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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X BRINCAR DE FAZER CINEMA COM CRIANÇAS: PENSAR EM SI E NO MUNDO Constantina Xavier Filha Resumo: O presente trabalho pretende descrever e problematizar as experiências vividas em projetos de pesquisa e de extensão na produção de filmes de animação com crianças nos anos de 2010 a 2013, na cidade de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Para Larrosa (2014), experiência é como travessia, passagem, trajetória do vivido, algo que nos acontece e, ao acontecer, nos transforma. Ela é, para o autor, singular, impossível de ser repetida; é atenção, é escuta e é disponibilidade. A experiência de produção de seis filmes de animação com as crianças foi realizada em todos esses momentos. No presente texto, ela será problematizada a partir de pressupostos foucaultianos do cuidado de si e do outro, da ética e da estética da existência. Para as crianças, na medida em que puderam realizar o exercício do pensamento, de se colocar como objeto do pensamento, de pensar em si, nas outras pessoas e no mundo. Brincar de pensar, de fazer cinema brincando e de pensar em si, nos/as outros/as e no mundo foram as tônicas vividas e experienciadas em todo o processo de pré-produção, produção e planejamento da edição dos filmes. Palavras-chave: Filme de animação. Cuidado de si. Problematização. Ética. Estética da existência. Os pensamentos viraram arte. [...] Mais legal mesmo foram as nossas risadas, nossas brincadeiras”. Eu aprendi que a gente precisa respeitar as outras pessoas e trabalhar em grupo, cuidar muito bem das coisas e aceitar a opinião das pessoas. [...] Tina você me fez uma pessoa feliz”. "Aprendi a fazer novas amizades. Antes eu era muito fechada com todos e até mudei meu comportamento para melhor, dentro e fora da escola". Eu gostei de quando a gente falou que meninos podem chorar”. Foi muito especial, pensamos muito. É bom porque o filme é de todos!” 1 Inicio este artigo com as manifestações de crianças que participaram de projetos de produção de filmes de animação sobre as experiências por elas vividas. Elas falam sobre pensamentos, risadas, brincadeiras, aprendizados, respeito pelas pessoas, trabalho em colaboração e em grupo, de aceitação da opinião das pessoas, de felicidade, amizade, mudanças, novas formas de ser menino (e também de ser menina!), considerando as múltiplas maneiras de ser a partir da experiência do pensamento. Acredito que esta seja a síntese das muitas vivências que, de diferentes modos, juntos/as percorremos ao longo de quatro anos dos projetos de pesquisa e de extensão em uma escola pública municipal de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul. Falar das experiências nos remete ao que Larrosa (2014) atribui a travessia como passagem, trajetória do vivido, algo que nos acontece e, ao acontecer, nos transforma. Ela é, para o autor, singular, impossível de ser repetida; é atenção, escuta e disponibilidade. “A experiência é o que nos 1 Texto das crianças no instrumento de pesquisa O que de mais legal vivi/aprendi no projeto. Autoria das frases, por ordem: Fabrício, menino, 6º ano, 12 anos, Turma de 2012; Karla Gabriela, menina, 5º. A, Turma de 2011; Bruna Beatriz, menina, 5º. B, 12 anos, Turma de 2012; Ana Beatriz, menina, 5º. A, Turma 2010; Laura de Castro, menina, 6º.A, Turma de 2013.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

BRINCAR DE FAZER CINEMA COM CRIANÇAS: PENSAR EM SI E NO MUNDO

Constantina Xavier Filha

Resumo: O presente trabalho pretende descrever e problematizar as experiências vividas em projetos de pesquisa e de

extensão na produção de filmes de animação com crianças nos anos de 2010 a 2013, na cidade de Campo Grande,

capital do Mato Grosso do Sul. Para Larrosa (2014), experiência é como travessia, passagem, trajetória do vivido, algo

que nos acontece e, ao acontecer, nos transforma. Ela é, para o autor, singular, impossível de ser repetida; é atenção, é

escuta e é disponibilidade. A experiência de produção de seis filmes de animação com as crianças foi realizada em

todos esses momentos. No presente texto, ela será problematizada a partir de pressupostos foucaultianos do cuidado de

si e do outro, da ética e da estética da existência. Para as crianças, na medida em que puderam realizar o exercício do

pensamento, de se colocar como objeto do pensamento, de pensar em si, nas outras pessoas e no mundo. Brincar de

pensar, de fazer cinema brincando e de pensar em si, nos/as outros/as e no mundo foram as tônicas vividas e

experienciadas em todo o processo de pré-produção, produção e planejamento da edição dos filmes.

Palavras-chave: Filme de animação. Cuidado de si. Problematização. Ética. Estética da existência.

“Os pensamentos viraram arte. [...] Mais legal mesmo foram as nossas risadas,

nossas brincadeiras”.

“Eu aprendi que a gente precisa respeitar as outras pessoas e trabalhar em grupo,

cuidar muito bem das coisas e aceitar a opinião das pessoas. [...] Tina você me fez

uma pessoa feliz”.

"Aprendi a fazer novas amizades. Antes eu era muito fechada com todos e até

mudei meu comportamento para melhor, dentro e fora da escola".

“Eu gostei de quando a gente falou que meninos podem chorar”.

“Foi muito especial, pensamos muito. É bom porque o filme é de todos!”1

Inicio este artigo com as manifestações de crianças que participaram de projetos de

produção de filmes de animação sobre as experiências por elas vividas. Elas falam sobre

pensamentos, risadas, brincadeiras, aprendizados, respeito pelas pessoas, trabalho em colaboração e

em grupo, de aceitação da opinião das pessoas, de felicidade, amizade, mudanças, novas formas de

ser menino (e também de ser menina!), considerando as múltiplas maneiras de ser a partir da

experiência do pensamento. Acredito que esta seja a síntese das muitas vivências que, de diferentes

modos, juntos/as percorremos ao longo de quatro anos dos projetos de pesquisa e de extensão em

uma escola pública municipal de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul.

Falar das experiências nos remete ao que Larrosa (2014) atribui a travessia como passagem,

trajetória do vivido, algo que nos acontece e, ao acontecer, nos transforma. Ela é, para o autor,

singular, impossível de ser repetida; é atenção, escuta e disponibilidade. “A experiência é o que nos

1 Texto das crianças no instrumento de pesquisa O que de mais legal vivi/aprendi no projeto. Autoria das frases, por

ordem: Fabrício, menino, 6º ano, 12 anos, Turma de 2012; Karla Gabriela, menina, 5º. A, Turma de 2011; Bruna

Beatriz, menina, 5º. B, 12 anos, Turma de 2012; Ana Beatriz, menina, 5º. A, Turma 2010; Laura de Castro, menina,

6º.A, Turma de 2013.

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passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca”

(LARROSA, 2014, p. 18).

Ao longo desses quatro anos, de 2010 a 2013, vivemos2 um labirinto de emoções, sensações,

emoções, ideias, produções, dúvidas... que nos aconteceram e nos tocaram profundamente, não só

às pessoas adultas, mas também às crianças. Percorremos labirintos que nos permitiram fazer

pesquisa com crianças em duas investigações3, e em quatro projetos de extensão4. Nessa trajetória

do vivido, percebemos a importância e o papel da universidade pública em desempenhar sua função

na integralização dos pilares ensino-pesquisa-extensão. O ensino esteve associado ao que ‘bebemos’

na pesquisa e na extensão. Tais ações, por seu caráter indissociável, interligaram-se e se

retroalimentaram. As informações das pesquisas eram problematizadas nas disciplinas do curso de

Pedagogia e em momentos de socialização dessas informações no âmbito da universidade. As ações

de extensão tinham por objetivo estar mais próximas da realidade da comunidade escolar, para além

dos muros universitários e dos de pesquisa. No caso, era sentir de perto o mundo das crianças, para

pensar junto com elas assuntos que considerassem importantes para uma existência bela. A

indissociabilidade se deu ao longo dos projetos, ao demonstrar nosso interesse uns pelos/as

outros/as, em aprender com o/a outro/a, pela nossa preocupação e respeito pela escola pública, pela

vontade de estar junto com as crianças e aprender com elas, de produzir juntos/as, de viver a

experiência da escuta, da atenção e da disponibilidade, como destaca Larrosa (2014).

As experiências vividas demandaram entrega, minha, da equipe (composta de acadêmicas do

curso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e das crianças. Muitos

desafios foram vividos; muitos foram os ganhos, os acertos, os erros, as dúvidas, as incertezas, que

fizeram parte de todo o processo. Hoje, recorro a todos os vestígios da memória para revisitar essas

experiências: às produções; instrumentos de pesquisa; vozes das crianças; fotografias; vídeos;

desenho; depoimentos, diários de campo, anotações, filmes e livros produzidos. Apesar disso, esse

revisitar é uma produção, ou uma ficção. “Uma experiência é sempre uma ficção; é algo que se

fabrica para si mesmo, que não existe antes e que existirá depois” (FOUCAULT apud CASTRO,

2009, p. 162). As experiências são ficções, assim como o que se escreve sobre elas, pois são

2 Utilizarei, neste artigo, a primeira pessoa do singular como pesquisadora e autora do texto; em outros momentos, na

primeira pessoa do plural, por trazer as vozes de todas as pessoas que participaram dos projetos: crianças;

colaborares/as de pesquisa, dentre eles/as integrantes do – Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, Educação

e Gênero (Gepsex) e acadêmicas do curso de Pedagogia da UFMS, bolsistas de extensão e voluntárias. 3 Gênero e sexualidade em livros infantis: análises e produção de material educativo para/com crianças – apoio CNPq

(2008-2012) e Representações de violência dentro e fora da escola nas vozes de crianças – apoio CNPq (2012-2013). 4 Educação para a sexualidade, gênero e direitos humanos de crianças: produção de materiais didáticos para/com a

infância (2010); Produção de Filme de Animação com crianças (2011); Produção de Filme de Animação com

crianças – 2012 (2012), e Produção de Filme de Animação com crianças – 2013 (2013).

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inventadas, recriadas, repensadas. Não há uma ‘essência’ nelas, ou uma ‘verdade’ a ser proferida.

São criações e recriações, algo que faço neste momento. A experiência, para Foucault (CASTRO,

2009, p. 162), também é um processo de dessubjetivação. Ou seja, na vivência de experimentar,

experimentamo-nos, e, com isso, deixamos de ser quem éramos. Talvez por isso a experiência seja

algo que nos toca, nos acontece; por ser tão singular, nos transforma. Não pode se repetir da mesma

forma. Outras experiências podem acontecer, mas nunca daquela mesma forma, porque não somos

mais os mesmos e as mesmas que antes. Não somos mais as mesmas pessoas que iniciaram os

projetos em 2010. As crianças que fizeram parte dos projetos não são as mesmas agora, nem eram

as mesmas que iniciaram cada uma das experiências. Estamos em constante processo de

subjetivação e dessubjetivação. Constantes mudanças... muitas delas propiciadas pelas experiências

de vivências e pensamentos dos projetos.

As experiências de rever e rever-se em cada um dos projetos vividos foi realizada ao longo

da pesquisa de pós-doutorado, realizado de abril de 2014 a abril de 2015, na Unicamp, com

supervisão do prof. dr. Sílvio Gallo. Durante essa pesquisa, também pude viver múltiplas

experiências de rever e rever-me. Precisava de tempo, como diz Larrosa (2014), para interromper

toda aquela sequência de trabalhos realizados e buscar entender a trajetória desse vivido:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de

interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para

pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e

escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,

suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da

ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,

ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p. 25).

A experiência de pensar e rever os vestígios das trajetórias vividas nos projetos requereu

“um gesto de interrupção”, como diz o autor. Interrupção para parar para pensar, olhar, escutar de

forma vagarosa e sentir, pensar nos detalhes sem o automatismo da ação, cultivar a atenção, a

delicadeza, o olhar sensível e, sobretudo, cultivar a “arte do encontro”. Em muitos momentos, calei-

me, chorei, emocionei-me, pensei em como poderia fazer diferente. Emoção também acrescida pelo

falecimento de uma integrante da equipe nesse período. Os sentimentos vividos nesse revisitar da

experiência, e com isso viver outro tipo de experiência, denotam não haver neutralidade no processo

de pesquisar.

Ao mesmo tempo em que pretendi realizar uma discussão sobre a experiência vivida nos

momentos do projeto, lancei mão do processo de problematização, pensado na perspectiva

foucaultiana. Pretendi, acatando a sugestão de Marshall (2008, p. 31), proporcionar-me a liberdade

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de me separar do que fazia – dando um passo atrás, o que seria uma “forma de estabelecê-lo como

um objeto de pensamento e a refletir sobre ele como um problema”, ou, como escreve Foucault,

exercitar o pensamento sobre o vivido:

O pensamento não é o que presentifica em uma conduta e lhe dá um sentido; é, sobretudo,

aquilo que permite tomar uma distância em relação a essa maneira de fazer ou de reagir, e

tomá-la como objeto do pensamento e interrogá-la sobre seu sentido, suas condições e seus

fins. O pensamento é liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento pelo qual dele

nos separamos, constituímo-lo como objeto e pensamo-lo como problema (2004, p. 231-

232).

Marshall (2008) parte de uma entrevista de Foucault para Paul Rabinow, sobre os conceitos

de problemática e problematização, para pensar sobre eles em suas pesquisas. Sobre pensamento,

utiliza uma citação de Foucault:

Pensamento não é o que habita uma certa conduta e dá a ela seu significado; em vez disso, é

o que o permite a alguém dar um passo para trás em relação a essa forma de agir e reagir, a

apresentá-la como um objeto de pensamento e questioná-la em relação a seu significado,

suas condições e sua metas (FOUCAULT, 1984 apud MARSHALL, 2008, p. 30).

Dar um passo atrás. “É a liberdade de separar-se do que se faz, é o movimento pelo qual

alguém se separa do que faz, de forma a estabelecê-lo como um objeto de pensamento e a refletir

sobre ele como um problema” (MARSHALL, 2008, p. 31). É, continua o autor, questionar

significados, tratar o objeto de pensamento como um problema, pensar que respostas possam ser

propostas, mas sem se apresentar como solução ou resposta.

Este foi o desafio empreendido na pesquisa de pós-doutorado ao observar e problematizar a

experiência vivida. Vários questionamentos foram feitos:

Por que fazer cinema com crianças?

Por que a opção pela linguagem cinematográfica e pensar sobre ela?

Por que produzir com e para as crianças?

Por que crianças de escola pública?

Por que a opção pelo cinema de animação?

Como fazer cinema brincando com as crianças?

Por que brincar de fazer cinema?

O que é brincar para a criança nesse processo?

O que significa brincar de produzir linguagem cinematográfica?

Quais as relações entre brincar de fazer cinema e brincar de pensar sobre si e sobre o

mundo? Por que pensar a vida a partir dessa “janela” para o mundo?

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Muitos questionamentos, alguns serão discutidos aqui, outros me perseguirão nessa jornada

de pesquisa e projetos de extensão com as crianças. A teoria foucaultiana serviu como caixa de

ferramenta nesse exercício de análise. Sobre o termo ‘caixa de ferramenta’, Deleuze, em uma

entrevista com Foucault (2003), utilizou o termo para referir-se à ‘utilidade’ de uma teoria. “Uma

teoria é exatamente como uma caixa de ferramentas. Nada a ver com o significante... É preciso que

isso sirva, é preciso que isso funcione” (FOUCAULT, 2003, p. 39). Os conceitos da teoria

foucaultiana sobre ética e estética do sujeito ajudaram-me a pensar no processo de produção de

filmes com crianças, aspectos que passo a descrever a seguir.

1) CAMINHOS E TRAJETÓRIAS DA PRODUÇÃO DE FILMES COM CRIANÇAS

A trajetória de problematização empreendida nas várias experiências de produção de filmes

de animação com as crianças nos anos de 2010 a 2013 levaram-me a pensar sobre o local e o

particular de experiências realizadas em determinada parte do País, com sujeitos específicos, de

práticas concretas e que não promovem ideias universais e generalizantes, capazes de dizer de todas

as crianças e de todas as práticas análogas que vivemos. As práticas e relações vividas possuem

singularidades, proximidades e distanciamentos, seja entre as próprias crianças que as viveram, seja

em relação às várias versões dos projetos nos anos citados. Por esse motivo, não pretendo

generalizar os processos vividos a outras realidades de crianças ou a outros projetos que se

proponham produzir filmes com esse público.

O que se buscou, nas várias experiências com as crianças, foi propiciar momentos de livre

pensamento sobre assuntos nem sempre aceitos e debatidos com o público infantil em escolas.

Pretendeu-se utilizar a linguagem cinematográfica e o processo de produção de filmes como

experiências de pensamento e produção de subjetividades, na medida em que se colocavam os

sujeitos como objeto de pensamento; para discutir assuntos pouco debatidos na escola, como

sexualidade; gênero; diferença; violência contra crianças e direitos humanos; na produção do eu-

outro-mundo, nos processos de cuidado de si e do/a outro/a, no processo ético e estético da

existência de pessoas adultas e de crianças.

As experiências com as crianças foram realizadas no âmbito de projetos de pesquisa (com

apoio do CNPq) e de extensão (com apoio da pró-reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos

Estudantis – PREAE/UFMS). Apesar das especificidades temáticas de cada projeto desenvolvido,

as experiências com as crianças tinham etapas interdependentes.

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Os projetos, durante os anos citados, ocorreram em uma escola pública municipal na cidade

de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. O público atingido foi de alunos do 5º ano do

Ensino Fundamental. Tivemos um público aproximado de 178 crianças, com idades médias entre 9

e 12 anos de idade. Alguns adolescentes também participaram, embora em menor quantidade. O

grupo, em todos os anos, contou com 44% de público masculino e 56% de público feminino.

Durante esse período, foram produzidos seis filmes5 de animação.

A primeira etapa dos projetos denominei, na pesquisa de pós-doutorado, de “brincar de

pensar em si e no mundo”. Consistia em saber o que as crianças sabiam sobre o tema escolhido.

Várias metodologias de pesquisa com crianças foram desenvolvidas, seja a roda de conversa, a

elaboração de pequenos textos e desenhos, a produção de pequenas histórias individuais ou

coletivas. Buscava-se destacar as falas e saberes das crianças.

O momento subsequente era o da problematização dos temas. O exercício do pensamento

era acionado. Sabemos que pensar não é algo inato na vida dos sujeitos, pois não nascemos

pensando, mas aprendemos a pensar. Gallo (2012) assegura que o pensamento é “produzido,

fabricado, inventado” (GALLO, 2012, p. 108). Aprendemos a pensar, ainda segundo o mesmo

5 Em 2010, foi produzido o filme "Jéssica e Júnior no mundo das cores" (3 min.), realizado juntamente com a

Produtora Animare, Minas Gerais; nele se conta a história de uma menina que se transforma em cor-de-rosa de tanto

viver imersa em um mundo rosa. O mesmo ocorre com o menino, que se torna azul. Ambos passam a questionar essa

transformação e encontram, conjuntamente, a saída para voltar às cores de origem. O filme foi baseado em um livro

infantil de autoria de Tina Xavier denominado A menina e o menino que brincavam de ser (2009). No ano seguinte,

2011, dois filmes foram produzidos. O primeiro, fruto de um curso de documentário, Ser Criança em Campo Grande:

um documentário animado (9 min.). O filme contou a história de uma menina e um menino que narram seu dia vivido

em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Descrevem o que mais gostam de fazer na cidade e a imaginam

governada por crianças super-heroínas, com chuva de doces e balas, transformada em docelândia, sorvetelândia e

guaranalândia. Declaram seu amor e apreço pela cidade e esperam que ela seja cada dia melhor para as crianças e

demais pessoas que nela vivem. O outro filme foi A Princesa Pantaneira (9 min.). A história é a de uma princesa que

vive no Pantanal sul-mato-grossense. É alegre, valente, corajosa, gosta de aventura e, no final, salva o príncipe em

perigo. As representações de feminilidade e masculinidade são tensionadas no roteiro do filme. As características da

princesa pantaneira contrapõem-se às que as crianças tinham destacado inicialmente, o que serviu para dar ideia do

quanto esse processo ajudou a refletir sobre o que é ser menino e menina na sociedade e sobre como se podem

construir novas formas de ser. Em 2012, o filme foi Queityléia em perigos reais (9 min.) conta a história de uma

menina que, em sonho, faz tudo o que sempre quis fazer dentro de casa, colocando-se em situações de perigo e de

vulnerabilidade. No ano de 2013, dois filmes foram produzidos. O filme Direitos das crianças: uma aventura

intergaláctica (9 min.), feito com a técnica de 2D, conta a história de amizade de duas crianças terráqueas, Lila e

Luiz, residentes em Campo Grande, próximo à escola das crianças do projeto, com crianças ETs, Etvaldo e Etnilda,

habitantes do Planeta Timbum. Lila e Luiz convidam-nas a passear no planeta Terra. Chegando aqui, conhecem a

realidade de outras crianças terráqueas: as que vivem com cuidado, alimentação e proteção; e as que são violadas,

maltratadas, que sofrem todo tipo de violação de direitos. Crianças, terráqueas e ETs resolvem denunciar essa situação

e vão para a rua exigir que seus direitos sejam garantidos. O outro filme, também produzido em 2013, João e Maria:

dos contos à realidade (9 min.), realizado com a técnica de stop motion (gravação quadro-a-quadro), é o reconto

contemporâneo do conto de fadas do mesmo nome. João e Maria são irmãos e foram vendidos/as pelo pai e a mãe a

um ‘casal mau’, que morava em uma casa de doces. Lá deveriam realizar trabalhos forçados e também seriam

obrigados a pedir dinheiro no semáforo. Descobriram que muitas outras crianças eram escravizadas pelo mesmo casal.

Conseguem encontrar a chave da liberdade e se libertam. Ligam para o disque 100 e vão para um abrigo aguardar por

uma vida nova. Todos os filmes estão disponibilizados na plataforma do youtube.

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autor, inventando nossas próprias maneiras de nos relacionar com os signos do pensamento. A partir

dos conceitos deleuzianos, Gallo escreve que o “pensar é experimentar o incômodo do

desconhecido, do ainda-não pensado e construir algo que nos possibilite enfrentar o problema que

nos fez pensar” (2012, p. 72).

Um dos meninos que participou desse momento de pesquisa dizia, em um dos encontros,

que a sua cabeça iria “estourar” de tanto pensar, que nunca tinha pensado tanto como naquele dia de

discussão. O que revela essa fala? Será que a escola se tem prestado a esse papel de instigar e

ensinar os/as alunos/as a pensar? Ou as crianças acabam reproduzindo dizeres e exercitando pouco a

sua capacidade de criticar, questionar, problematizar assuntos que lhes dizem respeito ou que estão

presentes no mundo?

Este era o momento de pensar e pensar diferente, pensar sob várias perspectivas, questionar

por que pensamos assim e não de outra maneira. Este é um exercício da própria filosofia, o

exercício ou experiência de pensamento. A atividade filosófica, pergunta-se Foucault, não é o

“trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de

que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente, como legitimar o que já se sabe?”

(FOUCAULT, 2014, p. 14). Filosofia, para o autor, é uma ascese, um exercício de si no

pensamento.

A criança já foi pensada no passado como um ser ‘sem fala’ e, daí, ‘sem pensamento’. Os

nossos projetos propiciaram formas diferentes de pensar a criança e de ela própria exercitar o

pensamento como sujeito ativo e com condições de pensar e argumentar sobre assuntos que lhes

dissessem respeito. Isto só foi possível porque reservamos espaço para escutá-las, para instigá-las a

pensar, repensando sobre os ditames do mundo adultocêntrico, dentre tantos outros assuntos.

O início desse processo foi difícil. Elas não apresentavam repertórios linguísticos para falar

sobre o que pensavam, nem mesmo conseguiam respeitar as falas dos/as próprios/as colegas.

No decorrer dos encontros, aos poucos, demonstraram prazer em estar no grupo e em

perceber que havia pessoas adultas interessadas em ouvi-las. O processo de ouvir e ser ouvido/a foi

construído ao longo de nossos encontros. No início, além de todas as crianças falarem ao mesmo

tempo, não se estabelecia que atitudes seriam pertinentes para a experiência de ouvir o outro sujeito.

Era comum uma criança falar sobre uma realidade vivida e as outras não a ouvirem, ou, quando

conseguia falar, ser alvo de chacota. Nos primeiros anos da pesquisa, havia até mesmo certa

desconfiança de parte de algumas crianças quanto ao papel da pesquisadora. Perguntavam se

iríamos contar o que ouvíamos nos encontros da pesquisa para a direção da escola ou para a

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professora regente da sala; se seriam penalizados/as por isso; se as suas notas seriam prejudicadas

por essas atitudes. Outra questão que ocorria no início dos encontros era que as crianças utilizavam

palavras isoladas, com repetições para expressar suas opiniões e sentimentos acerca das temáticas

dos estudos. Repetiam palavras como: legal! porque sim! Ou não conseguiam verbalizar muita

coisa, calando-se, ou fazendo ruídos.

Duas possibilidades de discussão podem ser pensadas a respeito. A primeira, sugere a

existência de pouca interação verbal entre adultos e crianças e entre crianças e crianças na escola,

no que concerne a assuntos que dizem respeito a sentimentos, especialmente sobre temas

considerados pouco discutidos para a infância, como sexualidade e violência contra criança,

especialmente a sexual. Como são palavras sobre as quais não se discute diante delas, por se

considerarem infantis, ‘assexuadas’, ‘ingênuas’, o resultado é não disporem de repertórios verbais e

de empatia pelo/a outro/a no grupo ao falarem a respeito.

Outra argumentação sobre a problemática é que, se a escola reserva pouco ou quase nenhum

espaço para o diálogo e a discussão, elas também não desenvolvem a possibilidade da escuta, nem

da oralidade. Com os encontros sistemáticos da pesquisa, aos poucos elas foram criando outras

atitudes, na medida em que lhes foi oportunizada a experiência da escuta, da discussão, do diálogo,

da prática da experiência de ouvir a outra pessoa, de viver a experiência da escuta e do cuidado com

o/a outro/a.

Outro momento vivenciado no projeto foi a produção coletiva do filme de animação.

Chamei a esta etapa de “fazer cinema brincando”. As crianças participaram de todo o processo de

pré-produção, produção e planejamento da pós-produção com as ideias para a edição dos filmes. A

questão que se colocava, dentre tantas, era a de por que produzir com crianças.

Sabemos que elas são consumidoras vorazes da linguagem audiovisual, sobretudo de filmes,

dentre eles os de animação. Elas, porém, nem sempre participam do processo de produção dos

filmes. A linguagem utilizada parte de sujeitos adultos para crianças, e não o contrário. Por esse

motivo, iniciamos essa experiência com elas, sabedores/as de que elas têm muito a nos dizer, desde

que se lhes ofereça espaço e condições para essa discussão e produção. Por que privilegiar a

linguagem cinematográfica com crianças?

No livro Princesa Pantaneira, em brincando no mundo mágico do cinema (2014), um ponto

dá ênfase à magia do cinema:

O cinema é uma maravilhosa maneira de contar histórias. Leva-nos a mundos distantes e

diferentes. Faz-nos chorar, sorrir, ficar com raiva, sentir dor, fome, sede, tristeza, alegria,

medo [...] Com ele, nos divertimos e vivemos muitas vidas; ele nos faz pensar em quem

somos e como queremos ser (XAVIER, 2014, p. 5).

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A linguagem do cinema de animação foi escolhida por ser capaz de dialogar com a

imaginação e a ludicidade da criança. De acordo com a mesma fonte (2014, p. 8), “os filmes de

animação são formas de contar histórias no cinema que nos levam para mundos mágicos,

fantásticos, inimagináveis...”, ou:

Animação é criação; é dar vida a algo que antes nem sequer existia. Um botão pode virar

um menino; uma xícara vira uma princesa; um copo vira dragão; uma massinha vira um

monstro. Animar é dar vida a qualquer coisa como objetos, desenhos, bonecas, massinhas.

No cinema de animação, tudo é possível para inventar o que quisermos; nossa imaginação

voa (2014, p. 9).

A ludicidade, a capacidade de brincar de pensar e produzir histórias foram elementos

privilegiados na experiência adotada nos encontros do projeto. Esteve atrelada a essas questões a

possibilidade de propiciar às crianças o exercício do pensamento e a capacidade de pensar sobre si

mesmas à medida que produziam histórias com imagens e sons:

O que me parece essencialmente pedagógico no cinema é a possibilidade que ele nos dá em

termos de constituição de subjetividades, em termos de conhecimento de nós mesmos e do

mundo. Isso me parece pedagógico no cinema – alargar a minha visão de mundo através do

conhecimento de outras culturas, através do olhar de outros diretores. Trata-se de uma

possibilidade de ver o mundo de diferentes pontos de vista, tanto material quanto

simbolicamente. Então, se o cinema tem alguma coisa de pedagógico, me parece que passa

muito mais por esse conhecimento de mundo e de si próprio, assim como pela experiência

que está entre o que significa descobrir e inventar o mundo. O cinema oferece essa

possibilidade (FRESQUET, 2012, p. 65).

A autora ressalta essa possibilidade vigorosa do cinema: ver o mundo a partir de diferentes

pontos de vista; inventar novos mundos, novas realidades, novas formas de ser; alargar a visão de

mundo; possibilitar pensar a si próprio e com isso produzir novas formas de subjetivação. Ao fazer

cinema, essas questões são acionadas também na medida em que trabalhamos a cooperação entre os

membros, a dialogicidade, a coletividade, o cooperativismo e o sistema colaborativo. Aspectos

pouco aceitos e trabalhados numa sociedade individualista e pouco solidária como aquela em que

vivemos.

Este processo foi vivenciado na produção coletiva dos filmes e também nos momentos de

fruição e discussão de filmes já produzidos e de livros para a infância com as temáticas escolhidas

para os projetos: gênero, sexualidade, violência contra crianças e direitos humanos.

Nesses momentos, propiciávamos o exercício de pensar sobre si, sobre o outro e sobre o

mundo pela janela do cinema. A dúvida e a suspeita eram acionadas para estranhar o pretensamente

conhecido e determinado como ‘verdade única’. Pretendíamos desnaturalizar o que era tido como

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normal e natural. Não tínhamos como pressuposto, ou premissa, levar as nossas verdades, mas

promover o pensamento múltiplo sobre várias coisas, pensar muito e tentar pensar diferente.

O que pretendemos foi construir novas perspectivas teórico-metodológicas e éticas na

condução e mediação das discussões com as crianças. Aprender junto com elas e promover

discussões fez parte do grande e delicioso desafio vivido nesse processo. Acredito que foi o que

desenvolvemos com as crianças nos encontros dos projetos nos anos analisados.

Ouvir as crianças com atenção, respeito, levá-las a sério e propiciar espaços compartilhados

de aprender levou-nos a ouvi-las em um diálogo compartilhado, recíproco e coletivo. O desafio

empreendido foi estabelecer um espaço comum entre pessoas adultas e crianças, entre crianças-

crianças, enfim, entre seres humanos. Durante nossos encontros, pudemos e tentamos realizar essas

possibilidades; pudemos realizar encontros mais próximos e menos hierarquizados entre adultos e

crianças.

No processo de produção coletiva e no exercício de pensamento, as crianças puderam pensar

em si como sujeitos éticos e estéticos. O mesmo ocorreu entre as pessoas adultas, que puderam

pensar a si próprias nas relações com as crianças, nas artes da existência. A esse respeito Foucault,

explica:

[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam

regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular

e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a

certos critérios de estilos (FOUCAULT, 2014, p. 16).

O trabalho ético e estético pode ser trilhado nas relações estabelecidas entre os sujeitos,

adultos e crianças, na medida em que o pensamento se volta para a vida de cada um. A elaboração

do trabalho ético, como diz Foucault, que se efetua sobre si mesmo, ocorre “não somente para

tornar seu próprio comportamento conforme a uma regra dada, mas também para tentar transformar

a si mesmo” (2014, p. 34). A partir de muitas das atividades propostas pelos projetos, as crianças

puderam, brincando, fazer a experiência, segundo Foucault, de “tomar a si próprio como objeto de

conhecimento e campo de ação para transformar-se” (2014, p. 48). O trabalho ético, para o filósofo,

ocorre ao estabelecer relações para consigo, a “estabelecer relações de si para consigo” (2014, p.

49) e também para se ocupar consigo mesmo. Este trabalho não é solitário e egoísta. O cuidado de

si, continua o filósofo (1985, p. 57), não é um exercício de solidão: “Não constitui um exercício de

solidão, mas uma verdadeira prática social”. O cuidado de si está em relação direta com o

pensamento e a ação sobre si e sobre o outro. Cuidado de si, epiméleia heautoû, é uma atitude “para

consigo, para com os outros, para com o mundo” (FOUCAULT, 2004, p. 14). É também uma forma

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de atenção, de olhar do exterior para o interior: “[...] é preciso converter o olhar, do exterior, dos

outros, do mundo, etc. para ‘si mesmo’. O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento

ao que se pensa e ao que se passa no pensamento” (FOUCAULT, 2004, p. 14).

As ações do projeto propiciaram às crianças pensar sobre si, sobre o/a outro/a e sobre o

mundo. O brincar de pensar, fazer cinema brincando e pensar em si, no outro e no mundo, a partir

das ideias e da linguagem cinematográfica propiciou novas formas de ser, estar, sentir e se

constituir como sujeitos mais dialógicos, igualitários e colaborativos.

A última etapa dos projetos com as crianças foi a de “ver e pensar o filme”. Este foi o

momento de socializar o filme produzido coletivamente entre adultos e crianças. As crianças

falaram sobre o processo de produção do filme na universidade em uma mesa-redonda e também

quando o exibimos na escola para os/as outros/as alunos/as e familiares. Outros questionamentos

foram produzidos a partir daí. Tais encontros constituíram momentos de acolhimento, de partilha,

de novos questionamentos, de ver a obra pronta e também de prospectar novos sonhos, novas ideias,

novas formas de produzir com e para as crianças.

REFERÊNCIAS:

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 477 p. 478.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal,

1985. 246 p.

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, Michel. Estratégia, poder-

saber. Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 37-47.o

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 680 p.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. São Paulo: Paz e Terra,

2014. 320 p.

GALLO, Sílvio. Metodologia de ensino de filosofia. Uma didática para o ensino médio.

Campinas, SP: Papirus, 2012. 170 p.

MARSHALL, James D. Michel Foucault: pesquisa educacional como problematização. In:

PETERS, Michel A.; BESLEY, Tina (Orgs.). Por que Foucault? Novas diretrizes para a pesquisa

educacional. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 25-39.

FRESQUET, Adriana Mabel. Entrevista com Adriana Fresquet. In: Revista Poiésis, n. 19, julho de

2012 (Entrevista para Maíra Norton).

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

XAVIER, Tina. Princesa Pantaneira: brincando no mundo mágico do cinema. Ilustrações Lorena

Martins. Campo Grande: Ed: UFMS, 2014.

PLAY TO MAKE CINEMA WITH CHILDREN: THINKING ABOUT YOU AND THE

WORLD

Abstract:

This paper aims to describe and problematize the experiences of research and extension projects in

the production of animation films with children from 2010 to 2013, in the city of Campo Grande,

capital of Mato Grosso do Sul. For Larrosa (2014) , Experience is like crossing, passing, trajectory

of the lived, something that happens to us and, when it happens, it transforms us. It is, for the

author, singular, impossible to be repeated; It's attention, it's listening and it's availability. The

experience of producing six animated films with children was carried out at all times. In the present

text, it will be problematized based on Foucault's assumptions of self-care and of the other, of the

ethics and aesthetics of existence. For the children, insofar as they were able to carry out the

exercise of thought, to put themselves as objects of thought, to think about themselves, other people

and the world. To play to think, to make movies playing and to think about oneself, in others and in

the world were the tonics experienced and experienced throughout the process of pre-production,

production and planning of the edition of the films.

Keywords: Animated film. Care of you. Problematization. Ethic. Aesthetics of existence.