BRINQUEDOS DE MIRITI: Educação, Identidade e Saberes ......Brinquedos de Miriti: educação,...

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianosUniversidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado Claudete do Socorro Quaresma da Silva BRINQUEDOS DE MIRITI: Educação, Identidade e Saberes cotidianos Belém Pará 2012

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......

Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado

Claudete do Socorro Quaresma da Silva

BRINQUEDOS DE MIRITI: Educação, Identidade e

Saberes cotidianos

Belém – Pará

2012

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Claudete do Socorro Quaresma da Silva

BRINQUEDOS DE MIRITI: Educação, Identidade e Saberes

cotidianos

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Educação, do Programa de Pós Graduação em Educação, Centro de Ciências Sociais e Educação, Universidade do Estado do Pará. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Nazaré Cristina

Carvalho.

Belém – Pará 2012

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Dados Internacionais de Catalogação na publicação Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA

Silva, Claudete do Socorro Quaresma da.

Brinquedos de miriti: educação, identidade e saberes cotidianos. / Claudete do Socorro Quaresma da Silva. Belém, 2012.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará. Belém,

2012.

Orientador: Nazaré Cristina Carvalho. 1. Cultura popular – Pará. 2. Artesanato – Pará. 3. Brinquedos. 4. Educação não

formal. I. Carvalho, Nazaré Cristina (Orientador) II. Título.

CDD: 21 ed. 306.098115

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Claudete do Socorro Quaresma da Silva

BRINQUEDOS DE MIRITI: Educação, Identidade e Saberes

cotidianos

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Educação, do Programa de Pós Graduação em Educação, Centro de Ciências Sociais e Educação, Universidade do Estado do Pará. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profª. Drª. Nazaré Cristina

Carvalho.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________

Profª. Drª. Nazaré Cristina Carvalho – Orientadora – UEPA Doutora em Educação Física e Cultura

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Paulo Jorge Martins Nunes – (Examinador externo) – UNAMA Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa

___________________________________________________________________

Profª. Drª. Denise de Souza Simões Rodrigues – (Examinadora interna) – UEPA Doutora em Sociologia

___________________________________________________________________

Profª. Drª. Josebel Akel Fares – (Examinadora interna) – UEPA Doutora em Comunicação e Semiótica Examinada em: 20/ 12/ 2012.

Belém – Pará 2012

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Aos meus educadores de toda a vida, Sebastião e Joana, que

com a sabedoria cotidiana me ensinaram a amar as coisas

simples da vida, a começar pelo primeiro brinquedo de criança.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida, do amor e da esperança que me inspira e

harmoniza meu corpo e meu espírito. Um obrigado é pouco pelo que me dás!

À minha família, especialmente ao meu esposo Eldenir e aos meus filhos

Éverson, Clarissa e Euler, pelo carinho, compreensão, apoio e incentivo dado para

continuidade de minha formação acadêmica. Eternamente obrigada, meus amores!

À minha orientadora Profª. Drª. Nazaré Cristina Carvalho, que com sua

simplicidade, carinho e muita alegria, me orientou e acompanhou meus passos no

processo de desenvolvimento desta dissertação. Para além de professora doutora,

você é uma educadora que desperta a dimensão lúdica do ser humano. Obrigada,

Cris, pela troca de experiências com bom humor!

Aos docentes do Mestrado em Educação da Universidade do Estado do

Pará por me possibilitarem, com suas disciplinas, ampliar o olhar acerca da

educação e sedimentar minha identidade cabocla amazônida.

Aos professores doutores que participaram da banca de qualificação, Denise

Simões Rodrigues, Paulo Nunes e Josebel Fares por me possibilitarem enriquecer

as análises tecidas nesta dissertação com suas valiosas contribuições nas áreas de

Sociologia, Literatura Amazônica e Gramática.

Aos queridos artesãos de brinquedos de miriti de Abaetetuba, em especial à

grande mestra Nina M. Abreu da Silva, ao Célio V. Ferreira, ao Ivan T. Leal e ao

Adonias O. Vilhena, por partilharem seus saberes e contribuírem na construção

desta dissertação. Estende-se esse agradecimento aos artesãos Dezidério dos

Santos Neto, Presidente da Associação dos Artesãos de Brinquedos e Artesanatos

de Miriti de Abaetetuba (Asamab); e Valdeli Costa Alves, Diretor Geral da

Associação Arte Miriti de Abaetetuba (Miritong).

À minha mana Naza e ao meu afilhado Orlando Neto, agradeço o

redimensionamento dos sinais de pontuação e o suporte técnico na utilização das

novas tecnologias.

Às minhas amadas amigas Rosa, Marley, Ana Cristina e Lana Regina pelas

mãos estendidas nas horas de angústia e incertezas.

À CAPES e à SEDUC/PA, pelo investimento financeiro a mim destinado em

forma de bolsa e licença aprimoramento, elementos facilitadores na realização de

mais essa etapa de minha vida acadêmica.

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Curiosamente, são as circunstâncias histórico-sociais que

dinamizam e asseguram a continuidade do brinquedo de miriti

da Abaetetuba. É que ele provoca e amadurece a necessidade

de „estar-junto‟, desde a fabricação à sua recepção e uso.

Desperta o sentimento eufórico da experiência compartilhada.

Alimenta o espírito através de diferentes etapas. Educa a

sensibilidade, capaz de, como a arte em geral, fazer com que o

homem floresça para a amizade, o amor à vida, a ternura pela

criança, o respeito pelo outro.

(João de Jesus Paes Loureiro).

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RESUMO

SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e

saberes cotidianos – 2012 f. 154. Dissertação (Mestrado Educação). Universidade

do Estado do Pará (UEPA), Belém, 2012.

O brinquedo de miriti é um artesanato secular, tipicamente amazônico por conter em suas formas elementos representativo do cotidiano ribeirinho, tais como: canoas, barcos, casas, boto, cobras, arara e outros elementos constitutivos da fauna e da flora amazônica. O principal locus de produção é a cidade de Abaetetuba, no Estado do Pará. Tem presença marcante desde os primórdios na maior festividade religiosa do Brasil, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, capital do Pará. Por sua beleza, encanto e significabilidade cultural é reconhecido como patrimônio imaterial e cultural do Estado do Pará. A notoriedade do manuseio e uso do miriti no cotidiano abaetetubense como expressão artística, fonte alimentícia e de renda e a expressividade cultural desta palmeira com seu fruto, folhas e tronco como parte integrante da identidade desse povo remeteu-nos a investigar os saberes e processos educativos que perpassam a feitura do brinquedo de miriti. A problemática suscitada norteou-se por quatro questões: Que saberes perpassam a feitura do brinquedo de miriti? Quais processos educativos estão presentes na socialização desse conhecimento? Que aspectos do cotidiano são representados nos brinquedos de miriti? As representações incorporadas nos brinquedos de miriti contribuem para o fortalecimento de uma identidade cultural territorial? Este estudo teve como intérpretes uma artesã e três artesãos de brinquedos de miriti. O trajeto metodológico foi caracterizado pela abordagem do tipo qualitativa com elementos etnográficos. As técnicas de pesquisa utilizadas foram: delimitadora por amostragem não probabilística; coleta de dados por meio de entrevista semiestruturada e observação não participante; análise do discurso e iconográfica. Finalmente esta pesquisa se propôs analisar o brinquedo de miriti numa perspectiva cultural que contempla em seu conjunto várias dimensões enfatizando seu aspecto educativo. Partindo da ótica da diversidade de conhecimentos construídos cotidianamente por homens e mulheres em suas relações sociais identificamos no processo de produção do brinquedo de miriti a educação da vida, a educação da produção artesanal, a educação pela cooperação, a educação da alegria e a educação da troca. E elucidamos os saberes: ambientais, do cuidar, esculpir ou cortar, lixar, calcular, pintar, da união, da partilha, matemáticos, gerenciais, organizacionais, lúdicos, estéticos, do diálogo, do respeito ao outro, da permuta e da comercialização, os quais são compartilhados entre gerações através da oralidade e da observação, se perpetuando no município de Abaetetuba como um modo de viver, educar e expressar pela arte seu olhar sobre o mundo em que vivem. Esta pesquisa realizou-se no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, na linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. PALAVRAS-CHAVE: Brinquedo de miriti. Saberes populares. Cultura e identidade amazônica. Educação não escolar.

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ABSTRACT

SILVA, Claudete do S. Q. da. Miriti Toys: education, identity and everyday

knowledge – 2012 f. 154. Dissertation (Masters in Education). State University of

Pará (UEPA), Belém, 2012.

The miriti toy is a secular craft, typically Amazonian as it contains within its forms elements representing the everyday life of the riverine people, such as: canoes, boats, houses, botos, snakes, macaws, and other elements which constitute the Amazonian fauna and flora. The main locus of production is the city of Abaetetuba, in the State of Pará. It has had a strong presence ever since the beginnings of the largest religious festivity of Brazil, the Procession of Our Lady of Nazareth, in Belém, capital of Pará. For its beauty, enchantment and cultural significance, it is recognized as an immaterial and cultural patrimony of the State of Pará. The notoriety of the handling and use of miriti in the everyday life of Abaetetuba as an artistic expression, a food source and a source of income, and the cultural expressivity of this palm-tree and its fruit, leaves and trunk as a part of this people‟s identity, lead us to investigate the knowledge and educational processes that permeate the making of the miriti toy. The issues raised were guided by four questions: Which knowledge permeates the making of the miriti toy? Which educational processes are present in the socialization of this knowledge? Which aspects of everyday life are represented in miriti toys? Do the representations incorporated into the miriti toys contribute to the strengthening of a territorial cultural identity? This study had as interpreters a craftswoman and three craftsmen who make miriti toys. The methodological trajectory was characterized by the qualitative approach with ethnographical elements. The research techniques used were: bounding by non-probability sampling; data collection by means of semi-structured interview and non-participant observation; discourse and iconographical analysis. Finally, this research proposed to analyze the miriti toy from a cultural perspective that contemplates as a whole its several dimensions, emphasizing the educational aspect. From the perspective of the diversity of knowledge constructed every day by men and women in their social relations, we identified in the production process of the miriti toy the education of life, the education of craft production, the education through cooperation, the education of joy, and the education of exchange. And we elucidate the knowledge: of the environment, of caring, sculpting or cutting, sanding, calculating and painting, of union and sharing, of mathematics, management and organization, of playfulness, aesthetics and dialogue, of respect for each other, of permutation and commercialization, which are shared between generations through orality and observation, and which are perpetuated in the municipality of Abaetetuba as a way of living, educating and expressing through art the view of the world in which they live. This research was conducted within the Post-Graduation Program in Education at the State University of Pará, under research line Cultural Knowledge and Education in Amazonia. KEYWORDS: Miriti toy. Popular knowledge. Amazonian culture and identity. Non academic education.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FOTO 01: Localização geográfica do município de Abaetetuba. ...........................15

FOTO 02: Vista parcial de árvores de miriti as margens do rio Maratauíra-

Abaetetuba ..............................................................................................................16

FOTO 03: Portal de entrada da cidade de Abaetetuba por via terrestre .................17

FOTO 04: Imagem da frente da cidade Abaetetuba as margens do rio Maratauíra.

Final de tarde ..........................................................................................................36

FOTO 05: Imagem da frente da cidade Abaetetuba as margens do rio Maratauíra.

Início da manhã .......................................................................................................36

FOTO 06: Vista panorâmica do centro histórico e comercial de Abaetetuba ..........37

FOTO 07: Palco central de apresentações do “8º Miritifest” ...................................55

FOTO 08: Espaço de exposição e venda do artesanato de miriti no “8º Miritifest... 55

FOTO 09: Espaço de exposição e venda do artesanato de miriti no “8º Miritifest”. 56

FOTO 10: “Centro de Artesanato e Cultura do Miriti” ..............................................57

FOTO 11: Palmeira de miriti às margens do rio Cuitininga/ Abaetetuba .................60

FOTO 12: Folhas de miriti .......................................................................................61

FOTO 13: Ribeirinho cortando a folha do miritizeiro para retirar a palma ...............61

FOTO 14: Palma de miriti em processo de secagem ..............................................62

FOTO 15: Palma do miriti armazenada na oficina ...................................................62

FOTO 16: Palma do miriti pronta para ser transformada em brinquedos ................63

FOTO 17: Artesão Sr. Célio confeccionando brinquedos de miriti ..........................63

FOTO 18: Brinquedos de miriti ................................................................................64

FOTO 19: Barcos de miriti prontos para venda .......................................................64

FOTO 20: Pássaros e dançarinos de miriti .............................................................65

FOTO 21: Arara, escudo de clube esportivo, girandeiros e enfeites de miriti ........65

FOTO 22: A turma do Chaves confeccionada em miriti. .........................................66

FOTO 23: Vendedor de brinquedos de miriti no Círio de Nossa Senhora da

Conceição/ Abaetetuba ...........................................................................................66

FOTO 24: Casa Ribeirinha utilizando o miritizeiro como porto ................................67

FOTO 25: Miriti fruto ...............................................................................................67

FOTO 26: Mingau de arroz com vinho de miriti .......................................................68

FOTO 27: Derivados do fruto e da palma do miriti .................................................68

FOTO 28: Bolsas da fibra do miriti .........................................................................69

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FOTO 29: Brincos e chaveiros de miriti ..................................................................69

FOTO 30: Chapéu de miriti ....................................................................................70

FOTO 31: Flores, abajur e enfeites de miriti ...........................................................70

FOTO 32: Molduras de miriti ..................................................................................71

FOTO 33: Promesseiro no Círio de Nossa Senhora da Conceição/Abaetetuba ....71

FOTO 34: Nina Mary Abreu da Silva .......................................................................75

FOTO 35: Célio Vilhena Ferreira ............................................................................78

FOTO 36: Ivan Teixeira Leal ..................................................................................81

FOTO 37: Adonias Oliveira Vilhena .......................................................................84

FOTO 38: Oficina do Seu Célio ..............................................................................87

FOTO 39: Oficina do Seu Ivan ...............................................................................88

FOTO 40: Pássaros confeccionados em miriti .......................................................91

FOTO 41: Garças confeccionadas em miriti............................................................92

FOTO 42: Cobras e barcos confeccionados em miriti ............................................93

FOTO 43: Casas confeccionadas em miriti ............................................................93

FOTO 44: Barcos confeccionados em miriti ...........................................................94

FOTO 45: Barco de transporte coletivo confeccionado em miriti ............................94

FOTO 46: Soca pilão confeccionado em miriti ........................................................97

FOTO 47: Imagem religiosa (Preto Velho) confeccionada em miriti ........................97

FOTO 48: Imagem da Virgem de Nazaré confeccionada em miriti .........................98

FOTO 49: Casal de dançarinos confeccionado em miriti ........................................98

FOTO 50: Tucano e coruja confeccionados em miriti ............................................102

FOTO 51: Personagem Woody confeccionado em miriti .......................................102

FOTO 52: Onça, girafa e cavalo confeccionados em miriti ....................................107

FOTO 53: Plantador de cana, máquina de açaí, girandeiros e músico

confeccionados em miriti .........................................................................................107

FOTO 54: Personagens de programas infantis confeccionados em miriti. 108

FOTO 55: Avião confeccionado em miriti ................................................................108

FOTO 56: Palma de miriti seca ...............................................................................118

FOTO 57: Artesã Nina M. A. da Silva fazendo brinquedo ......................................119

FOTO 58: Primeiro formato de um brinquedo de miriti ...........................................119

FOTO 59: Palma do miriti transformada em brinquedo ..........................................120

FOTO 60: Palma do miriti transformada em arara .................................................121

FOTO 61: Arara confeccionada em miriti pronta para a venda ..............................121

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FOTO 62: Artesão Célio V. Ferreira confeccionando brinquedo ............................122

FOTO 63: Artesãs confeccionando brinquedo na oficina do Seu Célio ..................123

FOTO 64: Artesão Ivan T. Leal confeccionando brinquedo ...................................124

FOTO 65: Artesãs confeccionando brinquedos na oficina de Seu Ivan .................125

FOTO 66: Artesão Ivan T. Leal com suas peças em exposição para venda ..........128

FOTO 67: Telas com molduras de miriti em exposição para venda .......................129

FOTO 68: Carros de miriti em exposição para venda ............................................129

FOTO 69: Girandeiro de miriti em exposição para venda ......................................130

FOTO 70: Barcos de miriti em exposição para venda ............................................130

FOTO 71: Oficina de confecção de artesanato de miriti ..........................................134

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SUMÁRIO

1 PALAVRAS INICIAIS ............................................................................................ 12

1.1 BRINQUEDOS DE MIRITI: DE ONDE VÊM? ...................................................... 12

1.2 BRINQUEDOS DE MIRITI: DA BRINCADEIRA DE INFÂNCIA PARA A

ACADEMIA ................................................................................................................ 18

1.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: O QUE PESQUISAR? ............................................ 21

2 BRINQUEDOS DE MIRITI: CAMINHO METODOLÓGICO ................................... 31

3 BRINQUEDOS: HISTÓRIA E MEMÓRIA .............................................................. 42

3.1 BRINQUEDOS ARTESANAIS: PISTAS DE UMA HISTÓRIA E SIGNIFICADOS

.................................................................................................................................. 42

3.2 BRINQUEDOS DE MIRITI: A MEMÓRIA DE UMA HISTÓRIA ........................... 45

3.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: A COMERCIALIZAÇÃO DE UM BEM CULTURAL .. 52

3.4 BRINQUEDOS DE MIRITI: AS IMAGENS DE UMA ARTE CABOCLA ............... 59

4 BRINQUEDOS DE MIRITI DE ABAETETUBA: SABERES CULTURAIS,

IDENTIDADE E EDUCAÇÃO ................................................................................... 73

4.1 ARTESÃOS DOS BRINQUEDOS DE MIRITI: QUEM SÃO? .............................. 74

4.2 OFICINA DE BRINQUEDOS DE MIRITI: UM LUGAR DE FAZERES, SABERES

E EDUCAÇÃO. .......................................................................................................... 86

4.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: UMA TEIA DE CONEXÕES..................................... 89

4.3.1 Brinquedos de Miriti: Cultura e Identidade Amazônica .............................. 89

4.3.2 Brinquedos de Miriti: Saberes Cotidianos e Educação Não Escolar .......111

4.4 EDUCAÇÃO EM ABAETETUBA: ONDE ACONTECE? ....................................132

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................138

REFERÊNCIAS .......................................................................................................143

APÊNDICES ...........................................................................................................148

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1 PALAVRAS INICIAIS

1.1 BRINQUEDOS DE MIRITI: DE ONDE VÊM?

Eu venho desse reino generoso, onde os homens que nascem dos seus verdes continuam cativos, esquecidos e contudo, profundamente irmãos das coisas poderosas, permanentes como as águas, o vento e a esperança. Vem ver comigo o rio e as suas leis. Vem aprender a ciência dos rebojos. Vem escutar os cânticos noturnos no mágico silêncio do igapó coberto por estrelas de esmeralda (MELLO, 2002, p. 28).

A Amazônia é uma região historicamente conhecida por sua exuberância e

riqueza natural e cultural, guardando em toda a sua extensão uma biodiversidade

que, em parte, ainda é desconhecida tanto por seus habitantes quanto por visitantes

e estudiosos. Da literatura dos cronistas viajantes que navegaram pelos rios

amazônicos, a partir do século XVI, aos dados registrados por estudiosos e

pesquisadores contemporâneos acerca da região, revela-se a incomensurabilidade e

o paradoxo que caracteriza este local. As palavras de Gondim (1994, p. 77-138) são

significativas nesse aspecto:

Os séculos podem variar e os cronistas serem originários das mais diferentes nacionalidades, no entanto diante do rio e da mata amazônicos, quase genericamente, nenhum se isentou de externalizar sentimentos que variavam do primitivismo pré-edênico ao infernismo primordial. Ainda, que familiarizados com a região ou mantendo o som frio e distanciado do pesquisador, esse objeto móvel, essa natureza grandiosamente avassaladora, em algum momento fez com que esses homens parassem e a escutassem, e a sentissem, muitas vezes deixando para trás olhares já estruturados, visões já vividas, para pousarem os olhos renascidos na contemplação extasiada da grandiloquência natural. [...] Para o estrangeiro, a Amazônia é a mescla do início e do fim, é o encontro dos opostos. Vem a ser, igualmente, o refúgio da insatisfação do homem diante de seus iguais.

No plano científico e geográfico, as constatações e mensurações também

revelam a grandiosidade dessa região: a bacia hidrográfica amazônica é a maior

rede de rios do planeta Terra, concentrando grande parte da água doce existente,

bacia que possui o maior rio do mundo em comprimento e volume de água, o

Amazonas. A maior ilha fluvial do mundo localiza-se nesta região, a ilha do Marajó.

É a mais extensa e rica floresta tropical do planeta, contendo inúmeras espécies

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vegetais, animais e minerais. Contempla, ainda, em seu vasto interior, uma

diversidade cultural que encanta por sua pluralidade, o que a torna singular.

Loureiro (2005, p. 11) caracteriza a cultura amazônica como uma

“diversidade diversa”, graças à variedade cultural que compõe o espaço amazônico

e identifica o caboclo amazônida. De norte a sul, de leste a oeste, as expressões

artístico-culturais da região são carregadas de signos e símbolos do cotidiano, a

exemplo das lendas do boto e da cobra grande, entre tantas outras contadas e

recontadas em cada canto deste lugar.

Por outro lado, os índices de desmatamento, concentração fundiária,

pobreza, analfabetismo, conflitos agrários, e muitas outras mazelas sociais advindas

da exploração desordenada, que é em grande parte financiada pelos detentores do

grande capital, compõem a paisagem amazônica e a tem marcado nas últimas

décadas pelo alto percentual de ocorrências, o número de vidas ceifadas e as

consequências desastrosas para o ecossistema. Este cenário tem suscitado grandes

debates em encontros, seminários, fóruns; na academia, entre cientistas,

estudiosos, movimentos sociais, ecologistas; e, principalmente, entre os povos da

floresta − comunidades de seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, indígenas, entre

outros − que cotidianamente lutam pela sobrevivência.

É nesse espaço de contradições e heterogeneidade que homens e mulheres

amazônidas − caboclos ribeirinhos, constroem e reconstroem dia a dia suas vidas.

Eles convivem numa relação direta com todos os elementos participantes da

natureza, produzem sua subsistência. Extraem da mata e do rio o alimento para o

sustento de suas famílias; a matéria-prima para a construção das moradias e dos

principais meios de transporte − canoas e barcos − bem como dos remédios para a

cura das doenças; e, ainda, a inspiração para a criação artístico-cultural que se

expressa através da música, do teatro, da dança, da poesia, do artesanato, dos

brinquedos, enfim, de muitas formas simbólicas de expressão.

Essa relação de completude, respeito, saberes e fazeres se perpetua de

uma geração a outra através da oralidade, constituindo um jeito de educar os filhos

para a vida e educar-se conjuntamente, método muito presente no cotidiano

amazônico-ribeirinho. São conhecimentos não escolares sobre as plantas, os

animais, o solo, os rios e a floresta. Os benefícios e os cuidados essenciais para a

manutenção e preservação da natureza são socializados e conduzem diariamente o

ritmo e o estilo de vida das comunidades ribeirinhas.

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Assim, o caboclo edifica e imprime sua marca na história da educação da

região e, também, exprime através da cultura sua forma de ver o mundo e a

sociedade em que vive. E, sobretudo, resiste à discriminação e à desvalorização

imposta pelos grupos economicamente dominantes que há séculos vem definindo a

suposta superioridade da cultura branca europeia sobre as culturas negra, indígena,

caboclas e a de seus descendentes.

Integrante deste universo de encantos e desencantos, grandezas e

pequenez, exuberância e escassez, lutas e esperanças, do “reino generoso”

anunciado pelo poeta Thiago de Mello na epígrafe desta seção, o caboclo paraense

externa seu olhar sobre o mundo e o seu espaço de relações sociais de um modo

bem peculiar que se soma à pluralidade e à singularidade regional. Refiro-me aos

originários brinquedos de miriti, objeto de estudo desta pesquisa.

Os brinquedos de miriti, confeccionados por inúmeros caboclos-artesãos,

são a materialização das experiências vividas por homens e mulheres paraenses,

representam seus olhares sobre o mundo em que vivem ao mesmo tempo em que

encantam e alegram crianças, jovens e adultos. Loureiro (1995, p. 388-394), os

considera “densamente simbólicos” e afirma que “os brinquedos de miriti estão

impregnados de uma artisticidade singular” na medida em que cada artesão esculpe

seu objeto, exprimindo sua individualidade artística criadora, emprestando-lhe uma

forma própria e única.

O principal polo de produção dos brinquedos de miriti no Estado do Pará é o

município de Abaetetuba. Abaetetuba é uma cidade ribeirinha localizada no nordeste

do Pará, banhada pelo rio Maratauíra (afluente do Rio Tocantins), distante 101,5 km

em linha reta da capital do Estado, Belém.

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......15

Foto 01: Localização geográfica do município de Abaetetuba. Fonte: imagens Google – montagem de Éverson Carlos Q. da Silva.

Este município possui uma beleza natural, própria do interior amazônico,

beleza que pode ser visualizada no ir e vir das marés, que percorrem os inúmeros

rios, igarapés e furos1 que circundam e adentram as ilhas e a cidade de Abaetetuba,

formando um verdadeiro labirinto aquático entre a floresta. Na fauna, podemos

encontrar inúmeras espécies. A exuberante flora é caracterizada pela floresta de

várzea.

Em meio à multiplicidade natural, encontra-se a palmeira, cientificamente

denominada Mauritia flexuosa, popularmente chamada miriti. Esta palmeira faz parte

do cotidiano das famílias ribeirinhas do Estado do Pará, especialmente dos

habitantes do município Abaetetuba. O fruto do miriti alimenta, o tronco serve de

porto das palafitas, os braços da folhagem servem de matéria-prima para a

confecção de paneiros, cestas, hastes para papagaios, redes e os tão conhecidos

brinquedos de miriti.

1 Igarapés e furos são denominações utilizadas na Amazônia para designar cursos de água caracterizados por pouca profundidade e por correrem quase no interior da mata. Braços estreitos de rios ou canais.

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......16

Foto 02: Vista parcial de árvores de miriti as margens do rio Maratauíra – Abaetetuba.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de campo. Dezembro/ 2011.

Os brinquedos de miriti são materializados na forma de barcos, canoas,

cobras, tatus, casas, dançarinos, pássaros, peixes, entre tantas outras peças criadas

e produzidas pelos artesãos que expressam o imaginário local e enriquecem, com

seu colorido, leveza e encanto, as festividades religiosas, principalmente a de Nossa

Senhora de Nazaré2, em Belém.

Atualmente, a relevância do brinquedo de miriti é tanta, que a cidade de

Abaetetuba ganhou a alcunha de “capital mundial do brinquedo de miriti”. Esta

denominação se encontra no portal de entrada da cidade, inaugurado em 6 de junho

de 2008. Um sinal claro de que, mesmo sendo utilizado tradicionalmente pelas

comunidades ribeirinhas, o brinquedo também é feito e utilizado na zona urbana de

Abaetetuba, ainda que no centro urbano o brinquedo assuma uma importância maior

no aspecto da comercialização.

2 A festividade religiosa de Nossa Senhora de Nazaré ocorre desde 1793, na cidade de Belém, capital do Estado do Pará. É organizada pela Igreja Católica e acontece anualmente durante 15 dias do mês de outubro, iniciando no segundo domingo com a procissão do Círio. É considerada a maior manifestação de fé do povo paraense.

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Foto 03: Portal de entrada da cidade de Abaetetuba por via terrestre

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Novembro/2011.

O brinquedo de miriti constitui-se assim, em um signo identitário do ser

abaetetubense e, por extensão, amazônida. A expressão identidade aqui é

concebida a partir das reflexões do sociólogo Stuart Hall (2002, p. 13) que a

entende, no contexto da sociedade atual de aceleradas mudanças, como uma

“celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas

pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos

rodeiam”. Esse autor refere-se não a uma identidade nacional plenamente unificada,

estática e comum a todos os indivíduos, mas sim, às identidades que são

construídas historicamente por todas as pessoas, como produto das diferenças

estabelecidas pelas práticas discursivas. É o próprio Hall (2002, p. 13) quem

continua:

À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertantes e cambiantes de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

Na prática, essa concepção de identidade fragmentada significa que um

mesmo sujeito identifica-se com diferentes movimentos sociais que perpassam a

estrutura da sociedade em que está imerso, posicionando-se em conformidade com

o momento em que for interpelado.

Hall (2002, p. 62) considera que no interior da estrutura da sociedade

contemporânea inexistente uma identidade cultural nacional homogênea, imóvel,

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......18

unificada e completa, propondo que se pensem as culturas nacionais como “um

dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”. O

fenômeno da globalização produziu uma grande interconexão entre as nações,

comprimiu o espaço-tempo e, consequentemente, vem desintegrando as identidades

nacionais estabelecidas. A simbologia da homogeneização cultural vem fortalecendo

as identidades locais, na medida em que resistem à dominação cultural ocidental,

como também favorece a emergência de identidades híbridas.

Neste sentido, complementa Gomes (2008), ao citar Jacques d‟Adesky,

nenhuma identidade é construída no isolamento, ao contrário, tanto a identidade

pessoal quanto a identidade social são formadas em diálogo aberto e dependem das

relações dialógicas estabelecidas com os outros. Ainda na mesma direção, Castells

(2000, p. 24) observa que as identidades “constituem fontes de significado para os

próprios atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de

individuação”; o que torna toda e qualquer identidade resultante de uma construção,

que tem como objetivo organizar significados que se mantenham ao longo do tempo,

em um determinado espaço e em um contexto social, político e cultural, fortemente

marcado por relações de poder.

Diante das reflexões acima expostas, entende-se que todo e qualquer

processo identitário passa por esse movimento de construção histórica, de

significação cultural e de permanente diálogo com o outro. Inserido neste cenário

contínuo de reconstrução, encontra-se a identidade ribeirinha abaetetubense, a qual

tem no brinquedo de miriti um das suas formas de expressão.

1.2 BRINQUEDOS DE MIRITI: DA BRINCADEIRA DE INFÂNCIA PARA A

ACADEMIA

O miriti, signo que marca e identifica a população ribeirinha

abaetetubense, encontra-se gravado em minha alma, constitui minha identidade e

me impulsiona a desenvolver esta pesquisa. Falar em brinquedo de miriti é, também,

reportar-me a minha trajetória de vida e, em especial, recordar minha infância, típica

de cabocla amazônida, nascida em Abaetetuba, Estado do Pará, local onde vivo e

mantenho vínculos com os brinquedos de miriti. É pertinente aqui fazermos uma

breve reflexão sobre o conceito de memória, haja vista estar rememorando parte de

minha infância e minha estreita ligação com o objeto desta pesquisa.

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Em seus estudos a respeito da memória, o filósofo francês Henri Bergson

(2006) desenvolve seus argumentos acerca da memória individual, tendo como

princípio central a conservação pura e integral do passado no espírito de cada

pessoa. Este autor considera que as experiências vividas por cada ser humano

convivem consigo no presente, quer em si mesmo em estado inconsciente ou

ressurge no estado consciente sob as formas de lembrança, quando evocadas pelo

momento atual para compreendê-lo e auxiliar na previsão do porvir.

Se para Bergson (2006), a memória é individual e conserva o passado

revivido nas lembranças, para o sociólogo francês Maurice Halbwachs (2004), em

seus estudos relativos aos quadros sociais da memória, o lembrar se dá sempre no

social, ou melhor, ele considera que a memória do indivíduo depende do seu

relacionamento com a família, a classe social, a escola, a igreja, enfim, com o

contexto no qual está inserido.

Em Halbwachs (2004), mesmo a memória aparentemente mais particular,

a experiência vivida está ligada à memória de um grupo, e esta última à esfera maior

da tradição, que é a memória coletiva da sociedade. Portanto, a nossa memória está

impregnada das memórias dos que nos cercam.

Esta memória coletiva tem a importante função de contribuir para o

sentimento de pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha

memórias. A identidade se constitui nesta memória compartilhada, que é história

viva e vivida, e permanece no tempo renovando-se. Entretanto, por muito que se

deva a memória coletiva, é a individual que recorda. É com este sentimento de

pertencimento à identidade cabocla abaetetubense, que refaço minha história com o

objeto desta pesquisa, o brinquedo de miriti.

Na comunidade do rio Cuitininga (afluente do rio Tocantins), onde nasci,

morei meus primeiros 10 anos e comecei a manusear o miriti, revivo em minha

memória lembranças inesquecíveis de tempos em que amanhecíamos, junto com os

adultos, em nossas canoas, desbravando furos e igarapés, coletando o fruto do miriti

para compor com o camarão e a farinha de mandioca o cardápio mais apreciado,

marcas que se traduzem hoje em meu hábito alimentar.

Relembro dos balanços na maqueira3 para amenizar o calor e acalantar

meus irmãos menores. Rememoro o pôr-do-sol, quando me banhava nas águas

3 Espécie de rede tecida com a fibra do miriti.

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barrentas do rio Cuitininga, equilibrava-me no miritizeiro, elo entre a palafita e o rio, e

utilizava as palmas de miriti como salva-vidas para manter-me flutuando na maré,

após horas de brincadeiras com nossos brinquedos confeccionados com a fibra, a

tala, o caroço e a palma do miriti.

A mudança de moradia para a zona urbana, a cidade de Abaetetuba, fez-

se necessária para que desse continuidade aos estudos. Isso, no entanto, não

rompeu minha relação com os produtos do miriti, haja vista que continuou sendo

uma das principais fontes alimentícias e de geração de renda para minha família.

Atualmente, minha aproximação com o miriti, particularmente com o brinquedo,

continua na convivência pessoal de amizade com os artesãos que desenvolvem seus

trabalhos em suas pequenas oficinas, geralmente localizadas nos fundos de suas próprias

moradias. E, também, na minha atuação política e social como integrante de projetos

socioeducativos voltados para a disseminação e fortalecimento da cultura do miriti em

Abaetetuba. Sou sócia e fundadora da Associação Arte em Miriti de Abaetetuba (Miritong),

cujo objetivo é fomentar o desenvolvimento econômico e social da comunidade local,

sobretudo entre os jovens, através da exploração do artesanato de miriti e incentivar toda e

qualquer política ou ação de preservação, plantio e manejo de miritizais da microrregião do

Baixo Tocantins.

Coordenei, de 2006 a 2010, na Associação Obras Sociais da Diocese de

Abaetetuba o projeto “Ponto de Cultura „Mestre Cambota‟ de Produção e Comercialização

do Artesanato em Miriti”4. Este projeto objetiva garantir aos jovens em situação de

vulnerabilidade social o acesso aos diversos meios de produção e difusão cultural, em

particular do artesanato de miriti, além da proteção social, da inclusão digital e do estímulo à

reflexão sobre a cultura amazônica em toda a sua dimensão simbólica (PROJETO

POLÍTICO PEDAGÓGICO DO C. F. P. CRISTO TRABALHADOR, 2009, p. 33-34).

Toda a ação deste projeto está voltada para o pleno desenvolvimento do

artesanato em miriti de Abaetetuba, o que favorece a preservação e a valorização deste

bem cultural em seu aspecto patrimonial, contribuindo para o registro e divulgação dos

saberes e do fazer cultural abaetetubense.

Profissionalmente, como educadora, tive a oportunidade de, nos anos de 2002 a

2010, atuar na função de gestora educacional do Centro de Formação Profissional Cristo

Trabalhador e organizar cursos profissionalizantes voltados para a geração de renda, entre

4 Ponto de Cultura é um projeto desenvolvido pelo Governo Federal através do Ministério da Cultura (MINC), programa Cultura Viva que visa fortalecer iniciativas culturais através de convênios com entidades sem fins lucrativos.

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eles, os de artesanato confeccionados com o miriti, tais como: bijuterias, cestarias, adornos,

brinquedos e outros.

As experiências acima relatadas me possibilitaram um olhar acadêmico para o

brinquedo de miriti, especificamente para o processo de feitura desse objeto. A participação

em eventos (encontros, seminários e fóruns) educacionais e culturais a nível municipal,

regional, nacional e internacional nos quais as temáticas centrais diziam respeito à

diversidade, ao fortalecimento e ao reconhecimento da cultura local permitiram lapidar a

minha visão epistemológica sobre o brinquedo de miriti e me impulsionaram, ainda mais, a

buscar na academia espaços de discussão e pesquisas acerca dos saberes educativos da

gente comum.

Na condição de educadora, historiadora e pesquisadora, assumo o desafio de

desvelar, fortalecer e valorizar nossa identidade cultural, bem como, pesquisar e registrar as

experiências e saberes cotidianos de homens e mulheres, que ao ensinar, aprendem e se

tornam sujeitos construtores da história da educação da região amazônica, particularmente,

do município de Abaetetuba.

A proposta do Programa de Mestrado em Educação da Universidade do Estado

do Pará, linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia, contemplou meu

intento e sedimentou teoricamente o objeto a ser pesquisado. Na medida em que ia me

apropriando da bibliografia recomendada para o processo seletivo, visualizei a possibilidade

de desenvolver e aprofundar as discussões acerca da temática a que tenho me debruçado

durante toda a minha trajetória acadêmica. Ao longo do curso, cada disciplina estudada

adquiriu importância decisiva para solidificar e reafirmar meu interesse pelo tema em

questão.

1.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: O QUE PESQUISAR?

Loureiro (1987) menciona que o brinquedo popular representa a

concretização das experiências vividas, ressaltando que o de Abaetetuba mantém

viva uma das fortes manifestações da cultura popular, por estar relacionado com o

elemento lúdico e a sensibilidade infantil. Assim, Loureiro (1995, p. 388) reafirma

que “o caráter lúdico convive com a beleza [...]”, expressando que o brinquedo de

miriti extrapola a fase da infância, encantando adolescentes, jovens e adultos, e

ganha vida e utilidade de acordo com o desejo de cada um.

Além disso, o brinquedo de miriti ultrapassou os limites de Abaetetuba, ao

integrar uma das faces culturais da maior celebração religiosa do Estado do Pará, o

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Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre anualmente na manhã do segundo

domingo do mês de outubro nas ruas de Belém, capital do Estado.

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré acontece há 218 anos e reúne

cerca de dois milhões de romeiros. São fiéis que moram na capital e no interior do

Estado, somados aos devotos de várias regiões do país e até mesmo visitantes

estrangeiros. O percurso da procissão é de 3,6 quilômetros, sai da Catedral da Sé e

segue até a Praça Santuário de Nazaré, onde a imagem da Virgem fica exposta para

veneração dos fiéis durante quinze dias. Em todo o percurso, os peregrinos revelam

sua fé quando rezam, enfeitam ruas e casas, soltam fogos, fazem apresentações

musicais, enfim, realizam um espetáculo grandioso em homenagem à Santa

padroeira do povo paraense.

Além da procissão de domingo, o Círio congrega várias outras

manifestações culturais e de devoção religiosa, tais como: a trasladação, a romaria

fluvial, o arraial, o comércio de brinquedos de miriti e diversas outras peregrinações,

romarias e festejos que ocorrem na quadra nazarena. Morais (1989) registra a

presença do brinquedo de miriti no primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré, no

ano de 1793, por ocasião de uma feira de produtos regionais dos municípios do

Pará, sendo considerado, hoje, um dos elementos integrantes desta celebração

religiosa.

Por sua grandeza e significabilidade religiosa, histórica e cultural, o Círio

foi registrado como patrimônio cultural imaterial, pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, no ano de 2004. Na certidão de registro,

assim aparece a relevância do brinquedo para o Círio:

Assim foram destacados os seus elementos estruturantes − aqueles sem os quais o Círio não existiria − e identificadas às expressões associadas à festa, em sua versão contemporânea. Foram considerados elementos estruturantes dessa celebração: as procissões da Transladação e do Círio, as imagens da santa, a original e a peregrina; a corda e a berlinda; o almoço do círio; o arraial; as alegorias do círio; a feira e os brinquedos de miriti; a cerimônia e a procissão do recírio (IPHAN, 2004, p. 2).

Atualmente, a feira permanece com as modificações processadas de

acordo com o contexto histórico vivenciado pelas gerações. E, os brinquedos de

miriti continuam a peregrinar no Círio, da criança ao idoso, seja nas mãos de um

promesseiro, nas girândolas dos artesãos ou nas mãos cuidadosas dos que querem

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brincar ou adornar sua moradia. De qualquer modo, é a nostalgia de sua leveza e o

encantamento de suas cores que emprestam alegria e poesia à procissão.

Nos últimos anos, os brinquedos de miriti ganharam visibilidade e

produção em maior escala a partir da organização e fundação da “Associação dos

Artesãos de Brinquedos e Artesanatos de Miriti de Abaetetuba” (ASAMAB), em

fevereiro de 2003. Este fato favoreceu o fomento da atividade por parte do poder

público estadual e municipal, por meio de vários projetos. A título de exemplo, o

projeto desenvolvido pelo Serviço Brasileiro de Apoio as Micros e Pequenas

Empresas − SEBRAE/PA, Unidade Tocantins, na área de arranjos produtivos locais,

inserido no setor de artesanato. A possibilidade de renda e trabalho em torno do

artesanato de miriti despertou o interesse de gerações mais novas que se uniram e

fundaram, em dezembro de 2005, a Associação Arte Miriti de Abaetetuba (Miritong),

desenvolvendo novos produtos e novas atividades.

Com o intuito de promover o brinquedo de miriti e demais produções

locais, foi criado na cidade o “Festival do Miriti”, conhecido como “Miritifest”, que teve

sua 1ª edição em abril de 20045. O evento movimenta a economia e possibilita a

comercialização dos brinquedos e de outros produtos derivados do miriti, como por

exemplo, os culinários. Além de proporcionar uma vasta programação cultural, com

apresentações de grupos folclóricos, escolha da Garota “Miritifest”, eleição e

premiação dos artesãos do ano, palestras ecológicas sobre a palmeira do miriti,

espetáculo pirotécnico e atividades esportivas.

O festival representa as tradições populares do município de Abaetetuba

e foi transformado em patrimônio cultural do Estado do Pará, no ano da quinta

edição, por meio da Lei estadual nº. 7.282, de 03 de julho de 2009 (PARÁ, 2009).

Baseado na definição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (UNESCO) o IPHAN (2004) considera como Patrimônio Cultural

Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas − junto

com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados

− que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem

como parte integrante de seu patrimônio cultural.

5 Esta primeira edição foi realizada pela "Associação Comercial de Abaetetuba" (A. C. A.) e ASAMAB em parceria com a Câmara de Dirigentes Lojistas de Abaetetuba (C. D. L.), o Conselho da Mulher Empresária (C. M. E.), a Prefeitura Municipal de Abaetetuba (P. M. A.) e o SEBRAE/PA.

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No Manual de Aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais,

elaborado pelo Departamento de Identificação e Documentação do IPHAN algumas

categorias são utilizadas de modo a melhor classificar bens culturais, dentre elas

temos: celebrações, formas de expressão, edificações e lugares, ofícios e modos de

fazer. Sob a denominação de ofícios e modos de fazer estão as atividades

relacionadas à produção de objetos e/ou à prestação de serviços que demandem

saberes ou técnicas restritas a determinado grupo, a exemplo do conhecimento

sobre o uso dos recursos naturais disponíveis para a produção de habitações, meios

de transporte, medicamentos ou utensílios. A habilidade dos artesãos ao

confeccionar o brinquedo de miriti é uma forma singular de saber tradicional,

incluindo-se na categoria de ofícios e modo de fazer.

O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e

constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente,

de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de

identidade cultural e continuidade da criatividade humana. Como assinala Brandão

(2002, p. 22), quando trata do conceito de cultura:

Somos o que criamos para efemeramente nos perpetuarmos e transformarmos a cada instante. Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da natureza e as recriamos como os objetos e os utensílios da vida social, representa uma das múltiplas dimensões daquilo que, em uma outra, chamamos de cultura.

Imerso nesse sentido de cultura, localizamos o brinquedo de miriti. O

processo de criação e recriação humana se faz presente nesse objeto que não

possui uma forma única, e revela como o brinquedo está cercado por um conjunto

de experiências, valores, crenças, sentimentos, símbolos e significados que são

historicamente vivenciados, construídos e partilhados cotidianamente por todas as

pessoas em suas relações sociais.

Nessa direção, o antropólogo Geertz (1989, p.15) afirma que “o homem é

um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, considera a

cultura como essas teias, assumindo, assim, uma concepção de cultura dinâmica

que está em constante processo de recriação. Também são relevantes as

contribuições de Alfredo Bosi (1992, p. 16) ao apresentar a cultura como “o conjunto

das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos valores que se devem transmitir às

novas gerações para garantir a reprodução de um estado de coexistência social”.

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As análises dos autores citados convergem no sentido de aproximarem e

promoverem o entrelaçamento da cultura com a educação, ponto que sustenta

teoricamente nossa intenção de pesquisa. Pois, concebemos o brinquedo de miriti

como uma manifestação da cultura paraense que incorpora em seu processo de

construção, os saberes que há gerações vêm se perpetuando através da oralidade,

da observação e da reprodutibilidade.

Os ribeirinhos confeccionam há séculos os brinquedos de miriti. Os

moradores do município de Abaetetuba comumente ensinavam e ensinam a feitura

do objeto por meio da observação, ainda que este fato venha se modificando com a

criação das associações de artesãos. São saberes transmitidos de pais para filhos,

ao longo das gerações que são partes constitutivas da identidade cultural e histórica

desses sujeitos.

Assim como as águas de uma nascente são puro movimento cíclico, os

saberes e fazeres do povo também são marcados pela circularidade, num ir e vir

que, atravessando gerações, guardam o passado e gestam o futuro (BRASIL, 2009).

Nesse viés, consideramos relevante a afirmação de Dias (2004, p. 92):

Durante a observação do processo de construção do brinquedo do miriti e nas conversas com os artesãos e suas famílias, foi possível observar processos de aprendizagem, onde prevalece a afetividade na construção do conhecimento no cotidiano. [...] Adultos e crianças convivem num ambiente no qual a troca de saberes se dá a partir da observação, no olhar apurado, na oralidade sendo a escola a casa, o ateliê, a casa do vizinho que é artesão, é artista e, sobretudo educador.

Estas análises nos apresentam indícios de que no processo de confecção

do brinquedo de miriti, circulam saberes entre gerações que tornam as oficinas de

feitura desse objeto, também, espaços de aprendizagens, e resultam na

materialização de um produto que traz em seu conteúdo uma simbologia própria da

cultura ribeirinha amazônica.

Nessa perspectiva, Brandão (2002, p. 145) afirma que:

[...] a educação lida com a experiência cotidiana mais regular, mais estável e mais eficaz de criação e circulação de visões de mundo, de busca de filosofias do destino e de sentidos para a vida humana, de lógicas do puro saber, de éticas e de gramáticas dos intercâmbios humanos, dos tantos feixes de ciências, das artes (cujo lugar na escola deveria voltar a ser tão mais desmesurado!) e também, por que não? dos mistérios e das crenças das religiões e suas espiritualidades.

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Pensar a educação nesta ótica significa um alargamento da concepção

dos processos educativos para além de um único cenário privilegiado de circulação

do conhecimento e de realização de aprendizagens. Ou melhor, significa questionar

e romper com a tradição historiográfica da educação brasileira, a qual tem

assentado seu foco de pesquisas e estudos somente em uma arena de saber − a

escola, deixando à margem outros saberes e processos de aprendizagens que se

encontram fora dos processos formativos de natureza escolar. Essa trajetória de

hierarquização e exclusão de conhecimentos encontra sua raiz epistemológica na

ciência moderna ocidental europeia, tornada hegemônica na sociedade capitalista.

Santos (2010) considera o pensamento moderno eurocêntrico abissal, na

medida em que cria linhas radicais invisíveis que separam os conhecimentos

científicos dos não científicos, concedendo à ciência moderna o monopólio da

distinção universal entre o verdadeiro e o falso, gerando a exclusão, a

hierarquização, a dicotomia, o monopólio, a segregação e a eliminação total de

todos os conhecimentos construídos do outro lado da linha, tidos como não

conhecimentos. Neste modelo de pensamento não há espaço para outras formas de

saber como, por exemplo, os saberes populares tradicionais (indígenas, ribeirinhos,

caboclos, quilombolas e outros), que “desaparecem como conhecimentos relevantes

ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do

falso” (SANTOS, 2010, p. 34).

Este autor aponta pistas para a construção de uma nova epistemologia, a

qual deverá partir do reconhecimento da pluralidade de conhecimentos que fazem

parte da experiência humana interagindo entre si, integrando-se, articulando-se e

tecendo linhas convergentes sem hierarquização ou monopolização de um saber

sobre outros, enfim, uma “ecologia de saberes”, em que o “conhecimento é

interconhecimento” (SANTOS, 2010, p. 53). É nessa ecologia que se inserem os

saberes dos artesãos do brinquedo de miriti.

Neste sentido, retomo Brandão (1995a, p.13) ao afirmar que “a educação

existe onde não há a escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais

de transferência de saber de uma geração a outra”. E mais, “ninguém escapa da

educação, em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos

nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para

aprender-e-ensinar” (BRANDÃO, 1995a, p. 7). Tal perspectiva permite visualizar os

espaços utilizados no processo de construção do brinquedo de miriti como lugares

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......27

educativos de circulação de fazeres, saberes e aprendizagens. E, aponta

possibilidades de inserir no contexto acadêmico pesquisas acerca dos processos

educativos não escolares, no caso, os que perpassam a confecção do brinquedo de

miriti.

O célebre literato paraense Dalcídio Jurandir (1984), ao registrar o

cotidiano Amazônico em seus escritos, não deixa de expressar a importância da

educação da vivência cotidiana, bem como a estreita relação do homem amazônico

ribeirinho com a floresta e aqui destacamos, particularmente, com a palmeira do

miriti. No obra Passagem dos Inocentes, encontramos este aspecto numa passagem

em que Alfredo, personagem principal, compara o avô ao miritizeiro:

O avô, calombento, andava um pouco de banda, o peito ossudo, queixoso dos rins; do cabelo cinzento as moitas em volta da careca tostada, um olhar de zangadão fingidor, mesmo dizendo uma graça era sisudo; mesmo com a caninha lhe subindo, o sempre pausado no falar. Tinha uma voz de provérbio. Sentado no molho de cipó, entre os cestos de tala ainda verde, o avô destrançava as fibras, ou no mochinho a enfiar tala por tala, os dedos, que pareciam entrevados, no tecer tão maneiro, tão sabidos, o avô dedilhava. E Alfredo teve uma semelhante visão: o avô não tecia, tocava. O cantar, e o gemer, o bulício das folhas e do chão saíam de sua harpa. (Que harpa, Alfredo via, horas, no dicionário.) Os cestos e paneiros enfeixados noutra manhã, lá se iam no ombro do avô para o trapiche. Entre o avô e os miritizeiros os havia uma sociedade [...]. Seguiu uma vez o avô até o miritizal, o velho ali sentava, também miritizeiro, silencioso: antes de apanhar as palmas olhava os seus iguais um a um, como se quisesse mesmo ser um deles, ou dentro de cada um visse uma pessoa de seu sangue (JURANDIR, 1984, p. 9).

Diante do exposto, a notoriedade do manuseio e uso do miriti no cotidiano

abaetetubense como expressão artística, fonte alimentícia e de renda e a

expressividade cultural desta palmeira, como parte integrante da identidade desse

povo, instiga-nos a investigar os elementos educativos presentes na relação social,

familiar e comunitária que perpassa o processo de feitura do brinquedo de miriti.

Importa mencionar que a diferença fundamental desta pesquisa em

relação aos demais e, diga-se, entre os poucos e renomados trabalhos que se

debruçaram sobre o brinquedo de miriti, é que nesta, o brinquedo de miriti desponta

como um aspecto, ao lado de tantos outros da cultura amazônica, olhados, de

maneira geral, sob um ângulo cultural, estético, poético e subsidiário, facilitador do

processo ensino-aprendizagem no âmbito escolar. Aqui o foco é a dimensão

cultural-educativa, implícita no processo de construção desse objeto. Com o intuito

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......28

de somar às reflexões já realizadas, pretendemos sistematizar os saberes e os

processos educativos inseridos na confecção do brinquedo de miriti e o

protagonismo dos artesãos de Abaetetuba nesta arena de socialização de

conhecimentos. Este é o olhar que almejamos dar ao brinquedo de miriti.

O esboço apresentado permite-nos indagar e nortear este estudo com os

seguintes questionamentos: Que saberes perpassam a feitura do brinquedo de

miriti? Quais processos educativos estão presentes na socialização desse

conhecimento? Que aspectos do cotidiano são representados nos brinquedos de

miriti? As representações incorporadas nos brinquedos de miriti contribuem para o

fortalecimento de uma identidade cultural territorial?

Assim, os objetivos desta pesquisa são: identificar e analisar os saberes

que perpassam a construção do brinquedo de miriti; reconhecer e analisar os

processos educativos presentes na socialização desse conhecimento; constatar os

aspectos da cultura representados no brinquedo de miriti, analisando suas

permanências e mudanças no decurso da história; e, relacionar as representações

materializadas nos brinquedos de miriti com o fortalecimento da identidade regional

abaetetubense.

Para uma análise consistente dos saberes e práticas educativas inseridos

no processo de feitura do brinquedo de miriti, estruturamos esta dissertação em

quatro seções: a primeira seção, denominada “Palavras Iniciais”; a segunda seção,

intitulada “Brinquedos de miriti: caminho metodológico”, apresenta as características

da abordagem teórica metodológica escolhida para fundamentar o trajeto percorrido

nas diferentes etapas desta pesquisa, bem como os passos trilhados para a

concretização dos objetivos propostos.

“Brinquedos: história e memória” é o título da terceira seção. Esta seção

está dividida em quatro subseções: a primeira, denominada “Brinquedos artesanais:

pistas de uma história e significados”, em que contextualizamos historicamente os

brinquedos artesanais enfatizando sua existência e significabilidade no interior da

sociedade capitalista atual; “Brinquedos de miriti: as memórias de uma história” é a

segunda subseção na qual recuperamos pela memória dos sujeitos desta pesquisa

a presença secular do brinquedo de miriti no município de Abaetetuba e seu caráter

cultural identitário.

O aspecto histórico comercial dos brinquedos de miriti é abordado na

terceira subseção, denominada “Brinquedos de miriti: a comercialização de um bem

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cultural”. Enfatizamos, ainda, nesta subseção, a organização coletiva dos artesãos

de miriti em associações, bem como a potencialização desse caráter mercadológico

do brinquedo promovido pelo poder público, principalmente nos últimos anos.

Com o título “Brinquedos de miriti: as imagens de uma arte cabocla”

desenvolvemos a quarta subseção. Nesta, silenciamos as palavras e, por meio de

imagens, apresentamos um olhar a respeito da palmeira do miriti, seus inúmeros

benefícios e a importância no cotidiano ribeirinho paraense, particularmente

abaetetubense.

Na quarta e última seção desta dissertação, denominada “Brinquedos de

miriti de Abaetetuba: saberes culturais, identidade e educação” entrecruzam-se os

dados obtidos nesta pesquisa com as categorias de análise eleitas para tal: cultura;

cultura e identidade amazônica; e, saberes cotidianos e educação não escolar.

Como referencial teórico, figuram autores como Bosi (1992); Brandão (2002, 1995a,

1995b); Canclini (2008); Charlot (2000); Geertz (1989); Hall (2002); Loureiro (1989,

1995, 2012); Santos (2010, 1997), dentre outros que consideram a educação

partindo da ótica da pluralidade de saberes culturais construídos pelos seres

humanos em suas relações.

Na tessitura desta quarta seção, se procura responder aos

questionamentos deste estudo e concretizar os objetivos propostos. Para tanto,

desenvolvemos quatro subseções: na primeira, denominada “Artesãos dos

brinquedos de miriti: quem são?”, descrevemos a história de vida dos sujeitos desta

pesquisa. Na segunda subseção, descrevemos o local de trabalho dos artesãos de

miriti, isto é, as oficinas de confecção de brinquedos considerando-as como lugares

de saberes, fazeres e aprendizagens.

“Brinquedos de miriti: uma teia de conexões” é o título da terceira

subseção. Nela fazemos a descrição das etapas que compõem o processo de

produção dos brinquedos de miriti, identificamos e analisamos os saberes e as

práticas educativas que perpassam cada etapa, bem como o caráter identitário,

cultural e educativo deste objeto no município de Abaetetuba. Finalizamos com a

quarta subseção, denominada “Educação em Abaetetuba: onde acontece?”, na qual

afirmamos que em Abaetetuba a educação acontece nos ambientes

institucionalizados, ou seja, nas escolas, mas não somente neste espaço, ela ocorre,

também, em ambientes não escolares, como as oficinas de brinquedos de miriti.

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Nas considerações finais, tecemos nossas ponderações a respeito do

assunto pesquisado. Evidenciamos os achados relacionados aos saberes e

processos educativos inclusos nos brinquedos de miriti e seu aspecto educativo em

um espaço não institucionalizado, assim como a perspectiva de outros estudos

acerca desse bem cultural que há gerações se recria, reproduz e se perpetua no

município de Abaetetuba por meio da oralidade e da observação.

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2 BRINQUEDOS DE MIRITI: CAMINHO METODOLÓGICO

Mais do que um amontoado de técnicas necessárias para se chegar a um

determinado fim, a metodologia de uma pesquisa compreende: “a teoria da

abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (as

técnicas) e a criatividade do pesquisador (sua experiência, sua capacidade pessoal

e sua sensibilidade)” (MINAYO, 2004, p. 14). Concordamos com a citada autora por

entendermos que em uma pesquisa que estuda o cotidiano historicamente

construído por homens e mulheres, tratar as técnicas desvinculadas do tipo de

análise que se propõe a fazer, certamente implica em prejuízos nos resultados a

serem perseguidos. Do contrário, entrelaçam-se os anseios do pesquisador

refletidos em seu objeto de pesquisa, a abordagem escolhida e os instrumentos

definidos pelo pesquisador para atingir suas intenções de pesquisa, o que

proporciona uma reflexão mais ampla e apurada.

Com o propósito de elucidar e analisar os saberes e os processos

educativos presentes no contexto de produção do brinquedo de miriti, optamos por

métodos e técnicas que seguem uma estrutura de organização definida pelas teorias

e metodologias educacionais. Abordamos nesta seção, as características

fundamentais desta pesquisa e os passos trilhados para encontrar respostas aos

questionamentos e para a realização dos objetivos propostos.

Trata-se de uma pesquisa do tipo qualitativa com elementos etnográficos,

por enfatizar o objeto de estudo, brinquedos de miriti, como produto da cultura e

estudar o processo educativo a partir das experiências práticas dos sujeitos em seus

ambientes socioculturais. Neste sentido, os elementos que caracterizam e norteiam

a pesquisa qualitativa nos possibilitaram desenvolver, nesta dissertação, o tipo de

análise pretendida acerca do objeto de estudo.

Ghedin e Franco (2011, p. 62), ao descreverem as características da

pesquisa qualitativa, afirmam que nestas, “o cotidiano passa a ser percebido como

espaço significativo, cultural, em que os seres humanos constroem sua existência e

se fazem transformadores das circunstâncias”. É com esse olhar que analisamos o

dia a dia dos artesãos de miriti em seu trabalho de feitura dos brinquedos, buscando

captar seus conhecimentos, suas aspirações, suas representações e seus valores

impressos neste objeto.

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Quanto às técnicas de coleta de dados, o percurso metodológico para

responder aos questionamentos e atingir aos objetivos propostos neste estudo, foi

realizado em dois momentos complementares e não necessariamente distintos, mas

intercalados, oscilando de acordo com a necessidade da pesquisa.

Inicialmente fizemos um levantamento bibliográfico e documental

buscando encontrar publicações (livros, artigos, periódicos, dissertações e teses) e

documentos legais a respeito do objeto de estudo, o brinquedo de miriti. Utilizamos

como fontes de informações: a Biblioteca Pública Municipal de Abaetetuba; a

Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do

Pará; a biblioteca virtual da Universidade Federal do Pará e da Universidade Federal

Rural da Amazônia; o banco de teses e dissertações da Capes e o site oficial dos

governos federal e estadual.

Paralelamente, realizamos a seleção da bibliografia utilizada na

construção teórico-reflexiva que norteou as análises deste trabalho. Lakatos e

Marconi (2010) demarcam a importância de os pesquisadores realizarem a pesquisa

bibliográfica objetivando examinar a temática em estudo sob uma ótica diferenciada

das já existentes e, assim, no caso deste trabalho, propiciar novas conclusões

relacionadas à educação e, particularmente, aos saberes transmitidos no processo

de construção do brinquedo de miriti. Sendo esta uma pesquisa em educação, de

abordagem qualitativa com elementos etnográficos, a pesquisa bibliográfica assume

um papel essencial, haja vista que a teoria serve como princípio norteador da

pesquisa de campo.

A coleta de dados não pode ocorrer desvinculada de uma teoria que a

direcione, pois se corre o risco de se ter um estudo com inúmeras fragilidades e

despido de um dos pressupostos orientadores desse tipo de pesquisa que é o

casamento entre teoria e empiria (GHEDIN & FRANCO, 2011). Cabe lembrar que

este processo de construção do aporte teórico foi contínuo no decurso do processo

investigativo.

A outra etapa de grande significabilidade neste estudo correspondeu à

pesquisa de campo, pois foi o momento da coleta de dados e informações sobre o

objeto em estudo, o qual exigiu a nossa imersão no universo dos intérpretes, não

para ser como estes ou para moldá-los ao nosso mundo, mas como alguém que foi

aprender e conhecer, ainda mais, as experiências vivenciadas pelos mesmos e

registrá-las.

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......33

Cabe aqui mencionar as análises tecidas por Minayo (2004, p. 53) quanto

ao trabalho de campo como descoberta e criação, explicitando sua concepção de

“campo de pesquisa como o recorte que o pesquisador faz em termos de espaço,

representando uma realidade empírica a ser estudada a partir das concepções

teóricas que fundamentam o objeto de investigação”. É com esta compreensão de

trabalho de campo que desenvolvemos a coleta de dados nas oficinas de artesanato

de miriti, através das técnicas de observação direta e entrevistas semiestruturadas.

Optamos pela observação direta por considerar que esta é uma técnica

adequada ao interesse deste estudo, na medida em que possibilita o contato

pessoal e direto do pesquisador com o fenômeno estudado, fator elementar nas

pesquisas qualitativas. Segundo Lüdke e André (1986, p. 26, grifos dos autores),

A observação direta permite que o observador chegue mais perto da “perspectiva dos sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações. Além disso, as técnicas de observação são extremamente úteis para “descobrir” aspectos novos de um problema.

Nesse sentido, o pesquisador observador é parte integrante do processo

de conhecimento e tem a função primordial de interpretar os fenômenos observados

para lhes atribuir significados. Assim, as características que envolvem a observação

direta, satisfizeram nossa intenção de pesquisa, no sentido de absorver dados que

vieram responder aos questionamentos em estudo. Tratando-se das formas de

registrar as observações, fizemos através de imagens fotográficas e de registros por

escrito.

Quanto à escolha em coletar dados através da técnica de entrevista

semiestruturada, se deu pela interação entre pesquisador e pesquisado que esta

técnica proporciona e, também, pela flexibilidade que o roteiro pré-estabelecido

permite ao entrevistador, pois no ato da execução da entrevista, o entrevistador

pode acrescentar novas perguntas, fazer correções, esclarecimentos e adaptações

de acordo com o diálogo estabelecido e o teor da narrativa do entrevistado.

Diversos autores salientam a dialogicidade, o propósito e a interação que

permeiam a entrevista, particularmente a semiestruturada, aqui concebida não como

uma simples técnica de coleta de dados, em que os papéis desempenhados por

entrevistador e entrevistado são definidos e separados hierarquicamente, cabendo

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ao primeiro a função de perguntar e, ao segundo, a de responder o assunto de

interesse do primeiro, não existindo diálogo entre os sujeitos. Não obstante, é

compreendida como um procedimento metodológico dialógico e interativo entre

entrevistador e entrevistado, que tem seus propósitos definidos e permite a obtenção

de dados sociais e subjetivos, como: imaginários; representações; sentimentos;

valores e emoções, através do relato de pessoas que vivenciam a realidade

estudada.

Caputo (2006, p. 28) corrobora com suas reflexões essa concepção de

entrevista, considerando-a como “uma experiência de olhar o mundo e ouvir o

outro”. Esta autora elenca algumas notas gerais sobre entrevista enfatizando a

paixão como um elemento de suma importância neste processo.

[...] para se fazer boas entrevistas é preciso amar conversar com o outro e, mais uma vez, ouvir o outro. É preciso amar a pesquisa, amar conhecer gente nova, amar um bom papo. A boa entrevista acontece a três. Ela acontece quando entrevistador e entrevistado sentam-se frente a frente, se olham nos olhos e abrem juntos um espaço de confiança num mundo de tantas desconfianças. Abrem juntos um espaço de diálogo num mundo em que ouvir de verdade virou raridade. Só quando esse espaço é aberto, a experiência da entrevista acontece. [...] (CAPUTO, 2006, p. 65).

Nessa perspectiva, a entrevista sendo entendida como ação dialógica,

aberta e flexível, concede aos seus atores, a capacidade de construir

conjuntamente, no decurso do processo investigativo, conhecimentos sobre a

realidade, sem hierarquização de saberes e papéis sociais.

Com base nessas análises, a entrevista semiestruturada foi considerada

a técnica mais apropriada para realizar a experiência dialógica com os artesãos do

brinquedo de miriti. As entrevistas foram gravadas e, também, foram feitos registros

escritos. Antes fizemos o consentimento esclarecido o qual foi obtido verbalmente,

após explicação dos objetivos da pesquisa e finalidade dos resultados e, por escrito

com a assinatura do termo de consentimento e autorização do uso de voz, imagem e

nome.

Com relação à análise e interpretação dos dados obtidos durante as

observações e as entrevistas com os intérpretes da pesquisa, utilizamos “descrição

densa” com base no conceito desenvolvido por Geertz (1989, p. 13) que a

compreende como uma descrição detalhada, minuciosa e com o objetivo precípuo

de captar a teia de significados que envolvem a ação humana.

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Para somar à descrição, interpretamos os dados utilizando a análise do

discurso aqui concebida à luz das reflexões de Orlandi (2005). Este tipo de estudo

“visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está

investido de significância para e por sujeitos” (ORLANDI, 2005, p. 26). A citada

autora enfatiza que, na análise do discurso, a descrição e a interpretação estão

imbricadas, cabendo ao pesquisador distingui-las no seu intento de compreensão; e

atenta, ainda, para o fato de que neste tipo de análise não cabe procurar o sentido

“verdadeiro”, o certo. Entretanto, o real sentido do discurso está inserido em um

contexto histórico e linguístico, haja vista que um texto, aqui entendido como “fato

discursivo” (ORLANDI, 2005, p. 69) que pode compreender uma fala, uma letra, uma

imagem, frases, livros e outros sinais de comunicação entre os seres humanos; não

é meramente uma transmissão de informação, mas sim um processo de

identificação do sujeito que possui subjetividade, que constrói e argumenta a

realidade em que vive.

Enfim, a análise do discurso é um tipo de interpretação de dados que

permite diferentes olhares e compreensões de uma mesma realidade, possibilitando

o melhor conhecimento daquilo que faz do ser humano, no caso deste estudo, dos

artesãos de miriti, um ser especial, pela sua capacidade de significar e significar-se.

Portanto, a descrição densa e a análise do discurso foram as técnicas mais

apropriadas para respondermos às questões propostas e atingirmos os objetivos

desta pesquisa.

No que concerne às imagens fotográficas capturadas no decurso do

processo investigativo presentes no corpo do texto, elas estão não como uma

simples ilustração do não verbal das palavras, mas sim como a materialização de

um olhar a ser desnudado. Segundo Martins (2008), a fotografia é um elemento que

constitui a realidade contemporânea, sendo objeto de pesquisa ou até mesmo

podendo tornar-se sujeito na medida em que se reconhece a imagem como

documento do imaginário social e não como registro factual de uma realidade social.

Neste sentido, a fotografia facilita o registro das múltiplas dimensões e

dinâmica de uma comunidade, não revelando apenas a imagem do real, mas

também as intenções, saberes, ideologias, emoções, sensibilidade, preocupações

humanas e sociais do fotógrafo pesquisador. Esta concepção de imagem fotográfica

norteou a análise iconográfica realizada neste trabalho.

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O locus da pesquisa é o município de Abaetetuba. Este município é o

principal centro de produção do brinquedo de miriti. Abaetetuba, de acordo com

dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística − IBGE (2010), possui

1.610,603 km² com 141.100 habitantes, sendo 58.102 residentes na zona rural (área

de terra firme e ilhas) e 82.998 moradores da zona urbana, sede do município.

Foto 04: Imagem da frente da cidade Abaetetuba as margens do rio Maratauíra. Final de tarde.

Fonte: Angelo Paganelli. Arquivo pessoal.

Foto 05: Imagem da frente da cidade Abaetetuba as margens do rio Maratauíra.

Fonte: Arquivo pessoal. Abril /2011.

Historicamente Abaetetuba foi fundada no século XVIII, sendo elevada à

categoria de cidade no dia 15 de Agosto de 1895. Ao longo desse percurso histórico,

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recebeu apelidos relacionados às características peculiares do município, a exemplo

do título de “terra da cachaça” devido à singular aguardente produzida nos inúmeros

engenhos espalhados no território municipal, apelido imortalizado nos versos

compositor paraense Ruy Barata6:

“[...] Esse rio é minha rua, minha e tua mururé, piso no peito da lua, deito no chão da maré. Pois é, pois é, eu não sou de igarapé, quem montou na cobra grande, não se escancha em puraquê. Rio abaixo, rio acima, minha sina cana é, só em falá da mardita me alembrei de Abaeté.” (Disponível em:<http://www.culturapara.com.br>. Acesso em: 15 ago. 2011).

Foto 06: Vista panorâmica do centro histórico e comercial da cidade de Abaetetuba

Fonte: Disponível em: <http://abaeteevip.zip.net>. Acesso em: 15 ago. 2011.

No setor educacional, o município de Abaetetuba possui 156 escolas de

educação infantil, sendo 150 públicas municipais e 6 particulares; de ensino

fundamental são, 14 escolas públicas estaduais, 168 municipais e 7 particulares,

totalizando 189 instituições; de ensino médio, possui 1 Instituto Federal de

6 Ruy Guilherme Paranatinga Barata. Paraense. Foi poeta, político, advogado, professor e compositor brasileiro. Entre inúmeras composições está “Esse rio é minha rua”, na qual menciona Abaetetuba.

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Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA/Abaetetuba, 14 escolas estaduais e

3 particulares (IDESP, 2010). Para ministrar o ensino superior e pós-graduação lato

sensu, Abaetetuba conta com 2 campi federais: Campus Universitário de

Abaetetuba/ UFPA e o já mencionado IFPA/ Abaetetuba. Existe, ainda, a Escola em

Regime de Convênio Cristo Trabalhador, que disponibiliza para a comunidade local,

além do ensino médio regular e integrado à educação profissional, cursos livres

profissionalizantes destinados à empregabilidade e à geração de renda.

Vale destacar as escolas da vida que não aparecem nas estatísticas

oficiais, mas que, no entanto, desempenham uma grande importância no processo

educativo de homens e mulheres abaetetubenses. A exemplo dos estaleiros navais,

das olarias, dos engenhos de fabricação de aguardente e das oficinas de brinquedo

de miriti. Tais conhecimentos são tradicionais e perfazem vários aspectos da vida

cotidiana cabocla abaetetubense. São saberes não escolares sobre o meio

ambiente, a ética, o respeito, a solidariedade, as relações de trabalho, a saúde entre

outros, que são compartilhados, por meio da oralidade e da observação, dos mais

velhos para os mais novos, nestes ambientes de educação não oficiais.

As oficinas de confecção de brinquedos de miriti geralmente são

localizadas nos fundos das residências dos artesãos, em salas simples, com boa

ventilação e iluminação natural. É o lugar do trabalho familiar, do encontro de

gerações – pais, filhos e netos, que por meio da habilidade artística ensinam,

aprendem e se educam mutuamente. É, também, o local de trocar experiências com

amigos, vizinhos, clientes, pesquisadores e outros visitantes.

A pesquisa se efetivou em duas oficinas de confecção de brinquedo de

miriti. Esta escolha se deu de duas formas, juntamente com a seleção dos sujeitos:

primeiro definimos a Srª. Nina Mary Abreu da Silva como intérprete-guia pelo

reconhecimento e respeito que possui, tanto a nível municipal, quanto estadual, na

arte de fazer brinquedos de miriti há sessenta e quatro anos. Pela pesquisa

exploratória definimos os demais sujeitos. O processo de delimitação do número de

intérpretes e oficinas, para realizar a coleta de dados e desenvolver uma análise

satisfatória, se deu em decorrência do tempo determinado para a realização e

conclusão da pesquisa.

No período de 1º de março a 8 de abril de 2011, por ocasião da

organização e realização do “8º Miritifest”, realizamos os primeiros contatos, como

pesquisadora, com os artesãos de miriti apresentando nossa intenção de pesquisa.

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Achamos conveniente iniciar o diálogo acerca da pesquisa em primeiro lugar com os

atuais presidentes das entidades representantes dos artesãos de miriti, a Asamab e

a Miritong. Em seguida, fizemos uma visita ao “Centro de Artesanato e Cultura do

Miriti”7, local de referência e comercialização dos produtos oriundos do miriti.

Inaugurado em abril de 2010, este Centro possui uma infraestrutura formada por 29

stands, nos quais são expostos e comercializados a produção de 29 núcleos

familiares de artesãos. Nesta visita socializamos a ideia da pesquisa com outros

prováveis sujeitos.

A familiaridade pessoal e profissional de alguns anos com o grupo

facilitou a troca de experiência inicial e a aceitabilidade da pesquisa por parte dos

mesmos. Visitamos, ainda, duas oficinas com o intuito de observar os preparativos

para o festival e, nesse processo, capturar alguns possíveis dados para a pesquisa,

tais como: imagens; pessoas envolvidas no processo; ritmo de trabalho; e as

características do local.

Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (2001) pontuam a importância dessa

fase exploratória para pesquisas qualitativas na medida em que a imersão do

pesquisador no contexto proporciona uma visão geral do problema considerado,

uma melhor focalização das questões norteadoras, a aproximação com os sujeitos e

até mesmo a descoberta de outras fontes de dados, elementos que certamente são

facilitadores do e no processo de pesquisa.

Nos dias do evento − 6, 7 e 8 de maio, fizemos o registro fotográfico dos

54 stands de exposição do artesanato de miriti. Realizamos também a pesquisa

exploratória com 46 artesãos expositores no “8º Miritifest”. Conversamos com cada

um, solicitando que respondessem ao seguinte questionamento: Quem você indica

como referência em Abaetetuba na feitura do brinquedo de miriti? Escolha duas

pessoas. Tenha como sinônimo de referência: o melhor artesão, o mais inventivo, o

que faz o brinquedo com melhor acabamento e que você considere um mestre na

arte com o miriti.

Para o tratamento dos dados utilizamos a técnica delimitadora de

amostragem não probabilística, a qual conforme Lúcia Melo (2007, p. 1):

7 O “Centro de Artesanato e Cultura do Miriti” fica localizado na Rua Getúlio Vargas, n° 1067, bairro Algodoal, Abaetetuba, Pará. CEP: 68.440-000.

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É o processo em que não se considera uma rigorosidade estatística para a determinação da amostra, obedecendo-se mais a certos critérios de seleção, que se admite possam favorecer a representatividade qualitativa do universo.

Desse modo, esta é uma técnica apropriada ao tipo de pesquisa que nos

propomos desenvolver, a qual tem sua ênfase nos posicionamentos das pessoas

pesquisadas e não na sua expressão numérica8. Os dados revelaram uma

proximidade entre os nomes propostos, algo que se percebia na conversa com os

entrevistados, pois, comumente eles iniciavam a resposta dizendo “depende do tipo

de brinquedo, porque cada um tem sua especialidade, ou seja, A é o melhor para

fazer barcos; já B se destaca pelos animais que confecciona, tais como: araras,

onças, jacarés; C é muito bom, porque sempre materializa a palma do miriti em um

objeto novo”.

Diante dos resultados da amostra, resolvemos acrescentar o tempo que o

artesão tem trabalhando com o miriti como mais um critério para a escolha,

priorizando três períodos, ou seja, um entre 25 e 30 anos na atividade, outro na

média de 15 a 20 anos e o terceiro na faixa de 5 a 10 anos de trabalho com o miriti.

Assim, os três sujeitos desta pesquisa são o Sr. Célio Vilhena Ferreira

que há 25 anos sustenta sua família trabalhando na confecção de brinquedos de

miriti; o Sr. Ivan Teixeira Leal, que há 15 anos tem a atividade artesanal como

complemento da renda familiar e há 8 anos trabalha exclusivamente com artesanato

de miriti para manter sua família; e o Sr. Adonias Oliveira Vilhena, que há 10 anos

complementa a sua renda confeccionando brinquedos de miriti. Somados a

intérprete-guia, a Srª. Nina Mary Abreu da Silva.

Vale ressaltar que esse momento foi muito significativo, na medida em

que possibilitou a escolha dos intérpretes a partir do próprio grupo, somado ao

fortalecimento dos laços entre os artesãos e eu. Para o tipo de abordagem que

priorizamos desenvolver neste estudo, essa familiaridade entre os pares envolvidos

no processo a ser investigado é muito relevante para a realização dos objetivos

propostos.

André (2004), ao discorrer acerca da pesquisa qualitativa do tipo

etnográfica, ressalta a importância do pesquisador como agente principal de coleta e

análise de dados, ele precisa estar próximo das pessoas, locais, eventos, para

8 Segue anexo o quadro demonstrativo da amostragem.

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observá-los em sua manifestação natural. Assim, o envolvimento constante entre

pesquisador e objeto pesquisado é um fator que facilita o discorrer da pesquisa.

Nesse sentido, podemos dizer que nossa interação e até mesmo

familiaridade com o objeto desta pesquisa e com os artesãos intérpretes foi um

elemento facilitador para o bom desenvolvimento da mesma e a realização dos

objetivos almejados.

Enfim, este foi o caminho metodológico que percorremos com vistas à

análise do brinquedo de miriti como um bem cultural e educativo do município de

Abaetetuba, e identificar e elucidar os saberes e processos educativos que

permeiam este objeto.

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3 BRINQUEDOS: HISTÓRIA E MEMÓRIA

O brinquedo provoca um despertar fenomenológico. Vivemos nós mesmos, quando crianças. Revivemos virtualmente e reinterpretamos imagens de nós mesmos, na condição de adultos, unindo imaginação e memória. Conduz, cada um em sua fase etária, a criança e o homem adulto, a buscar dentro de si a ideia de si mesmo. Viver ou reviver a sua mais íntima felicidade (LOUREIRO, 2012, p. 81).

Esta seção é um convite a reviver as lembranças das brincadeiras e

brinquedos da infância, sejam eles artesanais ou industrializados, certamente nos

trazem íntimas recordações e deixaram suas marcas em nosso ser, agora adultos.

Sem descartar a compreensão de que o brinquedo em seus diferentes formatos é

muito mais que um simples instrumento das brincadeiras de criança, ele é permeado

de sentidos e representa em sua materialização práticas e interpretações sociais.

Com este olhar apresentamos nesta seção uma breve contextualização

histórica dos brinquedos enfatizando os que são confeccionados artesanalmente.

Destacamos a importância e o significado dos brinquedos artesanais no contexto da

atual sociedade dominada pela tecnologia e produção em larga escala. Nesta

análise, o foco principal são os brinquedos de miriti confeccionados no município de

Abaetetuba, sua história, relevância e significabilidade cultural e educativa.

Estruturalmente, organizamos esta terceira seção em quatro subseções,

assim intituladas: “Brinquedos artesanais: pistas de uma história e significados”;

“Brinquedos de miriti: a memória de uma história”; “Brinquedos de miriti: a

comercialização de um bem cultural”; e, “Brinquedos de miriti: as imagens de uma

arte cabocla”.

3.1 BRINQUEDOS ARTESANAIS: PISTAS DE UMA HISTÓRIA E SIGNIFICADOS

Na história da humanidade, o brinquedo está presente em todas as

formas de organização social, política, econômica e cultural, como um elemento que

produz momentos de prazer ao ser um instrumento de brincadeiras e de jogos muito

utilizados na infância e, muitas vezes, até na idade adulta. Normalmente

confeccionados por adultos, os brinquedos, ao serem manuseados, são

transformados e a eles atribuídos significados diversos, conforme flui o imaginário

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humano, principalmente o infantil, a que esses objetos são destinados. De acordo

com o contexto em que estão inseridos, adultos e crianças constroem e reconstroem

seus brinquedos, expressando através deles seu olhar acerca da realidade em que

vivem e estabelecem suas relações sociais.

Inicialmente os brinquedos eram produzidos manualmente. Com o

processo de industrialização que se iniciou na Inglaterra a partir do século XVII

acelerando-se e expandindo-se para todos os países a partir do século XIX. A

confecção do brinquedo também sofreu modificações passando a ser produzida em

larga escala para satisfazer as necessidades do mercado, estando diretamente

ligada à comercialização e à lucratividade.

Em termos culturais, os brinquedos industrializados que atualmente

predominam na sociedade, também servem como instrumentos de imposição de

valores, estilos e modos de vida de um grupo sobre os outros. Seja o domínio de

uma indústria, de uma classe social ou até mesmo do adulto sobre a criança, com a

pretensão de moldá-la aos interesses e conveniências do sistema instalado.

Todavia, mesmo com o predomínio dos brinquedos industrializados no mercado

atual, em muitos lugares os brinquedos manuais continuam a existir. É o caso dos

brinquedos de miriti na Amazônia.

Nesse sentido, Oliveira (1984) destaca a importância do brinquedo

artesanal na formação social das pessoas, considerando-os insubstituíveis por

serem idealizados e confeccionados em sua totalidade pelo gênio criativo humano e

não por máquinas. Diz este autor:

O fato de o brinquedo artesanal ainda se fazer presente numa sociedade dominada pela automação, e, mais recentemente, pela informática testemunha não só o conflito entre polos antagônicos, mas também representa a negação – realizada por artesãos amadores e profissionais – em deixar parecer não apenas brinquedos, mas fundamentalmente, um modo de se expressar no mundo: aquele que resulta da habilidade manual (OLIVEIRA, 1984, p. 18).

Certeau (2009), na obra A Invenção do Cotidiano, analisa este tipo de

produção fundamentando que a mesma corresponde à criatividade do homem

ordinário e a sua não passividade diante do sistema imposto. Nas palavras de

Certeau (2009, p. 39, grifos do autor):

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A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos que lhe são impostos por uma ordem economicamente dominante.

Concordamos com as reflexões de Oliveira (1984) e Certeau (2009) por

entendermos que os brinquedos artesanais tem uma estética singular figurada por

cada artesão e representam uma forma de resistência ao processo de globalização.

Ao dominar todas as etapas de produção do brinquedo, o artesão, com sua ação

transformadora, integra-se ao processo globalizante, interage com este e rejeita a

condição de mero reprodutor que lhe é concedida no interior da estrutura produtiva

capitalista, continua como sujeito participante e construtor da cultura de sua

comunidade e, consequentemente, agente colaborador e enriquecedor da

diversidade cultural do planeta.

Nessa direção, Nassar (1984, p. 5), ao referir-se aos brinquedos

artesanais do Brasil, fala da existência de um “país submerso” que é ignorado pela

oficialidade e aparente unidade imposta pelos padrões culturais internacionais, não

obstante é real e se concretiza no cotidiano de várias localidades e comunidades,

entre elas, no município de Abaetetuba, localizado na Amazônia paraense.

Em se tratando dos brinquedos artesanais que têm como matéria-prima a

bucha do miriti, Loureiro (2012) na obra Da Cor do Norte: Brinquedos de Miriti afirma

que mesmo com as aceleradas transformações que vêm ocorrendo na região

Amazônica nas últimas décadas com o processo de midiatização e a resultante

enxurrada dos valores culturais capitalistas globais, os brinquedos de miriti de

Abaetetuba se mantêm. Para este autor são duas as singularidades que possibilitam

aos brinquedos de miriti resistir à cultura global e permanecerem em meio aos

brinquedos industrializados:

Creio que é, exatamente, a sua fragilidade, a reprodução de uma natureza construída pela “imaginação infantil” e o jogo das funções que podem desempenhar além da condição de brinquedo. Somando-se a isso a circunstância de ser vinculado a uma liturgia com a intensidade social do Círio de Nazaré e conter, na fragilidade material, a sua particularidade singela em face dos brinquedos modernos, feitos para o consumismo de massa, que não estabelecem uma relação humanizada com as crianças ou os adultos (LOUREIRO, 2012, p. 76).

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Nossa compreensão a respeito da continuidade do brinquedo artesanal

de miriti em meio à invasão dos brinquedos industrializados coaduna-se com a

análise de Loureiro (2012) por compreendermos que o brinquedo de miriti traz em

sua constituição aspectos da vida humana como: a ludicidade, a cultura, a

religiosidade, a identidade e outros elementos que o tornam mais que um mero

objeto de consumo, o tornam um brinquedo que expressa uma forma de ver o

mundo e de viver neste mundo. A significabilidade deste brinquedo o faz atravessar

gerações correspondendo à dinamicidade humana e mantendo-o sempre atual. Na

terceira parte aprofundaremos mais sobre esse assunto.

Assim, entendemos que os brinquedos, em sua trajetória histórica, são

um componente das sociedades humanas, que lhes atribuem sentidos e significados

diversos. Suas formas mais rudimentares convivem com formatos adornados por

tecnologias avançadas, ambos têm seu espaço e representação na sociedade.

Incluem-se nesse contexto os brinquedos de miriti da Amazônia.

Adentrar especificamente no percurso histórico do brinquedo de miriti nos

possibilita uma compreensão mais apurada a respeito da relação humanizada e

identitária natureza-homem-arte inseridas no mesmo. Reconstituímos parte desta

história através das memórias de quatro paraenses, intérpretes desta pesquisa, que

viveram sua infância em décadas diferentes, espaços geográficos diferenciados,

mas que têm, no brinquedo de criança e no trabalho da fase adulta, um laço comum:

o brinquedo de miriti.

3.2 BRINQUEDOS DE MIRITI: A MEMÓRIA DE UMA HISTÓRIA

Entre o avô e os miritizeiros os havia uma sociedade. Das folhas de miriti que trazia, compridas ripas, saía que saía paneiro, quanto? E aqui em casa era todo de miriti o paredame da cozinha, varanda, fundos, porta, janela de miriti. Até possível seria que ao ver o velho, os miritizeiros avisavam: lá vem o nosso bom Bibiano. O miriti era o fio de sua fiação, dizia. E do miriti dava ao neto os frutos luzentes duros, casca vermelha, polpa dourada. Quem mandava para o chalé aqueles paneiros de miriti era sempre o avô. As frutas na despensa iam aos poucos amolecendo, ou coziam na lata d`água fervendo, delas a mãe espremia o vinho. Bom camarada o miriti, caroço grelando no caminho do igarapé onde, na enchente, as frutas bubuiavam, já moles

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que Alfredo com delícia descascava devagarinho comia (JURANDIR, 1984, p. 9).

A história do brinquedo de miriti está intimamente relacionada à história

da cultura, da educação e da identidade do caboclo abaetetubense e paraense. Para

recompor parte desta história, apropriamo-nos de fragmentos da memória dos

quatro intérpretes desta pesquisa. O fenômeno da memória como fonte viva de

informação para reconstrução de um dado momento histórico tem sido recorrente

nas ciências sociais. Cabe-nos, aqui, fazermos primeiramente mais uma breve

incursão a respeito das diferentes concepções que historicamente o uso e

significação da palavra memória possui e, assim, reafirmarmos a que norteia nossa

análise.

Para os antigos gregos, a memória era sobrenatural. Um dom a ser

exercitado. A deusa Mnemosine, mãe das musas, protetora das artes e da história,

possibilitava aos poetas lembrar o passado e transmiti-lo aos mortais. Memória e

imaginação têm as mesmas origens, bem como, lembrar e inventar estão

profundamente ligadas. Cabe aos poetas, o importante papel social de resgatar do

esquecimento o que é importante e transmitir por meio do canto e da poesia, sob a

proteção das musas, as histórias ancestrais que não podem ser esquecidas.

No dicionário de filosofia, Abbagnano (1998, p. 657), ao citar o filósofo

grego Platão, afirma que para este filósofo a memória se constitui em dois

momentos distintos que são: primeiro, a “conservação de sensações” é a memória

retentiva; e, segundo, a “reminiscência”, relacionada à recordação, à lembrança.

Esta distinção feita por Platão foi reafirmada por seus contemporâneos, como

Aristóteles, permanecendo até os dias atuais. Entretanto, as análises posteriores

divergem entre si tomando como ponto de partida de interpretação da memória a

conservação ou a recordação.

A característica retentiva da memória é evidenciada na sociedade

europeia no período medieval. Segundo Abbagnano (1998, p. 657-658), os filósofos

dessa época, como Santo Agostinho, por exemplo, consideravam a memória como o

“ventre da alma”, ou seja, o lugar de receber e conservar os conhecimentos. De

maneira análoga, São Tomás de Aquino reafirma a memória retentiva ao denominá-

la de “tesouro e local de conservação das espécies”.

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Ao falar dos filósofos medievalistas e suas definições de memória, Le Goff

(1992, p. 453) recorre ao conceito de Boncompagno da Signa, o qual a define como

“um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual revocamos as coisas

passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças a sua

semelhança com as passadas”. É nesse período que grandes religiões, como o

Cristianismo e o Judaísmo, se estruturaram pautando as bases teológicas na

rememoração dos acontecimentos e milagres do passado realizado por seus

ancestrais.

Os estudiosos da modernidade e contemporaneidade têm relacionado o

conceito de memória à conservação, ao esquecimento e à seleção,

interrelacionando-as com o contexto social. Neste meio, encontram-se os estudos de

Henri Bergson (2006) e seu postulado da memória individual, e Maurice Halbwachs

(2004) e sua premissa sobre a memória coletiva.

Em Bergson (2006), encontramos a afirmação da memória individual

como conservação do passado. Este estudioso considera que cada ser humano

guarda em sua memória toda a sua experiência vivida seja de modo consciente ou

inconsciente. A memória não seleciona fatos da vida do indivíduo para serem

guardados, ela conserva toda a sua história em seu estado puro e a traz à tona em

forma de lembrança no momento em que for evocada. Assim, a memória individual

é a gravação do passado, que sobrevive com a pessoa, quer chamado pelo

presente como lembrança, quer em si mesmo, em estado inconsciente.

Diferentemente de Bergson (2006), Halbwachs (2004) considera que a

memória do indivíduo depende do seu relacionamento com os grupos de

convivência e os grupos de referências peculiares desse indivíduo. Assim, cada

pessoa carrega as suas lembranças, mas não está só neste lembrar, ao contrário,

está o tempo todo interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições.

Em Halbwachs (2004), a nossa memória e as maneiras como

percebemos o mundo se constituem a partir desse emaranhado de experiências tão

diversas quanto os diferentes grupos com que nos relacionamos. Sentimos como se

a nossa memória fosse só nossa, uma unidade, embora nossas lembranças se

alimentem das diversas memórias oferecidas pelo grupo, a que Halbwachs (2004, p.

38) denomina “comunidade afetiva”. Dificilmente nos lembramos de algo fora deste

quadro de referências. Tanto nos processos de produção da memória, como na

rememoração, o outro tem papel fundamental.

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Esta memória coletiva tem o relevante papel de colaborar com o indivíduo

para sentir-se parte de uma comunidade de pessoas que tem um passado comum e

compartilham memórias. Sentimo-nos parte do grupo quando partilhamos de suas

lembranças. É possível imaginar que, por se alimentar do passado, a memória seja

estática. Porém, ela se modifica ao longo do tempo e se rearticula conforme a

situação e as relações que estabelece, relacionando-se às emoções, às outras

experiências vividas, aos valores e às experiências dos grupos. Dificilmente as

lembranças emergem fora das relações com os grupos e o interesse pela

experiência do outro.

Dessa maneira, a memória é muito mais do que uma simples gravação,

um sonho, como defende Bergson (2006). Ela é trabalho, pois o ato de lembrar não

é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje as

experiências do passado. Com este olhar, Ecléa Bosi (1994, p. 82) sustenta que um

mundo social possuidor de “uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos

pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem

ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente”.

Concordamos com as proposições de Halbwachs (2004) e Ecléa Bosi

(1994) por concebermos a memória como um manancial de informações que nos

possibilita resgatar momentos da vida vivida que não foram anotados nos

documentos escritos, não obstante, estão registrados na memória daqueles que

viveram podendo ser reconstruídos pela oralidade. É o caso da história dos

brinquedos de miriti de Abaetetuba.

Partindo dessa premissa, reconstituímos a história dos brinquedos de

miriti a partir das memórias de caboclos ribeirinhos, com os quais conversamos e

buscamos reencontrar nossas raízes culturais, para localizar historicamente este

produto do miriti. O marco histórico temporal originário da feitura dos brinquedos de

miriti encontra-se perdido e disperso no tempo amazônico, todavia, achado e

preservado na memória dos velhos ribeirinhos abaetetubenses que passam anos de

suas vidas em contato com a palmeira, transfigurando-a com muita criatividade cada

parte que a compõe nas inúmeras possibilidades de utilização, no sentido de suprir

as necessidades do seu dia a dia.

Ao conversar com a artesã Dona Nina, a respeito do tempo de existência

do brinquedo de miriti, de quando ela ouviu falar dele e quando ela começou a

confeccioná-los, a resposta foi:

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Já faz muito tempo! Eu fazia desde a idade de 12 anos, eu fazia meus brinquedos de miriti tudinho, minhas bonecas. Eu fazia pra gente brincar, para as crianças brincarem (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Observamos nas recordações de Dona Nina que o início da feitura do

brinquedo de miriti não tem um tempo cronológico fixo e determinado, mas sim é

marcado pela distância de suas lembranças, ou seja, é muito antes de sua

existência e da existência de seus predecessores. A expressão e os gestos da

intérprete ao nos dar essa resposta nos transmitiu a ideia de um convívio natural em

que o tempo inicial se confunde com a própria vida e com a vida de outros que a

rodeiam, por isso é indeterminado, inatingível, distante, desconhecido.

Na vida de Dona Nina, o brinquedo de miriti tem sua marca inicial no

tempo de criança, que é revivido por ela com um sentimento de profunda alegria.

Todavia, a presença dos brinquedos de miriti não está restrita à infância de Dona

Nina, ele marca também a vida de outras crianças e gerações, conforme menciona a

intérprete.

Esse aspecto intergeracional do brinquedo de miriti como um instrumento

das brincadeiras de infância dos abaetetubenses se torna recorrente, também na

voz de Seu Célio ao expressar quando conheceu esse brinquedo:

Eu quando tinha uns 10 anos a gente morava tudo no sítio9. Aí dava essa

água grande, a gente fazia uns barquinhos de miriti, mas não era com tolda, era só o casco, a gente amarrava na canoa e remava, o barquinho vinha lá (refere-se à distância), amarrado no fio. (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Observamos que a fase da infância vivida por Seu Célio se separa do

tempo de criança de Dona Nina, por mais de duas décadas. Esse dado nos permite

perceber que mesmo sendo períodos históricos diferentes e relacionamentos

distintos, estes momentos se encontram e se entrecruzam com a presença marcante

do brinquedo de miriti, tanto na vida de Seu Célio quanto na de Dona Nina.

Nessa direção, encontramos na fala de Seu Adonias a continuidade do

uso do miriti para confeccionar seus brinquedos, quando diz:

Em Paragominas eu brincava com os meus colegas de fazer carrinho de papelão e ía daqui - acho que daqui de Abaetetuba de Belém não sei - um

9 Sítio é uma denominação utilizada no município de Abaetetuba para designar a região das ilhas, zona rural do município.

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doce, era o doce de miriti e ele ia revestido com aquela embalagem de miriti. Aí a gente pegava aquele material macio e colocava algumas pecinhas no carrinho de papelão, algumas peças dessa embalagem que ía o doce, constantemente o papai comprava, a gente achava (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

As palavras de Seu Adonias demonstram que o brinquedo de miriti se

renova e se perpetua, cruzando gerações. Pois, ao estabelecermos um paralelo

entre o período de infância vivido por Dona Nina e a fase experienciada por Seu

Adonias, observamos que eles se separam por um intervalo de mais de quatro

décadas.

Importa observar, ainda, no dizer de Seu Adonias, que ele viveu toda a

sua fase de infância no município paraense de Paragominas. Constatamos, assim,

que a infância vivida e brincada com os brinquedos de miriti não está restrita às

crianças abaetetubenses, pois mesmo não vivendo quando criança em Abaetetuba,

Seu Adonias não deixou de brincar com o brinquedo de miriti.

Na narrativa de Seu Ivan, também podemos evidenciar o uso do

brinquedo de miriti nas brincadeiras das crianças em outro município do Pará, pois

este intérprete viveu sua infância na cidade de Muaná, ilha do Marajó. Ao falar

quando começou a confeccionar o brinquedo de miriti, ele relata suas brincadeiras

de infância:

O que era que nós tínhamos na época de matéria-prima em abundância era a aninga e o miriti. Aí nós íamos brincar bola. Com o filhotão

10 da aninga

11

fazíamos a nossa bola, ela nasce grossa, aquilo é macio a gente cortava e fazia logo dez bolas, porque ela não é muito resistente e aí quando partiam cinco bolas nós mudávamos de campo, também não tinha relógio para controlar e quando acabavam as outras cinco bolas acabava a partida quem ganhou, ganhou. Da aninga não dava para fazer os barcos, mas do miriti dava, a gente fazia uma outra competição que era fazer os barcos de vela e soltávamos na maré aí o vento dava e levava, aquele que corria mais na maré ganhava. Então desde daí a gente veio fazendo pra brincar, cresceu houve a oportunidade de ganhar dinheiro e aos poucos a gente vinha fazendo e ganhando dinheiro, intercalando (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

A fala de Seu Ivan e Seu Adonias nos apresentam indícios de que o

brinquedo de miriti é um instrumento de brincadeira presente em vários municípios

do Pará e da Amazônia, constituindo-se um objeto cultural singular desta região, que

10

Filhotão é uma expressão utilizada pelos ribeirinhos referindo-se ao tamanho, em termos de espessura, do caule da aninga.

11

Aninga é uma espécie da flora amazônica que cresce as margens dos rios, em solos cobertos por água.

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extrapola as brincadeiras da infância tornando-se um produto comercial, como bem

retrata Seu Ivan.

Vale mencionar que outras pesquisas apontam o uso dos brinquedos de

miriti em outros municípios do Pará como indica a pesquisa “Diálogos de Saberes:

processos educativos não escolares e práticas docentes”12, a qual se propõe a

realizar uma cartografia dos saberes inscritos nas práticas sociais cotidianas das

populações das cidades de Vigia, Colares e São Caetano de Odivelas, e analisar

como esses saberes são contemplados, ou não, nas práticas educativas de escolas

formais. As análises iniciais dos saberes do brincar apresentam a utilização dos

brinquedos de miriti nas brincadeiras do tempo de infância dos intérpretes da

pesquisa.

Enfim, observamos nos depoimentos de Dona Nina, Seu Célio, Seu

Adonias e Seu Ivan um percurso histórico do brinquedo de miriti, o qual atravessa

gerações e se mantém não como um objeto imóvel, mas como um brinquedo cultural

movente que acompanha a dinamicidade do tempo presente, sendo reinventado de

acordo com o contexto histórico vivenciado pelos sujeitos que o manuseiam em seu

cotidiano, sejam eles crianças, jovens ou adultos.

Loureiro (1987) atribui a permanência do brinquedo artesanal de miriti

diante do fascínio e predominância dos brinquedos industrializados na sociedade

atual ao caráter lúdico impresso nesse objeto. Em sua mais recente obra que trata

sobre este assunto, Loureiro (2012, p. 81) reafirma esta convicção ao mencionar

que:

Jogar com o brinquedo de miriti não é brincar com o controle remoto. Não há botões intermediários. Não são sistemas competentes autônomos. Depende de manipulação direta. Torna-se extensão da mão e da imaginação, não torna a criança espectadora, mas um ator no processo. O brinquedo de miriti não manipula a criança! É a criança que o manipula. Paradoxalmente, a criança tem o devir duplicador dela mesma; e o adulto, paradoxalmente, experimenta o seu devir criança.

Coadunamos com o posicionamento de Loureiro (1987; 2012) por

entendermos que a ludicidade é uma dimensão da vida humana presente não só na

fase da infância, mas em todas as etapas da vida, caracterizando-se pela alegria,

12

Esta pesquisa, na qual me integro como acadêmica, está sendo desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, da UEPA, em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).

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pelo prazer e pela liberdade de espírito. Nesse sentido, o brinquedo de miriti por

proporcionar e despertar esses sentimentos em quem o faz e o recebe,

independente da idade, encanta e segue seu curso na história, independente de

modismos momentâneos, firmando-se por sua singularidade, regionalidade e

universalidade de brinquedo.

Assim, as recordações das experiências vividas pelos quatro intérpretes

desta pesquisa, analisadas nesta subseção, expressam uma parte da história do

caboclo paraense e dos brinquedos de miriti que não está registrada nos

documentos escritos. Contudo, é possível conhecê-la ouvindo aqueles que já

viveram mais do que nós, os quais, possivelmente, escutaram de seus

predecessores e assim sucessivamente. Dessa maneira, concluímos que, pela

oralidade, podemos construir e reconstruir a história de um povo, como bem

menciona Ecléa Bosi (1994).

Portanto, notamos que os brinquedos de miriti inicialmente eram feitos

pelas crianças ribeirinhas para suas brincadeiras, tornaram-se um bem cultural e

uma fonte de renda. Atualmente, no aspecto econômico, o brinquedo de miriti é a

base de sustentação de muitas famílias abaetetubenses, seja como complemento da

renda familiar ou como única fonte financeira. Na próxima seção, continuaremos a

história deste objeto como produto cultural e comercial.

3.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: A COMERCIALIZAÇÃO DE UM BEM CULTURAL

Então desde daí a gente veio fazendo pra brincar, cresceu houve a oportunidade de ganhar dinheiro e aos poucos a gente vinha fazendo e ganhando dinheiro, intercalando (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Esta afirmativa do Seu Ivan nos mostra que ao se tornar um produto

comercial, o brinquedo de miriti continua proporcionando ao homem adulto o prazer

da infância, pois, ao confeccionar o brinquedo, o artesão intercala o prazer de

brincar na fase adulta com o trabalho e a necessidade de sustentação financeira.

Como produto comercial, conforme mencionamos nas páginas iniciais

desta dissertação, há o registro do brinquedo de miriti no primeiro Círio de Nossa

Senhora de Nazaré, em Belém, no ano de 1793, por ocasião da realização de uma

feira de produtos dos municípios do Estado do Pará. A feira do brinquedo de miriti

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......53

permanece atrelada aos festejos da Santa, ocorrendo anualmente na semana que

antecede o Círio.

Ao perguntarmos para os artesãos intérpretes desta pesquisa a respeito

de quando e onde começaram a comercializar os brinquedos de miriti, todos são

unânimes em responder que iniciaram a venda na feira do Círio de Nazaré, em

Belém. A esse respeito fala Dona Nina:

Eu comecei ir pra Belém, eu levava uns rapazes pra vender comigo. Eu ainda era solteira. Tinha um rapaz que levava a gente andando com o brinquedo, ai ele ia só me dando o dinheiro, eu fiz um bolso por dentro da minha blusa, quando eu olho para o lado eu vi um com uma peixeira na minha costela me mandando entregar o dinheiro, a minha salvação é que tinha um oficial da marinha só corri para o lado dele, olha esse cara quer me roubar, ele pôs ele pra correr, mas de vez em quando ele aparecia no Círio, ele fazia assim pra mim (gesto com a mão), como tu me paga. Olha eu passei quatro anos que eu não fui lá vender meus brinquedos. Só agora que vou a Belém, com medo de andar a pé e ainda me marcar (risos) (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Podemos observar, ainda nesta narrativa, os problemas enfrentados para

comercializar seus brinquedos de miriti, principalmente a questão da insegurança é

bem visível. Seu Adonias também se reporta a esse aspecto, ao falar do período

que iniciou a vender os brinquedos de miriti:

A primeira feira que vendi foi em Belém, na Praça do Carmo que ainda não tinha nenhuma estrutura como tem hoje, não é como é hoje que tem toda uma estrutura, uma coberta, todo um conforto para os artesãos. Antes quando eu participei, não lembro exatamente o ano, mas foi ainda coberto com lona a gente levava a lona e o papelão e quando chovia a gente cobria o brinquedo e ficava debaixo da lona até passar a chuva (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Entendemos que Seu Adonias, ao estabelecer um paralelo entre o estado

anterior e o atual da infraestrutura da feira para vender os brinquedos, retrata mais

uma das dificuldades enfrentadas pelos artesãos, a qual foi sanada com o passar

dos anos.

Nas conversas que tivemos com os artesãos, eles atribuem esses

melhoramentos ocorridos nos últimos anos à organização da Asamab, o que os

possibilitou firmarem parcerias com o poder público em várias esferas e com

empresas privadas. A narrativa de Seu Célio é reveladora dessa questão:

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A associação é muito importante. Porque a gente, de primeiro, ía para Belém nós era parece um mendigo. Ía com aquele bocado de material. Levava o plástico, fazia a casa naquela praça. E agora não, é cobertura mesmo especial que a gente fica embaixo, eles fazem a feira com a gente tudo organizado mesmo, então a gente não fica mais como mendigo, melhorou muito, muita coisa melhorou pra nós, artesãos. (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Seu Célio reconhece que o estabelecimento de uma entidade jurídica

representativa do grupo facilita o processo de luta e conquista de melhorias nas

condições de trabalho e em outros aspectos para o grupo como um todo. A Asamab

é uma entidade jurídica que tem como objetivo primeiro “contribuir para o estímulo e

racionalização das explorações artesanais de brinquedos e artesanatos de miriti e

para melhorar as condições de vida de seus associados” (ESTATUTO ASAMAB,

2003, p. 1). Esta entidade favoreceu a expressividade e representatividade dos

artesãos junto aos poderes instituídos, facilitando a captação de recursos,

financeiros ou não, para o desenvolvimento de projetos tais como o “Miritifest” e o

“Projeto de Artesanato de Miriti de Abaetetuba”.

O “Miritifest” é realizado há nove anos e recebe apoio, parceria e

patrocínio de entidades públicas governamentais e não governamentais e do setor

privado. O objetivo deste festival é contribuir para o desenvolvimento cultural,

econômico e social do município de Abaetetuba, através do fortalecimento

sustentável dos arranjos produtivos da palmeira de miriti, proporcionando alavanca

econômica no que concerne o comércio, turismo, cultura e artesanato favorecendo

os produtores e suas famílias (PROJETO 8º “MIRITIFEST”, 2011, p. 3). Em 2009, o

“Miritifest” passou a ser considerado Patrimônio Cultural do Estado do Pará por

representar as tradições populares, conforme abordamos na primeira seção desta

dissertação.

Com o Festival, ampliou-se o potencial mercadológico e turístico dos

brinquedos de miriti. As imagens abaixo nos mostram uma apresentação cultural e

os espaços de exposição e venda do artesanato de miriti por ocasião do “8º

Miritifest”.

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Foto 07: Palco central de apresentações do “8º Miritifest”. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

Foto 08: Espaço de exposição e venda do artesanato de miriti no “8º Miritifest”.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

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Foto 09: Espaço de exposição e venda do artesanato de miriti no “8º Miritifest”.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo, Maio/2011.

O “Projeto de Artesanato de Miriti de Abaetetuba” objetiva promover o

aumento da comercialização do artesanato de miriti. É desenvolvido pelo Sebrae/PA

– Regional Tocantins, em parceria com a Asamab. Este projeto atende noventa e

cinco empreendimentos formais (SEBRAE/PA, Relatório de atividades, 2010, p. 1).

As ações deste projeto estão voltadas para a assessoria técnica aos artesãos no

sentido de possibilitar o maior acesso ao mercado e, consequentemente, o aumento

nas vendas de seus produtos. Entre estas ações, está o incentivo e o apoio na

organização e participação dos artesãos em feiras; a realização de cursos de

capacitação voltados para a melhoria da qualidade dos objetos; e, a gestão da

unidade produtiva. Dona Nina, Seu Célio e Seu Ivan expressam, em seus

depoimentos, a importância dos cursos de capacitação promovidos através desse

projeto:

Era muito importante pelo menos para esses que não tem estudo, eles ficavam, explicavam. Veio aquele curso pra pessoa fazer orçamento, o que gasta, o que deixa de gastar, para pessoa saber dá o preço dos brinquedos para não ter prejuízo (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

A técnica a gente aprende, a maneira de lixar, de você selar o produto, a maneira de você armazenar o miriti, como secar o miriti em algumas consultorias que o Sebrae dá, por sinal foi de grande importância para o artesanato de miriti em Abaetetuba (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

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Olha a gente tem muito curso do Sebrae, curso que a gente faz de embalagem, de venda. Eu tenho aí cinco diplomas. Tem gente que quer, por exemplo, um móbile desses na embalagem de miriti. Aí a gente faz a embalagem. Foi muito bom o curso pra gente (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Ainda relacionado ao aspecto comercial e turístico do brinquedo de miriti,

vale destacar a instalação do “Centro de Artesanato e Cultura do Miriti”. Este espaço

funciona desde abril de 2010, com atendimento ao público de segunda-feira a

sábado, durante o horário comercial.

Foto 10: “Centro de Artesanato e Cultura do Miriti”.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Abril/2011.

Além disso, é importante mencionar que mais do que um espaço

destinado à produção, à negociação, à venda e à troca de produtos, o “Centro de

Artesanato e Cultura do Miriti” constitui-se em um lugar de cultura, identidade e

educação, onde há permuta de saberes e aprendizagens entre as pessoas que

convivem e frequentam este local, sejam abaetetubenses ou não.

Em síntese, a fundação da Asamab, a realização do “Miritifest”, a abertura

do centro de referência comercial do artesanato de miriti em Abaetetuba, os cursos

de capacitação para os artesãos, a ampliação da divulgação do artesanato de miriti

com a possibilidade de participação em feiras nacionais e internacionais, somados a

outros fatores, criaram um cenário favorecedor à produção regular deste objeto,

deixando de ser esporádica e eventual, como vinha ocorrendo. Seu Ivan nos fala

sobre esse assunto:

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Além dos dois eventos que se promove que é o “Miritifest” e o Círio as outras parcerias que a gente consegue é muito importante porque o artesanato não é só “Miritifest” e Círio, todo tempo se trabalha. Tem muitos que trabalham só para o Círio e “Miritifest”, mas outros como eu trabalha o tempo todo porque há feira o tempo todo. Trabalhamos todos os dias, porque é assim, vai acontecer agora a partir de segunda feira (19/03) a semana do artesão lá no São José Liberto vamos estar lá também dando oficina, quando for no domingo (26/03), tem a Feira do Arraial do Pavulagem na Estação das Docas também o artesanato de miriti vai estar lá, todos os lugares que da pra encaixar o artesanato a gente vai fazendo isso para ganhar algum dinheiro. (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

As palavras de Seu Célio reforçam as de Seu Ivan ao se reportar acerca

de sua renda familiar, proveniente do trabalho com o brinquedo de miriti:

Minha renda vem só do miriti. A gente tem quatro pontos de venda em Belém, um no Rio de Janeiro e um aqui em Abaeté. Assim a gente vai vivendo. Em feiras a gente tem muitos contatos, a gente leva o cartão da gente aí vem o freguês a gente dá o cartão, mas aonde nós divulgamos muito nosso brinquedo foi quando o pessoal da Viradouro veio aqui em Abaeté encomendar brinquedos para o carnaval. Nós fizemos casas enormes, barcos, muitos brinquedos pra eles. Foram 28.000 brinquedos que a Viradouro levou daqui. Isso foi pela associação. Mas divulgou muito. Quando a gente vai em feiras, a gente é muito elogiado aí pra fora (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos)

As falas dos dois intérpretes nos permitem visualizar o processo de

expansão da comercialização do brinquedo de miriti nos últimos anos, fato que está

ocasionando uma mudança gradativa no processo de produção ao tornar-se regular.

Produzido também na zona urbana do município de Abaetetuba, e não somente na

área das ilhas, ele se torna a principal fonte econômica de sustentação de muitos

núcleos familiares e continua sendo um complemento de renda para outros.

Todavia, para além da comercialização, o brinquedo de miriti é antes de

tudo um bem cultural e educativo da região, através do qual o caboclo artesão

traduz sua marca pessoal e intransferível na história da educação abaetetubense e

Amazônica.

Em suma, a reconstituição de momentos da história do brinquedo de

miriti, típico do Pará, principalmente do município de Abaetetuba, nos mostra a

significabilidade histórica e cultural da palmeira e suas variadas formas de utilização

no cotidiano ribeirinho. É uma espécie da flora Amazônica que permite ao caboclo

brincar com sua criatividade e transformá-la conforme sua necessidade. Nas

palavras de Dona Nina:

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O miriti é considerado algo de santo, porque é do grelo a raiz tudo serve dele. Corta o braço do miriti fica aquela folha que o pessoal do interior estende e usa pra fazer quaradores de roupas, não estragou nada, aí vem o fruto a senhora faz doce, faz vinho, até shampoo agora tão fazendo. Aquela massa que fica depois de tirar o vinho dá para criar porco, pra porco comer. O caroço de dentro tem uma empóra que é parece um coco, é duro, aquilo dá pra fazer um artesanato que é uma beleza, a pessoa faz chaveiro. Aquela florzinha dá pra fazer brinco e enfeites. Quando corta o miritizeiro serve de estiva nos interiores e quando apodrece faz aquele xaxim que é de colocar plantas. Então quer dizer que até morrer ele serve. Aí corta o braço do miriti, tira a tala que é aproveitada para fazer as cestas, o grelo do miriti aquela ponta é cortada e faz a envira, a envira é que faz a maqueira, rede, é daquela envira que a gente tira uma outra envira que é fininha, carauá que a gente chama, ela é forte que não arrebenta de jeito nenhum, fica fino aquilo a gente enfia até na agulha com isso a gente faz a bijuteria. A tala que sai da envira é que faz o rabo do foguete em vez de jogar fora. Aquela costa que a gente tira do miriti se aproveita pra fazer o teto das casinhas. Qualquer pedacinho do miriti serve pra gente fazer alguma coisa, por exemplo, um braço de um boneco (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

É assim que a Mauritia flexuosa deixa de ser uma espécie a mais, com

suas funções naturais em meio às milhares que compõe a fauna amazônica

paraense, e passa a ser e ter uma história vinculada à história de vida dos

abaetetubenses. Da infância à fase adulta, o convívio com a palmeira e seus

derivados extrapola a satisfação de necessidades restritas a uma etapa da vida

humana. É o que acontece com os brinquedos feitos da bucha do miriti, os quais,

para além de um instrumento das brincadeiras de infância, revelam no adulto a

criança, ou melhor, o caráter lúdico que permanece nele, mas que, pelas

circunstâncias vividas, talvez estivesse adormecido.

Enfim, existem coisas que não conseguimos expressar somente com

palavras, precisamos de gestos, imagens ou outras formas de comunicação para

enriquecer o diálogo. Na próxima subseção apresentamos, por meio de imagens, a

palmeira do miriti e suas possibilidades de utilização no cotidiano ribeirinho

abaetetubense.

3.4 BRINQUEDOS DE MIRITI: AS IMAGENS DE UMA ARTE CABOCLA

Proponho um hiato de silêncio para que se aguce a percepção destes rostos, olhares, formas, texturas, planos, cores e volumes, que formam também o mundo, pois são manifestações visíveis das culturas. Um pouco de abordagem visual que venha enriquecer o verbo e que venha enriquecer também nossos diálogos, nossa maneira de formular conceitos, de perceber e narrar as experiências que não estejam disponíveis às palavras (ACHUTTI, 1997, p. XXXIV).

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A afirmação de Achutti (1997) converge com nosso posicionamento

acerca da utilização das imagens nesta dissertação. Apresentamos nesta subseção,

vinte e três fotografias capturadas no percurso da pesquisa, a fim de complementar

e enriquecer as palavras, bem como possibilitar a visualização de um olhar acerca

de um patrimônio natural, cultural e artístico do Pará, e particularmente, de

Abaetetuba.

A primeira imagem mostra a palmeira Mauritia flexuosa na área de

várzea, região das ilhas de Abaetetuba. Normalmente, o miritizeiro se destaca por

sua altura em meio ao emaranhado de outras espécies e aparenta uma certa

imponência diante das demais. É a fonte da matéria-prima para inúmeros objetos,

entre eles o brinquedo confeccionado da bucha do miriti.

Foto 11: Palmeira de miriti às margens do rio Cuitininga/ Abaetetuba

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio /2012.

Nas duas imagens abaixo, podemos visualizar a folha do miritizeiro e o

ribeirinho cortando a folha para retirar a palma ou bucha do miriti.

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Foto 12: Folhas de miriti Fonte: Valdeli C. Alves. Arquivo pessoal.

Foto 13: Ribeirinho cortando a folha do miritizeiro para retirar a palma. Fonte: Valdeli C. Alves. Arquivo pessoal.

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A imagem 14 nos apresenta a palma de miriti em processo de secagem

para ser comercializada entre os artesãos de brinquedos de miriti.

Foto 14: Palma de miriti em processo de secagem.

Fonte: Valdeli C. Alves. Arquivo pessoal.

A palma do miriti, armazenada na oficina, seca e pronta para ser lapidada

pelas mãos do artesão, que a transforma em inúmeros tipos de brinquedo; é o que

apresenta as imagens 15 e 16.

Foto 15: Palma do miriti armazenada na oficina.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

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Foto 16: Palma do miriti pronta para ser transformada em brinquedos.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

Arte, saber, habilidade, imaginação, criatividade, sentimento, um olhar

sobre si, sua vida e o mundo, os sonhos e a experiência de um artesão

materializados em forma de barcos, canoas, pássaros, cobras, personagens de

programa televisivos infantis, escudo de clube de futebol e outros. É o que nos

apresentam as próximas seis imagens.

Foto 17: Artesão Célio confeccionando brinquedos de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2012.

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Foto 18: Brinquedos de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2012.

Foto 19: Barcos de miriti prontos para venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2012.

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Foto 20: Pássaros e dançarinos de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2012.

Foto 21: Arara, escudo de clube esportivo, girandeiros e enfeites de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Outubro/2011.

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Foto 22: A turma do Chaves confeccionada em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Outubro/2011.

A imagem a seguir é a representação do girandeiro, ou seja, o vendedor

de brinquedos de miriti que leva a arte cabocla para ser comercializada e

manuseada por outras tantas mãos.

Foto 23: Vendedor de brinquedo de miriti no Círio de Nossa Senhora da Conceição, em Abaetetuba.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Dezembro/2011.

Além do brinquedo, a palmeira também tem outras atividades, como já

mencionamos anteriormente, e agora apresentamos em imagens. Na imagem

seguinte, o miritizeiro é a extensão da casa ribeirinha até o encontro com as águas

do rio. É caminho flutuante sobre a água. É o porto, a entrada da palafita.

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Foto 24: Casa ribeirinha utilizando o miritizeiro como porto. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2012.

As três imagens abaixo apresentam elementos oriundos da palmeira, o

miriti fruto, que é consumido diretamente ou transformado em vinho13, licor, doces e

outras delícias da culinária paraense

.

Foto 25: Miriti fruto

13

Vinho é a expressão utilizada em Abaetetuba para designar o suco de miriti, o qual é consumido com farinha de mandioca junto com as refeições ou em mingaus.

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Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2012.

Foto 26: Mingau de arroz com vinho de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

Foto 27: Derivados do fruto e da palma do miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

Adornos, como chapéus, chaveiros, brincos, bolsas e enfeites para

residências, escritórios e outros ambientes também se faz de miriti, como vemos nas

cinco imagens abaixo.

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Foto 28: Bolsas da fibra do miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

Foto 29: Brincos e chaveiros de miriti. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

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Foto 30: Chapéu de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo, Maio/2012.

Foto 31: Flores, abajur e enfeites de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

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Foto 32: Molduras de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Maio/2011.

Um sentimento de gratidão, uma devoção, uma fé, a religiosidade

cabocla, suas lutas e conquistas estão expressos na imagem abaixo, a qual

apresenta um menino pagando promessa carregando na cabeça uma casa

confeccionada em miriti na procissão do Círio de Nossa Senhora da Conceição,

pelas ruas da cidade de Abaetetuba.

Foto 33: Promesseiro no Círio de Nossa Senhora da Conceição, em Abaetetuba.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Dezembro/2011.

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Enfim, as imagens e as memórias que nos possibilitaram reconstruir

momentos da história do brinquedo de miriti, e a relevância desse objeto e da

própria palmeira, fonte da matéria-prima, nos permite concluir que homens e

mulheres, caboclos abaetetubenses, no contato com a natureza e, em particular,

com a palmeira Mauritia flexuosa a transformam e criam uma cultura, estabelecem

laços identitários, socializam saberes e constroem uma história singular.

Na próxima seção, analisaremos esse patrimônio cultural imaterial a partir

dos dados coletados na pesquisa, com vistas a elucidar os saberes inclusos no

processo de feitura e suas interfaces com a cultura, a educação não escolar e a

identidade amazônica.

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4 BRINQUEDOS DE MIRITI DE ABAETETUBA: SABERES CULTURAIS,

IDENTIDADE E EDUCAÇÃO

Primeiro recolocar nas pálpebras o olhar da infância. A leveza, a pureza do primeiro brinquedo de criança. Depois escolher um floco de nuvem. O mais macio que puder. De preferência com a fofura da ternura. Pacientemente, esperar que uma vaga noite traga um pedaço de lua cintilante. Retirar da bainha do luar a lâmina amolada. Afiar a meia lua na delicadeza, para não cortar os dedos quando usá-la. Feito isso, levar tudo à casa da memória, aonde a infância espera com o segredo da poesia, embalando-se numa rede tão alva como garça de asa aberta. E começar a sonhar. É importante sonhar, mas acordado. [...] Que o casal de bonecos abraçados se abracem por amor; o soca-soca triture no pilão a tristeza e a injustiça; [...]. Finalmente, chamar o Anjo da Guarda. Entregar a ele uma giranda completa de brinquedos de miriti para que leve depressa ao Deus Menino, que ele há de sorrir pensando que é Natal (LOUREIRO, 2012, p. 13).

Brandão (1995a, p. 7-13) afirma que a educação acontece em todos os

espaços onde os seres humanos interagem entre si e com os demais elementos da

natureza. Ressalta, ainda, que todos somos e estamos envolvidos com a educação,

pois que ela é parte constitutiva da nossa vida. Assim, nenhum ser humano escapa

do ato de ensinar e aprender em todo e qualquer lugar. Partindo dessa premissa,

buscamos mostrar nesta pesquisa que as fases componentes do processo de

confecção do brinquedo de miriti são abastecidas por saberes. Portanto, as oficinas

onde ocorre a feitura destes objetos, são espaços de fazeres, saberes e

aprendizagens, bem como o mestre artesão é um socializador de conhecimentos,

com sua arte, constrói a cultura e a educação em Abaetetuba.

Nesta seção, apresenta-se a análise dos dados obtidos com os quais

tecemos interlocuções teóricas entre autores como Bosi (1992), Brandão (2002;

1995a; 1995b), Canclini (2008), Charlot (2000), Geertz (1989), Hall (2002), Loureiro

(2012; 1995; 1989), Santos (2010; 1997) dentre outros; cujas proposições

epistemológicas acerca dos conceitos de cultura, cultura e identidade Amazônica,

saberes e educação não escolar, sustentam nossas reflexões de forma a reconhecer

os saberes inclusos no processo de feitura do brinquedo de miriti e elucidar as

práticas educativas que permeiam esse processo, correlacionando com a cultura e a

identidade abaetetubense e, por extensão, a paraense e a amazônica.

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Para melhor estruturação, subdividimos esta seção em quatro subseções.

Na primeira subseção, com o título “Artesãos dos brinquedos de miriti: quem são?”,

sintetizamos aspectos da história de vida dos três artesãos e da artesã intérpretes

desta pesquisa. Na segunda subseção, intitulada “Oficina de brinquedos de miriti:

um lugar de fazeres, saberes e educação”, descrevemos a infraestrutura física das

oficinas de confecção dos brinquedos de miriti, especificamente as de propriedade

dos artesãos intérpretes deste estudo. Na terceira subseção, denominada

“Brinquedos de miriti: uma teia de conexões” e na quarta subseção “Educação em

Abaetetuba: onde acontece?”, analisamos os dados obtidos nesta pesquisa, tecendo

os fios teórico-conceituais, buscando responder aos questionamentos levantados e

concretizar os objetivos propostos nesta dissertação.

4.1 ARTESÃOS DOS BRINQUEDOS DE MIRITI: QUEM SÃO?

Ele é a história das suas mãos. A palavra que se escreve no imaginário de uma palmeira. Várias gentes, uma árvore. Ele escreve a si mesmo nas braças de um miriti. Escreve as suas lutas. Escreve o seu mundo. Escreve a sua vida. (LEITE, 2009, p. 09).

A intérprete-guia desta pesquisa, a Srª. Nina Mary Abreu da Silva, nasceu

no dia 11 de setembro de 1935, na cidade de Abaetetuba, onde foi criada e continua

residindo. Está com 76 anos de idade. É filha de pais abaetetubenses, os quais lhe

concederam nove irmãos. Dona Nina é mãe de três filhos biológicos, destes, dois

trabalharam com ela no artesanato de miriti, e cinco filhos adotivos.

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Foto 34: Nina Mary Abreu da Silva

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Setembro/2011.

Dona Nina estudou até a 5ª série ginasial e nos contou que não

prosseguiu seus estudos por não ter em Abaetetuba as series seguintes e, quando

teve a oportunidade de continuar, optou pelo trabalho para auxiliar na renda familiar.

Esse período de vivência escolar é rememorado por Dona Nina com grande

entusiasmo ao contar as suas aventuras com os colegas na sala de aula, nos dias

de provas, apresentações e entrega de trabalhos, no caminho de ida e volta de casa

para a escola e em tantos outros momentos.

Ainda dessa fase, recorda da contradição entre a visão de seu pai acerca

das filhas aprenderem a ler e escrever e o esforço de sua mãe para matriculá-las em

uma escola. Nos fala, em meio a muitos risos:

O papai tinha aquela coisa de não mandar a gente estudar pra não escrever para namorado (risos). Mamãe que se interessava, botava a gente na escola nesse tempo (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

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Seu aprendizado e habilidade no trato com o miriti não aconteceu na

escola e sim em casa, com seus familiares, pois nos informou que na escola,

naquela época, não se estudava nada relacionado a esse assunto. O

relacionamento Dona Nina com a arte e com os eventos culturais da cidade de

Abaetetuba, vem de sua fase de infância e percorrem toda a sua trajetória de vida.

Ela nos fala dessa íntima relação com satisfação e orgulho de desenvolver essas

atividades.

Eu nasci nesse meio fazendo festa, despacho, cordão de pássaro,... Eu tinha uma noite na semana de arte. Eu organizava os grupos folclóricos. A noite inteirinha tinha gente dançando. Era o Abaeté Cana (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Dona Nina se agradava tanto em participar e realizar eventos, a ponto de

transpor as regras de conduta que sua mãe lhe determinava. Entre tantas proezas

relembradas, apresentamos abaixo duas das quais ela narrou expressando, ao

nosso olhar, um sentimento de menina que reconhece que está “fora da lei” e que

valeria e valeu a pena arcar com as consequências. Sorrindo bastante ela nos diz:

Eu fugia da mamãe pra ir pra esse programa de calouro, quando comecei a cantar. Eu não tinha o que fazer eu fazia salada de baião e cantei. Eu sou considerada a rainha do baião daqui de Abaetetuba. Festa eu dançava muito, uma vez eu fiz uma fantasia escondida da mamãe, eu não podia ir, porque eu estava doente da garganta, eu trabalhava por minha conta, comprei o pano e fiz a fantasia. Mamãe saiu e eu vesti a fantasia de máscara, eu era a lua e meu irmão o sol. A máscara cobria todo o meu rosto, só tinha o buraco do olho, toda mão de luva, de meia, de tudo. Quando a gente entra na Sede do Abaeté, surpresa! A mamãe bem na frente assim (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Os risos não param, no entanto, um semblante de tristeza aparece em

seu rosto ao rememorar as festas de carnaval que participava em comparação com

as que ocorrem em Abaetetuba nos dias atuais. Continua Dona Nina:

Carnaval a gente enfeitava a casa com uma sombrinha, cortava papel, a gente fazia umas máscaras de pano que cortava os pedacinhos do olho e era orquestra daqui pra li quando começava ele abraçava com a mulher dos outros sem saber quem era quem. Quando tirava as máscaras era muito bacana (muitos risos), mas agora a gente já tem medo de fazer. É disso que eu tenho saudade (risos). Você sabe do que mais eu tenho saudade aqui: é desfilar dia 7. Eu acho tão bonito que todo ano eu desfilava dia 7 de setembro (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

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Saudade dos tempos de juventude que não voltam mais, todavia, são

revividos nas lembranças. As últimas narrativas reproduzidas nos mostram, ainda, a

habilidade artística criadora de Dona Nina, e ela reforça isso ao dizer: “de cada coisa

eu sei um pouco”. Entre essas “coisas” está a sua grande habilidade em manusear e

transformar a palma do miriti em inúmeros formatos de brinquedos e outros objetos

artesanais. Aos 12 anos de idade, esta intérprete já fazia artesanato de miriti. Nestes

64 anos de atividade, Dona Nina destacou-se por sua singular e admirável

capacidade inventiva e artística, sendo hoje referência no município como artesã de

brinquedos de miriti.

Observamos nas conversas que tivemos com Dona Nina que o ato de

fazer produtos artesanais, especialmente brinquedos, é muito mais do que uma

tarefa a ser realizada para complementar sua renda familiar; tanto que no período

desta pesquisa, por problemas de saúde ela não estava trabalhando em sua oficina,

mas fazia os brinquedos no próprio quarto, como o passatempo predileto.

Dona Nina Abreu é sócia e fundadora da “Associação dos Artesãos de

Brinquedos e Artesanatos de Miriti de Abaetetuba” (ASAMAB), da qual fez parte da

diretoria e continua sendo membro. As marcas do tempo já vivido, esculpidas em

seu corpo, não lhe permitem mais frequentar assiduamente as reuniões nem

participar de todas as ações promovidas pela entidade.

Enfim, estes são alguns fragmentos das experiências que marcaram a

vida de Dona Nina e constituem sua contribuição para a história da cidade de

Abaetetuba e do brinquedo de miriti. Este objeto é um elo entre a história de vida

desta intérprete e a do artesão Sr. Célio, também intérprete desta pesquisa.

O Sr. Célio Vilhena Ferreira nasceu no município de Abaetetuba, na

região das ilhas, rio Belchior, no dia 28 de maio de 1958, está com 53 anos. Aos 12

anos de idade, ficou órfão de mãe junto com mais cinco irmãos, os quais ficaram sob

os cuidados do pai até este casar-se novamente e junto com sua segunda esposa

continuarem a criação desses filhos e dos seis novos que foram gerados.

Ao rememorar esta etapa de sua vida, Seu Célio expressa profunda

tristeza pela perda e ausência da sua mãe, o que lhe gerou uma série de

dificuldades, todavia, agradece muito a Deus pela vida de seu pai e sua madrasta

com a qual sempre teve e tem uma relação de respeito e carinho e a considera sua

nova mãe chamando-a por essa denominação.

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Foto 35: Célio Vilhena Ferreira.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2012.

Ao indagarmos sobre a profissão de seus pais, Seu Célio nos conta que

sua mãe era doméstica e seu pai, diz ele:

Era marreteiro de frutas, de criação, a gente ía lá pro Cuitininga e Camarãoquara

14 apanhar jambo, manga, comprar frutas, comprar planta.

Ele dava duas viagens por semana em Belém pra ir vender os bagulhos dele (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

A necessidade de começar a trabalhar, ainda adolescente, junto com os

pais para auxiliar no sustento da família, foi um dos fatores que contribui para que

Seu Célio não prosseguisse sua formação acadêmica. Ao falar desse assunto, o

intérprete elenca suas dificuldades tecendo um comparativo com os dias atuais:

Eu estudei só até a 5ª série, porque eu ajudava meu pai com a minha mãe, eu pescava muito, colocava matapi pra acabar de criar os meus irmãos. Eu morava no sítio. Eu ía e vinha todos os dias. Teve muita dificuldade, porque naquele tempo não tinha embarcação como tem agora, pega embarca na rabeta

15 ou no rabudo

16 e chega rápido aqui em Abaeté. De

primeiro não... era só a remo, eu levava 40 minutos pra chegar e 40 pra

14

Rio Cuitininga e Rio Camarãoquara são afluentes do Rio Tocantins e importantes rios navegáveis do município de Abaetetuba, às suas margens habitam várias famílias ribeirinhas.

15

Embarcação pequena, sem toldo, com motor fixo. 16

Embarcação menor que a rabeta sem motor fixo.

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voltar. Tinha tempo que a gente chegava na beira17

tinham roubado a canoa, o remo da gente, aí a gente ficava na mão (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Mesmo não tendo prosseguido os estudos na escola formal, Seu Célio

reconhece a relevância desta formação na vida da pessoa na sociedade atual.

Quando se refere à importância desta instituição, nos diz:

É muito importante, eu fico olhando pra uma neta minha ela vai completar sete anos ela pega qualquer livro e lê. Eu não tenho muito estudo, mas eu viajo muito por aí, eu tenho vergonha do pessoal, eu não leio bacana, sabe? Eu fico acanhado. Que a gente não teve tempo para estudar (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Também nos fala a satisfação e orgulho que sente em ver seus seis filhos

todos “formados”, no dizer do intérprete, ou seja, com Ensino Médio completo, haja

vista que aos 23 anos de idade, Seu Célio mudou-se da zona rural para a cidade de

Abaetetuba, visando oportunizar aos seus filhos a educação escolar.

Entretanto, a escola não lhe ensinou a manusear o miriti e esculpir na

palma as inúmeras peças de brinquedos que confecciona, como ele mesmo nos

conta: “Não, nem pensava nisso, só era mesmo tirar do quadro, lê um pouquinho e

copiar” (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Sua relação com os brinquedos de miriti vem desde a sua infância,

quando fazia seus barcos para brincar, conforme apresentamos na narrativa que

descrevemos na terceira seção desta dissertação. Já adulto, seguiu a profissão de

carpinteiro e sonhava em ter seu próprio negócio, como nos narra:

Quando eu saía pro meu serviço de madrugada pra ir pro Conde18

eu pedia pra Deus me dá um serviço meu mesmo pra eu trabalhar, pra eu não viver humilhado, porque a gente empregado pro outro a gente só anda humilhado nas mãos dos outros e graças a Deus apareceu o artesanato de miriti (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

O convívio com seu irmão, que também é artesão de miriti, e o incentivo

que Seu Célio recebia do mesmo para trabalhar com este tipo de artesanato foi um

fator determinante na mudança de profissão e realização do sonho. A troca de

experiências com o irmão lhe possibilitou somar um novo aprendizado no trato com

17

Refere-se à frente da cidade, às margens do rio Maratauíra. 18

Refere-se à Vila do Conde – especificamente a área do complexo industrial Albras/Alunorte – localizada no município de Barcarena, Estado do Pará.

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a matéria-prima, bem como, o aperfeiçoamento das técnicas de manuseio do miriti.

Assim, Seu Célio cria, há 25 anos, sua unidade de produção de brinquedos de miriti

e passa a dedicar-se a essa atividade artesanal, de onde provém sua renda familiar.

Atualmente, Seu Célio é sócio e fundador da Asamab, da qual já foi

membro da diretoria no Conselho Fiscal. Trabalha em sua oficina juntamente com

sua esposa, seus filhos e outros familiares, com os quais ensina e aprende a arte e

os saberes dos brinquedos de miriti. Do brinquedo da infância à concretização dos

sonhos de adulto, Seu Célio expressa o sentimento de realização pessoal e

profissional ao dizer que:

Pra mim o miriti significa muita coisa, nem fale até! Quando eu não tenho esse material pra trabalhar eu fico até doente, sem jeito, não paro na casa, porque é de onde eu vivo com minha família, graças a Deus. Tudo o que eu tenho aqui é tudo do miriti. Esse ano eu vou levantar minha casa de alvenaria se Deus quiser. Meu sonho é esse (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Enfim, é na busca da realização e da socialização de sonhos, por meio do

trabalho de confecção dos brinquedos de miriti, que a história de vida de Seu Célio

se encontra com a de Seu Ivan Teixeira Leal, o qual faz parte desta pesquisa como

intérprete.

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Foto 36: Ivan Teixeira Leal.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Março/2012.

Nascido na localidade de Guajará-Miri, ilha do Marajó, município de

Muaná, Estado do Pará, no dia 29 de março de 1969. Seu Ivan, em sua trajetória de

vida, morou em vários municípios do Estado do Pará e, no ano de 2003, migrou para

Abaetetuba, fixando sua residência na zona rural (terra firme), Distrito de Vila de

Beja, ramal do Pirocaba. É casado e pai de um casal de filhos.

Proveniente de uma família numerosa, este intérprete foi criado pelos pais

junto com mais 15 irmãos. Ao falar da profissão de seus pais, relata que sua mãe

era doméstica e seu pai, conforme ele mesmo diz:

Trabalhava com vendas. Era marreteiro, nós tínhamos uma canoa e colocávamos o camarão e o açaí e trazíamos pra Vila do Conde e vendia. O camarão a gente vinha vendendo no Arienga, Arapiranga, Guajará de Beja e trocando por frutas que levávamos pra ser vendida no Marajó, que lá não tinha muitas frutas que havia aqui como piquiá e castanha (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Seu Ivan nos fala orgulhoso de suas origens, porém, sente-se triste em

não poder responder a respeito de sua etnia, principalmente quando viaja para

participar de feiras em outros Estados. Muitas pessoas o indagam a esse respeito e,

ele reponde:

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Eu sou descendente de índio, mas eu não sei responder minha etnia porque meus pais perderam. Mas eu acredito que como meu bisavô veio de Manaus deve ter ainda tribo por lá. Por parte de meu pai, meu bisavô era índio e minha bisavó era negra e por parte de minha mãe o bisavô era português e a bisavó índia, uma boa mistura (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Ao conversarmos acerca de sua formação acadêmica, Seu Ivan nos fala

que infelizmente não conseguiu concluir o Ensino Fundamental, por inúmeras

dificuldades, entre elas, a necessidade de trabalhar para garantir o sustento da

família. Todavia, ressalta que a própria vida é uma escola e rememora com carinho

de sua primeira escola e professora. Assim relata:

Ainda hoje frequento a faculdade da vida, mas eu estudei em uma “Escola Estadual Graça Divina”, foi minha primeira escola, era aquele regime que uma professora ensinava para todas as séries, multisseriado. Era a professora Crisolita Marques Teixeira, minha primeira professora. Comecei a estudar com uns oito pra nove anos. Eu estudei até a 6ª série, porque eu fiz o supletivo, por pouco eu não concluí a 7ª e a 8ª (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Por mais que não tenha adquirido nenhuma titulação acadêmica e seu

tempo de permanência na instituição escolar tenha sido relativamente curto, Seu

Ivan reconhece a importância e o significado da escola em sua vida, ao mencionar

que:

Hoje a aprendizagem que a gente tem, a gente agradece a escola. Eu costumo dizer o seguinte na verdade escola pra gente não dá educação a escola dá aprendizagem, a educação quem dá são os pais. Na escola você aprende de tudo, na casa você aprende só o que é bom, os verdadeiros pais te ensinam só o que é bom, então a gente precisa aprender de tudo, aproveitar aquilo que é bom e aquilo que é ruim a gente aproveita pra que a gente não possa cair naquele erro também, então a escola pra mim é uma lição de vida muito importante (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

As lições aprendidas na escola não incluíram a arte de manusear o miriti.

Seu Ivan se considera um artista nato, por isso acredita ter muita facilidade em

desenvolver trabalhos artísticos. Relembra que desde sua infância, por não existir

Papai Noel que lhe trouxesse presente, ou melhor, brinquedos, ele mesmo os fazia

com a matéria-prima oferecida pela própria natureza. Suas bolas de aninga e seus

barcos de miriti foram suas primeiras produções. É o próprio intérprete quem fala:

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Eu mesmo fazia os brinquedos desde criança, daí comecei a ganhar dinheiro por um tempo. Depois parei devido a empresa

19 em massa mesmo

há oito anos a gente já vem trabalhando direto no artesanato de miriti (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Seu Ivan nos relata que, durante o período em que trabalhava como

pintor industrial, complementava sua renda confeccionando em isopor peças para

decoração. A mudança de moradia para a cidade de Abaetetuba somada às

características culturais desta cidade relacionada ao brinquedo de miriti e o gosto

pessoal pelas artes manuais, foram elementos cruciais para sua opção em se

dedicar a essa atividade com exclusividade.

Atualmente, sua renda familiar é proveniente unicamente do trabalho com

o artesanato de miriti. Ele possui sua oficina onde produz suas peças artesanais,

auxiliado por sua esposa, seus filhos e outros familiares. Há quatro anos associou-

se à Asamab e já fez parte da diretoria, como diretor financeiro.

Finalmente, para concluirmos essa breve descrição da história de vida de

Seu Ivan, escolhemos uma história, entre tantas contadas por ele, para descrever

aqui e através dela mostrar uma das admiráveis características que observamos

nele. Seu Ivan, além de ser um artesão com uma capacidade criativa admirável, é

um nobre contador de estórias. Por meio delas, transmite sua conformação ou

indignação diante do contexto em que vive e das injustiças que o cercam, daí, por

exemplo, não acreditar em Papai Noel, como ele mesmo diz:

Deixa eu te contar uma estorinha: eu não acredito em Papai Noel, até porque eu acho que você tira o seu mérito que pode se tornar o vínculo maior com sua família e dar pra alguém que nunca te conheceu e nem você conheceu ele, entendeu? Então essa coisa de Papai Noel é uma enganação e aí porque eu não gosto dele e nem acredito nele, porque ele nunca levou um presente pra mim. Também, pudera! Se ele existisse ele tinha medo, né? Porque dezesseis filhos não é brincadeira (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Em cada brinquedo criado, uma história é contada e uma ideia

compartilhada. São nessas histórias narradas nos brinquedos de miriti que a

trajetória de vida de Seu Ivan tem um laço comum com a vida de Seu Adonias, mais

um artesão intérprete desta pesquisa.

19

Refere-se ao período que trabalhou como empregado, exercendo a função de pintor industrial, em diversas empresas no polo industrial localizado no município de Barcarena – PA.

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Adonias Oliveira Vilhena é o mais novo dos intérpretes desta pesquisa.

Tem 32 anos. Nasceu em Abaetetuba, no dia 23 de março de 1980. Aos três anos

de idade, mudou-se para a cidade de Paragominas, retornando para sua cidade

natal aos 18 anos.

Foto 37: Adonias Oliveira Vilhena.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

Possui dois irmãos com os quais foi criado pelos pais. Conta-nos que seu

pai exerce a profissão de vigilante e sua mãe sempre trabalhou em casa

desenvolvendo as atividades domésticas. Seu Adonias é casado e pai de dois filhos.

Ao indagarmos a respeito de sua formação acadêmica e se ainda frequentava a

escola, ele diz:

Frequentei até o 2º grau incompleto. Aqui em Abaetetuba eu parei, eu terminei o ensino fundamental pra entrar no ensino médio, concluí a 8ª Série e no primeiro ano estudei uns dois meses e já parei. Parei devido assim à questão de emprego. Trabalhar para comprar as coisas para o meu pessoal, não tinha de onde sair isso, devido a gente ter vindo pra cá, o papai se desempregou, ficou três anos desempregado, aí eu tive que me virar, sabe? Já tinha 18 anos, eu tive que me virar pra trabalhar. Aí o trabalho do dia estava prejudicando o estudo à noite, sabe? Já estava

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interferindo, aí eu larguei os estudos e fiquei só com o trabalho (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Conversamos com ele sobre a possibilidade de retornar para a escola e

dar continuidade aos seus estudos, ele nos diz que não tem essa pretensão,

entretanto, nos fala como considera a importância dessa instituição na atual

sociedade:

A escola significa toda a educação, porque a gente sabe hoje principalmente é muito importante, apesar de ter um pouquinho de dificuldade, porque antes à gente concluía o ensino médio e tudo bem, já podia ter uma profissão e hoje não, como é que diz assim? É... já pra ocupar uma posição mais elevada é preciso cursar um nível superior. Aí já fica um pouco difícil. Mas não deixa de ser educação um tudo na vida da pessoa (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Seu retorno para Abaetetuba e a conivência com vários familiares

artesãos de miriti, o levaram a se interessar por este tipo de artesanato. Seu

Adonias nos conta que:

O miriti eu já vim a aprender com os meus tios aqui em Abaetetuba, porque eles trabalhavam na arte dos barcos. Aquilo me despertou um interesse muito grande aí eu pedi pra ele me ensinar a fazer os brinquedos de miriti, mas eu me interessei mais pelos barcos, aí eu fui tentei, tentei e não consegui de primeira. Então eu já me inclinei pra outra parte que é a parte das aves, fazer ave, pássaros, animais aí eu já me identifiquei. A minha área que eu trabalho as peças são aves da natureza Amazônica (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Assim, há 10 anos, Seu Adonias passou a produzir brinquedos de miriti

para complementar sua renda familiar, por isso faz suas peças somente para

atender aos dois principais eventos de comercialização deste brinquedo, o “Miritifest”

e a Feira do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Funcionário público municipal, ele

exerce a função de pintor. Seu Adonias nos fala do brinquedo de miriti como parte

de sua fonte de renda:

Atualmente como o brinquedo de miriti não pode me dar uma sustentabilidade a ponto de eu sustentar minha família só com o trabalho de artesão eu tive que optar por fazer um concurso público. O miriti me ajuda assim quando chega tempo da festa do Círio que a gente produz algumas peças, cerca de 300 a 200 peças dependendo do tempo que a gente tem aí eu levo e a gente vende. Não trabalho permanentemente (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

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Seu Adonias é associado da Asamab, da qual faz parte do Conselho

Fiscal. Nos fala que a Associação o ajudou muito, no sentido de divulgar seu

trabalho e torná-lo conhecido. Está previsto assumir um novo cargo dentro da

Asamab, mas ele ainda não sabe definir com precisão o nome, pois estão em

processo de criação. Afirma somente que desenvolverá a atividade de supervisor e

avaliador da qualidade dos brinquedos de miriti que serão comercializados para

outros lugares.

Enfim, estes são alguns momentos da história de vida desses caboclos

abaetetubenses que dia a dia em suas oficinas, com sua habilidade artística

escrevem sua luta, seu mundo e sua vida, como bem expressa Daniel Leite (2009)

na epígrafe reproduzida no início desta subseção. E assim, inventam e reinventam

a cultura e a educação em Abaetetuba. São pessoas que em seu local de trabalho

educam para a vida, mesmo sem possuir o diploma acadêmico de professor.

Convém descrever detalhadamente a estrutura física do local de trabalho

dos artesãos de miriti, as oficinas ou ateliês como muitos denominam. Um lugar que

concebo como mais do que um espaço de relações sociais de trabalho, um espaço

educativo que não aparece nas estatísticas oficiais de Abaetetuba, mas que, no

entanto, é significativo para a educação do município.

4.2 OFICINA DE BRINQUEDOS DE MIRITI: UM LUGAR DE FAZERES, SABERES

E EDUCAÇÃO

A oficina ou ateliê de brinquedos de miriti é lugar do trabalho e da arte, da

invenção e reinvenção cultural, da socialização de saberes intergeracionais. Nesta

subseção, faremos a descrição de duas oficinas de confecção de brinquedo de miriti

nas quais realizamos as observações.

Vale lembrar que dos quatro entrevistados, somente o Seu Célio e o Seu

Ivan estavam com suas oficinas funcionando normalmente. A Dona Nina, por

problemas de saúde durante o desenvolvimento desta pesquisa, não estava

trabalhando em seu ateliê e o Seu Adonias não possui oficina, realiza seus trabalhos

com o miriti na sala de sua residência e no “Centro de Artesanato e Cultura do Miriti”

pertencente à Asamab. Portanto, a descrição que segue refere-se às oficinas do Sr.

Célio e do Sr. Ivan.

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Geralmente, as oficinas estão localizadas na própria residência do

artesão, sendo o último cômodo da casa, isto é, a parte de trás do imóvel. É o caso

das que descreveremos aqui. A oficina do Seu Célio é uma sala simples, construída

em madeira, coberta com telhas de argila, sem forro, contendo duas janelas. Essa

estrutura auxilia a ventilação e a claridade facilitadas pelo arvoredo que fica no

entorno da sala, mesmo sendo localizada na zona urbana. É um local silencioso,

propício para a concentração no trabalho e aprendizagem e, para a inspiração de

novas criações.

Os móveis principais da oficina são: bancadas anexadas na própria

parede (uma para cortar o brinquedo e outra para lixar e pintar); assentos (bancos e

cadeiras); ventilador; caixas de papelão para guardar os brinquedos depois de

prontos, os quais, também, são guardados em sacos plásticos e pendurados nas

paredes; paneiros para armazenar os que estão em processo de confecção; e, uma

pequena caixa de madeira em que ficam os principais instrumentos de trabalho – as

facas, lixas e os pincéis. Ressalta-se que o assoalho também serve como assento e

mesa ao mesmo tempo. Quanto à matéria-prima principal da confecção dos

brinquedos, as palmas de miriti, são conservadas no teto da oficina, ou seja, logo

abaixo das estruturas que sustentam o telhado.

Foto 38: Oficina do Seu Célio.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

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Alguns detalhes diferenciam a oficina do Sr. Ivan, um deles é a estrutura

de alvenaria que está em processo de construção; as janelas são, provisoriamente,

da palma do miriti. Localiza-se na zona rural, em uma área bastante isolada, digo,

distante das principais vias de acesso por meio de transporte coletivo. Este fato

propicia um ambiente de devaneios, na medida em que o cantar dos pássaros e o

soar do vento nas folhas das árvores são os principais ruídos ali escutados, além do

perfume que emana das flores do jardim. Os protótipos de suas criações adornam

as paredes bem como as sacolas com os brinquedos prontos para venda. A mesa

grande no centro é dividida entre o artesão e seus aprendizes. O vento natural

dispensa o ventilador.

Foto 39: Oficina do Seu Ivan.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

Não posso deixar de mencionar o pequeno rádio, o único eletro-eletrônico

existente nas duas oficinas, através do qual o Seu Célio e o Seu Ivan ficam sabendo

das notícias da cidade, do país e do mundo. Seu Ivan fala de sua preferência pelo

rádio, ao mencionar que ficou sabendo da regulamentação da profissão de artesão

através de um programa de rádio. Diz ele:

Ontem ouvi na Voz do Brasil, ouço a Voz do Brasil que prefiro ouvir porque não é apelativo em vez do televisivo, que se torna profissão agora o artesanato. Fiquei feliz, porque você pode agora chegar ao processo de

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aposentadoria fazendo artesanato e isso foi uma vitória muito grande pra gente (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Assim, a oficina de confecção de brinquedos de miriti é o lugar de escutar

as notícias, de receber e conversar com os vizinhos, parentes, amigos,

pesquisadores e outros visitantes, de devanear, criar e materializar uma arte e,

sobretudo, de reunir o grupo familiar – homens, mulheres, jovens, crianças, adultos

− para o trabalho, através do qual trocam experiências e, consequentemente,

educam-se mutuamente.

4.3 BRINQUEDOS DE MIRITI: UMA TEIA DE CONEXÕES

Cada brinquedo guarda uma ternura. Basta olharmos para eles. Sentirmos a sua leveza em tudo. Ali há uma árvore. Uma gente. Um mundo. Uma vida. O segredo de uma vontade de amar. Nos olhos, nas mãos dos fazedores de brinquedos de miriti – mulheres, crianças, meninas e meninos, homens, senhoras e senhores – está escrito esse destino. Um amor que se guarda em silencio. Não se revela, apenas vive (LEITE, 2009, p. 85).

Geertz (1989), ao discorrer acerca do conceito de cultura, assevera que

os seres humanos estão envoltos em uma teia de símbolos e significados tecidos e

partilhados por eles mesmos como membros de um mesmo grupo cultural. Para

Brandão (2002), a participação nas vivências culturais de um grupo torna homens e

mulheres seres ensinantes e aprendentes, pois se educam, criam e recriam

cotidianamente símbolos e significados para sua própria vida.

Tendo esses pressupostos como ponto de partida, lançar os fios para

tessitura de um diálogo teórico-conceitual entre a experiência da cultura cabocla

ribeirinha amazônica de feitura dos brinquedos de miriti e a cultura, a identidade

amazônica-abaetubense e a educação, corresponde ao propósito desta subseção.

4.3.1 Brinquedo de miriti: Cultura e Identidade Amazônica

Historicamente, o uso e significação da palavra cultura passam por

diferentes acepções. Alfredo Bosi (1992) analisa a estrutura e a origem semântica

da palavra cultura, mostrando que esta deriva do verbo latino “colo” que significou,

nos primórdios da história romana, cultivo do campo agrícola. Por ser um modo

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verbal com a terminação “–ura” que designa o tempo futuro, cultura era o campo que

ia ser arado, na perspectiva de quem vai trabalhar a terra. Os romanos traduziram a

palavra cultura como conjunto de conhecimentos que deveriam ser transmitidos à

criança. Desse modo, a palavra cultura passou do significado puramente material

que tinha em relação à vida agrária para um significado intelectual, moral, que

significa conjunto de ideias e valores.

Como reflexo do movimento iluminista nos séculos XVIII e XIX, na

Inglaterra, França e Alemanha, o vocábulo cultura esteve associado à ideia de

progresso, desenvolvimento humano, sendo confundida com educação, bons

costumes, etiqueta e comportamentos de elite. Na Inglaterra e na França, era

utilizada como correspondente sinonímico de civilização, contudo no idioma alemão

“kultur” tinha uma conotação positiva referindo-se aos produtos intelectuais,

artísticos e espirituais, enquanto que “zivilisation” ecoava negativamente por referir-

se às maneiras requintadas da nobreza.

Desse contexto, emergiu a definição clássica de cultura como “o processo

de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, um processo

facilitado pela assimilação de trabalhos acadêmicos e artísticos e ligado ao caráter

progressista da era moderna” (THOMPSON, 1995, p. 170). Esta concepção

fundamenta a dominação cultural de um povo sobre outros povos sobressaltando

determinados modos de viver e marginalizando outros. Tal acepção tem justificado,

por exemplo, o domínio da cultura burguesa capitalista sobre outras culturas e

modos de viver.

No século XX, o conceito de cultura foi incorporado aos estudos

antropológicos e sociais passando a ser concebido como um conjunto de

conhecimentos, crenças, artes, objetos, símbolos e significações construídos por

seres humanos em suas interações sociais.

Sob a ótica antropológica, Geertz (1989, p. 15) considera a cultura uma

teia de significados que é tecida pelas pessoas, incluindo aqui objetos, ações e

manifestações verbais com as quais estabelecem comunicação entre si e dividem

suas experiências, concepções e crenças.

Sendo assim, o depoimento de Seu Adonias e a imagem de pássaros

reproduzidos abaixo, nos permite dialogar com o pensamento de Geertz, haja vista

que expressam o sentido que este intérprete atribui a suas peças (re)criadas em

miriti. Nas palavras de Seu Adonias:

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Com os pássaros eu desejo transmitir assim é um cuidado com a natureza e com aquilo que a gente tem de melhor, uma vez eu dei uma entrevista e a moça me perguntou como eu me sentia fazendo aquelas peças: ah! Eu me sinto assim uma pessoa que é amiga da natureza, porque fazer pássaro, ver um pássaro voando é melhor que ele tá dentro de uma gaiola. Os meus pássaros eles ficam livres assim num poleiro sentado, não tem gaiola, nada que possa prender ele. Então eu transmito isso a liberdade do pássaro (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Foto 40: Pássaros confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Em seu relato, Seu Adonias revela que nos pássaros que ele faz em

miriti, está inscrita sua concepção de vida. Uma vida compartilhada com outros seres

vivos, uma vida que requer cuidados de uns com os outros para uma boa vivência

de todos. Uma vida em que há o respeito à liberdade e à forma de existência do

outro.

Esta visão simbólica de cultura nos possibilita compreender o brinquedo

de miriti envolto em uma simbologia peculiar do cotidiano amazônico. Seu Célio e

Seu Ivan expressam isso ao dizer:

Esses pássaros que eu faço são daqui da Amazônia, vai uma etiqueta explicando tudinho o significado de cada pássaro (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

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Tem aquelas outras ali na parede que são protótipos de peças grandes que já foram vendidas e que contam a cultura do nosso lugar (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Nota-se nestas palavras dos intérpretes Seu Ivan e Seu Célio que os

brinquedos produzidos por eles, representam as experiências vividas diariamente,

um olhar sobre suas relações, seu espaço de vivência e sua cultura.

As cinco imagens reproduzidas abaixo também são propícias nesta

análise, por apresentarem objetos, presentes no dia a dia do caboclo

abaetetubense, como aves, cobras, casas e barcos produzidos com a matéria-prima

do miriti, os quais têm, portanto, em sua essência, uma significabilidade peculiar da

comunidade abaetetubense.

Foto 41: Garças confeccionadas em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

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Foto 42: Cobras e barcos confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Foto 43: Casas confeccionadas em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

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Foto 44: Barcos confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

Foto 45: Barco de transporte coletivo confeccionado em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

As aves e cobras, além de outros seres vivos, com os quais o caboclo

divide o espaço de morada na floresta, tecem uma cadeia de complementariedade

da vida; na medida em que somadas às funções naturais, tanto desses animais

quanto de outros e da variada flora, para o equilíbrio do ecossistema amazônico,

servem de matéria-prima para muitos remédios e a cura de muitas doenças, também

são utilizados pela medicina popular e em estudos científicos.

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Os barcos de vários modelos, desde o mais simples aos mais bem

elaborados, representam o principal meio de transporte da região amazônica. A

cidade de Abaetetuba é movimentada dia a dia pelo ir e vir dos seus munícipes

transportados por um barco, uma canoa ou uma rabeta. Chegam à cidade

geralmente entre cinco e sete horas da manhã, vindos das inúmeras ilhas, trazendo

plantas, frutas, peixe, camarão, aves e outros produtos para serem comercializados.

Outros vêm em busca de um atendimento médico, estudar, fazer compras, passear,

rever familiares e amigos. De qualquer maneira, é o barco que promove o encontro

do rural com o urbano em Abaetetuba, ao levar e trazer, como a vazante e a

enchente das marés, os sonhos e as esperanças dos caboclos abaetetubenses, aqui

traduzidos na arte em miriti.

Dessa maneira, observamos nas últimas cinco imagens reproduzidas, que

a vivência e convivência do homem amazônico, artesão de brinquedos de miriti, com

a abundante floresta, a variedade de espécies animais, os caudalosos rios e os

movimentos incessantes das águas, são fontes que inspiram e alimentam sua arte.

Nesse sentido, Brougère (2010, p. 8) assinala que “o brinquedo é dotado

de um forte valor cultural, se definimos a cultura como o conjunto de significações

produzidas pelo homem.” Concordamos com este autor, por entendermos que o

brinquedo não é um objeto isolado do contexto no qual está inserido, e muito menos

está destituído de qualquer simbologia advinda das mãos ou das máquinas que o

construiu. No brinquedo, está manifesto o modo de ser, viver, pensar e fazer de

homens e mulheres que, nas suas interações sociais, (re)criam formas de expressar,

através da arte, sua existência no mundo.

Com este olhar, considera-se relevante as contribuições de Brandão

(2002, p. 20) ao desenvolver o conceito de cultura como fruto da ação e criação

humana, a partir das relações que os seres humanos estabelecem entre si e com a

natureza. Em outras palavras, pelo trabalho, homens e mulheres transformam a

natureza, da qual são partes integrantes, em objetos, instrumentos e técnicas, e,

com a capacidade reflexiva e imaginária, que os distingue dos outros seres vivos,

atribuem significados, codificam, criam sentidos a todas as coisas.

As reflexões de Brandão remetem-nos às palavras proferidas por Dona

Nina, ao falar de suas criações:

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Eu criei o ribeirinho. Eu fui um dia lá embaixo (refere-se à frente da cidade as margens do rio) vinha chegando um velhinho numa canoa com uns troços, mantimentos para vender aqui, eu disse eu vou fazer esse ribeirinho chegando. Eu fiz o Círio de Nossa Senhora de Nazaré inteirinho, eu fiz uns cento e poucos bonequinhos cada um com uma feição, cada um numa altura, tem um baixo, tem um alto, mas eu digo: ah! na corda da Santa não vai gente só de uma altura não (risos). Tá errado. Ainda fiz uma gestante na ponta da corda que ela ficou engraçada nesse ano. Coisa que tivesse a ver com o Círio, meus brinquedos saiam logo. Também eu vi fazerem aquele soca pilão, que eles fazem assim dois socando, eu disse eu não vou fazer isso, eu vou fazer só um socando, mas sentado numa cadeira, como a gente sentava pra socar, ai eu peguei eu tinha um arame de copo eu fiz a mola, ficava mole na cintura, socava assim. Veio um rapaz de Belém, comprou um e botou um aparelho que ele ligava e ela socava por ela mesma, aí eu fazia ela tudo com a roupa de pano, uma blusa de renda, a saia (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

A artesã, através de seu trabalho artesanal, relaciona-se com outras

pessoas e com a natureza, transformando-a em brinquedo. A partir da experiência

cotidiana, cria suas peças, atribui um significado e materializa em arte. Nas três

criações citadas por Dona Nina, pode-se notar a labuta diária do caboclo

abaetetubense, sua fé e devoção.

A fé que impulsiona o paraense a ultrapassar barreiras e se preciso for,

fazer sacrifícios, para anualmente acompanhar o Círio da Virgem de Nazaré, em

Belém, e o de Nossa Senhora da Conceição, em Abaetetuba, como sinal de gratidão

pelas vitórias alcançadas. Assim, recarrega o espírito de esperanças e forças para a

continuidade da vida construída na luta diária.

Esse é o diferencial entre os seres humanos e os demais seres vivos: dar

significados a própria vida. Nesse sentido, ainda, na tessitura de um conceito para

cultura, Brandão (2002), pontua a relevância dos processos sociais, considerando-a

como um mapa de possibilidades da vida social. A cultura, diz Brandão (2002, p.

24): “[...] consiste tanto de valores e imaginários que representam o patrimônio

espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada

um de nós e todos nós tornamos a vida social possível e significativa”.

No sentido de enriquecer essa reflexão, apresentamos mais quatro

imagens de objetos confeccionados em miriti pelos artesãos de Abaetetuba.

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Foto 46: Soca pilão confeccionado em miriti. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Foto 47: Imagem religiosa (Preto Velho) confeccionada em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

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Foto 48: Imagem da Virgem de Nazaré confeccionada com a palma do miriti. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Foto 49: Casal de dançarinos confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Entendemos que essas imagens representam uma síntese das

negociações e possibilidades da vida, o que nos faz concordar com Brandão. No

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soca pilão, vemos a representação de um tipo de trabalho entre tantos outros

realizados pelos moradores de Abaetetuba e que garante o suprimento de suas

necessidades materiais.

Vemos expresso na imagem do Preto Velho e de Nossa Senhora de

Nazaré, o sincretismo religioso que caracteriza a religiosidade popular paraense

cujas raízes estão fincadas na histórica formação étnica deste povo. A berlinda da

Virgem, ornamentada com miniaturas de flores, pássaros e outros animais, casa e

outros objetos, indica a simbolização do conjunto das diversas dimensões da vida de

homens e mulheres que fazem parte da comunidade paraense.

O amor, a paixão e a união são sentimentos que envolvem as pessoas e

as fazem harmonizar suas diferenças. É como visualizamos a imagem do casal de

dançarinos abraçados e beijando-se. O olhar do artesão sobre si mesmo. O caboclo

e a cabocla que trabalha, reza, sonha, ri, chora, ama e se alegra dançando os ritmos

musicais que os une em uma só paixão.

Assim, compreendemos que as imagens reforçam o diálogo que estamos

tecendo acerca do brinquedo de miriti como uma criação cultural, o qual traz em sua

materialidade, uma teia de significados próprios do cotidiano amazônico e um

conjunto de saberes historicamente construídos nas interações do dia a dia que

tornam a vida social possível e significativa, como diz Brandão (2002, p. 24).

Com essas interlocuções encontramos parte da resposta a uma das

questões desta pesquisa, referente aos aspectos do cotidiano que são

representados nos brinquedos de miriti. Moradias, animais, meios de transporte,

tipos de trabalho, devoção, sentimentos, visão de mundo, enfim, um estilo próprio de

experienciar a vida em um pedaço do planeta Terra − a Amazônia.

Conceber a cultura como o resultado das experiências vivenciadas por

todos os indivíduos, independente da posição social e política e do espaço territorial

que ocupam, implica abrir-se à pluralidade de modos de viver existentes no planeta.

Significa, ainda, falar em culturas, não em cultura, que são construídas em contextos

diversos, com dinâmicas diferenciadas e que devem ser compreendidas no interior

de sua edificação e de seu tempo histórico.

Visto desse modo, inexiste a distinção classificatória hierarquizada e

dicotômica entre culturas ditas superiores e inferiores, melhores e piores, civilizadas

e não civilizadas, evoluídas e atrasadas e tantos outros adjetivos usados quando se

tem como referência uma única forma padrão de experienciar a vida na Terra.

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Seguindo essa matriz de discussão, entendemos que o artesão do

brinquedo de miriti constrói a pluralidade e heterogeneidade das manifestações

culturais do Brasil, acrescentando a ela o caráter lúdico, a alegria e o encantamento.

Enfim, compreender a cultura como uma rede de interconexões com as demais

dimensões da vida humana, em processo contínuo de significação e ressignificação,

uma dinamicidade própria de cada agrupamento humano, é visualizar uma cultura

amazônica em suas várias formas de expressão, dentre elas, a arte de criar e fazer

os brinquedos de miriti e os saberes contidos nos mesmos.

Portanto, na lógica da heterogeneidade cultural não existe um ponto de

referência, mas pontos de convergências que se entrecruzam e fazem desabrochar

pelas culturas a beleza do ato de (re)criação humana. Se assim concebemos, cabe

neste ambiente multifacetado, referir-se à cultura amazônica como uma das formas

de expressão da cultura brasileira, pelo fato de exprimir o modo peculiar de vida que

se desenvolve na região.

As contribuições feitas por Loureiro (1995) acerca da cultura amazônica

seguem esse raciocínio, pois, para ele, pode-se considerar que há uma cultura

amazônica, haja vista a singularidade da história e da vida regional ocorrida em

espaço territorial único. Ao definir a cultura amazônica, Loureiro (1995, p. 42) a

caracteriza como “dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua

realidade. Uma cultura que, por meio do imaginário, situa o homem numa grandeza

proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda”.

Essa caracterização conduz-nos a tecer mais um fio com o brinquedo de

miriti, na medida em que encontramos explícitos no depoimento de Dona Nina, o

dinamismo, a originalidade e a criatividade ao se reportar às suas peças:

Eu sei que cada ano eu criava um assim. Eu fiz os promesseiros da água: fiz os bonecos, os potes do mesmo miriti, emendei o miriti e fiz eles carregando numa vara os potes. O pato do Círio que eu criei um ano, o pato no paneirinho foi um sucesso. Eu fiz seiscentos, chegaram lá eles arriaram tudo assim, botaram um plástico, arriaram e o marido da minha prima foi comigo, eles faziam propaganda e o pessoal engrossou pra comprar o pato do círio. Outro ano eu criei o peru, eu fiz um peru que cada pena era colada uma por uma no corpo do peru com o rabo aberto, eu vendia a R$ 30,00 cada um. Eu tenho todas as amostras aí. Depois eu criei o Pinduca dançando o carimbó com uma mola no pé, o dedo que fazia ele dançar. Era tudo mole a perna do boneco e eu por baixo fazia ele dançar, aquilo quando eu levei pra Belém foi um sucesso. O outro ano eu criei a dança da garrafa, a mulher dançava em cima da boca da garrafa, eu fiz a garrafa de miriti, ela dançando, ela ia até embaixo, ela

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tinha um lastex assim que prendia na minha mão. E desce mais, desce mais um pouquinho (canta o refrão da música) o boneco ia até na garrafa (risos). Foi só eu chegar, eu fiz um pouco, porque era trabalhosa (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Na voz de Seu Ivan essas características também se evidenciam:

Nós mesmos criamos as nossas peças, por exemplo, todas essas luminárias é uma criação minha, nós temos as rosas que é uma criação minha, é nós temos vários tipos de flores, essas galinhas que eu estou trabalhando, as molduras, as caravelas são criações minha (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

As palavras da artesã e do artesão, no nosso entendimento, são uma

demonstração de dinamismo e inventividade. Por não confeccionarem um único tipo

de objeto, recriam e inventam novas formas e produtos, em conformidade com as

mudanças do tempo vivido e do presente, corporificando-as em suas obras de arte.

É, portanto, a dinamicidade das negociações cotidianas oriundas das relações

sociais desses sujeitos que inspira o ato artístico criador e dá sentido a vida,

tornando-a exequível. A originalidade está no fato de serem objetos únicos, isto é,

não possuem uma forma para produção em série, e, também, na matéria-prima

utilizada, bem como do tipo de sociedade que expressam.

A narrativa de Seu Adonias reforça esta análise:

A cada ano eu sempre levo uma novidade. Comecei nos pássaros, depois eu fui confeccionando umas motinhas de miriti também, até então pequenas cerca de 30 cm, eu fui me aperfeiçoando e fui fazendo as grandes, quase no tamanho de uma normal aí já fiquei conhecido como o rapaz das motos também, novidade né? Mas sempre levando os pássaros. Depois por ser uma peça grande e demorar praticamente um mês para terminar uma, sendo que peças pequenas eu fazia mais do que uma só, aí eu também parei um pouco com as peças grandes como a moto e fiquei só nas aves. Eu faço um gavião que eu levei um ano, uma coruja, uma arara com penas, um personagem da tv de desenho, eu vou inventando e é bem aceito no mercado (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Compreendemos que as palavras de Seu Adonias são reveladoras do

percurso histórico de significação e ressignificação da cultura amazônica, realizada

cotidianamente por todos os indivíduos que vivem neste lugar, particularmente pelos

artesãos dos brinquedos de miriti. Uma cultura que não é estática nem está parada

no tempo, pelo contrário, é movente e processual, por isso mantém suas

características ao dialogar com outras culturas e se recria, incorporando novos

elementos.

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Abaixo, as imagens do pássaro tucano, da coruja e do personagem

Woody complementam estas reflexões:

Foto 50: Tucano e coruja confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011

Foto 51: Personagem Woody confeccionado em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

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Visualizamos nas imagens da coruja e do pássaro tucano, a

representação da tradicional fauna amazônica ao lado do personagem Woody, que

ingressou no cotidiano regional recentemente, pelo principal veículo de comunicação

de massa − a televisão. Isso evidencia que, através do brinquedo de miriti, podemos

visualizar as permanências e as mudanças da cultura amazônica em seu processo

histórico de (re)construção do cotidiano. Assim, concluímos a resposta ao

questionamento e atingimos ao objetivo desta pesquisa referente à constatação dos

aspectos da cultura representados no brinquedo de miriti, analisando suas

permanências e mudanças no decurso da história.

Em suma, no brinquedo de miriti, homens e mulheres amazônidas

representam a si mesmos e a seus pares, suas crenças, devoção, seus valores,

suas experiências, seus sentimentos, sonhos, suas lutas, conquistas, esperanças,

sua capacidade constante de se reinventar, acompanhar o contexto histórico

presente e solidificar sua identidade cultural e, sobretudo, seus saberes e a forma de

socialização de conhecimentos entre as gerações.

Nas análises de Loureiro (1995), o isolamento e a identidade são dois

elementos históricos fundamentais e marcantes, a partir dos quais podemos

compreender a configuração atual da cultura amazônica. O primeiro elemento está

relacionado à amplitude geográfica da região e à riqueza econômica natural,

predominantemente extrativista. Este fato, por um lado, não despertou grandes

interesses comerciais, lucrativos, por parte da burguesia comercial europeia nos

primórdios do processo de colonização, séculos XVI e XVII, mantendo-a, assim, uma

região distante do contato europeu, se comparada com as regiões nordeste e

sudeste do Brasil, tornadas centro do poder político-administrativo instalado em

nosso país a partir do século XVI, com a efetivação, pelos europeus, do processo

colonizador e exploratório. Por outro, possibilitou a construção de um sistema de

vida e trabalho ribeirinho peculiar ao local, haja vista a necessidade de se ter um

conhecimento efetivo dos rios e da floresta para adentrar na região.

A este processo histórico de construção da identidade cultural amazônica,

soma-se a formação étnica deste povo. O caboclo, resultado da miscigenação inicial

entre índios, negros e brancos, desde o período colonial brasileiro, é o ator principal

da paisagem amazônica ribeirinha pelo conhecimento que possui de seu habitat

natural e pela capacidade de resistência e persistência face ao colonialismo cultural

imposto pelos meios de comunicação de massa e pelas políticas governamentais.

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Este caboclo, sujeito histórico construtor da cultura e da identidade

Amazônica, é representado por Daniel Leite (2009) em seu romance Girândolas.

Tobias, personagem-narrador principal do referido romance, é a encenação da vida

do caboclo ribeirinho morador de Abaetetuba. Este personagem, ao narrar sua vida

para sua amada Maria, reporta-se à palmeira do miriti e as suas variadas funções e

utilidades no dia a dia do caboclo ribeirinho, destacando o vínculo identitário entre

essas vidas − a do caboclo e a vida da palmeira. Para Tobias, o miriti é:

A palmeira da bênção. Buriti ou Miriti. A árvore da providência em nossas vidas. Um mundo de gente: miriti. Uma palavra mágica. É a palmeira benta do nosso povo. Uma árvore que é telhado – a uma água ou a duas águas – cobertura das nossas casas. Uma árvore que é doce. Vinho, brinquedo e trabalho. É vida, sobretudo, por ser uma nossa identidade, uns olhos de um nosso olhar (LEITE, 2009, p. 82).

Da ficção inspirada em realidade, para a experiência realmente vivida,

Dona Nina também se refere a uma identidade, quando fala dos brinquedos que já

criou e com qual deles mais se identifica. Diz a artesã:

Eu me identifico mais com a canoa do ribeirinho, porque essa barquinha você pode ir lá na feira de manhã e você vai ver chegando o ribeirinho com os troços na barquinha (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Observa-se nas palavras de Dona Nina a identidade relacionada ao ato

de transformar a natureza, de criar peças únicas, obras de arte com uma marca

pessoal. Todavia, a inspiração para a produção de sua arte vincula-se ao contexto

social no qual está inserida; o que nos leva a pensar que na marca pessoal inclui-se,

também, uma identidade coletiva, algo que identifica o cotidiano de um lugar,

elementos que caracterizam o modo de viver da comunidade abaetetubense. Dona

Nina expressa isso ao justificar sua preferência pela canoa do ribeirinho.

Oliveira (1984, p. 18), ao analisar os brinquedos artesanais ressalta que

nenhuma máquina é capaz de exprimir aquilo que somente através das mãos

humanas é possível, ou seja, nossa própria identidade. O ato criador, que é único,

livre de uniformidade, padronização e repetição, caracteriza a singularidade do

brinquedo de miriti e a identidade de homens e mulheres ribeirinhos amazônicos.

Rodrigues (2011), ao discorrer acerca do conceito de identidade cultural

na contemporaneidade, nos alerta para a complexidade que permeia a utilização

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SILVA, Claudete do S. Q. da. Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos......105

deste conceito no sentido de evidenciá-lo em uma determinada sociedade,

principalmente quando o pesquisador a aborda do ponto de vista das

particularidades culturais que a demarcam.

Nesse sentido, falar em identidade cultural na atual configuração política,

social, econômica e cultural, é navegar no mar das incertezas com uma única

certeza epistemológica − a de que os conceitos estão em processo contínuo de

reconstrução e, portanto, não estão e nem ficarão prontos e acabados. Admitimos

ser este, para nós, um tema de grande complexidade. Todavia, ousamos tecer uma

reflexão sobre a possibilidade de uma interlocução entre o brinquedo de miriti e a

identidade cultural abaetetubense, a partir da ideia de pertencimento a uma dada

cultura.

Em meio aos acalorados debates acadêmicos epistemológicos a cerca de

uma definição, ainda indefinida, para a questão da identidade, nos aproximamos das

formulações conceituais filosófico-sociológicas desenvolvidas por Stuart Hall (2002,

p. 8), para quem: “as identidades modernas estão sendo „descentradas‟, isto é,

deslocadas, fragmentadas”.

Partindo desta afirmativa, o autor argumenta que na sociedade atual,

caracterizada por constantes, aceleradas e permanentes mudanças, o sujeito não

tem uma identidade estável e fixa. Ele é constituído por várias identidades que se

caracterizam pela mobilidade e inacabamento, as quais se projetam e externam de

acordo com o contexto vivenciado, estando a identidade, portanto, aberta e em

contínuo processo de (re)construção. Entretanto, essa identidade é flexível, mas não

elimina os vínculos de raiz e pertencimento a um determinado grupo social.

Em outras palavras, essa concepção de identidade fracionada, significa a

identificação que o indivíduo tem com diferentes movimentos sociais (negros,

nortistas, ribeirinhos, ecologistas, cooperativistas, ambientalistas, feminista, etc.) que

perpassam a estrutura da sociedade em que está imerso, se posicionando em

conformidade com o momento histórico em que for interpelado.

As palavras de Seu Adonias, abaixo descritas, nos permitem dialogar com

essa ideia de identidade proposta por Hall. Acerca da importância do brinquedo de

miriti para ele e para Abaetetuba, diz o artesão:

Bem, a respeito do brinquedo de miriti ele tem dado um reconhecimento muito grande para o nosso Pará, aqui para Abaetetuba principalmente que foi onde originou. Hoje a gente está lutando por um selo de propriedade, o

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miriti como uma propriedade realmente daqui de Abaetetuba. Então ele tem dado assim um reconhecimento muito grande para Abaetetuba e para as pessoas que trabalham com ele (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Na narrativa de Seu Adonias, evidenciamos o processo de construção e

solidificação de uma identidade cultural como campo de luta social e política e,

portanto, de identificação dos sujeitos de acordo com o momento histórico

vivenciado. Uma identidade móvel não desvinculada de sua raiz e do seu

pertencimento ao grupo social, como analisa Hall.

Nesse viés epistemológico, Loureiro (2012, p. 89), entende a identidade

cultural amazônica atrelada a esse processo globalizante contemporâneo de:

Identificação espontânea do homem com sua comunidade local, vida nacional, a linguística, a estética, a valores éticos, etc. que a caracterizam; a maneira como compreender a história, suas tradições, seus costumes, seus modos de vida; o sentimento de padecer, compartir ou mudar um destino comum; o modo como se projeta em um eu coletivo na cultura, que lhe devolve constantemente sua própria imagem nesse espelho; que lhe permite construir sua personalidade, mediante a educação; desenvolver essa personalidade pelo trabalho, ao agir sobre o mundo, e criar pela arte.

Essa análise de Loureiro (2012) nos parece especificar e aprofundar no

âmbito regional as reflexões tecidas por Hall (2002). E assim, reforçam as reflexões

que estamos desenvolvendo, ao possibilitar o diálogo com a última narrativa de

Dona Nina, na qual se refere à identificação desta intérprete com a canoa do

ribeirinho, ou seja, com a sua comunidade local. E, ainda, com o depoimento de Seu

Adonias, transcrito acima, quando fala da luta pelo selo de propriedade do miriti para

Abaetetuba, isto é, o sentimento de mudar o destino comum.

Nesse sentido, as reflexões de Loureiro (2012) convergem com nosso

posicionamento por entendermos que os brinquedos de miriti fazem parte da cultura

amazônica e as representações incorporadas neste objeto constituem um processo

de identificação cultural, dos indivíduos com sua comunidade local, bem como, que

é por meio da educação que acontece o processo de construção e desenvolvimento

dessa identidade cultural que se exprime na arte criada pelos artesãos de

Abaetetuba.

Prosseguindo essa análise com as reflexões tecidas por Loureiro (2012) e

Hall (2002), apresentamos abaixo as imagens capturadas por ocasião do “8º Festival

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do Miriti” e da Feira do Miriti, no Círio de Nossa Senhora de Nazaré de 2011, e em

outros momentos desta pesquisa:

Foto 52: Onça, girafa e cavalo confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. “8º Miritifest”. Maio/2011.

Foto 53: Plantador de cana, máquina de açaí, girandeiros e músicos confeccionados em miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

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Foto 54: Personagens de programas infantis confeccionados em miriti

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011

Foto 55: Avião confeccionado em miriti. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Estas imagens revelam a presença de animais pertencentes à fauna

amazônica ao lado de animais de outros continentes; o vendedor de brinquedos, a

máquina de açaí, o plantador de cana, os músicos, lado a lado os personagens

televisivos como as meninas superpoderosas, Minnie e Quico, todos confeccionados

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com a matéria-prima do miriti. Esse dado nos faz perceber as conexões

estabelecidas entre as culturas pelo processo de globalização, mencionada por Hall

(2002). São os elementos globais que se fazem presentes no cotidiano dos artesãos

abaetetubenses, expressos na produção deste bem cultural. Analiso as imagens

como o reflexo de uma identidade em permanente estado de (re)construção que,

apesar do contato com o outro, permanece e se modifica concomitantemente, em

um constante reinventar-se.

Percebe-se, portanto, que o mundo amazônico não está excluso dos

processos capitalistas globais de mundialização econômica e cultural. Muito pelo

contrário, nele ingressa com um papel já definido – o de fornecedor de matéria-prima

e consumidor de produtos industrializados e da cultura burguesa capitalista,

elementos geradores de crise de valores e identidade, fazendo surgir momentos de

incertezas mais do que de certezas. Entretanto, é no interior dessa aldeia global que

se encontra o artesão de Abaetetuba com sua (re)criação, e produção de um objeto

cultural tipicamente amazônico, o qual convive com a complexidade de cada era e

se mantém como vínculo identitário do caboclo abaetetubense.

Adita-se a estas reflexões, as contribuições do filósofo Néstor Canclini

(2008). Na obra Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização,

Canclini faz uma análise da nova organização da sociedade capitalista globalizante

e aponta o consumo como fator de construção de uma marca de pertencimento. Ao

consumir bens materiais ou simbólicos, mais do que ser enquadrados como vorazes

consumidores de superficialidades e objetos de manipulação da economia

capitalista, os consumidores estariam tecendo as malhas do tecido social a que

pertencem ou desejam pertencer, criando sua identidade.

Os meios de comunicação fazem circular signos, por códigos de

identificação que nos unificam, e, mesmo quem nunca saiu de seu país, se faz

entender, pelo fato de compartilhar alguns signos, logotipos, ídolos e outros

elementos da sociedade e da cultura. Tal visão implica conceber o mundo não mais

como simples lugar de comercialização de produtos, mas também como parte de

interações socioculturais complexas. Implica considerar também, que as identidades

culturais são uma construção híbrida, constituída por elementos mesclados de várias

culturas.

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Encontramos as análises de Canclini (2008) materializadas nas últimas

imagens reproduzidas neste texto. Acrescentamos abaixo mais dois depoimentos,

os quais julgamos significativos nesta tessitura:

O pato do círio é a tradição do Círio. Quando a gente vai para o Círio não tem uma casa que não tenha pato no tucupi, foi baseado nisso que eu fiz. A berlinda, também, eu fazia e vendia. Coisa que tivesse a ver com o Círio meus brinquedos saia logo (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

O artesanato por ser um produto supérfluo nem todo mundo compra. Não é

um produto de primeira necessidade, então são aqueles períodos, por

exemplo, Círio todo mundo compra porque ele precisa enfeitar a mesa dele

na época do Círio. Eu vejo assim que ele toma como se fosse assim parte

realmente do Círio, do religioso, eu vejo isso, muitos parecem que é

obrigado a comprar e acaba comprando e levando, então é a época que

você mais vende realmente o brinquedo de miriti, diferente de outros

períodos.

Cada região do Brasil ou cada estado tem uma preferência de artesanato

estamos nos preparando pra uma feira que vai acontecer em abril em

Brasília, aí eu já sei mais ou menos o que eles compram, então eu trabalho

em cima disso, entendeu? . Eu te falei a gente sabe o que mais sai em cada

lugar, por exemplo, aqui em Abaetetuba eu não trabalho com peças

tradicionais porque não vende, porque tem muito.

O próprio cliente está te dando a ideia, entendeu? E tudo isso a gente copia

e vai criar em cima daquela que ele necessite (Ivan T. Leal, artesão, 43

anos).

Penso que essas falas, de Dona Nina e de Seu Ivan, têm uma ligação

com a proposta de Canclini (2008), ao expressarem que o consumidor tem um papel

fundamental no processo de (re)criação dos brinquedos de miriti, ao assumir e

desenvolver como cidadão o papel regulador do consumo, como forma de

pertencimento à comunidade. É a compreensão do consumo e da cidadania de

forma conjunta e inseparável, tomados como processos culturais, encarados como

práticas sociais que dão sentido de pertencimento. Desse modo, o consumo não é

mera possessão individual de objetos isolados, mas forma de pertencimento e

apropriação coletiva de bens, através de relações de solidariedade, distinção e

hostilidade com os outros que proporcionam satisfação biológica e simbólica e que

servem para receber e enviar mensagens.

Dentro desse contexto, consideramos que os artesãos dos brinquedos de

miriti acompanham o processo de hibridização cultural e, por conseguinte,

identitário. Valendo-se dos conhecimentos herdados de seus antepassados e

agregando novas práticas, técnicas e novas formas, recriam e renovam sua obra de

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arte, fruto de seu trabalho. Com os saberes adquiridos na convivência com a

floresta, o rio e sua comunidade, educam seus filhos, familiares e vizinhos para a

continuidade da vida e fortalecem uma identidade cultural-territorial.

Assim, alcançamos mais um objetivo desta pesquisa, reafirmando que as

representações incorporadas nos brinquedos de miriti contribuem para o

fortalecimento de uma identidade cultural-territorial; na medida em que apresentam

elementos constitutivos da cultura e da identidade paraense e abaetetubense,

solidificando-se através da educação, uma educação que acontece não no espaço

escolar institucionalizado, mas sim em outros espaços não escolares.

Lembramos aqui as palavras de Alfredo Bosi (1992) quando, ao definir

cultura, ressalta o dever de se transmitir às novas gerações, as práticas, os valores,

os símbolos e tudo mais, como forma de garantir a coexistência social. A seguir,

abordaremos os saberes contidos na produção do brinquedo de miriti e as formas de

socialização desse bem cultural e identitário que atravessa gerações no município

de Abaetetuba.

4.3.2 Brinquedos de miriti: saberes cotidianos e educação não escolar

[...] somos seres humanos, o que aprendemos na e da cultura de quem somos e de que participamos. Algo que cerca e enreda e vai da língua que falamos ao amor que praticamos, e da comida que comemos à filosofia de vida com que atribuímos sentidos ao mundo, à fala, ao amor, à comida, ao saber, à educação e a nós próprios (BRANDÃO, 2002, p. 141).

A concepção de educação como um acontecimento motivado pela cultura,

e de cultura como fruto do trabalho educativo, preconizada por Brandão (2002), nos

aponta a possibilidade de pensar o ato educativo em uma ótica diferenciada daquela

predominante no universo educacional da sociedade moderna capitalista.

Candau (2005) afirma que a educação institucional está firmada em uma

universalidade de conhecimentos e valores culturais que tem sua raiz fincada na

cultura europeia ocidental. Este padrão de educação promove a negação da

diversidade cultural presente nas sociedades humanas, ao institucionalizar o espaço

escolar como marco referencial do processo educativo e a cultura burguesa

ocidental como a portadora da universalidade.

A historiografia da educação brasileira tem seguido esse caminho

epistemológico ao privilegiar, tradicionalmente, as pesquisas que estudam a

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educação escolar, relegando outras dimensões educativas presentes na sociedade

brasileira.

Santos (2010) tece críticas a esse modelo epistemológico dicotômico,

totalitário, excludente, monopolista e segregador próprio do paradigma dominante. O

teórico sustenta que se vive um período de transição paradigmática, de grandes

problemas, dificuldades, complexidade e possibilidades nos diferentes espaços-

tempo da vida humana, dentre eles, o da educação. Este autor julga que o

pensamento moderno ocidental hegemônico é abissal, por criar linhas divisórias

invisíveis entre os saberes produzidos pelos diversos agrupamentos humanos e

conceder à ciência moderna, o referencial universal de conhecimento válido,

marginalizando outros que não se enquadram neste exemplar. É o próprio Santos

(2010, p. 34) quem diz:

[...] Do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objectos ou matéria-prima para a inquirição científica.

No bojo das mudanças paradigmáticas e das possibilidades advindas da

mesma, Santos (2010) aponta a necessidade de nos voltarmos às coisas simples

como ponto de partida na construção de um novo paradigma, ao qual ele denomina

paradigma de um “conhecimento prudente para uma vida decente”. O percurso

analítico tecido por Santos (1997, p. 9) se baseia em cinco hipóteses. A primeira,

descarta a distinção entre ciências naturais e ciências sociais. A segunda, afirma as

ciências sociais como polo catalisador da síntese entre as ciências; para tal, as

ciências sociais deverão recusar o positivismo lógico ou empírico e o mecanicismo

materialista ou idealista; esta é a terceira hipótese. A quarta, entende a síntese

como um conjunto de galerias temáticas. Por fim, a quinta, supõe o

desaparecimento da distinção hierárquica entre conhecimento científico e

conhecimento vulgar.

Santos (2010, p. 51) afirma que “o pensamento pós-abissal parte da ideia

de que a diversidade do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua

desprovida de uma epistemologia adequada”. E completa:

O pensamento pós-abissal [...] é uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um

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deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento (SANTOS, 2010, p. 53).

Então, navegar por este viés epistemológico é conceber que não há uma

única forma de conhecimento válida e sim muitas formas de saberes construídos

cotidianamente por homens e mulheres em suas práticas sociais. É compreender

que todo “conhecimento é autoconhecimento” (SANTOS, 1997, p. 50), portanto, é

criação e está intimamente ligado à nossa trajetória de vida, nossos valores, nossas

crenças, nossa cultura, enfim, nosso modo de ser e viver em relação com o outro.

Na interação com o outro, os variados conhecimentos avançam

interrelacionando-se e dialogando horizontalmente uns com os outros, se

construindo mutuamente e alastrando suas raízes em busca de novas e variadas

interfaces. É, em suma, reconhecer que as experiências culturais e identitárias dos

artesãos de brinquedos de miriti fazem parte dessa ecologia de saberes.

Nesse sentido, retomamos Brandão (2002, p. 141) quando, ao falar da

educação como cultura, estabelece uma íntima relação entre as mesmas,

assinalando que a primeira acontece no interior da segunda, sendo, então, a cultura

a própria morada do saber. No desenvolvimento de seus argumentos, este autor

pontua que, como seres da vida, homens e mulheres são seres ensinantes e

aprendentes, pois, na medida em que nascem inacabados, eles estão destinados a

buscar a completude.

Nas interações sociais constroem-se e são construídos, isto é, no

relacionamento com os outros, trocam saberes, criam e recriam objetos, símbolos e

significados para a vida. É nessa tessitura constante e fantástica da experiência da

vida humana no planeta Terra, que se encontra a educação que ocorre em todos os

tempos da vida, do nascer ao morrer, e em todo e qualquer lugar.

A concepção de cultura como lugar de conhecimento e de saberes

criados e recriados por um determinado agrupamento humano, presente no

pensamento de Brandão, também é referendada por Loureiro (1989, p. 178-179),

pois, ao falar da cultura amazônica, este autor considera que:

A cultura é uma forma de criação que expressa, em todas as suas modalidades, o modo de como um povo compreende sua vida, de como reproduz através de gerações suas atitudes, e de como vai criando as condições à própria transformação e ultrapassamento de sua própria

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maneira de viver. A cultura é o ponto culminante do processo do conhecimento.

Concordamos com as proposições de Brandão (2002) e Loureiro (1989)

por entendermos que o entrelaçamento entre cultura e educação nos possibilita

visualizar a diversidade de saberes existente no mundo e a relevância dos mesmos

para cada agrupamento humano. Inserem-se aqui os saberes amazônicos inclusos

em um bem cultural – os brinquedos de miriti.

O reconhecimento da existência e importância dos saberes populares dos

amazônidas, particularmente do caboclo ribeirinho e dos indígenas, é pontuado pelo

geógrafo e pesquisador Carlos Gonçalves, em sua obra Amazônia, Amazônias

(2005). Ao tratar da Amazônia como uma região não homogênea, nos mais variados

aspectos, partindo da ótica da diversidade existente no interior desse espaço,

Gonçalves (2005, p. 39) atenta para o fato de que,

Qualquer engenheiro florestal, zoólogo, botânico, geógrafo ou geólogo sabe o quanto depende do conhecimento dessas populações para realizar suas pesquisas, para identificar espécies animais e vegetais, conhecer seus hábitos. Muitos doutores sabem que suas teses deveriam partilhar a autoria com muitos caboclos da Amazônia.

Estes saberes estão oficialmente excluídos da cultura escolar instituída,

porém se fazem presente nessas interlocuções estabelecidas e na subjetividade de

cada sujeito que participa desse ambiente institucionalizado.

Nessa perspectiva da educação como cultura e da ecologia de saberes,

encontramos vários tipos de educação e saberes inseridos em cada etapa do

processo de produção dos brinquedos de miriti, os quais elucidaremos e

analisaremos a seguir.

O processo de feitura do brinquedo de miriti constitui-se de três etapas,

desde a retirada da matéria-prima até a comercialização do produto final. Em cada

fase, circulam saberes que são partilhados entre o grupo e entre gerações, na

medida em que, na oficina de miriti, trabalham juntos homens e mulheres de

diversas faixas etárias.

A primeira fase é a retirada da matéria-prima e o preparo da bucha para o

manuseio na confecção de brinquedos. Os quatro sujeitos desta pesquisa não a

praticam, mas a conhecem e falam sobre ela com muita propriedade. Segundo Seu

Ivan:

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O miriti enquanto pequeno a gente não sabe qual é macho qual é femea, mas a gente sabe que quando ele tá na sombra como todo ser vivo em busca de alimento ele se esquiva mais pra buscar a luz do sol e é esse miriti da mata mais fechada, mesmo sendo da várzea é mata mais fechada, é o melhor miriti que a gente tem porque ele está mais comprido. A tala fica melhor pra quem trabalha com a cestaria e o parênquima dele fica muito melhor pra gente, dá menos braços, mas de qualidade superior aquele miriti que dá ao sol aberto, que ele não cresce porque ele tem o alimento à vontade que é o sol dá mais braços, mas é curto e mais estorricado. O miritizeiro você aproveita ele todo sem matar a palmeira, ele dá de quatro a doze cachos e cada cacho no mínimo produz 500 frutos, ele é bianual, tem ano que dá mais, tem ano que dá menos porque aquela safra foi que se estendeu. É o miritizeiro ele pode dá pra gente no máximo sete braços por ano. A gente corta e ele vai ficar com três pra sobreviver, isso não vai abalar em nada a estrutura dele, cresce até o ponto de que ele vai dá os frutos e o braço se torna curto então você não tem como cortar aquele braço até porque não serve mais para o artesanato. A palmeira ela te dá todo o alimento, artesanato, tudo o que você precisar, até casa se você quiser fazer, e você não precisa derrubar ela (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Seu Adonias compartilha esse pensamento:

Se eu fosse buscar do bruto eu teria que ir ao local aonde tivesse a árvore do miriti. Ela só é tirada quando está na idade jovem. Aqueles braços compridos chega até dois ou três metros de comprimento, aí quando ele está maduro a gente corta ele, põe em um local primeiro e tira aquela casca todinha. Depois de tirada a casca põe no sol, ele vai secar a aproximadamente de 5 a 10 dias para ficar pronto para o manuseio, bem seco. Depois que ele está seco é só pegar e confeccionar a peça (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Encontramos nesta primeira etapa, um tipo de educação, a qual

denominamos educação da vida. Percebe-se nestes depoimentos, os cuidados

necessários com a floresta: cortar a palmeira para retirar o próprio sustento e o da

família, mas deixando a parte que a planta precisa para continuar vivendo e seguir

dando frutos; reconhecer a melhor matéria-prima, a partir da maior facilidade ou

dificuldade em atingir o principal alimento, a luz solar, viabilizando o melhor

aproveitamento da mesma. Observa-se a existência de uma relação harmoniosa e

não dicotômica entre homem e natureza. Seu Ivan e Seu Adonias não possuem

títulos acadêmicos expedidos por uma escola formal, mas compreendem a

importância da convivência do homem como elemento da natureza para a

concretude do círculo da vida.

Interessante aqui dialogar com Brandão (1995b, p. 223-224) que afirma:

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Somos seres vivos, antes de sermos pessoas racionais ou sujeitos sociais. Compartilhamos a vida com outros seres da vida, somos todos o todo e a parte de uma mesma dimensão de tudo o que existe. E tudo o que existe converge para ela: a vida. Nós seres humanos, não somos uma espécie superior da experiência da vida. Somos uma forma diferente de partilhar, com outras, a própria vida. A essência de nossa experiência no mundo é sermos, como e com outros seres, uma partilha de vida. Seres da vida.

Vejo que os depoimentos de Seu Ivan e Seu Adonias expressam essa

compreensão de ser humano como ser vivo que compartilha a vida com os demais

seres da vida. O que o diferencia dos outros animais é a capacidade de reflexão e

isso não lhe concede o mérito de ser melhor ou de se apropriar dos demais seres da

vida como vem ocorrendo na atual conjuntura. Ao contrário, o diferencial concede

ao humano uma maior responsabilidade, no sentido de manter o equilíbrio do

ecossistema planetário, algo que me parece ser bem compreendido e exercitado

pelos artesãos de miriti. São saberes ambientais que norteiam e perfazem seu

cotidiano familiar, social, econômico, cultural e religioso e que são ensinados de pai

para filhos, através da oralidade.

Outro saber a ser considerado nesta fase, concerne aos saberes do

cuidar, tratar bem a matéria-prima com vistas ao não desperdício. Seu Célio fala a

esse respeito:

Eu fui cortei 300 braços de miriti, eu e meu primo, fomos um dia cortamos tudo. No outro destalamos. Agora é não deixar pegar água, tira a casca e pendura ele para secar. Nada de água por perto. Aí quando tiver uns cinco dias corta um palmo, é o trato do miriti (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Encontramos este saber também na voz de Seu Ivan:

Você precisa armazenar o miriti se você colocar o miriti em pé, ele tem uma resina, então toda essa resina ela desce por igual então você vai ter um miriti com um parênquima perfeito, todo igual, mas existe um miriti que você seca ele deitado que ele fica com as manchas porque a resina não desceu, então existe esse processo de secagem que é muito importante, se você quer um miriti limpo o coloca em pé. Nós aprendemos isso com o Sebrae (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Certamente, Seu Célio e Seu Ivan têm consciência de que o desperdício

ruma ao esgotamento, e não gera benefícios para a vida no planeta. Neste sentido,

eles cuidam bem da parte que precisam da palmeira, de modo a aproveitá-la em sua

totalidade e, assim, colaboram para um estilo de vida sustentável no planeta.

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Importante notar que estes cuidados se estendem também à questão da

saúde de quem trabalha como artesão de miriti, conforme podemos notar nas

palavras de Seu Ivan, quando menciona sobre a divisão de tarefas dentro do ateliê,

diz que: “há um processo, por causa do cuidado que a seladora é forte, da gente

mesmo selar e já passar pra eles já seco só pra trabalhar”. Fato recorrente também

no dizer de Seu Célio, ao falar sobre a presença de sua neta na oficina:

O problema que isso aqui é muita poeira, por isso que eu sofro e estou com isso aqui (refere-se à tosse que ele tem). Aí eu tenho medo dela ficar aqui, ainda tem a tinta que não são tão forte, o que é forte é o selador, isso faz mal, deixa a gente doente (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Uma experiência vivida como exemplo de e para proteção aos demais

seres humanos. Um cuidar, um sentir, um saber que vem do olhar de um artesão

não apenas para si, mas para o todo que está em sua volta, que completa a sua

existência presente e perpetua seu modo de ser e estar neste mundo.

Como dissemos anteriormente, os sujeitos desta pesquisa não praticam a

primeira fase. Eles adquirem a matéria-prima comprando as braças de miriti prontas

para o seu manuseio, conforme especificam em seus testemunhos:

Já vem descascado pra nós (Nina Mary A. da Silva, artesã, 76 anos). Eu tenho um cara da Vila Maiauatá que traz pra mim a R$ 40,00 o centro do miriti. 100 braços desses eles querem R$ 50,00 já, mas o cara faz pra mim por R$ 40,00. Aí eu só armazeno e depois começo a cortar. Um braço de miriti o cara faz R$ 50,00 a R$ 70,00 em brinquedos (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos). No caso eu já recebo dos ribeirinhos nossos amigos que moram para as ilhas, a gente compra 50 a 100 braços já seco, pronto para confeccionar a peça (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos). Eu recebo sem tala porque o ribeirinho corta lá, vende pra quem faz o tipiti, o abano e outros derivados de tecelagem que vende, então ele vende o centro do miriti por R$ 25,00 para o artesão da tecelagem. E a gente compra dele, porque existe uma seleção de miriti, mas entre uma e outra você compra o centro por R$ 70,00, que já é o braço seco, às vezes, eu compro verde (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

A imagem seguinte é demonstrativa da palma do miriti, armazenada na

oficina, pronta para ser transformada em brinquedos:

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Foto 56: Palma do miriti seca.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

O segundo passo do processo de produção do brinquedo de miriti diz

respeito ao ato criador e transformador da bucha do miriti em inúmeros formatos de

cobras, pássaros, barcos, bonecos, casas, dançarinos e outros componentes do

cotidiano amazônico abaetetubense. Este, podemos dizer, é o momento de o

artesão dar asas à sua imaginação e materializar, através da arte, o seu modo de

ser, de viver e de pensar o mundo em que habita.

Consideramos que esta fase é composta de momentos e procedimentos

interligados, pois criação e execução acontecem conjuntamente. Os saberes que

perpassam essa etapa estão inclusos no que chamamos de educação da

produção artesanal. Silenciamos para dar voz aos artesãos que, com sabedoria e

conhecimento do assunto, falam desta etapa, acompanhado das imagens

capturadas no decorrer das observações:

Olha, o brinquedo para fica no normal que ele é corta-se o brinquedo, lixa, depois de lixado passa o selador. Só o cheiro que a gente pega daquele selador... Depois do selador secar lixa de novo, fica lisinho pra pintar. Tem que primeiro passar tinta branca que é base e depois é que vai pintar da cor do brinquedo, ainda tem o verniz, se tu não passar o verniz o brinquedo vai ficar cheio de punilha, estraga o brinquedo. Aí vai fazer as contas por quanto vai sair esse brinquedo (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

Observamos nas palavras de Dona Nina, os saberes do esculpir ou

cortar, do lixar, do pintar, do calcular e da matemática. Os saberes do cuidar,

também se fazem presente nesta fase de produção do brinquedo de miriti: passar o

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verniz para que não estrague o objeto; proteger-se do cheiro forte que exala do

selador. As imagens abaixo reafirmam esses saberes, ampliando a ideia de calcular

não somente para dar um valor final de venda para o produto, mas, também, medir o

tamanho dos pedaços de miriti para esculpir.

Foto 57: Artesã Nina Mary A. da Silva fazendo brinquedo.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2011.

Foto 58: Primeiro formato de um brinquedo de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2011.

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Foto 59: A palma do miriti transformada em brinquedo.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2011.

Nas três imagens visualizamos a mestra-artesã Dona Nina praticando o

saber do esculpir ou cortar. O saber do calcular e da matemática são visíveis nos

pedaços de miriti cortados para a confecção do brinquedo. A imagem do brinquedo

pronto é a demonstração de mais um saber: o saber montar ou armar.

Estes aspectos e saberes são nítidos nas palavras de Seu Adonias, ao

nos contar como faz um brinquedo:

A primeira parte é o molde desse corpo aqui dela de lado (refere-se à feitura de uma arara), tenho que cortar o miriti em partes quadradas e juntar ele até ficar um bloco que fique na perfeição, na proporção do corpo dela, joga o molde em cima dessa peça quadrada e vou recortar, sem o bico ainda, recorto tudinho aí dá essa forma do pássaro. Depois vem o bico, que é uma peça separada, também com molde que é para sair tudo no tamanho normal. Eu faço o bico separado, mas alguns colegas que são feras já fazem tudo, eu acho melhor assim que fica mais bem destacado. Depois vêm as asas, e no final o rabo e os pés que ela fica já no puleiro. Depois para sumir as imperfeições a gente passa uma massa corrida, alguns passam o selador, eu comecei passando o selador aí depois com a massa se tornou mais fácil, lixo, dou uns detalhes com a tinta branca e dá o colorido que é a vida, dá os detalhes nela para vender (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

As duas imagens a seguir mostram uma arara feita por Seu Adonias:

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Foto 60: A palma do miriti transformada em arara.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Março/2012

Foto 61: Arara confeccionada em miriti pronta para a venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2012.

Visualizamos no testemunho e nas imagens, os saberes referentes ao

calcular, esculpir, montar, lixar e pintar, pois Seu Adonias trabalha com o molde

sob medida do brinquedo a ser produzido. E mais, Seu Adonias fala em retirar as

imperfeições naturais da matéria-prima e pintar para dar o colorido, que é a vida do

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brinquedo. Ao nosso olhar, este é um saber estético, na medida em que o artesão

se preocupa em dar a sua obra de arte um bom acabamento, pois, a mesma,

representa a sua identidade.

Nota-se, ainda, o saber do reconhecimento, ou seja, reconhecer a

habilidade do outro em fazer bem o objeto, sendo que nessas interações com a

natureza e com o outro, trocam saberes, se aperfeiçoam e se educam mutuamente,

como bem preconiza Brandão (2002).

No que concerne à organização do trabalho nas oficinas, na fase de

produção do brinquedo, o depoimento do Seu Célio e as duas imagens abaixo são

esclarecedoras:

Eu já tenho dois filhos que me ajudam já sabem fazer. Todos trabalham comigo, mas quem faz (corta) são dois e eu os outros lixam, pintam e fazem acabamento. Trabalha só família mesmo: eu, a mulher, seis filhos, nora, neto (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Foto 62: Artesão Célio V. Ferreira confeccionando brinquedo. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

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Foto 63: Artesãs confeccionando brinquedos na oficina de Seu Célio.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

Observamos na narrativa de Seu Célio, saberes gerenciais e

organizacionais, pois, ao dividir atividades, não o faz como imposição e obrigação

ou determinando cargos hierárquicos dentro da oficina, mas respeitando a

habilidade de cada um. O fato de separar tarefas não implica em desconhecimento,

por parte dos envolvidos, de todos os passos do processo produtivo do brinquedo de

miriti, ao contrário, eles conhecem todos os procedimentos e fazem de acordo com a

necessidade do momento.

Vale registrar que a única exceção diz respeito ao ato de cortar ou

esculpir a palma do miriti, que é realizado somente pelos mestres artesãos. Segundo

eles mesmos, essa é a parte mais difícil e a que exige muita habilidade, por conta do

manuseio com a faca, principal instrumento de trabalho, a qual deve estar bastante

amolada e qualquer deslize pode causar acidente. Assim, o mestre artesão é o

educador e o administrador das relações sociais de trabalho do grupo familiar. Seu

Ivan reporta-se a esse aspecto organizacional do trabalho ao dizer:

Hoje trabalha eu, minha esposa, minha filha, minha nora, meu filho quando chega da pesca e mais um adolescente que trabalha comigo, são essas pessoas que trabalham comigo. É só família, é regime familiar. Nós dividimos tarefas aqui, por exemplo, eu faço cortar depois dele está cortado isso aqui é um peixe. Depois do peixe está assim eu passo já pra qualquer um deles que eles vão lixar, selar - que é o processo que ele fique

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com mais durabilidade e melhor para pintar. Porque se você pegar uma tinta e pintar como ele está aqui chupa tudo a tinta, então se você pegar o selador aquele de madeira com tiner passar nele, nem só ele te dá uma consistência melhor pra você pintar como também ele dá uma durabilidade muito melhor do que se ele ficasse natural, entendeu? Então ele é passado, embebido nessa solução pra que a gente possa trabalhar e tudo isso eles já fazem. Um lixa, às vezes o próprio que lixa pinta, mas às vezes ele só lixa o outro vai e pinta é dessa maneira que a gente divide as tarefas aqui. As luminárias eu monto e eles só fazem dá o tratamento da selagem e do envernizamento, o resto é tudo eu que trabalho mesmo (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Nota-se que Seu Ivan também organiza a produção do brinquedo, a partir

da divisão de tarefas, diferentemente das atividades estanques características da

divisão do trabalho na grande indústria fabril, na qual a cada grupo de operários é

dada uma tarefa no conjunto do processo produtivo de um determinado objeto, sem

que o mesmo, no entanto, tenha conhecimento das demais etapas. Nas oficinas de

brinquedo, a divisão de tarefas significa a possibilidade de ensinar e aprender cada

procedimento e de todo o conjunto que compõe a produção dos brinquedos e aos

poucos se aperfeiçoar.

Assim, percebe-se que, concomitante ao saber gerencial e

organizacional, está o saber da união e da partilha, na medida em que dividir

atividades não significa individualizar ou isolar, ao contrário, significa unir, somar

esforços coletivos e partilhar conhecimentos. As duas imagens seguintes reforçam

esta análise, ao apresentar os trabalhadores na oficina de Seu Ivan. O mestre

artesão corta e os aprendizes desenvolvem as outras atividades.

Foto 64: Artesão Ivan T. Leal confeccionando brinquedo.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Agosto/2012.

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Foto 65: Artesãs confeccionando brinquedos na oficina do Seu Ivan.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo, Fevereiro/2011.

Outro aspecto organizacional notado nas imagens diz respeito à

disposição dos materiais na oficina. No teto, ficam armazenadas as palmas de miriti

inteiras prontas para o corte. Na bancada ou na mesa, os instrumentos de trabalho e

os pedaços de miriti que serão esculpidos. As peças cortadas pelo mestre artesão

são colocadas no cesto ou em caixas de papelão para os aprendizes darem

continuidade ao processo de produção. Conforme vai se concluindo cada

procedimento, arrumam-se as peças no piso ou nas bancadas até a finalização. Nas

paredes em exposição ou penduradas em sacolas, ficam as peças prontas para a

comercialização.

Neste sentido, vale destacar que, assim como nas oficinas se sobrepõe o

caráter coletivo ao individual, esta visão se expande ao grupo social. Ao ser inquirido

sobre a importância da associação dos artesãos, Seu Ivan responde:

Faz muita diferença estar em uma associação. É muito importante uma associação dependendo da maneira como se administra essa associação e a Asamab é muito importante, ela foi criada pra alavancar a mão de obra que vivia aí parada. Através da Asamab e em nome dela eu tenho viajado, tenho buscado muita parceria e hoje nós temos como parceiros: a Economia Solidária, o Sebrae, a Emater, o Banco do Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, a Seter, então em nome da Asamab a gente teve condições de buscar toda essa parceria pra que a gente pudesse crescer (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Seu Adonias comunga com essa ideia ao dizer:

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É muito importante, porque é através dela (refere-se associação) que a gente consegue as encomendas. O nome ASAMAB tem hoje assim um grande peso em todo o nosso Pará, até fora daqui tem assim um grande peso, falou em ASAMAB já sabe que é relacionado ao brinquedo de miriti (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Reconhecemos nestas falas, mais um tipo de educação, a qual

denominamos educação pela cooperação. Nela estão inseridos os saberes da

união, da partilha e da solidariedade que começam no núcleo familiar e se

estendem ao grupo social. Vejo que são saberes voltados para o fortalecimento de

um estilo de vida que prima pela solidariedade coletiva, pelo crescimento do grupo e

não apenas o individual.

Em se tratando de estilo de vida, é notável destacar o aspecto lúdico que

os trabalhadores artesãos de miriti acrescentam ao seu fazer cotidiano. Para eles,

não há distinção entre trabalho e prazer ou satisfação, ambos caminham juntos e

fazem parte do processo de construção do brinquedo de miriti. As palavras

proferidas pelos intérpretes desta pesquisa, ao serem indagados sobre o significado

deste objeto, são reveladoras nesse sentido:

Para mim, ele significa assim uma terapia, eu gosto de fazer, porque eu sempre gostei de arte. A arte é tudo pra mim (Nina Mery Abreu da Silva, artesã, 76 anos). Significa pra mim hoje uma forma de uma renda extra e pra mim particularmente é uma terapia, é algo que eu amo, que eu gosto de fazer eu faço independente de querer obter um lucro, assim é claro que a gente faz pra obter, mas tem momentos fora de época que o meu tempo está bem de folga eu vou fazendo, fazendo mesmo, porque eu gosto e vou inventando outras peças, eu faço, porque eu gosto (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Essas falas nos possibilitam pensar o trabalho humano associado ao

caráter lúdico, que é intrínseco ao ser humano, ou seja, ao prazer, à alegria, ao

encantamento, que são elementos essenciais ao ato criador e recriador da

experiência humana. É a ludicidade dos artesãos que aflora quando trabalham e

educam, produzindo seus brinquedos, os quais, sem dúvida, são um ingrediente

relevante, tanto para a relação de trabalho quanto para a educação.

Mondin (1980, p. 222), ao estudar a dimensão lúdica do homem, afirma

que esta é extremamente densa e mais rica que outras dimensões, também

importantes, como a estética, a ética, a especulativa e a técnica por compreender

que:

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Inteligência e vontade, ação e habilidade, mas, ao mesmo tempo, supera o conhecer, o querer, o agir porque implica também alegria, satisfação e liberdade. Na esfera lúdica, revela-se a complexidade e ao mesmo tempo, a harmonia do ser humano. Nela põem-se em movimento todas as faculdades sem subordinação, sem submissões, em espontânea coordenação e em vista de alegre autorrealização do sujeito.

Visualizamos uma interrelação entre as palavras de Mondin (1980) e as

dos artesãos, ao expressarem a satisfação e a autorrealização no ato de fazer o

brinquedo, sintetizando-o como a sua vida, ou, quem sabe, melhor dizer, como o seu

caráter humano de ser vivo. O caboclo ribeirinho artesão do brinquedo de miriti,

encontra e exprime sua ludicidade na arte de confeccionar um objeto que é sua

cultura, sua identidade, seu saber, enfim, sua experiência de vida vivida e

compartilhada no interior de uma sociedade altamente consumista que supervaloriza

a face produtiva do ser humano em detrimento aos outros aspectos, entre eles o

lúdico.

As palavras de Seu Ivan são enriquecedoras nesta reflexão ao falar do

significado do brinquedo em sua vida:

É uma coisa que a gente faz une o útil ao agradável a gente gosta de fazer, é um trabalho que se torna assim uma terapia a gente gosta de fazer, é a vida da gente (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

No contexto cientifico racionalista da sociedade moderna capitalista, a

dimensão lúdica do humano foi banida de sua existência, sendo considerada uma

atividade fútil e, portanto, sem importância, dada à ordem de valores que se preza

na atual sociedade. Reservam-se ao prazer, à alegria e à liberdade criadora, ínfimos

espaços e tempo de descontração, pois esses não são comportamentos adequados

ao homem moderno, do qual se espera produtividade, lucro e obediência, ou melhor,

se quer um trabalhador produtivo, automatizado e robotizado.

Pensado sob esse prisma, a dimensão lúdica do humano torna-se uma

contravenção aos valores instituídos, na medida em que não convive com a

dominação, a subordinação, a clausura. Carvalho (2011, p. 7), ao resenhar a obra

de Jean Duvignaud (1997), El Juego del Juego, afirma que: “por meio da ludicidade

muitas verdades podem ser ditas, como também por meio dela pode-se zombar do

mundo e (com)-partilhar diversas experiências”. Neste sentido, encontramos a

educação da alegria formada pelos saberes lúdicos, os quais são escamoteados

pelo racionalismo científico, inseridos nos brinquedos de miriti. Tal elucidação nos

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abre a perspectiva para visualizar, mesmo no interior da ordem capitalista, a

possibilidade de vivência e fomento de valores diferenciados do hegemônico.

Com este olhar, vemos que o brinquedo de miriti tem saberes que

educam para a concretização e fortalecimento de todas as dimensões da vivência

humana, sem sobreposição de uma sobre outra, “une o útil ao agradável” como bem

fala Seu Ivan, firmando a humanização do ser humano e a experiência da plenitude

de um modo de vida no planeta Terra.

A terceira e última fase dos brinquedos de miriti nas mãos dos artesãos é

a comercialização. Este momento acontece regularmente nas próprias oficinas e no

“Centro de Artesanato e Cultura do Miriti”. Esporadicamente em feiras, exposições

ou outros eventos. Mencionamos na terceira seção desta dissertação que, a nível

municipal, o principal evento de comercialização é o “Miritifest”; e, a nível estadual, é

a Feira do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém. Seguem algumas

imagens desses dois eventos:

Foto 66: Artesão Ivan T. Leal com suas peças em exposição para venda. Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo, “8º Miritifest”. Maio/2011.

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Foto 67: Telas com molduras de miriti em exposição para venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo, “8º Miritifest”. Maio/2011.

Foto 68: Carros de miriti em exposição para venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

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Foto 69: Girandeiro de miriti em exposição para venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Foto 70: Barcos de miriti em exposição para venda.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Feira do Círio. Outubro/2011.

Essas imagens nos apresentam a obra de arte dos caboclos

abaetetubenses, artesãos de brinquedos de miriti. São, a nosso ver, a síntese das

reflexões traçadas no percurso desta dissertação e nos permitem reafirmar que,

para além de um produto comercial, os brinquedos de miriti conjugam em sua

materialização, valores, sentimentos, sonhos, vivência, histórias, identidade e

saberes culturais, fazeres, enfim, um modo de vida entre tantos experienciados

cotidianamente por homens e mulheres no mundo.

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Nesta etapa de comercialização dos brinquedos de miriti, reconhecemos

a educação da troca. Não uma simples troca de objeto por moeda, mas também,

uma troca de ideias, conhecimentos, valores, sentimentos e outros. Nela, estão

inseridos os saberes do diálogo, do respeito, da permuta e da comercialização.

As falas de Dona Nina, do Seu Adonias e do Seu Ivan expressam esses saberes

quando respondem em que se baseiam para criar novas peças de miriti:

A gente já tem a base do que já vendeu no ano passado o que foi mais vendido, a gente se baseia naquilo e vai criando outros (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos). Geralmente assim na aceitação dos clientes, por exemplo, uma arara eu levei dez e no primeiro dia eu consegui vender todas as dez aí no ano seguinte eu vou fazer melhor do que aquela, eu vou colocar mais penas, eu vou fazer ela de asa aberta, eu vou fazer ela de alguma forma, aí já é diferente do que eu levei no ano passado (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos). Tem muita gente que não observa bem e acha que uma galinha é outro bicho. Tem outro que olha uma peça e diz: poxa, mas eu achei que era isso. Em cima daquele achar dele a gente já vai trabalhando em outras peças e criando. É ter a percepção de captar isso do próprio cliente, entendeu? Na verdade o grande artista é ele e ele não sabe (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Quando se tem como referência de estilo e forma de vida, o respeito e o

reconhecimento da diversidade cultural (re)criada por todos os seres humanos em

seus agrupamentos, inexiste a tentativa de universalização de uma única forma de

conhecimento e a exclusão de outras, a hierarquização dos saberes e a distinção

entre superiores e inferiores, entre outras tantas características da epistemologia

moderna, predominante atualmente. Existe, sim, o diálogo horizontal entre saberes e

vivências que se entrecruzam, interpenetram e constroem, reinventando-se

mutuamente, gerando novos saberes e estendendo suas raízes em busca de novas

e variadas interfaces. As palavras da artesã e dos artesãos, reproduzidas acima, nos

possibilitam compreender esse processo dialógico entre saberes, mesmo que seja

em um ato comercial.

Desta forma, entendemos que os brinquedos de miriti educam para o

respeito, a interação e a conversação com o outro, assim como favorecem a

convergência de ideais de vida e sociedade. Seu Ivan reporta-se a esse aspecto, ao

mencionar que:

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Você consegue viver fazendo arte sem agredir a natureza. Então a gente faz tudo isso e quando a gente mostra para o cliente, que não conhece o que é a palmeira, mostra que tudo isso é feito sem matar a palmeira, ele compra muitas das vezes, ele não sabe nem onde vai colocar só pra incentivar a gente que está fazendo esse serviço, então é isso que nos dá o prazer de trabalhar sem afetar a natureza (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Percebemos nesta narrativa, a reciprocidade na identificação de valores

entre vendedor e consumidor, dado que nos consente dizer que o brinquedo de miriti

é uma marca de pertencimento, ao identificar, empoderar e unir uma comunidade de

pessoas em torno de sonhos, lutas e anseios de vida, refletindo atos de cidadania na

ação de vender e comprar.

Enfim, na esteira da elucidação dos saberes que perpassam o processo

de feitura do brinquedo de miriti, identificamos cinco tipos educação: a educação da

vida; da produção artesanal; da cooperação; da alegria; e da troca; nas quais estão

inclusos variados saberes: ambientais, do cuidar, do esculpir ou cortar, do lixar, do

pintar, do calcular, da matemática, do montar, organizacional, gerencial, da união, da

partilha, estéticos, lúdicos, da permuta, do diálogo, do respeito e do reconhecimento.

Esta tessitura nos permite afirmar que a arte dos brinquedos de miriti educa para o

conhecimento e para a formação do indivíduo e contribui para compreender as

várias dimensões das coisas e da vida.

Assim, respondemos a mais um questionamento desta pesquisa,

relacionado aos saberes que perpassam a feitura do brinquedo de miriti. Ressalta-se

que o reconhecimento e a análise feitos a partir das etapas do processo produtivo do

brinquedo, não significa que tais saberes ocorrem e estejam restritos a uma única e

determinada etapa, ao contrário, todos compõem o conjunto da produção do

brinquedo e se interpenetram por todas as fases.

Ao elencarmos e analisarmos os tipos de educação e o saberes que

perpassam a feitura do brinquedo de miriti, cabe-nos elucidar e analisar os

processos educativos que viabilizam a socialização desses saberes entre gerações,

no município de Abaetetuba.

4.4 EDUCAÇÃO EM ABAETETUBA: ONDE ACONTECE?

Educar é criar cenários, cenas e situações em que, entre elas e eles, pessoas, comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao

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participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si mesmo (BRANDÃO, 2002, p. 26).

Partindo da perspectiva preconizada por Brandão (2002), de que a

educação acontece nas vivências culturais nas quais homens e mulheres educam e

são educados, independente do lugar e da posição social que ocupam, então vemos

que as oficinas de brinquedo de miriti são espaços educativos do município de

Abaetetuba.

Essa ótica nos permite dialogar com as palavras de Dona Nina e Seu

Célio. Ao serem indagados sobre como e onde aprenderam a fazer o brinquedo de

miriti, eles responderam:

Eu aprendi a fazer o brinquedo de miriti com um cunhado meu, a gente morava tudo junto, não aprendi a cortar com ele, eu ia pra lá e dizia: compadre Antônio, me dê, me deixe pintar para o senhor, e eu pintava bem pintadinho para ele, ele gostava (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76

anos).

Aprendi a fazer esses brinquedos na oficina do meu irmão, ele é profissional, quando eu vinha do serviço eu ía lá conversar com ele. Eu o olhava (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos).

Percebe-se nestas narrativas, a ocorrência de um processo ensino-

aprendizagem que não tem como suporte principal o uso da escrita, mas sustenta-se

na oralidade e na observação através de uma escuta minuciosa e um olhar atento e

apurado. É uma forma de educar e educar-se que atravessa gerações no município

de Abaetetuba, a qual não tem tempo fixo, certo e determinado para ensinar e

aprender. A imagem abaixo, de uma oficina de brinquedo de miriti, é significativa por

apresentar a convivência de gerações neste espaço de trabalho.

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Foto 71: Oficina de confecção de artesanato de miriti.

Fonte: Arquivo pessoal. Pesquisa de Campo. Fevereiro/2011.

A criança olha atentamente os avós produzirem os brinquedos. O aspecto

familiar e intergeracional de aprendizagem da feitura do brinquedo de miriti é notado

nas falas e na imagem, acima mencionadas. Essas características são reafirmadas

quando perguntamos aos intérpretes se eles já haviam ensinado outras pessoas.

Seu Célio e Seu Adonias dizem:

Eu tenho uma neta que vive aqui, ela vem senta aqui eu estou trabalhando e ela está espiando, aí ela fala: vovô como é que a gente lixa? Olha minha filha é assim. Não minha filha vira o miriti. Aí a gente vai ensinando, ensinando, ela já é profissional para lixar (Célio V. Ferreira, artesão, 53 anos). Já ensinei para algumas pessoas, para minha esposa, para os meus irmãos, para alguns colegas que viram e desejaram aprender, aí eu inventei uma técnica assim: Tudo começa com o molde, eu pego o tamanho do pássaro desenho no papel, recorto aquele molde, pego a peça de miriti e desenho, dalí a pessoa vai recortando e boleando até dar a forma do pássaro, aí é em parte faz primeiro o corpo, depois a asa, depois o bico, depois o rabinho, as pernas aí é tudo por parte. Esse rapaz que eu ensinei eu sentei de um lado e ele do outro, eu disse pega lá, ele pegava o dele eu ía cortando e ele ía olhando e cortando o dele, no final nós comparamos como ficou (Adonias O. Vilhena, artesão, 32 anos).

Observa-se que a socialização dos saberes inclusos no brinquedo de

miriti, se inicia no núcleo familiar, entre irmão, tios e sobrinhos, avô e neto, marido e

esposa, estendendo-se às outras pessoas que fazem parte da mesma comunidade,

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colegas, amigos, vizinhos, consumidores, etc. Nota-se, ainda, que não há uma

técnica padrão homogeneizadora para todos, cada um vê a melhor forma de

socializar seus conhecimentos. É um jeito de educar que não exige do mestre-

educador, títulos acadêmicos, no entanto, requer experiência, habilidade, paciência,

humildade, partilha, atenção e responsabilidade. Neste sentido, as palavras do Seu

Ivan são expressivas:

Já ensinei outras pessoas que já aprenderam a gente vai assim ensinando olha essa rosa é feito dessa maneira, colada dessa maneira. É muito difícil, você não consegue fazer um artesão em um ano, você montar uma coisa é fácil, você ter a percepção de fazer isso tudo igual é que é difícil. Então, todos os meus alunos aqui pra cortar, montagem aquilo que você consegue medir em linha reta essas coisas todas tem vários que sabem fazer, mas nesse lado aqui de esculpir ainda não, então é um pouco a curiosidade. Artesanato é que nem música tem que tá no sangue senão você não se torna um artista, [...] tu aprende a montar, a fazer muita coisa, mas chega num ponto você pegar olhar e chegar a dizer assim: não eu vou fazer isso, pegar e fazer é mais difícil (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Nota-se no dizer de Seu Ivan, uma relação de aprendizagem assentada

na reciprocidade de deveres e interesses, na medida em que exige do educador e

do aprendiz, a dedicação e o desejo de conhecer mais, de buscar novos

conhecimentos. Dona Nina conta-nos sua experiência e ressalta esses aspectos, ao

dizer que:

Eu quando era moleca se eu chegasse na sua casa e a senhora tivesse fazendo uma coisa assim eu ficava só de olho, parece papagaio. Chegava aqui em casa eu vinha fazer. Eu fui uma vez na RBA estavam fazendo umas rosas de papel higiênico lá eu olhei vi um bocado de rolo aí eu disse assim: o que é isso aí? Nós vamos fazer uns enfeites. Aí fiquei olhando. Cheguei na casa da Mundinha eu fiz o enfeite do casamento da filha dela tudinho. Era fácil de fazer o cravo (Nina Mary Abreu da Silva, artesã, 76 anos).

As palavras de Dona Nina reportam-nos aos estudos de Charlot (2000)

sobre educação. Este autor sustenta que o dever de aprender, para os seres

humanos, é uma condição que se estabelece desde o nascimento. O homem, ao

nascer, diferentemente dos demais animais que instintivamente completam seu

círculo de aprendizagem para a vida, necessita de outros valores para inseri-lo no

mundo e para que ele se aproprie de uma parte desse universo pré-existente.

É pelo aprender com o outro que acontece o processo de hominização

(tornar-se homem), singularização (tornar-se exemplar único) e socialização (tornar-

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se membro de uma comunidade). Esse movimento processual de aprendizagem

exigido pela própria condição humana, caracterizada pela extensividade,

complexidade e incompletude, para Charlot (2000), é a educação.

Charlot (2000) ressalta a impossibilidade de ocorrer educação se não

houver o consentimento de si mesmo e a interrelação com o outro e com o mundo,

ou seja, todos os envolvidos no processo educativo são sujeitos ativos que se

educam conjuntamente. “Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma

certa relação com o mundo” (CHARLOT, 2000, p. 63). Portanto, o ato de construir-se

e ser construído pelos outros é a própria educação, entendida de forma ampla, em

situações ocorridas em vários lugares.

Nesse ir-e-vir da relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo,

toma forma o desejo de aprender. É esse desejo que pulsiona o indivíduo em

direção ao saber. Saber este que é uma construção histórica coletiva da mente e

das atividades humanas submetidas aos processos coletivos de validação,

capitalização e socialização. As palavras de Seu Ivan quando nos fala sobre seu

aprender são interessantes nesta tessitura. Diz o intérprete:

Olha na verdade existe uma palavra que se chama autodidata então técnica eu aprendi com outros artesãos, mas aprender a gente aprende com a gente mesmo, a gente faz o desenho vê o cotidiano, por exemplo, isso aqui são tudo luminárias fruto de desenho e aí não é nenhum design que criou é a gente mesmo que cria (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Assim, as maneiras de aprender e ensinar, ensinar e aprender presentes

nas oficinas de brinquedos de miriti, não têm a formalidade técnica e pedagógica de

uma instituição educacional legalmente reconhecida; não obstante, constituem as

cenas da formalidade cotidiana desse lugar de construção, reinvenção, negociação

e transformação de significados da própria vida da comunidade abaetetubense,

como cenário informal de trabalho, cultura e educação.

Nesse sentido, coadunamos com as ideias de Brandão (2002) e Charlot

(2000) ao entendermos a educação como processo socializador do indivíduo em

uma determinada cultura e formador de identidades, no qual o sujeito interage

permanentemente. É um processo amplo, atemporal, sem lugar único e fixo para

ocorrer, não necessariamente vinculado a um sistema de ensino institucionalizado

ou mesmo à existência da escrita. Uma educação pautada não, primordialmente, no

valor comercial, mas, sobretudo, no prazer, no amor e na solidariedade, como bem

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destaca Seu Ivan “é o prazer da gente ensinar. Não precisa ele está pagando nada

pra está aprendendo” (Ivan T. Leal, artesão, 43 anos).

Nessa perspectiva, é importante mencionar o trabalho da professora e

pesquisadora Paula Caleffi (2005), que analisa a educação indígena na sociedade

brasileira nos séculos XVI ao XVIII. Partindo da ótica da educação enquanto cultura,

a professora mostra como, através da oralidade e da observação, o ato de aprender

e ensinar acontece, ressaltando que nas sociedades indígenas, não há tempo

destinado para aprender, ao longo da vida todo o tempo é tempo de aprender.

Este olhar nos permite afirmar que as oficinas de confecção de

brinquedos de miriti são espaços de aprendizagem onde circulam saberes e fazeres

que são compartilhados entre todos que participam deste espaço, da criança ao

idoso. E não somente nas oficinas, mas, também, em outros espaços como no

“Centro de Cultura e Artesanato de Miriti” e nas feiras de comercialização onde

circula o brinquedo de miriti e, com ele, as pessoas interagem entre si, trocam

experiências e se educam.

Em termos metodológicos, são as mais variadas técnicas citadas pelos

artesãos e suas formas particulares de ensinar e aprender que o brinquedo de miriti,

como patrimônio cultural e imaterial, historicamente se recria e se perpetua no

município de Abaetetuba.

Em suma, observamos no decorrer deste trabalho que a educação no

município de Abaetetuba acontece no interior das escolas e, inclusive, nos espaços

não escolares que não utilizam a escrita, como as oficinas do brinquedo de miriti, o

“Centro de Cultura e Artesanato de Miriti”, as feiras de comercialização do

artesanato de miriti, enfim, em todos os lugares onde os seres humanos criam

cenários, cenas e situações para educarem-se.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação, procuramos analisar o brinquedo de miriti sob uma

perspectiva cultural que envolve diferentes significados: econômico, lúdico,

identitário, social, político, religioso, simbólico, histórico e educativo. Sem perder de

vista esse complexo conjunto que contempla o brinquedo de miriti, enfocamos

principalmente sua dimensão cultural educativa, objetivando um alargamento do

olhar sobre o objeto, de modo a permitir decifrar os saberes inerentes ao mesmo e

sua relevância para a afirmação de valores que há gerações se solidificam no

município de Abaetetuba e fortalecem o vínculo identitário deste objeto com o

referido município, assim como destacar a importância da educação que circula no

cotidiano de espaços de aprendizagens não escolar, particularmente nas oficinas de

confecção de brinquedo de miriti.

Para atingirmos os objetivos propostos, traçamos um referencial

epistemológico e um percurso metodológico que nos permitiu encontrar respostas

aos nossos questionamentos acerca do objeto de estudo. Norteada pelos

pressupostos da pesquisa qualitativa com elementos etnográficos, analisamos o

brinquedo de miriti como um componente representativo da cultura amazônica, fruto

das experiências cotidianas do caboclo abaetetubense. Um patrimônio cultural do

estado do Pará, recheado de saberes e significados que há séculos são socializados

entre gerações, constituindo uma marca identitária da cidade de Abaetetuba, do

Estado do Pará e da Amazônia.

A contextualização histórica dos brinquedos nas sociedades humanas foi

essencial para a compreensão dos mais diferentes significados que este objeto traz

em sua materialidade. Os brinquedos são instrumentos de brincadeiras presentes

nos mais diversos tipos de organização social, política, econômica e cultural. A partir

das interações sociais estabelecidas pelos seres humanos entre si e com a

natureza, em uma determinada comunidade, os brinquedos são criados e recriados

constituindo um olhar sobre a realidade vivenciada.

A despeito da maciça presença dos brinquedos industrializados na

sociedade atual, voltados economicamente para satisfazer as regras do lucro

impostas pelo mercado capitalista e, culturalmente, como instrumento de imposição

de valores, estilo e modo de vida da classe burguesa sobre as demais, os

brinquedos artesanais continuam a existir e testemunham a criatividade, a

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inventividade e a resistência de homens e mulheres ao processo hegemônico de

dominação burguesa capitalista. Em outras palavras, na dinâmica cotidiana de

várias comunidades, entre elas, na Amazônia, Estado do Pará, município de

Abaetetuba, registra-se a existência de uma produção artesanal de brinquedos

confeccionados da matéria-prima peculiar da região − o miriti.

Os brinquedos de miriti trazem em sua materialização, elementos de

contestação e resistência ao sistema produtivo dominante por caracterizar-se, dentre

outros aspectos, pelo domínio, por parte do artesão, de todas as etapas da

produção, bem como da criação do produto, rejeitando, assim, a função de mero

reprodutor e cumpridor de ordens na produção fabril e assumindo seu papel de

construtor da história de sua comunidade e produtor da diversidade cultural do

planeta Terra.

Adentramos na história do brinquedo de miriti e compreendemos a

significabilidade cultural deste objeto e da palmeira, de onde se extrai a matéria-

prima para sua confecção, no cotidiano abaetetubense. A partir da premissa de que

a memória é uma fonte viva de informações sobre a experiência vivida por um grupo

de pessoas, estando as lembranças individuais em contínua relação com as outras

experiências vividas no agrupamento e, ainda, concebendo o ato de lembrar muito

mais do que o simples reviver o passado, mas uma refacção deste com as ideias de

hoje.

Encontramos nas lembranças dos caboclos abaetetubenses uma

intrínseca relação entre a palmeira Mauritia flexuosa e seus derivados e a história de

vida desses sujeitos, dos suprimentos das necessidades básicas, tais como alimento

e complemento das moradias, à fonte da matéria-prima para os brinquedos da

infância e o trabalho artístico da fase adulta. Assim, estas vidas se entrecruzam e se

confundem, na medida em que do contato homem/natureza emerge transformação e

criação e, portanto, cultura, em que estabelecem laços identitários, socializam

saberes e registram sua marca na história da região.

Ao compreendermos a cultura como um processo de criação, recriação e

simbolização da vida humana, a partir das relações cotidianas estabelecidas entre

humanos e destes com a natureza, encontramos nos brinquedos de miriti a

representação das experiências vividas pelos caboclos abaetetubenses em seu dia

a dia: formatos de espécies animais e vegetais pertencentes à fauna e à flora

amazônica; variados tipos de barcos, principal meio de transporte da região, e outros

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veículos de transporte utilizados na zona urbana como motos, carros e avião;

imagens religiosas; personagens artísticos de programas infantis televisivos; casas;

profissões; enfim, a representação de si mesmo, da sua identidade cabocla

ribeirinha e seus sonhos, esperanças, lutas, conquistas, crenças e sentimentos.

Uma identidade movente e processual, caracterizada pelo inacabamento

por estar em um constante reinventar-se, de acordo com o contexto histórico

experienciado pelos artesãos. Sem, contudo, desvincular-se de sua raiz de

pertencimento, ou melhor, os artesãos de brinquedo de miriti acompanham o

processo de hibridização cultural valendo-se dos saberes herdados de seus

antepassados, agregam novas técnicas, formas e práticas, recriam sua arte e a

mantém.

Nesse sentido, é na dinamicidade da vida cotidiana que acontece a

construção e a socialização de saberes entre as pessoas, as quais educam e são

educadas mutuamente. Nesta perspectiva, entendemos a educação como um

processo construído historicamente por todos os seres humanos em suas vivências

culturais, independente da posição social e econômica que ocupam em sua

comunidade e do lugar onde se localizam no planeta Terra.

Essa concepção de educação como cultura e da cultura como morada do

saber, nos permitiu identificar vários tipos de educação e saberes inclusos no

processo de produção do brinquedo de miriti. Nas três etapas que compõem o

processo de feitura do brinquedo de miriti, ou seja, a retirada da matéria-prima, a

confecção do brinquedo e a comercialização, evidenciamos cinco tipos de educação,

as quais denominamos: educação da vida; educação da produção artesanal;

educação pela cooperação; educação da alegria e a educação da troca.

Inseridos nesses tipos de educação, elucidamos os saberes ambientais,

do cuidar, do esculpir ou cortar, do lixar, do calcular, do pintar, do montar, da

matemática, estético, do reconhecimento, gerencial, da organização, da união, da

partilha, da solidariedade, lúdicos, do diálogo, do respeito, da permuta e da

comercialização. Saberes estes que perfazem o cotidiano dos caboclos ribeirinhos

abaetetubenses artesãos de brinquedos de miriti e caracterizam um modo de vida

peculiar na Amazônia.

A relação familiar que se estabelece no processo de produção de

brinquedo de miriti é fundamental no estabelecimento de confiança e na socialização

de conhecimentos pela prática da feitura do brinquedo de miriti, haja vista que a

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convivência familiar facilita e introduz a criança, desde os primeiros anos de vida, no

ambiente de trabalho dos pais, tios, avós ou mesmo vizinhos, pois as oficinas ou

ateliês de miriti localizam-se em um cômodo da própria moradia, tornando-se,

também, o lugar de brincar, partilhar experiências, sonhar, criar e materializar na arte

seu olhar sobre o mundo em que vive e, assim educar-se mutuamente.

Demonstramos que os conhecimentos inseridos no brinquedo de miriti há

gerações são compartilhados por meio da oralidade e da observação através de um

olhar atento e apurado e uma escuta minuciosa, sem necessariamente utilizar-se da

escrita. Estabelece-se uma relação de aprendizagem alicerçada na reciprocidade,

com técnicas diversas, de acordo com cada artesão. Assim, esse patrimônio cultural

imaterial é reinventado e perpetuado em Abaetetuba. Dessa maneira, reiteramos

que a memória e a oralidade são mananciais de informações e educação.

Ao evidenciarmos as oficinas de confecção de brinquedos de miriti como

espaços de circulação de saberes, fazeres e aprendizagens, nos desvinculamos da

perspectiva de educação apenas no locus escolar e consideramos os saberes que

circulam no cotidiano de outros espaços sociais, rompendo com a epistemologia

moderna dominante que institucionalizou a escola como único e verdadeiro local de

educação e instituiu a universalidade do conhecimento científico e a primazia das

fontes escritas, relegando saberes outros e outras fontes. Deste modo, buscamos

destacar a amplitude de significados que envolvem a educação, que acontece em

todos os lugares, sem tempo pré-fixado e envolve todos os seres humanos a partir

de suas vivências culturais.

Em suma, pesquisar e registrar os saberes populares que perpassam as

manifestações artísticas e culturais, particularmente o brinquedo de miriti e suas

formas de socialização entre gerações, desvelando sua complexidade e

significabilidade, constituiu um desafio acadêmico. Entretanto, foi uma pesquisa que

proporcionou conhecer um pouco mais a realidade vivida e fortaleceu o sentimento

de identidade com o agrupamento ao qual pertenço.

Em termos acadêmicos, deixamos nossa colaboração para ampliar as

fontes na construção de uma epistemologia que tenha como premissa o

reconhecimento da pluralidade cultural, o diálogo e a interação entre os fazeres e

saberes construídos por todos os povos. Para não finalizar as reflexões a respeito

do brinquedo de miriti, e sim pausar as que foram tecidas nesta dissertação, abrindo

as possibilidades de outros olhares acerca desse objeto, deixamos a letra da canção

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do brinquedo de miriti tema do “2º Miritifest”, escrita por João de Jesus Paes

Loureiro e interpretada pelo cantor e compositor Cabinho Lacerda, por considerar

que a ação cotidiana movida pelo sonho cria uma marca identitária, inventa, recria e

solidifica sua cultura e educa propagando entre gerações saberes, experiências e

valores de vida.

Vai curumim lá no mato vai lá buscar miriti, corta pedaços bem secos tira sua tala pra mim. Traz a faquinha afiada linha de pesca e formão, Lixa da fina e sovela. Larga a preguiça, João! Diz pra Mundica que faça Nossa criança dormir, Pegue na tinta e me traga Pra me ajudar colorir. O Círio de Nazaré vem, Vem antes da conceição. Corre Mundica e me ajude, Mas não me deixa na mão. Do artesão nasceram aves De sua mão pra voar, Nasce a cobra se mexendo assim E casais só pra dançar. Olha o pato no paneiro E as “girandas” pelo ar. Soca-soca está pilando assim... As barquinhas não tem mar. Quem diria Que o sonho brotou da mão. Que é de sonhos A casa de um artesão. Quem diria Que um anjo desceu ao chão. Quem diria Que o anjo virou artesão.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA TÍTULO DA PESQUISA: Brinquedos de Miriti: Educação, Identidade e Saberes Cotidianos ORIENTADORA: Profª. Drª. Nazaré Cristina Carvalho MESTRANDA: Claudete do Socorro Quaresma da Silva

DIA:

HORA:

LOCAL:

1. IDENTIFICAÇÃO

a) Nome:

b) Idade:

c) Local de nascimento:

d) Endereço residencial:

e) Profissão:

f) Com quem você foi criado (pai, mãe ou outros familiares)?

g) Em que eles trabalhavam?

h) Quantos irmãos você tem?

i) Estado civil:

j) Tem filhos? Quantos?

2. EDUCAÇÃO

a) Você frequentou escola quando era criança?

b) Até que série você estudou?

c) Quando e onde começou a estudar?

d) Quais dificuldades encontradas para estudar?

e) O que significa a escola para você?

f) Alguma vez na escola os diversos aspectos do miriti foram abordados?

g) Quem estuda da sua família? Onde?

3. BRINQUEDO DE MIRITI

3.1 HISTÓRIA E IDENTIDADE

a) Há quanto tempo você faz brinquedo de miriti?

b) Quando criança você brincava com brinquedos de miriti? Quais? Quem os fazia?

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c) Desde quando você conhece ou ouviu falar do brinquedo de miriti?

d) Você é membro de alguma associação de artesãos de miriti? Qual? Há quanto

tempo? Desempenha ou desempenhou função na diretoria?

e) Qual a importância da associação para você?

f) Quando você começou a comercializar o brinquedo de miriti? Onde (feiras,

festejos religiosos)?

g) Sua renda familiar vem do miriti, ou você tem outra fonte de renda? Qual?

3.2 SABER E CULTURA

a) Como, com quem e onde você aprendeu a fazer o brinquedo?

b) Tem mais alguém de sua família que trabalha como artesão do miriti? Quem

são? Vocês trabalham juntos? Dividem tarefas? Como?

c) Quais peças (pássaros, barcos, casas, chaves, outros) você costuma fazer?

Qual a que você se identifica mais? Por quê?

d) Qual o significado dessas peças para você?

e) Ao confeccionar um brinquedo o que você deseja transmitir para as pessoas

com esse objeto?

f) Você confecciona sempre os mesmos brinquedos ou você vai mudando e

acrescentando novas peças?

g) Você utiliza algum critério para escolha e decisão dos objetos que você vai

confeccionar para exposição e venda em eventos? Qual?

h) Você já participou de algum curso, oficina ou outros eventos relacionados à

feitura do brinquedo de miriti? Onde, quando, com quem?

i) Qual a importância desse curso ou oficina para sua atividade?

j) Você ensina ou já ensinou para outras pessoas a fazer o brinquedo de miriti?

Como? Onde?

k) Você conhece e pratica todas as etapas da confecção do brinquedo de miriti?

Descreva-a

l) Você confecciona outras peças artesanais de miriti sem ser o brinquedo? Quais?

m) Como se dá o seu processo de criação? (procurar saber se há um planejamento

prévio de toda a feitura do brinquedo, se eles pensam em um determinado modelo

ou tipo, de alguma coisa que ele viu; procurar saber se a televisão, revistas, etc.

também os inspiram na criação).

n) O que significa o brinquedo de miriti para você?

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APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE

BRINQUEDOS DE MIRITI: EDUCAÇÃO, IDENTIDADE E SABERES COTIDIANOS

O senhor está sendo convidado a participar da pesquisa de mestrado,

intitulada: “Brinquedos de Miriti: educação, identidade e saberes cotidianos”,

vinculada ao programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, da

Universidade Estadual do Pará, linha da pesquisa Saberes Culturais e Educação na

Amazônia, orientada pela Profª. Drª. Nazaré Cristina Carvalho.

Esta pesquisa tem como objetivo analisar os processos educativos

presentes na feitura dos brinquedos de miriti. Esclarecemos que sua participação é

muito importante para o desenvolvimento da pesquisa, e que a mesma será por

meio de entrevista, cujo instrumento foi elaborado por nós a respeito do tema

pesquisado.

Para registro das respostas, utilizaremos anotação direta e, se o senhor

permitir será utilizado um gravador LG digital e filmadora da marca Sony para

capturar sua voz e sua imagem por meio de filmagem durante a entrevista e nos

momentos de observação a fim de evidenciar aspectos sobre a educação, os

saberes e a cultura desta tradição.

Informamos que todas as despesas da pesquisa serão de

responsabilidade da pesquisadora responsável, portanto não lhe caberá ônus. E

esclarecemos que sua participação será voluntária, portanto não lhe caberá

pagamento.

Ressaltamos que o senhor pode retirar o seu consentimento a qualquer

momento, sem que isso ocorra em penalidade de qualquer espécie, e lhe

devolveremos todo e qualquer material referente à sua pessoa (gravações,

filmagens e anotações).

Caso permita haverá divulgação de seu nome na pesquisa, caso

contrário, as informações serão de uso exclusivamente científico, portanto suas

identificações pessoais serão mantidas em sigilo e guardadas de acordo com os

princípios éticos de preservação do indivíduo, no caso da publicação da pesquisa

em meios científicos e de comunicação.

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_______________________ _______________________ Pesquisadora Orientadora

Claudete do S. Q. da Silva Nazaré Cristina Carvalho (91) 91624713 (91) 91884231

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, __________________________________________, declaro que li as informações

acima sobre a pesquisa, que me sinto perfeitamente esclarecido sobre o conteúdo da

mesma. Declaro ainda que, por minha livre vontade, aceito participar da pesquisa e

cooperar com a coleta de informações para a mesma, assim como autorizo a captura e o

uso de minha imagem, voz e nome.

Abaetetuba, ______/______/______.

________________________________

Assinatura do sujeito da pesquisa

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APÊNDICE C – DECLARAÇÃO DE ACEITE DA ORIENTADORA

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – MESTRADO

LINHA DE PESQUISA: SABERES CULTURAIS E EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS E

EDUCATIVAS

DECLARACÃO

Eu, Nazaré Cristina Carvalho, aceito orientar a dissertação intitulada

“Brinquedos de miriti: educação, identidade e saberes cotidianos”, de autoria

da mestranda Claudete do Socorro Quaresma da Silva, declarando ter total

conhecimento das normas de realização de Trabalhos Científicos vigentes, estando

inclusive ciente da necessidade de minha participação na banca examinadora por

ocasião da defesa da dissertação. Declaro ainda ter conhecimento do conteúdo da

pesquisa ora entregue para o qual dou meu aceite pela rubrica das páginas.

Belém – Pará, de novembro de 2011.

Assinatura e carimbo Telefone: (91) 91884231

___________________________________________

NAZARÉ CRISTINA CARVALHO

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APÊNDICE D – RESULTADO DA PESQUISA EXPLORATÓRIA PARA ESCOLHA

DOS SUJEITOS DA PESQUISA

Nº DE VOTANTES: 46

IDENTIFICAÇÃO Nº DE VOTOS

A 01

B 03

C 03

D 03

E 04

F 01

G 04

H 03

I 04

J 01

K 02

L 01

M 02

N 02

O 01

P 01

Q 02

R 01

S 02

T 01

U 01

V 01

X 03

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Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

Rua Djalma Dutra, s/n – Telégrafo 66113-200 – Belém – Pará – Brasil

www.uepa.br