

residentes, como: familiares e agregados. Prima Justina e tio Cosme compondo a família, e José

Page 7: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

Dias e a família Pádua compondo os agregados. No entanto, isso não significa que a relação de

todos eles com a Dona Glória seja diferente de uma agregação. O agregado tornou-se símbolo

dessa sociedade, o qual agia de forma meticulosamente a não se afirmar, tampouco de marcar

posição. Incitando certa analogia, pode-se pensar nessa situação como um modelo de análise

social brasileira de uma forma geral. A posição do proprietário burguês não seria então

extremamente confortável a ponto de se declarar autônoma. Uma relação de dependência mútua,

onde tanto a família precisa do agregado para se auto-afirmar quanto o agregado necessita do

sistema patriarcal para sobreviver, estaria proposta. E assim acontece, não só com José Dias,

exemplo mais notório, mas também com Capitolina, vizinha e namorada de Bentinho.

Dom Casmurro, ao utilizar-se das exímias técnicas narrativas, aproveita-se de sua posição

favorável seja econômica, seja narrativa, seja autoral, para criar a situação que bem deseja. Logo,

dá ao leitor uma imagem pulsante de Capitu, detentora de uma capacidade argumentativa

incomum para sua idade – constatada, por exemplo, pelo convencimento que ela praticava sobre

Dona Glória, figura grandiosa e temível na obra. Desde pequena, diferentemente dos outros

agregados, era a única que se impunha e mantinha opinião própria a respeito de todos, sem

modelar seu discurso em favor dos outros e da própria dependência.

No entanto, chegando-se ao plano reverso, Dom Casmurro apresenta outra Capitu. Mais

uma vez, por meio de sua maestria retórica, Bento induz, de um lado, o leitor a observar sua

condição anti-patriarcal: casar-se com mulher pobre, puramente por amor, abandonando os

rituais sociais vigentes; e de outro, estrategicamente dispersas no texto, a perceber as atitudes e

referências à mulher de Bento Santiago diminuem e ocorre paulatinamente o silenciamento de

Capitu. Assim, dando a entender que a esperteza predominante em Capitu é fundamental para

tramar, em silêncio, o que viria a ser a traição com Escobar.

Conclui-se, portanto, que “... provas para inocentá-la ou incriminá-la existem, mas se

equiparam quantitativa e qualitativamente; assim, as duas forças opostas, defesa e acusação,

coexistem de tal forma que só podemos incriminá-la e inocentá-la, ou seja, suspendendo nossos

juízos, só podemos conviver com a interrogação que é essa metonímia da escrita machadiana.”

(RAMOS, 2008, pg. 1).

Page 8: Bruno de Sousa Andrade - Machado de Assis

Referências:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Moderna, 2006.

CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis.São Paulo: Ateliê Editora, 2002.

GLEDSON, John. Machado de Assis; impostura e Realismo. São Paulo: Companhia das Letras,

1991.

RAMOS, Juliana. Mergulhados em Capitu. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

RONCARI, Luiz. O cão do sertão; literatura e engajamento – Ensaios sobre João Guimarães

Rosa, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Editora Unesp, 2007.

SANTIAGO, Silviano. “Retórica da verossimilhança”. In: Uma literatura nos trópicos. Rio de

Janeiro: Rocco, 2000.

SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.