Brigas,Paixões e Outras Coisas Mais

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Brigas, Paixões e Outras Coisas Mais Jorge Filho Brigas, Paixões e Outras Coisas Mais 1

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"Esperou um momento de distração dos amigos,pegou seu copo e foi para o lado de fora sozinho. Olhou para o céu. Não procurava por Deus. Apenas olhava as estrelas. Era uma noite bonita. Uma bela lua,muitas estrelas e raríssimas nuvens. Típico do verão baiano. Sentiu lágrimas brotando nos olhos. Seu peito doía. O coração estava machucado." Quantas mudanças podem ocorrer na vida de uma pessoa num período curto de tempo?O quanto pequenas decisões podem influenciar na formação do caratér de um homem? Teria razão o protagonista deste conto,ao concluir que,"é incrível como podemos transformar a vida de uma pessoa sem termos a menor noção do que estamos fazendo"?

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Jorge Filho

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O conteúdo desta obra, inclusive revisão ortográfica, é de responsabilidade exclusiva do autor

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Dedicado à memória do senhor Antônio Bispo dos Santos e da senhora Aristéia Alves Santos, meus queridos avós. Saudades.

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Agradecimentos à Vilma Regina pela inestimável colaboração, e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, possibilitaram a realização deste sonho.

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PRÓLOGO

oração acelerado. Muito difícil conter o nervosismo. Afinal, dois anos de desencontros, dúvidas e medos iriam

finalmente resultar em uma única per-gunta: “quer namorar comigo?”

CMas, devido a tudo que já havia acontecido, a questão tão simples para outros, trazia uma carga incontida de emoções.O que já fora certeza, agora era uma enorme dúvida.Apenas dezesseis anos de idade. Muito experiente para determinadas coisas e completamente imaturo para outras.Gostaria de ter um espelho. Suava muito e o vento desarrumava completamente seus longos cabelos.Súbito, avistou-a na esquina.Respiração ofegante.Melhor desistir.Mas, e a vergonha intima de nem ter tentado? E o que iria dizer ao amigo que, ansioso, esperava o desenrolar da história?Mais suor. Cada despreocupado passo dela equivalia a litros de suor e milhões de batidas do seu coração.

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Como algo que parecia ser tão simples há dois anos se transformara em tão sufocante situação? Quantos pensamentos podem passar numa mesma cabeça num espaço tão curto de tempo?Pelo menos os últimos dois anos transitavam naquele momento em sua mente.- Isso é péssimo!Tudo que havia ensaiado dizer durante a mal-dormida noite anterior agora lhe fugia.De alguma forma sabia que aquele momento iria marcar o resto de sua vida.Diabos! Parecia que era a primeira vez que iria pedir alguém em namoro.Sempre fora extremamente tímido, mas assim já era demais!Seu descontrole emocional ficava cada vez mais óbvio e evidente à medida que ela se aproximava.O tempo parecia andar em câmera lenta. Aqueles poucos metros que o separavam dela pareciam quilômetros. Aqueles poucos minutos pareciam uma eternidade.Pensou em ir até ela, mas suas pernas endureceram. Pareciam estar pesando quinhentos quilos.

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Sua boca estava seca. Mais suor. Cabelos desarrumados.Mais um passo dela. Sentia-se tonto. Suas mãos começavam a tremer.Outro passo dela. Agora eram as pernas que tremiam.Agora ela estava a três passos de distância.E ele estava petrificado.- Que ridículo!- pensou.Dois passos. Agora todo seu corpo tremia.Ultimo passo dela. É agora!Se não fosse agora, não seria mais nunca!-Mexa-se!Conseguiu superar o peso de duas toneladas de suas pernas e avançou cortando-lhe o caminho.Ela parou e o olhou por cima dos óculos.Agora era preciso falar. Sua mente havia se tornado uma folha de papel em branco. A voz havia desaparecido.Estava criada a situação perfeita para que ele ganhasse o atestado de idiota. Precisava dizer algo!Quando disse, saiu como que empurrado do coração para a boca.-Lucia?

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-Sim? – respondeu ela.-Eu sou Jorge, o amigo de Raul que queria falar com você.-Estou ouvindo.A voz saía trêmula. Pensou em inventar qualquer assunto que o tirasse daquela situação. Mas, sua cabeça parecia estar em outro corpo.Experimentava uma sensação de dormência física.Sentia-se quente. Parecia estar bêbado. A fala embolada, a voz trêmula...E todas as coisas bonitas que ensaiara dizer?Sumiram.-Eu...Ela o olhava demonstrando impaciência.Respirou fundo e soltou com a força de uma onda se jogando na areia.-Estou completamente apaixonado por você. Quer namorar comigo?Ela, em principio, baixou a cabeça como se olhasse para seus próprios pés. Ajeitou a mochila. Levantou vagarosamente a cabeça. Mexeu nos óculos e, finalmente abriu a boca para responder.

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Na cabeça dele, os dois últimos anos passavam como um furacão.

ano era 1991. Havia recém-terminado o ginásio e iria iniciar o segundo grau.O

O tempo havia passado rápido. Tão rápido que ele foi surpreendido ao ser questionado sobre que curso faria a partir de agora.Na verdade, nunca havia se preocupado em pensar no assunto. Sempre procurara viver da forma mais despreocupada possível. Sempre tivera uma vida repleta de turbulências.Parto difícil. Infância solitária. Princípio de adolescência complicada.Para superar todas as dificuldades, adotara a filosofia de derrotar os problemas no momento em que eles aparecessem.Assim sempre teria energia para resolver o problema seguinte.No momento em que lhe surgiu essa questão, analisou as opções e achou por bem consultar a pessoa mais próxima de

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sua faixa de idade que havia recém-com-pletado o segundo grau.Procurou seu primo.-Por que você não faz o curso de Eletrotécnica lá no Sucupira? È uma boa escola.A idéia não era ruim. Seu primo tinha propriedade sobre o que falava afinal, tinha acabado de se formar lá.Mas, coisas novas sempre lhe assustavam.Estudava num colégio que estimava bastante. Seria sensato trocá-lo por outro?Era tão difícil se enturmar. A timidez sempre lhe atrapalhara.Seu amigo, Raimundo, padecia da mesma dúvida. Se ele também fosse pra lá, estaria resolvido o problema da adaptação.Então o próximo passo seria convencer Raimundo.Naquela época, dar um telefonema era uma das coisas mais complicadas que existiam. Telefones fixos eram coisas para poucos e celular era luxo pra rico.Então, conversar com os amigos tinha que ser pessoalmente.Considerou a caminhada até a casa de Raimundo um esforço necessário.

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Gostava de andar. Era quando podia estar a sós consigo mesmo. Sempre fora um pensador no verdadeiro significado da palavra. Naquele momento, por exemplo, pensava em como seria mudar novamente de escola.Teria que passar por todos aqueles problemas de adaptação.Como lhe incomodava toda aquela timidez!Na infância, era solitário por vontade própria. Não apreciava muito o contato com as outras crianças. Já lhe bastava à irmã e os três primos com quem tinha que con-viver.De família pobre, morou por dez anos numa casinha no fundo da residência de seus tios.Ali passara toda a infância brincando sozinho com seus bonecos. Vez ou outra jogava futebol de botão com seu primo e os amigos dele.Aos nove anos começaria a se aventurar na rua e no campinho de futebol. Mas gostava mesmo de ficar sozinho. Sozinho com seus bonecos e sua imensa coleção de revistas em quadrinhos.

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Na escola era um fenômeno. Tirava notas altíssimas. Mas, isso só servia para afastar ainda mais as outras crianças dele.Os constantes elogios por parte da família e dos professores o fizeram arrogante.Agora, a vontade ficar sozinho se juntava a arrogância.Assim transcorreu sua infância.O inicio da adolescência trouxe profundas mudanças ao seu redor: mudou-se da escola particular onde era bolsista para a escola pública.Com isso, tinha que estudar longe de casa. A escassez de recursos financeiros ficou mais evidente.Antes só era sentida por ele no Natal quando, invariavelmente, seus pais não tinham dinheiro para presenteá-lo e apenas seu tio podia fazê-lo. Notava aí a diferença de qualidade entre os presentes que ganhava comparando-os aos do primo.Agora via com clareza a dificuldade de seus pais em conseguir dinheiro para os livros, o fardamento e o transporte.Outra mudança evidente ocorria dentro da sala de aula.

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Se, na infância, ele se destacava pelas notas altas e era solitário por vontade própria, naquela fase ele era aquele aluno apagado que sentava sozinho no canto da sala. Ali suas notas não interessavam. Não dava pra ser arrogante por que ninguém ligava pra ele.Trocou mais duas vezes de escola e, nesse período, foi aprendendo a se enturmar apesar de se descobrir extremamente tímido.Nessa época experimentou álcool, paixões, desilusões, brigas e foi perseguido por colegas mais velhos pela primeira vez.Tornou-se conhecido, mas não popular.Apesar disso, não se incomodava com as mudanças que estavam ocorrendo.Apenas lhe incomodava o fato de ser tão tímido.Porém, essa fase acabara e agora, precisava decidir o que fazer dali em diante.Assim, preso em seus próprios pensamentos, chegava finalmente a casa de Raimundo.

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Conhecia Raimundo há apenas três anos, mas nesse período, desenvolveram uma forte e sólida amizade.-Estava mesmo querendo falar com você - disse o amigo ao abrir o portão de sua casa – já decidiu onde vai estudar no ano que vem?-Meu primo sugeriu o Newton Sucupira. Disse que é um bom colégio.-Engraçado, estou com a mesma idéia! Que tal o curso de Mecânica?-Eu prefiro o de Eletrotécnica. Tem mais emprego.Raimundo o olhou com ar de incredulidade.-Você não tem medo de eletricidade?-Boa oportunidade pra perder esse medo.-Então vamos marcar o dia da matrícula.-Tem que ver com minha mãe. De menor não se matrícula sozinho.-Minha mãe vai na segunda. Veja com a sua.Assim se despediram. Foi bem mais fácil do que imaginava.Voltava pra casa, sozinho com seus pensamentos, sem saber que tomara uma decisão que influenciaria o resto de sua vida.

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orar numa casinha no fundo da residência de seus tios e ter uma casa própria e grande pra uma

criança não faziam tanta diferença.MMas, para seus pais, fazia.Por isso, logo que pôde, seu pai comprou um terreno e construiu uma casa.Esse fato trouxe mudanças radicais para a vida de Jorge.A primeira foi a completa alteração do mundo que o cercava.Saíram os parentes, entraram os vizinhos.Já não era possível se manter isolado do mundo.Não dava mais para estar confinado num universo criado por si mesmo.A segunda foram os primeiros contatos com as garotas.Todos aqueles anos de isolamento e toda aquela timidez começavam a ter um impacto devastador em sua vida.Apaixonava-se com facilidade e, devido à sua dificuldade em se sobressair, sofria com igual facilidade.

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Sua primeira paixão por diversas vezes confessara a terceiros seu interesse por ele, mas salientava também, ser impossível namorar com alguém tão distante e apa-gado.Até a sorte não lhe ajudava. Certa vez conseguiu driblar a timidez, dizer o que sentia e marcar um encontro com ela para o sábado seguinte. No dia marcado, porém, desabou um dilúvio daqueles que não permitem que ninguém saia de casa.Depois disso, faltou-lhe coragem para uma nova tentativa.A terceira mudança ocorreu de forma trágica.Seu pai, nessa ocasião, foi demitido de um emprego de dez anos e, com o dinheiro da rescisão montou um negócio próprio na frente da sua casa.A lojinha funcionava o dia todo e, quando os pais precisavam sair ou fazer qualquer outra tarefa, Jorge ficava encarregado do balcão.Com o tempo, passou a atender na loja em tempo integral.Num determinado sábado do mês de junho, seus pais haviam acabado de chegar com

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as mercadorias para suprir a loja. Era época de São João e o movimento do pequeno co-mércio familiar estava aquecido.Enquanto seus pais arrumavam a loja, Jorge aproveitou para ir em casa almoçar.Havia quatro clientes no momento.Dava tranquilamente para que seus pais dessem conta sozinhos. Eram dois rapazes e um casal.Outra coisa que seu pai havia feito com o dinheiro da rescisão foi comprar um revolver calibre 22.Essa arma ficava guardada num velho guarda-roupa no quarto do casal.Jorge sabia exatamente onde ficava o revolver, pois sem que sua mãe soubesse, seu pai lhe havia ensinado a atirar e lhe mostrado o esconderijo da arma.Nesse meio tempo em que Jorge foi a sua casa almoçar, começou um tumulto dentro da loja.Em meio ao barulho, ele ouviu seu pai gritar: -Traga o revolver!Com o coração em disparada, pois, nunca fora habituado com violência, ele correu até

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o velho guarda-roupa pegou a arma e correu até a loja.Seu pai já vinha em direção ao portão que separava a lojinha da residência e, ao estender-lhe a mão, recebeu o revolver.Os dois rapazes haviam tentado roubar a mercadoria recém-comprada e, nesse momento, seu pai os ameaçava com a arma em punho.-Bote a mercadoria no chão! – gritava.Ele via os rapazes com medo. Via sua mãe e irmãs assustadas. E via o casal de clientes atônitos.-Bote a mercadoria no chão!Correu pra frente da loja mais por instinto que por crença de poder ajudar em algo. Tinha apenas doze anos!-Bote a mercadoria no chão!Os rapazes colocaram a mercadoria no chão e correram.Seu pai recolheu-a e guardou a arma na cintura.Voltaram para dentro da loja, seus pais e o casal de clientes.Jorge foi até a porta da loja ainda tentando controlar as batidas do coração.

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Olhou para dentro e viu seu pai com as mãos levantadas arrumando uma prateleira.Viu também o cliente se aproximando dele.A partir daí tudo aconteceu muito rápido.O homem pulou sobre seu pai na tentativa de tomar-lhe o revolver. Este reagiu e os dois atracaram-se em luta.O balcão da loja era de madeira e cedeu.Nisso, os dois caíram.Um vizinho que tinha sido atraído pelo barulho empurrou Jorge tirando-o da porta da loja.Então, um estalo seco. Um tiro.Em seguida, o grito desesperado da irmã.-Não! Meu pai, não!Jorge correu de novo até a porta, ao mesmo tempo em que o casal de clientes-ladrões saía, e viu seu pai caído com a cabeça encharcada de sangue sobre o colo de sua mãe que chorava copiosamente.Aquela imagem jamais sairia da sua cabeça.

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odo aquele barulho e confusão atraíram os vizinhos que se amontoaram rapidamente na porta da

loja. TPor sorte, tanta gente reunida no mesmo lugar também chamou a atenção de uma mulherdesconhecida que passava de carro em frente à loja.Ao saber do ocorrido, ela se ofereceu para conduzi-lo até o hospital.Ainda atônito Jorge viu seu pai ser carregado para dentro do veiculo, seguido por sua mãe.E viu o carro sair em disparada.Foi, em seguida, levado para a casa de sua tia.Essa seria, até então, a tarde mais longa de sua vida.A espera por noticias era angustiante. Angústia essa só superada pela expectativa real do pior ter acontecido.Acabara a tarde, chegara a noite e nada.Seu tio e seu primo chegaram com a confirmação da identidade dos assaltantes.Faziam planos em segredo para caçar o autor do disparo.

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A tudo Jorge assistia com a sensação de total impotência e inutilidade.As horas passavam, nada acontecia e nenhuma noticia chegava.O sono acabou por vencê-lo.Sono conturbado. Por que ele pegou o revolver? Não podia ter ignorado a ordem do pai? Sua mãe havia lhe alertado sobre isso.-Nunca mexa nessa arma!Mas, apesar da dúvida que se apresentava, tinha a convicção de ter agido certo. E se seu pai estivesse precisando do revolver para defender a própria vida? Não tinha como saber.“Traga o revolver!”- Foi tudo o que ouviu.Não ouviu sua mãe dizer “Nunca mexa nessa arma!”Ouviu apenas “traga o revolver!”De repente, a voz de sua mãe. Levantou-se sobressaltado e olhou para a sala.Toda a família reunida, mas, nada de sua mãe. Havia sonhado.O tempo passava e a apreensão aumentava.“Noticia ruim é que chega rápido”- alguém dizia.

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Novamente, a voz de sua mãe.-Ele não vai agüentar! Vai morrer! – dizia entre lágrimas.Jorge levantou-se e foi até a sala.Sua mãe o olhou e disse:-Não se preocupe. Seu pai está melhor.Preferiu fingir que nada tinha ouvido e calou-se.O silêncio, aliás, imperava pela casa. Seu tio voltava com noticias.-Eles usaram o revolver para outro assalto. Na ação, a policia matou um deles e prendeu outros dois.-E o outro. O que atirou?-Fugiu.A tristeza e o cansaço finalmente venceram Jorge.Sonhou com seu pai.Aquelas lembranças ainda estavam enraizadas no fundo de sua mente, bem como tudo que aconteceu depois.Mas, nesse momento, sua preocupação era com o presente.Estava chegando à nova escola acompanhado de Raimundo, a mãe dele e a sua própria.

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Após passar pelo portão principal, notou logo a diferença física entre o Sucupira e seu colégio anterior.Um pátio enorme com coqueiros e mangueiras, ladeado a direita por um amplo ginásio de esportes e a esquerda por uma quadra de futebol.À frente, o prédio principal.Entrando nele, avistou as salas dos professores, a diretoria e a biblioteca.Sentou-se e aguardou que sua mãe efetuasse a matrícula.Mais algumas pessoas estavam lá com o mesmo propósito e todos começaram a conversar.Todos menos Jorge.Ainda não era muito afeito a conversas.Permaneceu sentado. Estava perdido em seus próprios pensamentos.Súbito, como sempre parece acontecer nessas ocasiões, sentiu-se observado.Olhou pra frente e viu que, realmente havia uma moça morena lhe observando.Ela sorriu, ele sorriu de volta.Sua mãe, nesse momento, contava a todos como Jorge sempre fora inteligente.

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Constrangido, pois sempre fora muito sensível a elogios, levantou-se e foi até o bebedouro.De lá podia ver a outra parte da escola. Via os laboratórios, a cantina e as salas de aula.Voltou a pensar em seu pai.Após aquela noite horrível e angustiante, as noticias oscilavam. Às vezes, seu pai apresentava melhoras.Outras vezes piorava.A bala não pôde ser retirada e o período de internação se prolongava.Foi o São João mais triste de sua vida.O mês de junho acabou. Entrou julho e a indefinição quanto a vida de seu pai continuava.Uma bolsa de sangue se formou em sua cabeça e, se não fosse a presteza de um enfermeiro, sua vida poderia ter acabado ali.Com o tempo, o quadro foi melhorando e a vida voltando ao mais próximo possível do normal.Finalmente, o hospital o liberou. A volta pra casa foi festejada.

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Pela primeira vez, Jorge o viu sem cabelo e sem barba. Achou estranho.Mais estranha ainda foi a situação que se formou a partir daí.A bala, ainda alojada, confundia a memória de seu pai que passou a esquecer ou trocar o nome das coisas.Foi uma época difícil cuja única compensação foi o fato dele ter sido obrigado a parar de beber.Isso trouxe um pouco de paz num momento turbulento.O vicio alcoólico sempre trouxe muitos problemas a família.E traria conseqüências mais a frente.

e volta ao presente, foi despertado dos seus devaneios pela presença da moça morena que sentou ao seu la-

do.D-Oi, meu nome é Gleide. E o seu?A partir dali, iniciaram um longo diálogo, como se fossem velhos amigos.

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Realmente ela era muito simpática, comunicativa e sabia como cativá-lo.Para sua própria surpresa, sentiu-se a vontade com ela. Falou bem mais que o habitual.-Esse seu visual realmente chama atenção.Jorge olhou para si mesmo e foi obrigado a concordar.Pesadas botas militares pretas, calças jeans rasgadas, camisa de colarinho e cabelos grandes e despenteados.Um típico roqueiro dos anos oitenta.Riram juntos e o diálogo continuou até que sua mãe lhe chamou.A matrícula já havia sido feita. Era hora de ir pra casa.-Nos vemos quando as aulas começarem?-Assim espero. – respondeu ela.A caminho de casa, Raimundo empolgado, falava pelos cotovelos.Jorge mal ouvia. Após um pequeno intervalo de descontração com Gleide, sua mente insistia em voltar a épocas passadas.Seu pai havia passado dois anos sem beber. A vida familiar estava, pela primeira vez, maravilhosa.

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As únicas exceções eram seus misteriosos sumiços durante a madrugada.Jorge sabia que havia algo de errado, porém, não imaginava o que poderia ser.Em compensação, quando voltava, se reunia com a família para o café da manhã e se tornava a pessoa mais divertida do mundo.Dois belos anos.Descobriu-se depois que, os sumiços pela madrugada tinham um objetivo nada divertido.O assaltante havia reaparecido no bairro e, ele saia com a intenção de vingar-se.Por sorte, sua memória ainda falhava e, não permitia que ele se lembrasse da fisionomia do outro.Chegaram, inclusive, a passar um pelo outro sem que se reconhecessem.Depois disso, o assaltante reapareceu mais uma vez, morto.Seus próprios comparsas o mataram por ele tê-los delatado durante um interrogatório da policia.Aí veio o Réveillon. Como tradicionalmente fazia, a família toda se reuniu e organizou um churrasco.

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Era a ocasião em que Jorge mais se divertia. Uma de suas melhores recordações até hoje.Entretanto, neste ano, justamente nesta festa seu pai voltou a beber.O sinal de alerta estava ligado. Todos os problemas ligados ao alcoolismo iriam voltar.E voltaram.Agora, dois meses depois da festa, isso ainda o preocupava.Por isso, não ouviu nada que Raimundo falava.Desceram do ônibus, despediram-se e marcaram de ir juntos no primeiro dia de aula.Até lá, a vida seguiria seu curso normal, enfadonho e sem novidades.A lojinha havia voltado a funcionar e a tomar quase que integralmente seu tempo.Sua timidez continuava. Sua desilusão com a vida aumentava.Foram dias em que a rotina imperou absoluta.Seu pai bebia cada vez mais, afundando o casamento e a família.

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Andava cansado de brigas. Começou a se tornar rebelde e contestador.Tinha vontade de sumir.Assim, os dias passaram e começou o período escolar.

omo era costuma na época, a primeira semana de aulas era vazia.C

Raros alunos e quase nenhum professor transitavam pelos corredores semi-desertos.Mas, para quebrar a monotonia diária, Jorge foi à escola todos os cinco dias.A segunda semana era um pouco mais movimentada. Começavam a surgir os professores e os colegas de classe.Em seu curso, não havia muitos alunos. Talvez uns trinta. O que, para os padrões da época, era muito pouco. Sua sala de aula ficava no final de um corredor.Em frente, uma sala da turma de Mecânica. De fundo, uma sala da turma de Administração. No começo do corredor,

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duas salas também de administração. Porém do segundo ano.Saindo do corredor via-se o bebedouro ao lado da cantina.Em frente à cantina, um pátio. E após o pátio a biblioteca, a diretoria e a porta de saída.Ao lado da cantina, os laboratórios e a sala de projeção.No outro corredor, as salas do segundo ano de Mecânica.No inicio da segunda semana, Jorge e Raimundo começaram a presenciar fatos com os quais não estavam acostumados.Havia um claro sentimento de superioridade por parte dos alunos veteranos em relação aos novatos.Eram freqüentes as cenas de humilhação sofridas pelos “calouros”.E esse sentimento de superioridade podia ser facilmente simbolizado na pessoa de um determinado aluno.Seu nome era Roberto Carlos.De porte físico avantajado, alto e de voz intensa, ele juntamente com sua turma oriunda do segundo ano de Mecânica,

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rapidamente se tornaram o terror dos alunos novatos.Dizia-se que ele estudava naquela escola há mais de uma década. Desde uma época em que o curso ginasial existia no Sucupira.De porte igualmente avantajado, seus companheiros mais freqüentes eram três: Beto, Franklin e o gigante Pedrão, seu irmão.A diretoria da escola parecia ignorar os problemas que eles causavam aos outros alunos e, nenhuma providência era tomada.Num determinado dia, Raimundo se afastou na companhia de outro aluno da mesma turma que ele, coisa que raramente acontecia.Estando sozinho e sem conhecer mais ninguém, Jorge resolveu caminhar pelo pátio externo da escola.Sempre perdido em seus pensamentos, caminhou lentamente até a sombra de uma das arvores.Súbito, se viu cercado por três homens altos.Eram Roberto Carlos, Beto e Franklin.Em evidente desvantagem numérica e física, Jorge sabia que ia ser vitima de mais

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uma das muitas humilhações que os “veteranos” aplicavam aos “calouros”.E assim foi. Primeiro foi empurrado de um lado para outro.Depois foi suspenso e jogado sobre Roberto Carlos.Conseguiu se desvencilhar e fez então, o menos sensato para o momento: os encarou.-O calouro é valente – disse Beto em tom de ironia – O que fazemos com ele?-Deixa pra lá! É tão pequeno que nem vale a pena – respondeu Roberto Carlos.E, rindo se afastaram deixando Jorge com um misto de vergonha e raiva.-Que bando de otários, né?Jorge olhou para o lado e viu o autor da pergunta: um rapaz um pouco mais alto que ele, de sua mesma sala e cujo nome lhe fugira.-Você mora em Itinga, não é? – continuou seu interlocutor.-Sim – respondeu Jorge com um pouco de receio.Se Jorge já não gostava de conversar, nessa situação sua vontade era ainda menor.

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-Desculpe colega – disse de forma meio rude – é que eu preciso ir comprar a camisa da escola e já estou atrasado.-Que coincidência! Estou agora mesmo indo pra lá!Estava desmontado seu blefe. Não ia, na verdade, comprar nenhuma camisa. Nem dinheiro tinha.Na verdade, não queria sair das dependências da escola acompanhado por um desconhecido.O bairro onde se situa o Sucupira é dividido em setores. Cada setor é designado por uma letra.A escola fica no setor F. A camisa era vendida no setor G.Isso dava uns dez minutos de caminhada.“Tempo demais com um desconhecido.” – pensou.Na verdade, não ia comprar a camisa agora. Só ia ver o preço. – desconversou.-Não tem problema. Eu compro a minha e você vê o preço da sua.Diante de tamanha insistência, não via outra saída a não ser acompanhar o desconhecido até o ponto de venda das camisas.

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Saíram da escola e ele se via bastante tenso. Pesava as opções de fuga, em caso de qualquer tipo de tentativa de agressão por parte do outro.-Meu nome é Marcio. E o seu?Feitas as devidas apresentações, a conversa começou a lentamente fluir e Jorge percebeu que seus temores eram infundados.O percurso de ida e volta transcorreu sem incidentes.Marcio realmente morava em Itinga e, ao menos aparentava ser uma boa pessoa.Um cara alegre e comunicativo.Mas, ao voltar para a escola, novamente se preocupou.Raimundo permanecia na companhia do estranho e os dois mantinham uma conversa reservada e séria.Raimundo sério não era decididamente uma coisa comum.Quando Jorge e Marcio se aproximaram, a conversa cessou.Ele ainda pôde ouvir o estranho dizendo: -Obrigado pelo aviso.Apresentou Marcio a Raimundo e foi apresentado ao estranho.

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-Raul.Não muito alto, pele clara, cabelos escuros e um bigode fino típico dos anos 90, Raul tinha uma aparência seria.Dos quatro ali reunidos era o que mais parecia um homem feito.-Não vai ter mais aulas hoje – informou Raimundo – vamos pra casa.-Tem um ponto de ônibus mais tranqüilo um pouco mais abaixo. Podemos ir pra lá. – sugeriu Raul.Jorge não gostou da idéia. Agora eram dois desconhecidos ao invés de um. E num lugar igualmente desconhecido.“Há vários sinônimos para tranqüilo” – pensou.Porem, devido à aparente calma de Raimundo, calou-se.O ponto de ônibus era realmente tranqüilo.O único movimento que se via era o entrar e sair de pessoas numa padaria próxima.Tomaram a condução e foram embora.Já em Itinga, Raimundo falou em tom sério:-Raul estava armado com uma faca!

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as pra que alguém levaria uma faca pra escola?-M

-Ele já conhece algumas coisas que acon-tecem lá pela fama que o colégio tem – respondeu Raimundo.-Que tipo de fama?-Dizem que tem alguns alunos que mandam e desmandam na escola. Parece que sabem coisas da diretora e, por isso, nunca são punidos pelo que fazem. Raul pretende se defender.Então as coisas não eram tão simples e belas como haviam lhe dito. Com certeza entre esses alunos a que Raimundo se referia estava Roberto Carlos.E se ele era um desses, todos que o acompanhavam deveriam ser objetos de atenção.E Raul? Seria sensato andar em sua companhia numa situação dessas? Se ele fosse pego armado seria expulso e todos que estivessem com ele iriam junto.Despediu-se de Raimundo e foi pra casa acompanhado por suas dúvidas.

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No dia seguinte, já na escola, decidiu que o mais sensato seria observar Raul e Marcio de perto.Passaram então a andar os quatro juntos.A convivência com Marcio e Raul passara a ser útil já que eram quatro “calouros” ao invés de dois.Se Jorge realmente conseguisse adquirir confiança neles, um poderia resguardar o outro.Com esse pensamento, começou a sentar-se junto a eles durante as aulas e, na hora de voltar pra casa, acompanhava-os até o ponto de ônibus que, por ser isolado e relativamente vazio, passaram a chamá-lo de seus.Com a convivência contínua passaram de companheiros de desconfiança a amigos leais.Foi então que ocorreram dois eventos importantes no desenrolar da historia.E ambos aconteceram na mesma tarde.Estavam Jorge e Raul gastando o tempo no pátio da escola quando surgem Raimundo e Marcio com a “empolgante” noticia:

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-A turma do primeiro ano de Administração vai apresentar um numero de dança agora na sala de projeção. Vamos lá?-E o que temos pra fazer lá? – questionou Raul.-Mulheres, meu caro! – respondeu entusiasmado Raimundo – A turma de Administração é cem por cento de mulheres!-Tem a filha do meu patrão – completou timidamente Marcio – Eu sou louco por ela e ela vai estar lá.-Eu não vou – decidiu Raul.-Eu também não vou – resolveu Jorge.-Que é isso, caras? – insistiu Raimundo – Vão ficar aqui sem fazer nada?-Acho que sim – respondeu Raul.-Tudo bem. Tem gosto pra tudo. Vamos lá, Marcio?E assim foram os dois parar a sala de projeção.-Eu vou beber um pouco de água e já volto – avisou Jorge a Raul.Juntando a palavra a ação, dirigiu-se ao bebedouro.Lá chegando, inclinou-se para beber água.

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Como sempre, tinha a cabeça cheia de pensamentos.Foi nesse momento que ocorreu o primeiro evento.Por estar completamente distraído, assustou-se ao notar a presença de alguém de pé ao seu lado.Levantou as vistas e viu aquela figura pequena, de pele clara, cabelos escuros e óculos sorrindo para ele.Não deu muita atenção, pois já devia ter cruzado com ela pelos corredores da escola e não fazia idéia do porque daquele sorriso. Nem lhe interessava.Ergueu-se e se afastou.Voltou à companhia de Raul.Aí ocorreu o segundo evento.Roberto Carlos vinha correndo eufórico em direção aos seus colegas.-Beto, Pedrão! – gritava – Vamos tirar um cara da sala de projeção!Raul e Jorge se olharam.-Deve ser Raimundo – concluiu Raul.-Então vamos lá ajudar ele!Chegando à sala de projeção, deparam-se com a seguinte cena: Raimundo estava num canto da sala cercado por Roberto

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Carlos e seus companheiros, que o ame-açavam.-Você vai sair por bem ou por mal, maluco? – rosnava Roberto Carlos.-Não me toque não, meu irmão! – respondia Raimundo.-Gente, por favor, vamos ter calma! – gritava aflita a professora Murcia.O resto da turma em completo silêncio.Havia muitos alunos aglomerados na porta, o que impedia que Jorge e Raul se aproximassem de Raimundo. Marcio não estava na sala. Tudo que eles podiam fazer era assistir. Raimundo estava por conta própria.-Por favor, saia pra evitar confusão! – pedia em tom de desespero a professora Murcia.-Ele vai sair agora! Senão o bicho vai pegar pra ele!-Eu vou sair por que a professora está pedindo – argumentava Raimundo ainda cercado por todos os lados.Nesse momento, Roberto Carlos tentou atingir Raimundo com um soco, que pegou de raspão.

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Enquanto isso, Jorge, em meio ao temor pela sorte do amigo ouviu uma voz atrás de si.-Mas o que é que está acontecendo aqui?Era Marcio que também estava do lado de fora.-Ué? Você não estava lá dentro? – perguntou Jorge.-Eu tive que ir ao banheiro. Mas o que houve?-Estão criando problemas com Raimundo – respondeu Raul.Nesse ínterim, entre as suplicas apaziguadoras da professora Murcia e as ameaças de Roberto Carlos e companhia, Raimundo conseguia finalmente deixar a sala.Assim que saiu foi cercado pelos amigos.Agora eles eram quatro. Mas, ainda assim, em evidente desvantagem numérica.Nesse clima de tensão, os quatro amigos conseguiram escapar da balburdia e se reuniram num canto sossegado para planejar o que fazer.-Eles são muitos e vão querer aprontar com a gente ainda hoje – começou Raul.

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-Mas não aqui dentro da escola – concluiu Marcio.-O problema vai ser na saída – ponderou Jorge.-Com certeza vão querer me pegar na covardia – concluiu em uma frase a certeza dos quatro, Raimundo.Jorge estava com o coração a mil. Não era um covarde. Nunca fora. Mas a diferença quantitativa e física era evidente.Seus amigos que eram maiores e mais fortes já estavam inferiorizados, imagine ele.Respirou fundo.-Bem, se temos que ir, que seja logo!-Você tem razão. Mas, vamos ver o que temos pra nos defender. – começou Raul – Eu tenho uma faca.-Eu também.Aquilo foi uma surpresa. Marcio trazia dentro da mochila uma lâmina de pelo menos vinte centímetros de comprimento.-Sou auxiliar de mecânico no aeroporto. Lá eu tenho acesso a esse tipo de coisa. – explicou.-Eu e Jorge estamos desarmados – falou Raimundo.

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-Bem, então saímos eu Marcio primeiro pra dar uma pequena proteção a vocês dois – concluiu Raul.Saíram então os quatro amigos rumo a certeza de uma ameaça concreta à suas integridades físicas.Atravessaram os corredores e viram toda a balburdia coletiva e cotidiana da escola.No pátio, observaram um silencio e uma quietude um pouco acima do habitual. Eles próprios, inclusive, encontravam-se num temeroso e concentrado silêncio. Chegaram finalmente ao portão de saída.Aquele era o momento.Saíram Raul e Marcio. Jorge logo em seguida. Raimundo por ultimo.Lá fora, um grupo de pelo menos doze pessoas os esperavam.

frente estava Roberto Carlos. Atrás dele Beto e Pedrão. Os outros eram da mesma turma de mecânica.À

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Jorge olhou em volta e viu que a media era de três para cada um deles.-Caso perdido – pensou.Roberto Carlos deu um passo em direção a Raimundo. -Venha cá, barão! Você sai na mão comigo? – perguntou.-E você acha que eu vou me rebaixar a sujar minhas mãos em você? – respondeu Raimundo.Era uma clara resposta de quem não podia reagir, mas pareceu ter pego Roberto Carlos de surpresa.Unindo as palavras a ação, Raimundo começou a andar.Marcio já estava com a mochila aberta. Raul, com a mão na cintura, ficou um pouco de lado.Jorge adiantou o passo e colocou-se ao lado de Raimundo.-Eu perguntei se você sai na mão comigo! – rosnava Roberto Carlos.Raimundo continuava andando aparentemente sem se preocupar com o adversário.-Se você não briga, não tire onda!

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A Jorge pareceu que Roberto Carlos havia ficado meio sem ação diante da indiferença de Raimundo.Ainda assim, aquilo lhe soava como uma humilhante derrota.Continuaram a andar ouvindo os gritos de Roberto Carlos cada vez mais distantes.Parecia que o perigo inicial havia sido superado.Continuaram caminhando em silêncio até que Marcio o quebrou.-Se o ponto de ônibus é deserto, é sensato irmos pra lá hoje?-Lá é área estranha pra eles também – respondeu Raul – O risco maior já passou. Ao menos por hoje.-Mas ainda temos o ano todo pela frente. Devemos ser cuidadosos – concluiu Jorge.-A propósito – falou Raul a Raimundo – gostei da forma como você reagiu. Mostrou superioridade.-É verdade – concordou Raimundo.Depois se aproximou de Jorge e sussurrou:-E o que mais eu podia fazer? Aquele negão ia me quebrar todo.Jorge permitiu-se sorrir.

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Chegaram finalmente ao ponto de ônibus. Como sempre estava deserto.Sentaram-se e, finalmente, conseguiram respirar com uma relativa tranqüilidade.-Vocês sabem que a partir de hoje nossa vida vai ficar bem mais difícil, não sabem? – perguntou Raul olhando em volta.-Então – continuou – devemos nos precaver. Nada mais de andar sozinhos ou em duplas. Temos que andar os quatro sempre juntos.Todos concordaram. Intimamente sabiam que nada tinha acabado. Apenas começava.-Vamos fazer agora aquele pacto dos três mosqueteiros: um por todos e todos por um.E, com apertos de mãos, concretizaram uma nova irmandade.Tomaram o ônibus e foram cada um para suas respectivas casas.A cabeça de Jorge estava a mil por hora.A verdade é que aquele clima tenso não lhe fazia bem.Não tinha por habito se envolver em problemas daquele tipo.Alem do mais, já tinha seus próprios problemas.

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A convivência com sua mãe continuava difícil e repleta de brigas constantes, seu pai bebia cada vez mais e, para completar, suas dificuldades financeiras só faziam au-mentar.E agora, mais essa!O dia terminou sem maiores novidades. O dia seguinte é que gerava expectativas.Remoeu o assunto uma boa parte da noite.O sono não veio com facilidade. Quando o alcançou já varava a madrugada.Sonhou com brigas e, estranhamente, com a moça do bebedouro.A manhã seguinte foi bastante comum. Ficou na loja como sempre.Conseguiu, em meio às tarefas cotidianas, esquecer dos problemas e da ansiedade causada pelo dia anterior.Mas, com a proximidade do horário escolar, a ansiedade voltava.Pensou em não ir estudar naquele dia.Depois achou que essa atitude, além de covarde, iria apenas adiar o problema.Afinal, não poderia abandonar nem a escola nem seus mais novos amigos.

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Curiosamente a moça do bebedouro também ocupava um pequeno espaço dentro dos seus pensamentos.Não conseguia entender isso, pois, nada tinha visto nela que chamasse tanto a sua atenção.Porem lembrar-se dela trazia um pouco de doçura ao momento amargo que vivia.Já na escola, encontrou Raimundo, Marcio e Raul.Como combinado passaram o dia juntos.Aparentemente toda aquela ansiedade e preocupação tinham sido em vão.Apenas parecia.A cada passo que davam, tinha alguém da turma de Mecânica por perto.Olhares duros, comentários de canto de boca e, até em sua própria sala, o clima parecia pesado.O fato inusitado do dia foi a eleição pra líder da turma onde, para sua surpresa, Jorge foi um dos indicados.Perdeu a votação pra líder, mas venceu pra vice-líder com um voto de minerva da diretora da escola.Agora, teria acesso direto ao Grêmio estudantil.

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Notou também que, Raul havia passado o dia as voltas com papéis.Sujeito estranho aquele seu amigo! Sempre misterioso.Chegava aos poucos o horário de ir embora.Novamente a tensão voltava a incomodar Jorge.Apesar de o dia ter transcorrido de forma relativamente calma, a saída seria sempre um momento tenso.Afinal, prudência nunca é demais.Saíram durante um horário de aula da turma de Mecânica.Assim a possibilidade de tocaia era menor.No ponto de ônibus, Raul revelaria o porquê de ter passado o dia absorto em suas anotações.-Nós estamos em guerra, e isso é fato. – começou – E a melhor defesa é o ataque. Eu tenho acesso a uma série de informações “podres” sobre Roberto Carlos e sobre a diretora da escola. Jorge agora vai ter acesso ao grêmio e a diretoria além de horários que os outros alunos não tem.-E daí? – perguntou Raimundo – O que isso tem a ver com nosso problema?

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-Eu proponho formarmos um grupo clandestino pra sacudir de vez essa escola. Estaremos em guerra aberta com os caras de Mecânica e em guerra velada com a di-retoria da escola que, pelas informações que eu tenho, ficará contra nós. Eu proponho que a partir de agora nós sejamos a KGB.

GB? O serviço secreto russo? – perguntou Marcio.-K

-Eu adorei! – entusiasmou-se Jorge que sempre tivera uma tendência comunista.-E por que não? – concordou Raimundo.-O que vocês tem que saber – continuou Raul – é o risco que isso implica. Serão acusações pesadas que, se descobertas, podem causar nossa expulsão da escola. Vamos mexer com “peixe grande”.Todos concordaram.-Qual o primeiro passo? – perguntou Marcio.-Faremos listas que precisarão ser publicadas no mural central da escola – explicou Raul.-E como faremos isso?

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-Existe um hiato entre o turno da manhã e o da tarde onde a escola fica praticamente deserta. Teremos que pular o muro do fundo da escola pra entrarmos sem sermos vistos.Nisso, tomaram o ônibus e retornaram pras suas casas sem tocar mais no assunto.Agora, o sentimento de Jorge era de excitação. Não temia mais ir à escola no dia seguinte. Ao contrário, a sensação de poder se aventurar e, talvez fazer a diferença ao menos uma vez na vida, fazia seu coração palpitar.Os problemas diários com seus pais ficaram em segundo plano pela primeira vez em muito tempo.Agora, o dia seguinte parecia ser o inicio de uma nova etapa em sua vida.Acordou bem disposto no dia seguinte e esperou com impaciência a chegada do horário de retorno a escola.Encontrou os três amigos dentro do ônibus e, já com certa intimidade, papearam de forma jovial.Era dia de avaliação de Português. Afinal, ainda existia o objetivo primeiro que era estudar.

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Jorge estava tranqüilo, pois, era muito bom nessa matéria.Ao chegar à escola dirigiu-se ao bebedouro e, como sempre fazia, inclinou-se para beber água.O movimento o colocava com o rosto voltado para o pavilhão onde estudava que ficava, olhando por este ângulo, atrás das salas do segundo ano de Administração. Foi nesse momento que Jorge viu que, encostada na parede de uma das salas, a moça de óculos permanecia o observando com aquele mesmo sorriso claro e boni-to.Não entendia por que aquilo lhe incomodava tanto.Pensou em acenar para ela, mas, sentiu-se constrangido.E se ela não estivesse realmente olhando para ele?Seria um constrangimento enorme se ela não correspondesse.Melhor ficar quieto.Seguiu até o pátio onde os amigos conversavam alegremente.-Olha ele aí! – apontou-lhe Marcio.-Jorge, bolamos uma coisa pra nos distrair.-Lá onde eu moro – continuou Raul quando vamos “cantar” uma mulher, dizemos que

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estamos chutando para o gol. Quando ela diz que já tem namorado, dizemos que o chute foi pra fora; Quando ela diz que não tá a fim, o goleiro defendeu...-E quando ela diz sim? – interessou-se Jorge.-Aí é gol! – completou Raimundo.-Então estamos fazendo um trato aqui – voltou a falar Raul –Cada um de nós tem que chutar uma bola ao gol ainda esse ano.-Eu topo! – gritou entusiasmado Raimundo.-Tô dentro! – concordou Marcio – E você Jorge?Jorge titubeou antes de concordar. Era muito tímido para entrar num acordo desses. E se todos conseguissem menos ele?Seria desmoralizante.Súbito, lembrou-se da moça de óculos. Podia tentar com ela. Era melhor do que passar por covarde e não participar do acordo.-Também topo – falou sem muito entusiasmo.Nisso, tocou o sinal para o inicio das aulas. Era hora de fazer a prova de Português.

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Prova tranqüila, mas que requeria atenção. Respondeu as questões vagarosamente. Tão vagarosamente que foi o ultimo dos quatro a terminar.Seus amigos já tinham saído e faltavam apenas duas questões a serem respondidas quando Jorge ergueu a cabeça.Foi um susto tremendo.Na porta da sala estavam, ao fundo, Raul e Raimundo com sorrisos irônicos nos rostos. E, na porta da sala literalmente falando, estava a moça de óculos com aquele sorriso claro e bonito a olhar para ele fixamente.Lembrou que tinha comentado com os amigos sobre suas suspeitas em relação a ela.-Acho que ela me olha o tempo todo – disse.Repentinamente, a prova se tornara difícil. Não conseguia mais se concentrar nas questões. Nem as enxergava mais, na verdade.Não entendia o porquê daquele descontrole repentino e sem motivo aparente.Olhou para as próprias mãos e notou que tremiam.

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-O que está acontecendo comigo? – pensou.Olhou para a porta e ela ainda estava lá. Minutos pareciam horas. Começou a suar.Qual era mesmo a resposta para aquela questão da prova?Dalí a pouco o sinal iria tocar e teria que entregar a prova. Não conseguia nem mais erguer a cabeça.Respirou fundo. Concentrou-se na prova e, tentou esquecer o mundo a sua volta. Agora tinha pressa.Respondeu as questões. Ergueu a cabeça.Ela ainda estava lá.Levantou-se entregou a prova ao professor e dirigiu-se a saída.Ela saiu antes. Jorge deu dois passos em direção a porta.-Veio te buscar na porta, hein? – pilheriava Raimundo.Jorge não ouvia. Adiantou o passo. Coração disparado.Tentou disfarçar o fato de estar procurando-a com os olhos.Vã tentativa.Estava ansioso. Olhou em todas as direções possíveis.Não a via mais. Sentiu-se desanimado.

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Talvez, não fosse mesmo pra ele que ela olhava na porta da sala.Talvez ela olhasse para outro cara da sua turma.Que atrativos ele tinha para chamar a atenção de uma mulher tão bonita?Estranhou aquele pensamento. Desde quando ele a achava bonita?Na verdade, sua primeira impressão dela não foi tão boa.Achou-a “sem sal”.-E aí? Vai atrás dela ou não? – perguntava Raul.-Veio buscar na porta! – pilheriava Raimundo.Sentia-se desconfortável. Não gostava de fazer nada sob pressão.-Veio me buscar na porta nada – falou sem muita convicção.No intimo, torcia pra ter sido isso mesmo.-Vai ser o primeiro a “chutar ao gol”!Estava escancarada a desculpa para procurá-la.-Onde ela está? – perguntou ansioso.Raul apenas sorriu.

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-Responde velho. Onde está ela? – falou de forma áspera e com a voz alterada. Estava visivelmente nervoso.Raul olhou para o lado com o canto dos olhos.Jorge olhou na direção em que Raul havia discretamente apontado.Lá estava ela. Olhou para ele e saiu.-Foi pra saída, vai atrás dela! – gritou Raul.

Raimundo parecia estar em uma festa.

-Eu quero ver... Veio buscar na porta!O mais estranho era que a pressão dos amigos e a aposta que tinham feito podiam servir de desculpa perante os outros, mas para ele mesmo, de nada servia.Não sabia explicar o porquê, mas, queria muito ir atrás dela.Aquele sorriso não saia de sua cabeça. Aquele par de lentes adornando um rosto

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que, se a principio não lhe causara nenhum impacto, agora aparentava ser um dos mais lindos que ele já tinha visto.Mas, era preciso lutar contra aquilo. Sintomas já conhecidos de um final previsível. Se apaixonaria novamente e, novamente se machucaria.Andou rápido, passou por ela e parou ao lado do bebedouro.Seu coração estava disparado. Olhou para trás.Ela se aproximava com aquele mesmo sorriso claro e lindo que insistia em lhe habitar o pensamento.Vinha andando despreocupadamente em sua direção.Sorrindo. Sorrindo e o olhando fixamente.A já habitual timidez de Jorge agora aflorava com força total.Ela continuava a se aproximar. Ao longe, ele via o olhar atento dos amigos.Precisava respirar, pois, sentia-se sufocado. De repente percebia que o dia estava quente e abafado.Havia ainda a questão do orgulho masculino. Se nada fizesse sem um motivo justo, seria ridicularizado.

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Decidiu, ao menos, amenizar um possível vexame.Curvou-se sobre o bebedouro e deixou que ela passasse.Evitou olhá-la.-Que é isso, rapaz? Não vai falar com ela? – perguntou aflito Raimundo.-Aqui dentro da escola, não. Lá fora.Dirigiu-se em direção a saída. Olhou para o pátio e a avistou.Realmente ela era muito pequena. Dava pra ver seus longos cabelos negros. Usava uma mochila de cor azul clara que, ao menos para ela, era enorme.Olhou para trás e viu seus amigos se aproximando.-Não tem mais aula hoje. Pegamos seus livros e vamos lhe esperar no ponto – explicou Marcio.-Me dê ao menos o caderno – pediu Jorge – senão não vou ter onde pôr as mãos.Pegou o caderno e saiu em direção ao portão a passos largos e apressados.Parou, olhou pra trás e perguntou:-Raul, você disse que a conhece?-Disse.-Qual é mesmo o nome dela?

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-Lucia.Saiu apressado. Quase corria. Ela já andava do lado de fora da escola.O curioso é que, Lucia não ia pelo caminho mais curto pra sua casa. Jorge já sabia por intermédio de Raul que ela morava no setor C.No entanto, ela andava por uma direção que a faria caminhar duas vezes mais. Não que isso incomodasse Jorge.Ao contrário. Adiantou ainda mais o passo e a alcançaria facilmente em poucos segundos.Sua cabeça estava repleta de contradições.Queria muito alcançá-la, mas sua timidez o deixava apavorado e com vontade de voltar.Queria que ela olhasse pra trás para que o visse. Assim ele saberia se ela queria ou não falar com ele.Mas, ao mesmo tempo, desejava que ela não o notasse para que, assim, ele tivesse tempo para pensar no que fazer.Suas pernas estavam pesadas, mas, precisava continuar a andar rápido.Estava agora a menos de um metro dela.O que dizer? Como puxar conversa?

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Diminuiu um pouco o ritmo das passadas. Precisava pensar. Precisava respirar.Quando eles virassem a esquina que se desenhava logo a frente, passariam na frente do ponto de ônibus onde seus amigos estariam, provavelmente ansiosos, a lhe esperar.Se tivesse que fazer algo, tinha que ser agora.Parou. Abaixou-se e amarrou o cadarço.Levantou. Respirou fundo e recomeçou a andar.A hora era agora. O momento era esse.Voltou a andar depressa.Sentia-se sufocado. Estava ofegante. Começava a suar de novo. O coração estava disparado.Jorge ainda não entendia o porquê de estar daquele jeito.-Ora, estou andando rápido e me sinto um pouco nervoso. Sou tímido. Por isso estou assim – disse pra si mesmo.Novamente estava a poucos passos dela.Olhou para as próprias mãos e viu que permaneciam trêmulas.-Merda de timidez! – pensou.Lembrou-se da conversa com Raul.

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-Ah! Por essa descrição eu sei quem é. Ela mora no setor C e se chama Lucia. Ela é das Testemunhas de Jeová. Isso não combina com você. Um roqueiro com uma religiosa? Sei não.-Olha Raul, é só pra “chutar ao gol”. Ela é a única que eu acho que olha pra mim na escola.-E aquela da sala ao lado da nossa?-Gleide? É só uma boa amiga.Na verdade, não era bem assim. Por mais sem graça que Lucia tenha lhe parecido a principio, a verdade era que algo nela o cativava.Mas, naquele momento, Jorge não admitiria isso nem pra Raul nem pra si mesmo.-Eu não gosto muito dela.Aquilo para Jorge foi uma verdadeira surpresa.-Por nada, deixa pra lá.Aquele diálogo foi desanimador. Jorge já estava decidido a esquecer a idéia de paquerá-la.Estava resolvido também a sufocar aquela lembrança do seu sorriso que insistia em lhe perseguir.

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Estava decidido até o momento em que a viu na porta da sala.Agora estava a um passo dela.E ainda não sabia exatamente o que dizer.Qual seria esse defeito que a dona de um sorriso tão bonito teria para provocar aquele comentário por parte de Raul?E por que ele não quis lhe dizer o motivo?Talvez não fosse por nada. Raul era todo desconfiado mesmo.Mas agora era tarde para pensar nisso.Ela estava ali na sua frente.Estendeu a mão para tocar no ombro dela. Abandonou a idéia. Ao invés disso, deu dois passos mais longos e ficou ao seu lado.Olhou-a diretamente.-Oi. Qual é seu nome? – sua voz saiu trêmula.

la o olhou fixamente. Não se esforçou para demonstrar surpresa. Na verdade, parecia senhora da situação.E

Esboçou um leve sorriso antes de responder.

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-Oi. Meu nome é Paula.Jorge achou aquilo muito estranho. Se Raul havia afirmado que seu nome era Lucia, porque ela se identificou como Paula?Haveria de investigar isso depois.-Será que poderíamos conversar? – perguntou.“Será que poderíamos conversar? Não tinha nada mais idiota para ser dito?” – pensou Jorge.-Claro! – respondeu ela.E agora? O que dizer? Estava sem jeito e sentia-se meio bobo.Mas, para sua sorte, Lucia (ou Paula) sentia-se a vontade e com disposição para conversar.A conversa começou a fluir de forma descontraída apesar dele se sentir um pouco nervoso.A essa altura estavam passando em frente ao ponto de ônibus.Jorge sentiu-se ainda mais constrangido, pois, apesar de evitar olhar em direção aos amigos, sabia que eles observavam.Acenou meio de lado sem olhar.Já Lucia parecia não se incomodar com isso.

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Ela conversava como se já o conhecesse há muito tempo.-Sim, é verdade. Sou Testemunha de Jeová. Como você sabe?-Se posso lhe emprestar alguns livros? Claro!A jovialidade dela começava a deixá-lo mais confortável e menos tenso.Chegando a um determinado trecho do caminho, achou melhor não ser inconveniente logo no primeiro contato.Afinal, até onde ele poderia ir com ela? Não seria elegante deixá-la, por exemplo, na porta de casa.Pensou em que desculpa usar.-Bem, Paula. Vou me despedir de você por hoje. Preciso voltar ao ponto para pegar o ônibus.-Você já vai?Jorge sentiu um profundo desapontamento na pergunta e na expressão no rosto dela. Mas, não sabia como voltar atrás.Voltou a sentir a timidez tomando conta de si.-Onde você mora? – perguntou ela.-Em Itinga. Lauro de Freitas.

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-Que interessante! Eu tenho um primo chamado Jorge que também mora em Lauro de Freitas.-Realmente interessante – respondeu Jorge sem muita convicção.-Bem, como você tem que ir...Jorge começou a achar que aquela tinha sido a mais infeliz e inapropriada frase já dita em toda sua vida.Porque tinha dito que precisava ir se, na verdade, não precisava?Autocensurava-se enquanto era obrigado a se despedir mesmo sem vontade nenhuma de fazê-lo.-Amanhã eu levo o livro pra você – ainda a ouviu dizer enquanto se afastavam.-Tudo bem. Até amanhã – respondeu.-Tchau.Jorge andou um pouco sem olhar pra trás. Não resistiu, disfarçou e deu uma olhada.Ainda conseguiu vê-la dobrar a esquina.Como é que na primeira vez que a viu pôde achá-la “sem sal”?Ela era linda. Andava ao longe com aquela mochila azul claro enorme.De repente, até esse detalhe lhe parecia uma coisa maravilhosa. Agora Jorge achava

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um charme aquela figura baixinha com aquela mochila grande.Aliás, tudo nela agora lhe aparentava maravilhoso.Sua pele clara, seus cabelos longos e negros, sua boca carnuda e sedutora, sua pequena estatura e seus óculos miúdos.Tomava repentinamente consciência de que, pela primeira vez em sua vida, estava apaixonado por uma mulher que não conhecia.Naqueles minutos mágicos em que esteve ao lado dela, nada mais importou.Seus problemas tornaram-se pequenos. Na verdade, todos tinham abandonado sua mente.Não estava lhe importando a ameaça a sua integridade física e o risco que correra andando sozinho sem seus companheiros, nem as brigas com sua mãe, nem os pro-blemas de seu pai e muito menos as desilusões amorosas antigas.Por alguns minutos pôde esquecer tudo.Apenas por alguns minutos.-Idiota! – acordou assim do “transe” em que se encontrava.-Pra quê dizer que já tinha que ir?

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-Ao menos, amanhã pegarei o livro na mão dela – pensou resignando-se.Sua cabeça permanecia um pouco embaralhada.Paula? Porque ocultar o próprio nome? Esse era o artifício usado por quem não queria ser encontrado depois.Seria esse o caso? Não parecia.E Raul? Porque não gostava dela? E porque não queria lhe dizer o motivo?Caminhava lentamente.Não havia se saído muito bem, na verdade.Estava visivelmente nervoso, fez uma pergunta boba logo de inicio e se despediu antes da hora.Contudo, sentia-se alegre.Vislumbrava uma rara oportunidade de ser feliz.Não só por causa dela. Mas, por tudo que estava acontecendo desde que chegara ao Sucupira.Sentia que agora estava vivendo de verdade.Ao longe já podia ver seus amigos ansiosos no ponto de ônibus a tentar observá-lo.Continuou andando lentamente.

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Queria pensar no que acabara de fazer, mas não tinha vontade de falar sobre o assunto.Nunca gostara de falar sobre um evento que não tinha entendido ou superado.Com esses pensamentos habitando sua mente, chegou finalmente ao ponto de ônibus.Foi recebido com muito barulho e euforia.Todos queriam detalhes do que tinha se passado.-Paula? – estranhou Raul – É por essas coisas que eu não gosto dela!Os três amigos o enchiam de perguntas que ele respondia de forma evasiva.Não queria falar sobre o assunto e gostaria de manter a imagem de quem tinha agido apenas para pagar a aposta.Ademais, ainda estava tentando entender o que estava acontecendo consigo mesmo.O dia seguinte seria esperado com muita expectativa. Aconteciam coisas demais ao mesmo tempo.Tomou o ônibus de volta pra casa junto com os três amigos.Teve uma noite agitada de sono.

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Sonhou com brigas com Roberto Carlos e beijos com Lucia.Raul aparecia dizendo “não gosto dela”.Sentia um misto de euforia e preocupação.Mal podia esperar para saber o que dia seguinte lhe reservaria.

cordou para a manhã cotidiana torcendo para que a tarde cheia de possibilidades chegasse logo.A

Pela primeira vez na vida, sentia-se feliz. Era uma espécie de alivio na alma.Como se houvesse, repentinamente se libertado das amarras que a vida lhe colocara até o momento.Sentia-se forte e leve ao mesmo tempo.Era uma sensação que nunca houvera experimentado antes. Todas as desilusões que havia sofrido tornaram-se pequenas.Passou a manhã nesse estado de êxtase.No ônibus, não conseguia disfarçar a euforia.Chegando à escola, a primeira coisa que fez foi procurar por Lucia com os olhos.

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Sentiu-se um pouco frustrado por não tê-la achado.Estava impaciente.-Que bobo que eu me tornei de uma hora pra outra! – pensou.Caminhou freneticamente pelos corredores da escola, sem rumo, à espera de encontrar com Lucia.Não queria que parecesse um encontro proposital. Gostaria que soasse como uma coisa acidental.Não seria interessante passar uma imagem de ansiedade.Além do mais, pareceria bobagem mostrar que estava apaixonado daquela forma com apenas uma conversa. Seria imaturidade aos olhos dela.Não deu muita atenção aos alertas de Raul sobre o fato de andar sozinho na escola. Bastava evitar áreas desertas.Ninguém lhe faria nada em meio à multidão.Foi até o pátio e voltou. Entrou na biblioteca, folheou alguns livros e saiu.Foi até o bebedouro, olhou em direção a sala dela.Caminhou até a sua própria sala. Entrou.

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Tocou então o sinal para o inicio da primeira aula.Todos entraram desordenadamente e alguns se acomodaram.Porém, não havia na sala cadeiras para todos. Era necessário pegar algumas na sala em frente. O que foi feito pelos que chegaram depois.Por todos, menos por um.Ivan era um sujeito alto, magro e que preferia permanecer isolado de todos.Freqüentemente era visto sentado sozinho em lugares vazios.Quando ele chegou e viu que não tinha cadeira saiu, abriu a porta da sala em frente e entrou.O problema é que, nesse meio tempo, uma professora tinha entrado na sala.Jorge não conhecia aquela professora, mas sabia da sua fama de ranzinza e agressiva.E o inevitável aconteceu.A professora revoltou-se com a entrada abrupta de Ivan e, sem cerimônias, começou a gritar com ele.-Seu mal-educado – dizia – como é que você entra na sala desse jeito?

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-Eu precisava de uma cadeira – respondeu Ivan de forma calma e despreocupada.-E porque você não bateu na porta?-Desculpe, eu não sabia que a senhora estava aí.-Mesmo que eu não estivesse! – gritava descontrolada a professora – Essa é a educação que você traz de casa?-Me desculpe – disse Ivan ainda calmo.Pegou uma cadeira e dirigiu-se a porta da sala.-Você é muito mal-educado! – continuava a gritar a professora.Na sala de Jorge todos se levantaram pra ver a confusão.-Desculpe – dizia Ivan calmamente.-Como é que entra assim na sala!-Desculpe.-Você devia ter mais educação!Foi nesse momento que aconteceu.A calma de Ivan, de repente, transformou-se num momento de cólera.-Eu não já pedi desculpa, caramba! – urrou.Silêncio total. Nenhum dos alunos ali presente esperava essa reação por parte do tão quieto e calado Ivan.A professora emudeceu.

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E como se nada tivesse acontecido, Ivan calmamente entrou na sala de aula carregando a cadeira.Colocou-a no chão e sentou-se.A gargalhada foi geral.A professora atabalhoada nada mais conseguia falar. Sua tentativa de impor ordem havia se transformado numa balbúrdia total.Envergonhada e com os olhos faiscando de raiva, ela saiu.-Você sabe que ela vai se queixar na diretoria, não sabe? – alguém lhe perguntou.-Sei – respondeu calmamente Ivan.E assim aconteceu. Logo em seguida foi chamado a presença da diretora.Passados alguns minutos, ele retornou e sentou-se novamente.-E aí? – quis saber Raul – O que aconteceu lá?-Nada demais. Tomei uma bronca e exigiram que eu pedisse desculpas.-E você pediu?-Pedi. Já tinha pedido antes mesmo.Raul sentou-se ao lado de Jorge e falou:-Precisamos conversar com esse cara.

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Jorge sorriu. Sabia que Raul estava maquinando alguma coisa.Assistiram à aula que transcorreu normalmente.Ao término, Ivan saiu e dirigiu-se a quadra de esportes sozinho.-Vamos lá falar com ele – sugeriu Raul.-Sobre o que mesmo? – perguntou Jorge.-Precisamos recrutar esse cara pra KGB. A atitude dele é perfeita.-Não vamos chamar Marcio e Raimundo?-Depois.Como os dois haviam permanecido na sala de aula Jorge acompanhou Raul.-Esse é o destruidor de professoras! – começou Raul jovialmente.Ivan apenas sorriu.-Ouvi dizer que aquela professora adorou o que você fez. Dizem que ela até se apaixonou por você – continuou Raul.-Será mesmo? – respondeu Ivan sério.Raul riu.-É que ela me encheu a paciência. Aí eu falei alto para que ela me ouvisse.Vendo que sua participação naquela conversa não era necessária, Jorge resolveu

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se afastar para procurar o que realmente lhe interessava naquele momento. Voltou à porta da sua sala passando pelo corredor onde ficava a classe que Lucia estudava.A porta estava fechada. Sinal que estava tendo aula.Resolveu voltar à quadra, mas, achou melhor não tornar a passar pelo mesmo corredor. Estava se tornando patética a sua busca.Mas, ao entrar no corredor ao lado, eis que viu a aproximação de Lucia.Sobressaltou-se.Achava incrível como a simples visão dela abalava completamente seus sentidos.-Oi! – ela o cumprimentou jovialmente.-Oi – respondeu Jorge meio sem jeito.“Seria soberba demais achar que ela trocou de corredor para passar em frente a minha sala?” – pensou.-Estou com o livro aqui – disse ela lhe entregando um exemplar de “Os Jovens Perguntam, Respostas Práticas.”-Que bom! Era justamente o livro que eu queria ler!

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Não era de todo mentira. Havia prometido a uma tia sua que, um dia, leria aquele livro.-Então depois que você ler a gente conversa sobre ele, tá bom?-Combinado.-Eu tenho que ir porque minha aula já começou. Tchau Jorge.-Tchau.Ela se afastou. Ele a acompanhou com os olhos.“Interessante, hoje ela me pareceu mais tímida. – pensou - Ou seria eu que estou um pouco mais calmo?”Continuou caminhando até a quadra. Estava radiante.Era realmente a primeira vez que tudo parecia estar caminhando bem em sua vida. Era uma situação tão rara que merecia ser curtida em todo o seu esplendor.Deu vontade de assobiar. Começou com uma canção que ele adorava.“Tenho andado distraído/impaciente e indeciso...”Estranho. Raul não estava mais na quadra.Voltou a sala de aula. Lá encontrou o amigo.

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-Preciso conversar com você – começou Raul.-Pode falar.-Lembra das listas que vamos colocar no mural?-Sim.-A idéia de pular o muro furou. Teríamos que passar pelo laboratório de Mecânica e eles normalmente tem aula lá no primeiro horário. Existe a possibilidade de toparmos com um deles que, eventualmente chegasse mais cedo.-E agora? O que podemos fazer?-Precisamos de um elemento novo. Alguém confiável e que seja desconhecido na escola pra fazer o serviço.“Pra fazer o serviço.”O jeito de falar de Raul era realmente cinematográfico. Jorge achava engraçado.Afastou Lucia da mente e pensou um pouco.-Acho que tenho a pessoa ideal – disse finalmente.-É de confiança?-Com toda certeza. Levo ele em sua casa pra gente conversar no sábado.-Combinado.

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-E Ivan? – quis saber Jorge.-Falamos sobre ele depois.Os próximos quarenta minutos passaram sem novidades.Descobriram que dois professores faltaram e só iam ter aulas nos dois últimos horários.Arranjaram uma bola e foram jogar na quadra.Por falta de opção, Jorge ficou de goleiro.O jogo estava bastante descontraído até que ele notou que os alunos do segundo ano de Mecânica cercaram a quadra.

ra uma situação de risco, mas Jorge encontrou a oportunidade perfeita para se vingar da humilhação sofrida

há poucos dias.EAfinal Beto e Roberto Carlos estavam lá. Ele e seus amigos eram minoria naquele momento, mas quando não eram?Ademais de onde ele estava era possível ouvir as risadas e chacotas vindas deles.

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E dava pra ver que a maioria era dirigida a ele.Pacientemente ele segurou a raiva e aguardou o instante correto.Que logo surgiu.Beto aproveitou o momento favorável a ele e passou a insultar Jorge.-Tira essa lingüiça do gol! – gritava, provocando a risada de todos.Raul passou por Jorge e falou:-Eu não vou aturar isso!-Raul – disse Jorge tranquilamente – Sei que fisicamente eu sou um nada nessa guerra, mas eu me garanto. Deixe que essa eu resolvo.-Mas...-Por favor, me dê um voto de confiança.Nesse momento, Beto se sentindo o senhor da situação, gritou para Jorge:-Ô tripa! Saia do gol e me dê o lugar. Quem vai pegar agora sou eu!Era o momento que Jorge esperava! Jogou a educação e as boas maneiras pro alto, pegou nos genitais e gritou:-Porque você não pega aqui?O efeito foi até acima do esperado. Gritos, risadas e até aplausos por parte de todos

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que estavam na quadra sucederam a atitude de Jorge.-O que é que você disse rapaz? – perguntou atônito Beto.-Perguntei por que você não pega aqui!Agora até os amigos dele riram.-Pô Beto, o calouro te humilhou – ria Roberto Carlos.Beto estava transtornado. Dava pra enxergar em seu semblante a raiva que o consumia naquele momento.-Pequeno, eu vou te pegar! Vou te arrebentar!-Você vai pegar é aqui, ó! – repetia Jorge fazendo o mesmo gesto.Duplicaram os gritos e as risadas. Beto estava humilhado perante todos os presentes por um moleque que tinha um terço do seu tamanho.Agora era guerra aberta.Roberto Carlos bateu no ombro de Beto, cochichou algo e ambos se retiraram.-Gostei de ver, Jorge. Mas agora, atenção redobrada – recomendou Raul.-Jorge, eu não esperava isso de você. Parabéns. – falou Raimundo.

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Marcio, que estava fora da quadra, apenas ria.Jorge estava orgulhoso porem, temeroso.Sabia que aquilo não ia ficar assim. Haveria represálias.“Quando se sai na chuva...” – pensou.O jogo continuou transcorrendo normalmente.Passados alguns minutos, Beto e Roberto Carlos voltaram acompanhados de Pedrão, Frank e mais alguns da turma de Mecânica.-Tem vaga aí pra nós? Queremos jogar. – perguntou Roberto Carlos.-Tem – respondeu alguém.-Dois gols pra de vocês.Os dois gols aconteceram e o time de Jorge e Raul venceu.Era a vez do time de Roberto Carlos e companhia.Raul se aproximou novamente de Jorge.-É melhor você sair do jogo.-Que? – respondeu ofendido Jorge – De jeito nenhum!-Olha! O jogo vai esquentar. Agora não é mais brincadeira, é guerra.-Causada por mim! Eu não vou me acovardar.-Isso não é covardia. É estratégia.

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-Mas... – ainda tentava argumentar Jorge.-Olha, você pediu pra eu confiar em você e eu confiei. Agora de peço o mesmo. A partir de agora...-Deixe comigo! – interrompeu Marcio – Eu vou entrar em seu lugar.Jorge não tinha opção. Já tinha superado o medo e estava pronto para o que ia acontecer. Agora ia ter que engolir o orgulho e sair do jogo.Sentou-se na arquibancada ao lado de Raimundo para apenas assistir ao jogo. Raul tinha razão. Seu porte físico não permitiria que ele ficasse em quadra.O jogo foi duríssimo. Muita pancadaria de parte a parte. Em alguns momentos parecia que Raul e Roberto Carlos iriam pras “vias de fato.”Marcio também desempenhou bem o seu papel.A tudo Jorge assistia com um olho no jogo e outro nos alunos de Mecânica que estavam de fora.Mas, apesar da pancadaria, o jogo terminou sem maiores incidentes.O sinal tocou. Era hora de voltar à sala de aula.

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Na passagem Beto o encarou de forma dura e Jorge retribuiu o olhar.“Agora, como diria Raul, é guerra.” – pensou.Assistiram as duas ultimas aulas. Jorge foi comunicado que, no dia seguinte, teria a primeira reunião como vice-líder da turma com a diretora.A saída mais uma vez seria um momento de tensão.Saíram juntos tomando todos os cuidados necessários.Chegaram ao ponto de ônibus e resolveram comemorar na padaria.Os amigos comemoravam a pequena vitoria que tiveram naquele dia. Jorge ainda comemorava o bom entrosamento com Lucia.Porém, comemorava em segredo.-Proponho mais uma aposta! – começou Raul.-Mas nem pagamos a primeira – estranhou Raimundo.-A outra é até o final do ano. Essa é imediata.-Então manda – entusiasmou-se Marcio.

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-Quem tirar a nota mais baixa na próxima prova, terá que beijar alguém na escola. Todos toparam. Jorge começava a tomar gosto por aquelas apostas. Ao menos chacoalhava o cotidiano.“Mas, não posso perder – pensou – afinal, se me mandarem beijar alguém que não seja Lucia, posso estragar tudo. E se mandarem beijar ela posso estragar tudo também.”O dia seguinte seria um dia cheio. A tensão com os veteranos aumentara, tinha reunião com a diretora e uma prova que não podia tirar nota baixa de jeito nenhum.-Sim senhor, vai ser um dia cheio. Mal posso esperar. – disse pra si mesmo.

ais uma manhã de ansiosa espera pelo cair da tarde. Era uma sexta-feira, ultimo dia de aula na semana.M

A semana tinha sido tão interessante no Sucupira, que o sábado e o domingo soavam desagradáveis.

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A tarde chegou, e com ela, Jorge voltou à escola.As duas primeiras aulas ocorreram dentro da normalidade.Na terceira aula, fizeram a prova que valia a aposta.No intervalo foi à reunião de lideres estranhou o fato de não ver Roberto Carlos lá.Achava que ele era o líder de sua turma. Mas, pelo visto, não era.Notou que a diretora tinha certa simpatia por ele e achou que aquilo poderia vir a ser útil no futuro.Era estranha essa simpatia, pois apesar de seu comportamento não lhe desabonar, seu jeito de vestir estava muito aquém do exigido pela diretoria.A calça estava rasgada, não usava tênis e sim, uma bota militar e não havia comprado a camisa da escola, usava uma de seu primo cujo escudo estava rasgado ao meio.Mesmo sendo o fardamento uma das pautas da reunião, nada lhe foi dito.Ao final, lhe informaram sobre uma reunião no Grêmio da escola na semana seguinte.

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Aquilo era um porre, mas, era útil. Precisava estar por dentro dos acontecimentos da escola.Acabou o intervalo. Na aula seguinte, a professora entregou as provas.Por apenas três décimos, Jorge não perdeu a aposta. Sobrou para Raimundo.-E aí? Vai pagar a aposta em quem? – quis saber Jorge.-Três décimos é sacanagem! Devia ser declarado empate – respondeu Raimundo – Mas, já que eu perdi, vou pagar em Verena. Verena era uma das três únicas mulheres da turma deles. Jorge já havia observado que ela tinha uma quedinha por Raimundo e, era por isso, que ele a tinha escolhido.Porem, de alguma forma, a história da aposta já havia se espalhado e isso rendeu uma situação cômica.Enquanto Raimundo andava pelos corredores à procura de Verena, ia juntando uma pequena multidão atrás dele. Quanto mais demorava de achá-la, mais gente se juntava a caminhada.Quando ele finalmente a achou, havia em torno de trinta pessoas a segui-lo.

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Sob todos os olhares, Raimundo abraçou e deu-lhe um sonoro beijo... No rosto!Apesar da decepção geral, o ato foi seguido de muitas risadas e assobios.-A aposta era pra dar um beijo. Ninguém disse onde – justificou-se.Verena estava visivelmente confusa e encabulada.Passada a cena, a pequena multidão se dispersou.Jorge se dirigiu até a biblioteca e começou a ler o livro que Lucia havia lhe emprestado.Tinha pressa em terminá-lo, mas, tinha que ser cuidadoso na leitura para mostrá-la que, realmente tinha tido interesse em ler.Era um dos poucos locais na escola em que se sentia seguro e tranqüilo.Raramente alguém da turma de Mecânica era visto lá dentro.“Brucutus! “ – pensava Jorge – “gostam de arranjar briga, mas, ler que é bom...”Alguns minutos depois Raimundo, Marcio e Raul entraram na biblioteca também.-Jorge, Raimundo está exigindo uma revanche – começou Marcio.-Revanche? Como assim?

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-Em breve, teremos uma prova em dupla – explicou Raimundo – a que tirar a nota mais baixa tem que beijar alguém. -E pra esquentar a aposta – interrompeu Raul – obeijo tem que ser dado na pessoa que a dupla vencedora escolher.E assim, fecharam a aposta.-Precisamos votar na admissão ou não de Ivan na KGB – falou baixando o tom de voz, Raul.Haviam combinado que, um membro novo só seria admitido por unaminidade. E assim foi.-Deixem que eu converso com ele – sugeriu Raul.Não houve objeções.-Os Jovens Perguntam, Respostas Práticas? – observou repentinamente Raimundo – Desde quando você lê essas coisas?-Eu peguei emprestado com Lucia – respondeu encabulado.-Olha como já estão as coisas! Já tá até pegando coisas emprestadas com “zóinho.”-Zóinho?-É por causa daqueles óculos pequenininhos.

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Jorge riu. O que ela pensaria desse apelido? Ia depender do senso de humor. Isso é algo que cada um tem o seu de um jeito.O resto do tempo no colégio serviu para a leitura do livro.Jorge estava ansioso por terminar a leitura para ter um motivo pra conversar com Lucia. Por isso a leitura foi rápida e dinâmica.Terminou de ler e a procurou tomando o cuidado de não ser visto pelos amigos.Não queria curtir toda aquela pressão do dia em que Lucia estava na porta da sua sala.Era tímido e discreto.Encontrou-a no final do dia, quando todos já se preparavam pra ir embora após a última aula.-Já leu o livro todo?-Já.-Nossa. Como você lê rápido!-É que a leitura foi interessante.Jorge não estava mentindo. Realmente a leitura tinha sido extremamente agradável já que, há algum tempo, ele estudava por conta própria as religiões.

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-Mas eu tenho algumas dúvidas que gostaria que você me esclarecesse.-Bom, já está na hora de ir pra casa. Então segunda-feira a gente conversa e eu tento lhe esclarecer essas dúvidas.-Combinado então.Jorge sentiu uma imensa vontade de despedir-se com um beijo.Não era só a boca de Lucia que Jorge desejava beijar.Aquele rosto lindo e claro como o de um anjo e até as mãos que gesticulavam bastante quando ela falava já lhe bastariam.Porém, mais uma vez, a timidez falava mais alto que o desejo. Sentiu que seu rosto ia avermelhar e denunciar seuconstrangimento.Despediu-se e reuniu-se aos colegas, que agora eram quatro, e foi para o ponto de ônibus.

entia-se um pouco frustrado por, mais uma vez, ter sucumbido à timidez.S

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Não entendia o porquê daquilo.Isso abalava sua autoconfiança e atrapalhava suas tentativas de se portar como as outras pessoas.Afora que, nenhum benefício toda aquela timidez lhe trazia.Justamente ao contrário.Agora temia que, tanta timidez influísse de forma negativa no seu futuro com Lucia.Não podia deixar aquela oportunidade escapar.Ninguém nunca tinha feito com que ele tivesse acesso a tantas emoções.E, desconfiava Jorge, ninguém mais faria.Porém, se essa fosse uma história fictícia, provavelmente estaríamos caminhando a passos largos para um final feliz.Talvez houvesse um ou dois percalços para temperar o conto, mas, teríamos a garantia de que tudo terminaria bem.Bem, não é esse o caso.A segunda-feira seguinte traria uma surpresa desagradável para Jorge.Mais um fato do qual ele nunca iria esquecer e, que traria desagradáveis conseqüências para sua vida.

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Aos sábados, normalmente Jorge ficava na lojinha pela manhã e, à tarde, ficava responsável por fazer as cobranças nas residências dos clientes.Nesse dia especifico ele foi liberado de suas atribuições e aproveitou para procurar um grande amigo que havia conhecido quando da mudança de uma residência para a outra.Era um vizinho próximo e, por isso, não teve dificuldades em encontrá-lo.Jairo era seu nome. Contou-lhe de forma detalhada os problemas que existiam no Sucupira pediu-lhe ajuda para colocar as listas no mural.-Tô dentro. Vamos sacudir aquela escola!Um dia antes havia combinado com Ivan irem os três à casa de Raul.Este morava em São Cristovão, um bairro vizinho à Itinga.Era uma distância pequena a ser percorrida desde que você não estivesse a pé.Para surpresa de Jorge, Ivan apareceu de bicicleta.-É de meu irmão. Nós vamos nela.

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Estavam os três sem dinheiro e a idéia de caminhar até a casa de Raul realmente era ingrata.Mas, os três numa única bicicleta?Comicamente foi o que aconteceu.Ivan acomodou-se no banco, Jorge no quadro e Jairo sentou-se no guidão.O primeiro pedalava, o segundo guiava e o terceiro orientava quem estava guiando.-Cuidado tem um buraco na frente, desvia!-Vira pra esquerda, que lá vem carro!Caíram umas duas vezes e Jorge acabou ralando o pé.-Cuidado com a poça de água!A situação era tão ridícula que arrancava risos das pessoas que a presenciavam.Mas, apesar de toda a confusão, finalmente chegaram à casa de Raul.Lá foram feitas as devidas apresentações e os três amigos conheceram a mãe, o pai e as irmãs de Raul.Jorge achou a família toda muito simpática. Boas pessoas. Extremamente bem-educadas.Logo após as apresentações, reuniram-se numa casinha separada dentro do terreno

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da residência de Raul e começaram a traçar os planos para agir na escola.O documento que Raul havia digitado trazia pesadas denúncias à administração da escola.-Está perfeito! – foi o sincero comentário de Jorge.Combinaram horário e local do encontro. Apenas Jorge e Jairo entrariam na escola mais cedo. Raul, Raimundo e Marcio iriam no horário normal e todos se encontrariam no setor C para que chegassem juntos como sempre na escola. Jairo iria embora assim que colocasse a lista no mural.-Senti firmeza em Jairo – comentaria Raul depois.- E fique tranqüilo que ele é de confiança.-Por falar nisso, Marcio também esteve aqui hoje.-Pra quê?-Visita social.Com tudo combinado, passado e repassado, despediram-se.A volta pra casa foi outra aventura com três passageiros em uma única bicicleta.

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Conseguiram novamente arrancar risadas da maioria dos transeuntes que por eles passavam.No bolso de Jorge a lista que, oficialmente, daria inicio as atividades da KGB assinadas por pseudônimos.De certa forma, Jorge sentia muito orgulho daquilo.Passou boa parte da adolescência lendo sobre homens que revolucionaram cidades ou países ao enfrentarem as poderosas autoridades locais.Não estava se comparando a eles mas, sentia que em nível de Sucupira podia estar fazendo o mesmo.E isso, de certa forma, preenchia certo espaço que se encontrava vazio em seu espírito.Na segunda-feira de manhã, acordou cedo como sempre, porém não se levantou de imediato. Ficou na cama pensando sobre tudo que havia acontecido nos últimos dias.Pensou em Lucia e sentiu novamente aquela doçura que somente a lembrança dela lhe trazia.A rotina diária da família transcorria, enquanto isso, de forma comum.

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Até que, de repente, Jorge ouviu um barulho altíssimo. Uma pancada como se algo tivesse caído no chão com muita violência.Em seguida ouviu a voz de sua mãe engasgada com choro de desespero.-Jorge! Meu Deus, Jorge!Como ele estava deitado tranquilamente na sua cama, essa reação de sua mãe só poderia ser relativa ao outro Jorge da casa, seu pai.Sobressaltado, literalmente pulou da cama e correu para o lado de fora.Lá presenciou outra cena que jamais sairia da sua cabeça: seu pai estava caído no chão com os olhos revirados. A língua embolada, babando e se retorcendo. Era uma convulsão. Uma espécie de ataque epiléptico.Sua irmã estava em prantos e sua mãe tentava desespe-radamente desenrolar sua língua.Um vizinho que havia presenciado a cena gritava desesperado:-Destranca aqui esse portão!

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Jorge correu até a porta, pegou a chave e correu até o portão com a intenção de destrancá-lo.O nervosismo dificultava suas ações. Nunca fora tão complicado destrancar um cadeado.-Destranca logo esse portão! – gritava o vizinho.Destrancou. O vizinho entrou em disparada. Jorge correu até a casa de outro vizinho que tinha carro para pedir socorro.Voltaram com o carro.-Vou com seu pai até o hospital. Fique aqui e cuide de sua irmã.Sentia vontade de chorar.Dava pra ver que seu pai já apresentava melhora. O pior havia passado.Mas, agora a preocupação era outra. Não era necessário ser um medico para deduzir que o problema tinha ocorrido pelo uso de bebidas alcoólicas.Jorge sabia que seu pai não iria parar de beber.Conseqüentemente, aquilo aconteceria outras vezes.E provavelmente pioraria com o tempo.

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Para Jorge agora era uma questão de tempo para que ele perdesse seu pai.

ão demorou tanto tempo para que uma definição fosse dada para a situação.N

Aproximadamente duas horas depois os dois já haviam voltado do hospital.-Ele tomou um medicamento forte para epilepsia. O médico disse que o problema foi a bebida alcoólica. Disse também que, se ele continuasse bebendo, a bala poderia se mexer e atingir o cérebro. Se isso aconte-cesse, ou ele morre ou fica maluco.-Então tem que parar de beber.-Ele já disse que o problema não foi a bebida, foi o frio.Era o esperado. Jorge tinha certeza que seu pai ia inventar uma desculpa para não parar de beber. Aquela atitude só reafirmava suas certezas.Olhou para o relógio. Já passava da hora de ir para a escola.

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Pensou em passar na casa de Jairo e desmarcar o compromisso. Não queria ir à escola naquele dia. Idéia imediatamente rechaçada por sua mãe.-Não tem porque não ir pra escola. Você ficando aqui não tem como ajudar em nada. Os vizinhos estão todos em alerta. Além disso, ele já foi medicado. Não vai acon-tecer mais nada.Com argumentos tão eloqüentes, Jorge meio a contragosto, decidiu ir até a escola.Lá chegando mostrou a Jairo um mapa improvisado do Sucupira e acertaram os detalhes de como tudo seria feito.O porteiro sempre tirava um cochilo após o almoço. Não esperava que alguém fosse aparecer naquele horário.Era o momento ideal.Jorge entrou primeiro e Jairo um pouco depois.Sentiu um pouco de medo. Sabia o que aconteceria se, por ventura, fosse pego.Soprou a preocupação com seu pai pra longe. Respirou fundo.O papel queimava em seu bolso.-Tudo limpo? – perguntava Jairo.-Tudo certo.

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Olhou ao redor. A escola encontrava-se deserta. Exatamente como Raul dissera.Rapidamente Jairo se aproximou do mural. Jorge lhe entregou a lista e se afastou.-Faça. Se alguém se aproximar, te aviso.Ouviu quatro pancadas leves. Estava feito.-Saia pelo portão lateral. Eu vou logo depois.Jairo saiu.O porteiro ainda não tinha voltado.Jorge também saiu.Caminhou velozmente evitando os caminhos mais movimentados.Percorreu a distância até o setor C de forma um pouco mais demorada que o habitual.Sua adrenalina estava a mil.Encontrou Raul em frente ao SESI local.-Onde estão os outros?-Mudanças de planos. Vão chegar depois pra não dar bandeira. Correu tudo bem?-A lista está lá.-E Jairo?-Já foi.Voltaram à escola.O porteiro agora estava lá, atento a entrada e saída dos alunos.Jorge sorriu por dentro.

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Pensou que gostaria de, um dia, ter um telefone em casa.Assim poderia, por exemplo, saber como estava seu pai e tirar uma preocupação da cabeça.Resolveu não comentar nada com Raul.Caminharam em silêncio pelo pátio da escola.Passada a excitação que qualquer situação arriscada traz, os pensamentos voltaram aos acontecimentos recentes.Um pequeno grupo de alunos amontoava-se em frente ao mural.-Acho que já começou a fazer efeito.Raul sorria.Os dois se aproximaram do burburinho.-O que está acontecendo?-Colocaram um papel aqui no mural criticando e fazendo acusações a diretoria da escola.-Quem botou isso aí? – perguntou cinicamente Raul.-Tá assinado como Don Corleone e Andrei Busolov da KGB.Olharam para sua própria lista como quem demonstra interesse por algo inusitado.

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Para Jorge aquilo soava como uma grande piada. Tinha vontade de rir na cara de todos.Achou que, também não seria legal demonstrar interesse excessivo no assunto e, resolveu se afastar.Não teria aula no primeiro horário, portanto, tinha quarenta minutos livres.Resolveu passar o tempo lendo os avisos do outro mural. E eram vários.Mas, um deles em especial chamou sua atenção.Era uma seqüência de listas com o nome e a idade de todos os alunos do segundo ano para as aulas de Educação Física.Procurou a lista do segundo ano de Administração e descobriu que existiam duas turmas.Procurou por Lucia ou Paula em uma das listas, mas nada achou.Passou para a lista seguinte. Procurou de forma nervosa.Se existia alguma dúvida da informação passada por Raul, ela desfeita agora.Lucia era Lucia. Não Paula.Lá estava! Seu nome completo e ao lado, a idade.

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Assustou-se. Aquela moça pequenina e com cara e jeito de menina era, na verdade, seis anos mais velha que ele.Enquanto ele ainda era um adolescente, ela já estava na fase adulta.Isso não seria um problema se Jorge não fosse tão inexperiente.De repente, sua alegria foi substituída por um intenso sentimento de preocupação.-Não tenho a mínima chance! Vou ser motivo de chacota no primeiro beijo que eu der nela! – pensou angustiado.Caminhou cabisbaixo em direção a sua sala de aula.Atravessou o corredor, passando em frente à sala que Lucia estudava. Olhou pra dentro sem a mesma empolgação de inicio.Ela ainda não estava.Sentia-se desolado. Que chances teria ele com uma mulher tão experiente?Nunca tinha contado a ninguém, mas namorara muito pouco em sua vida.Seria interessante tê-la por um breve momento e depois ser rejeitado?A grande parte das coisas que se sabia sobre Jorge relativas a esse assunto eram historias exageradas.

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A verdade era que, ao menos nesse campo, ele estava engatinhando.Estava pra completar dezesseis anos. Ela já tinha vinte e dois.Para Jorge essa diferença de seis anos era um abismo. Não pela idade em si, mas, pela provável experiência dela e pela completa inexperiência dele.Pela milionésima vê, amaldiçoava sua timidez.

O dia terminou sem que ele a visse.Isso aumentou ainda mais a sua melancolia. Definitivamente não havia sido um bom dia.Chegou em casa e constatou que nada mais havia acontecido com seu pai.“Pelo menos termino o dia com uma boa noticia”- pensou.Dormiu mal. Não conseguia parar de pensar na idade de Lucia.

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Ele mesmo sempre fora um cara de cabeça aberta. Nunca tinha tido nenhum tipo de preconceito e, não era disso que se tratava agora.Era medo mesmo. Medo de ser ridicularizado. Medo de não corresponder às expectativas. Medo de virar motivo de risos para os próximos dois anos.O que fazer no dia seguinte? Se já era difícil vencer a timidez, como encarar Lucia tímido e com medo?-Não deveria ter devolvido o livro antes de saber o que fazer.Assustou-se com seu próprio pensamento. O que ele tinha, na verdade, era medo de ser feliz.Adormeceu sem chegar à conclusão alguma sobre o dia de amanhã.Se Jorge não tinha conseguido chegar a uma decisão, ela foi tomada por ele. Na manhã seguinte saiu para comprar pão e, como sempre fazia, passou os olhos pelas capas dos jornais expostos na banca.E, ao lado da noticia da queda da União Soviética estava impressa em letras garrafais a deflagração da primeira greve

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dos professores da rede estadual naquele ano.Era uma noticia que não surpreendia ninguém naquela época tamanha a freqüência com que essas greves acon-teciam. Jorge não sabia se agradecia aos céus ou se amaldiçoava aquela greve.Ganharia tempo para superar e solucionar a questão da idade de Lucia.Mas, será que ele queria aquele tempo?Essas greves costumavam durar, no mínimo, um mês. Tempo demais longe dela.E se ela se desinteressasse por ele? E se conhecesse alguém que a atraísse e a fizesse desistir dele?E como administrar o turbilhão de saudades que tinha certeza que sentiria dela?Voltou pra casa com todas as dúvidas atormentando sua cabeça.Acabara de descobrir algo sobre si mesmo que não sabia: era um cara extremamente inseguro.Sempre se achou muito forte e capaz de superar qualquer obstáculo que a vida lhe trouxesse sem muito esforço.

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Agora se via com os nervos a flor da pele por causa de problemas que teoricamente traziam soluções simples.Jorge não sabia, mas, aquela greve duraria pouco mais de um mês.Durante aquele período ocorreram mais dois eventos que não podem deixar de ser registrados.O primeiro foi de ordem familiar.Todos na sua casa estavam com os nervos à flor da pele por causa de seu pai que, apesar de ter tido a convulsão, não parava de beber.Aquilo estava desestruturando a família.Os desentendimentos de Jorge com sua mãe apenas aumentavam.Até que chegaram ao ponto máximo numa discussão tola que resultou num ultimato por parte de sua mãe.-Se você está incomodado com as coisas que acontecem aqui, saia de cãs! Vá embora!Jorge estava literalmente sendo expulso de casa.Seu primeiro ímpeto foi o de entrar no quarto, pegar suas coisas e ir embora pra nunca mais voltar.

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Mas, o peso de não ter pra onde ir, segurou esse ímpeto.Sentiu-se humilhado.Aliás, aquela seria a maior humilhação que sofreria num período longo de tempo.Calou-se. Não havia condições de sair de casa. Teve que engolir seu orgulho.Mas aquilo nem de longe serviria para acalmar os ânimos. Ao contrário.A dor da humilhação se transformou em revolta e a convivência de Jorge com sua mãe tornou-se ainda mais difícil.Pra complicar ainda mais a situação, seu pai teria nesse período mais duas crises de convulsão.O segundo foi uma surpresa partida de um dos seus novos amigos.Durante o período de greve, Jorge não perdeu o contato com os amigos do Sucupira.Passou a ir com freqüência à casa de Raul juntamente com Jairo e Ivan na mesma bicicleta.Passaram os três a ter um maior contato com a família de Raul.

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A casinha da frente foi promovida a sede oficial da KGB e, para inaugurá-la foi organizada uma festinha.Coube a Jorge e Jairo providenciarem a cerveja. As peripécias dessa compra dariam um novo livro. Por isso, deixaremos pra outra ocasião.A festa foi um sucesso. Divertiram-se tanto que esqueceram o horário.Para Jorge foi um momento de alivio onde pôde esquecer a maioria dos problemas.Divagou em alguns momentos mas, sempre era acordado dos seus devaneios por um dos amigos ou por uma das irmãs de Raul que também participaram da festa.Na hora de ir embora, por causa do horário avançado, tiveram que ir a pé.A caminhada era relativamente longa e dava tempo tanto para conversar quanto para pensar.Era uma noite de céu claro e temperatura agradável.Apesar de a caminhada trazer riscos tanto por causa do horário quanto por causa do local, Jorge precisava pensar e, por isso, resolveu andar um pouco a frente dos ou-tros.

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Dos cinco amigos, apenas Raimundo não havia comparecido a festa.Jairo e Ivan estavam ligeiramente bêbados e Marcio estranhamente calado.Eram muitos problemas de uma vez só além da enorme falta que a presença de Lucia lhe fazia. Após o entusiasmo da festa, sentia-se um pouco triste.Porém não teve muito tempo para lamentar seus azares.Marcio que até então estava calado se aproximou de Jorge e começou a falar.-Preciso conversar com você.-Aconteceu alguma coisa?-Aconteceu...Aquele jeito de falar se partisse de Raul era comum, mas vindo de Marcio, deixou Jorge preocupado.-O que houve?-Você é o único que eu posso conversar por que é discreto e vai entender o que eu estou passando.Quanto m ais Marcio falava, mais Jorge se preocupava. Calou-se. Sabia que aquele era o momento em que precisava ouvir e não questionar.

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-Eu quero falar com você, Jorge, sobre paixão.-Paixão? É a filha do seu patrão?-Não. Eu achava que gostava dela até conhecer outra pessoa.-E quem é essa pessoa?-A irmã mais nova de Raul.

situação era realmente complicada. Tanto Raul quanto o resto da família eram pessoas extremamente

conservadoras. Não se sabia qual seria a reação deles frente a essa situação.

A-Eu e ela já conversamos sobre isso.-E?-Ela também “tá a fim”mas, tem medo da reação de Raul.-Mas vocês são amigos.-Mesmo assim. Por mim já tinha contado a ele. Mas ela...-Situação difícil.Pausa. Ouviam-se apenas as brincadeiras de Jairo e Ivan um pouco atrás deles.Finalmente Jorge interrompeu o silêncio.

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-Você quer só desabafar ou quer me pedir algo?-Se desse pra você discretamente saber o que Raul pensa da situação...-Posso tentar.-De todos nós, você é o que tem mais afinidade com ele. E sabe mais ou menos o que estou passando afinal, você também está apaixonado não está?-Está tão na cara assim?-Está.Jorge calou-se.Jairo e Ivan continuavam brincando.A noite estava clara e bonita. Mas os pensamentos de Jorge quanto aos dias que viriam eram sombrios.Os dois amigos se aproximaram e começaram a brincar também com eles.Jorge ria mas, não se divertia mais.Pensava em seus pais, em seus amigos e em Lucia.Porque a vida nunca era simples? Porque todas as lições tinham que ser amargas? Porque tudo tinha que ser conquistado com sofrimento?Sentiu lágrimas brotando em seus olhos.A certa altura do caminho dividiram-se.

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Ivan morava próximo a Marcio e Jairo era vizinho de Jorge.Caminhou em silêncio ao lado de Jairo.Alguns dias após aquela noite, seu pai teve a segunda convulsão.O mês terminou. O inicio do mês seguinte trouxe consigo o término da greve e o reinicio das aulas.A vida de Jorge não havia melhorado em nada.Agora, além de tudo, tinha que conviver com o contínuo temor das convulsões de seu pai.As brigas com sua mãe continuavam.Tinha que cumprir a promessa feita a Marcio de tentar ajudá-lo.Além de ter que se concentrar nos estudos.E Lucia? O que fazer? Que atitude tomar dali pra frente?Todos os pensamentos embaralhavam-se em sua cabeça.No primeiro dia de reinicio das aulas, chegou atrasado.Corria até a sala de aula quando avistou Lucia de longe.Achou melhor correr para a sala de aula. Afinal, podia falar com ela depois.

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Os professores como sempre faziam após uma greve, queriam acelerar as matérias para que o ano letivo não se estendesse muito.Nesse dia Jorge teve as cinco aulas. Todos os professores marcaram provas e trabalhos em grupo.Inclusive o horário de intervalo teve que ser usado para adiantar um desses trabalhos.O dia foi corrido e Jorge não pôde mais procurar por Lucia.Na saída após uma fracassada tentativa de encontrá-la, resolveu ir embora junto com os amigos.Usando uma desculpa qualquer desceu do ônibus em São Cristovão para poder conversar a sós com Raul.-Precisamos conversar sobre Marcio.-Marcio e minha irmã, não é?-Você já sabe? – surpreendeu-se Jorge.-Já desconfiava. Só não entendo porque estão tentando esconder de mim.-Estão com medo de sua reação.-Bobagem! Marcio é meu amigo. É muito melhor um cara que eu conheço e sei que é decente do que um desconhecido.

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Jorge respirou aliviado. Pelo menos Marcio teria mais tranqüilidade para resolver seu problema.-Mas, e você, senhor cupido? Já resolveu sua questão com Lucia?-Não. Hoje não deu. Amanhã tentarei falar com ela.Despediram-se.No dia seguinte, Jorge chegou mais cedo pra ver se conseguia falar com Lucia antes das aulas começarem.Em vão. Não a encontrou.Ao invés disso presenciou uma cena, no mínimo, curiosa: o caminhão com a merenda escolar havia acabado de descarregar.Toda aquela comida deveria ser armazenada na cantina da escola, mas, ao invés disso uma boa parte era carregada em sacolas para o carro da diretora.Quando os amigos chegaram foi realizada uma rápida reunião onde Jorge contou o que tinha visto.-Temos que denunciar isso. É nossa obrigação como membros da KGB – dizia Raimundo.Todos concordaram.

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-Como eu já contei tudo que vi, é só Raul datilografar que eu e Jairo colocamos no mural.-O problema é que a máquina está quebrada.-Isso é fácil de resolver – falou Jorge após pensar um pouco – Eu tenho duas grafias.-Hã?-Quando eu era mais novo, odiava minha letra, sendo assim eu a mudei. É completamente diferente uma da outra.-Então tem que servir. A notícia é muito quente para deixar passar – concluiu Raul.Acordo feito marcaram para dali a dois dias a colocação do manifesto.Entre aquela lista que colocariam dali a dois dias e a primeira que haviam colocado havia se passado uma quantidade razoável de tempo. E nesse período, várias listas haviam sido colocadas tornando a KGB um grupo conhecido no ambiente escolar.Todos queriam descobrir quem eram os membros do grupo.A diretoria começou a responder aos manifestos no mural que se localizava ao lado da sala dos professores.

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Nesse ponto, Jorge estava conseguindo alcançar seus objetivos. Eles estavam causando uma verdadeira revolução no Sucupira.Em casa as coisas só faziam piorar com seus pais.Agora sua mãe já considerava a hipótese do divorcio.Seu pai havia cismado que Jorge estava acobertando um possível namoro de sua irmã e vivia lhe fazendo ameaças.Sua irmã o havia procurado para se queixar dos pais e selar um pacto de amizade com ele.Suas notas estavam caindo e, sua cabeça não funcionava direito em meio a tantos problemas.As convulsões de seu pai tornaram-se mais freqüentes.Jorge via sua vida se tornar um inferno.Houve ocasiões em que precisou de “cola” dos amigos pra não fracassar nas provas.Tudo ia de mal a pior.Sempre se lembrava de Lucia, mas não a via. E mesmo que a visse, não se sentia em condições de ter uma conversa decente com ela.

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Não a via? Não foi isso que descobriu dias depois.Estava chegando para mais um dia de aulas quando, logo na entrada avistou-a com uma amiga.Ao se aproximar pôde ouvir claramente o dialogo entre elas.-Você também não fala com o rapaz, Lucia – dizia a amiga.-Mas, se ele não fala comigo – respondeu.Jorge ouviu, mas preferiu não tomar nenhuma atitude naquele momento. Não estava com cabeça pra conversar.Havia acabado de sair de mais uma briga com sua mãe.Tudo que desejava naquele momento era ficar sozinho.Perambulou um tempo pela escola a esmo até perceber que ficar sozinho não resolveria seus problemas.Estava acontecendo um evento no ginásio de esportes e, Jorge resolveu comparecer para tentar esfriar a cabeça.O local estava lotado.Jorge não conseguia se divertir. Eram problemas demais pra pensar.

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Lá no ginásio, voltou a ver Lucia com sua amiga.Haviam se passado semanas sem que ele visse aquele rosto maravilhoso que lhe trazia uma inexplicável paz de espírito.Mas, trazia também todo aquele descontrole emocional e fazia aflorar sua timidez.Ficou observando-a de longe por um tempo.Imaginou o que falar para voltar a se aproximar dela. A desculpa do livro não iria colar de novo.Resolveu fazer do jeito que havia feito antes: se aproximar e dizer “oi”.Jorge não havia aprendido a se livrar daquela incômoda timidez, mas, havia aprendido a saber o que as pessoas diziam olhando para seus lábios.Pensou em esperar um pouco. Não conseguiria falar com Lucia com sua amiga do lado.Mas, não conseguia parar de olhar em sua direção.Naquele momento, Lucia estava de costas pra ele.“Ouviu”a miga dizer “vamos pra casa.”

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Não sabe o que Lucia respondeu, mas a fala seguinte da amiga atingiu-lhe como uma faca fria no peito.-Vai ficar fazendo o quê aqui? Esperando pelo seu otário?O detalhe é que ela falou olhando diretamente para Jorge.Ele gelou. Não esperava por aquilo.Lucia respondeu algo e elas saíram.Pensou em ir atrás dela. Tentar explicar o inexplicável.Não conseguiu.A tristeza tomou de vez conta do seu ser.

Raul se aproximou.-Aconteceu alguma coisa, Jorge?-Lucia...-Ué? E você ainda quer alguma coisa com ela?-Claro que quero! Eu estou apaixonado por ela! -Não parece.-Como assim não parece?-Sua atitude nas últimas semanas...-Que atitudes?-Você não tem noção do que anda fazendo?-E o que é que eu ando fazendo?

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-Tem mais de um mês que você passa por Lucia e nem ao menos dá uma boa tarde a ela. Aliás, ela falou com você algumas vezes e você não respondeu.

as, infelizmente vamos ter que falar sobre isso outra hora. Agora temos um problema mais

urgente.-M-Qual?-Você anda tão distraído que não está percebendo nada que acontece à sua volta. Dê uma olhada nas saídas do ginásio.Jorge olhou em volta e viu que, em cada saída tinham ao menos dois alunos da turma de Roberto Carlos olhando para eles.-Vão querer aprontar com a gente hoje.Reuniram-se a Marcio e Raimundo.O momento era tenso.O evento acabara e o ginásio começava a ficar vazio.-Dessa vez eu não estou armado. A situação complicou.-Raul tem razão. Vai ser complicado sair daqui. Tá pior que o dia da minha confusão com Roberto Carlos.

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-Eu também não estou com aquela minha faca lá da base aérea.-Acho que de nós três, o único que conseguiria sair daqui seria Jorge.Você é pequeno, dá pra se misturar com a multidão e passar despercebido.Jorge pesou mentalmente a idéia.Realmente dava pra ele sair dali sem ser notado e assim, resguardaria a si próprio, mas a que preço?Se dar bem enquanto seus amigos estavam em risco?Jamais.Covardia decididamente não era um dos seus atributos.-Não. Se tiverem que fazer algo, vai ser nos quatro. Eu não saio daqui sem vocês.Raimundo pareceu um pouco contrariado com a decisão, mas Raul sorriu.-A cada dia eu gosto mais de você.Covarde ele realmente não era, mas admitia pra si mesmo estar morrendo de medo.Era a grande oportunidade de Beto vingar-se da humilhação sofrida na quadra.Jorge o procurou com os olhos.

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Sim. Ele estava lá. Parado na porta principal do ginásio olhando para Jorge com um sorriso no rosto.Não havia dúvidas sobre qual era a pretensão deles.Subiram a um ponto mais elevado da arquibancada.Dava pra ter uma melhor visualização da situação.O ginásio já estava praticamente vazio quando surgiu uma oportunidade de, ao menos, adiar o problema.Chegou uma turma de moradores de Mussurunga pra jogar futebol.Alguns já eram conhecidos dos quatro amigos.Ficariam então no ginásio até que o jogo acabasse.Era um tempo pra pensar no que fazer.Logo no começo do jogo, porém a bola foi chutada pra cima e ficou presa nas vigas de sustentação do telhado.Era uma altura razoável. No mínimo uns vinte metros.-Acabou o jogo – falou alguém.-Eu consigo pegar essa bola – falou repentinamente Marcio.

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-Nós podemos resolver nosso problema de outra forma Marcio. Não precisa arriscar a vida. Uma queda daí seria fatal.-Não tem nada a ver com nosso problema Raul. Eu estou habituado a subir em lugares altos assim e consigo tirar essa bola de lá.Unindo palavras à ação, Marcio começou a escalada.Subiu no telhado do vestiário atrás do palco, pendurou-se em uma das vigas de sustentação e, rapidamente chegou à viga superior.Era a parte mais perigosa.Era preciso meio que engatinhar por cima da estrutura metálica até chegar à bola.Jorge ergueu os olhos e viu que, realmente, uma queda daquela altura seria fatal.No meio da estrutura de metal da viga havia uma junção que, naquele momento, servia como uma barreira para Marcio.Ele pendurou-se por baixo da barreira. Girou o corpo e passou pela junção.Mais a frente, outra barreira igual.-É melhor descer! – dizia um aflito Raimundo.

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Súbito, como que combinado, todos os presentes olharam para trás.Roberto Carlos e companhia observavam atentos a escalada de Marcio.Raimundo aproximou-se de Jorge.-Estou sentindo a maldade deles. Dá pra sentir que eles estão torcendo pra Marcio cair.Jorge sentiu o mesmo. Notava-se uma “energia ruim” vinda da direção deles.A tensão aumentou ainda mais.A preocupação de todos era visível.Marcio repetia o movimento e passava pela outra junção.Chegou até a bola e empurrou-a com o pé. A bola caiu, mas ninguém se mexeu para pegá-la.Todos os olhares fitavam Marcio.Restava o caminho de volta tão arriscado quanto o de ida.Novamente pendurou-se, girou o corpo e passou pela primeira junção.Engatinhou pela estrutura até chegar à segunda junção.Escorregou levemente.Todos se assustaram. Marcio firmou o corpo e voltou a engatinhar.

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Repetiu o movimento e passou pela segunda junção.O pior havia passado.Pulou para o telhado do vestiário e desceu.Todos os presentes festejaram. Marcio foi abraçado.-Nunca mais faça isso! – dizia Raimundo.Marcio sorriu.Jorge olhou para a porta. Roberto Carlos e Beto permaneciam impassíveis olhando-os.Os quatro amigos voltaram para as arquibancadas. Sentaram-se.Ainda não haviam resolvido o seu problema.Um dos moradores locais aproximou-se dos quatro amigos.-Muita coragem de sua parte. Por mim aquela bola ficava lá. Valeu.-Não foi nada – respondeu Marcio.Virou-se para Raul.-Vocês quatro nunca ficam aqui no ginásio. Hoje permaneceram até agora. Há algum problema?-Não. Tá tudo tranqüilo.-Não está não. Porque aqueles caras não param de olhar pra vocês?

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Raul deu uma vaga explicação sobre o acontecido.-Eles podem até ser grandes, mas, essa área é nossa. E enquanto eu estiver aqui ninguém bole com vocês. Esperem o jogo acabar que vocês vão sair com a gente.Jorge sentiu-se um pouco mais tranqüilo.Parecia que a loucura de Marcio traria um inesperado beneficio.E assim foi.Ao termino do jogo os quatro amigos saíram junto com os moradores do bairro.-Vocês querem companhia até o ponto de ônibus?-Não é necessário. Valeu.Ninguém mais da turma de Mecânica foi visto naquele dia.Mas aquilo serviu para recolocar Jorge em alerta.A escola não se resumia a Lucia. Havia mais coisas. Inclusive uma ameaça real a sua integridade física.A guerra ainda não terminara.

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ma coisa que nunca poderiam tirar da mente era o fato que, primeiramente, o objetivo deles era

estudar. Era para isso que estavam ali.UEntão tinham que cumprir com as tarefas dadas pelos professores.Um desses professores era mulher e se chamava Murcia.A mesma Murcia que estava presente no primeiro contato de Raimundo e Roberto Carlos.Professora de Educação Artística, Murcia estava sempre inovando. Visitas a teatros, aulas interativas e, pra desgosto supremo de Jorge, a quarta unidade seria focada justamente em teatro.Com a timidez que lhe era característica, o simples pensamento de estar em cima de um palco era aterrador.Decidiu que simplesmente não iria realizar as ati-vidades. Já obtivera pontuação suficiente para aprová-lo sem necessitar dessa última nota.

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-E pra garantir que todos vão se empenhar nesse trabalho fiz um acordo com o professor de Português. A nota será válida para a minha matéria e para a dele.-Ferrou! – pensou Jorge.O silêncio que se abateu sobre a sala nesse momento denunciava a situação.Para Jorge aquela noticia não queria dizer nada, pois também não precisava de pontos em Português mas, os seus amigos precisavam.Noventa por cento da turma precisava.-Quero que sejam formados três grupos. Cada um apresentará uma peça escrita por vocês mesmos em um dia diferente lá no auditório da escola. Todos vocês terão que atuar.O grupo foi reunido e, Raul ficou encarregado de escrever a peça.“Mas que droga!” – pensava Jorge – “Que idéia idiota. Teatro! Pra que eu quero isso no curso de Eletrotécnica?”Passou o dia ocupado com as sucessivas aulas. Agora todos os professores estavam num ritmo acelerado.Mais um dia sem poder falar com Lucia.

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O final do ano se aproximava e Jorge via que ela lhe escapara por entre os dedos.Já não sabia mais como reaproximar-se dela.Como poderia lhe explicar que sua vida não andava bem?Como falar de coisas tão íntimas para alguém que, por mais que o fascinasse, era uma completa estranha?E, o mais importante: ela iria querer saber dos seus problemas? Decerto que não.O jeito era seguir em frente. Admitir a derrota. Ou tentar um recomeço.Mas o sabor era amargo. Sabia que havia perdido por sua própria culpa.Deixara que um punhado de problemas tomasse conta de sua mente.Fazia intimamente, naquele momento, um juramento: Lucia seria a ultima coisa importante em sua vida que perderia por causa de medo e timidez.A partir daquele momento qualquer coisa que lhe desse vergonha ou lhe causasse medo de fazer, seria feito.Faria as coisas até que esses sentimentos que tanto lhe prejudicaram fossem extintos do seu espírito.

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E, a primeira prova para essa nova tomada de atitude viria logo em seguida.Chegara o dia da prova em dupla.Jorge e Marcio tiraram uma nota mais baixa que Raimundo e Raul e, sendo assim, tinham que beijar alguém que os dois vencedores indicassem.-Vocês terão que pagar a aposta em Natasha.Natasha estava entre as mais bonitas da escola e, estudava na mesma sala de Lucia, o que deixava Jorge numa situação difícil.Era fato que, se ainda houvesse alguma chance de se reaproximar de Lucia, essa possibilidade poderia ser completamente arruinada por uma atitude dessas.Mas, por outro lado, tinha que honrar a aposta feita e, principalmente o juramento que tinha feito a si mesmo.-Pro inferno – pensou – que mais eu tenho a perder? Nada! Ao menos mostro que não sou um otário.Dessa vez, foram mais discretos e ninguém ficou sabendo da aposta.Marcio foi o primeiro a pagar a aposta.

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Estava Natasha usando o telefone público da escola quando ele passou e, simplesmente a beijou.Ela ficou atônita, mas nada disse.Sabendo onde ela estava Jorge se dirigiu a porta da sala e a aguardou.Preferiu não olhar pra dentro da sala, pois sabia que, se visse Lucia se descontrolaria e não conseguiria pagar a aposta.Avistou Natasha se aproximando. Começou a ficar nervoso. A timidez começava a se apresentar em seu intimo.-Maldita timidez!Saiu da frente da sala e encostou ao lado da porta.Raul e Raimundo o olhavam de longe.-Hoje eu começo a destruir esse meu velho problema.O coração estava disparado. Respirou fundo.Natasha despreocupadamente passou ao seu lado. Nesse momento, Jorge se inclinou em direção a ela e deu-lhe um sonoro beijo.Parecia que todos esperavam por aquele momento, pois, um estranho silêncio tomou conta do ambiente.

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Era horário de intervalo e os corredores estavam cheios.Parecia que todos esperavam a reação de Natasha.Ela o olhou com cara de surpresa. Parecia estar atônita.Jorge encarou seu olhar. Tinha muita dificuldade de fazer essas coisas, mas o fez.Naquele momento o importante era seu juramento.Natasha nada disse. Jorge então, como se nada tivesse feito, caminhou lenta e tranquilamente de volta a sua sala.As pessoas riam, gritavam e assobiavam.Ainda pôde ouvir Natasha dizer: ”esses meninos de Eletrotécnica enlouqueceram!” Riu por dentro. Até que não havia sido tão difícil vencer a timidez. Já dera um passo.Atraído pela balburdia, Marcio chegara perguntando:-O que aconteceu?-Jorge pagou a aposta. Deu um beijo daqueles de fazer barulho em Natasha.-Não brinca! E eu não vi! Tem que beijar de novo.Riram os quatro.Jorge estava feliz por ter, ao menos desta vez, vencido a timidez. Mas, um pouco

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triste por não ter conseguido vencê-la em relação à Lucia.-Quem sabe se eu me livrar desse medo besta, eu não consiga me redimir com Lucia?Talvez. Mas, não mais naquele ano.O período letivo estava no final e, o tempo disponível era cada vez menor.Além da correria dos professores pra recuperar o tempo perdido por causa da greve, havia os ensaios para a apresentação teatral.Tudo levava a crer que, a peça traria uma nota boa o bastante para resolver os problemas de seus amigos na matéria de Português.A professora Murcia foi assistir o ensaio geral e disse ter adorado o que viu.Gostou tanto que os convidou para fazer não apenas uma, mas duas apresentações na escola.O dia das apresentações chegou e, se para os amigos era oportunidade para melhorar as notas, para Jorge era mais uma prova de fogo para seu juramento.O ginásio da escola onde se localizava o palco estava lotado.

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Não só os alunos do Sucupira foram assistir à apresentação, mas, também alunos de outras escolas do bairro compareceram.A preocupação dos amigos também era como seria o comportamento dos alunos do segundo ano de Mecânica.Será que Roberto Carlos e companhia não aprontariam nada para atrapalhar a apresentação?Ivan por questões medica tinha deixado de freqüentar a escola, deixando-os novamente em quatro.Eles se reuniram separadamente dos outros componentes da peça e traçaram planos para uma possível represália dos rivais.Apesar de não terem tido problemas com Roberto Carlos, para Jorge foi muito difícil.Precisou manter-se controlado todo o tempo.Ele aparecia logo no primeiro ato vestido de uma forma que ninguém na escola jamais havia visto.Subiu ao palco trajando uma bermuda jeans rasgada, sandálias, camiseta, cabelo amarrado e com uma ginga de malandro no corpo.Foi recebido com aplausos, gritos e risadas.

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Olhou discretamente para a platéia e estavam todos lá.Seus colegas de curso, Natasha, Roberto Carlos, Beto, Pedrão, Frank, outros menos ameaçadores, e ela.Sim, Lucia também estava lá. Sorrindo como sempre.Ao vê-la Jorge tornou a sentir o descontrole emocional a contaminar-lhe.Sabia que, um mau desempenho de sua parte poderia custar pontos preciosos para seus amigos.Seu papel era o principal.Tinha muito em jogo para que ele deixasse aquele seu problema vencê-lo.Respirou fundo. A primeira providência era evitar olhar em direção a Lucia.Sabia que ela estava ali, mas, tinha que ignorar esse fato.Não conseguiu parar de pensar nela um único momento durante a apresentação, mas evitou que isso o atrapalhasse.A apresentação foi um sucesso. Foram aplaudidos de pé.

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A professora subiu ao palco e, pela primeira e única vez, anunciou a nota que daria aos participantes da peça.-Não posso dar outra nota que seja dez!Todos comemoraram abraçados. Estavam todos aprovados para cursar o segundo ano em 1992.Foi um êxtase.Em meio a toda aquela alegria, Jorge procurou com os olhos Lucia na platéia. Não a achou.Sentiu-se um pouco triste.Talvez naquele momento, tivesse coragem para falar com ela.Trocou de roupas e saiu a sua procura. Procurou por toda a escola e descobriu que ela já tinha ido embora.Correu para o lado de fora da escola.Nada.Saiu em direção ao setor em que ela morava, mas, apenas conseguiu vê-la ao longe já próxima a sua casa.Não teria mais como falar com ela. Não naquele dia.O dia seguinte seria o último de aulas.Mas, se na escola tudo andava bem, em casa as coisas pioravam.

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Se o dia tinha sido glorioso, a noite seria desastrosa.Mais uma briga com sua mãe que, perdeu a paciência e acabou por lhe agredir com uma vassoura.-Eu já lhe disse que se você não está gostando do que acontece aqui, saia! Vá embora! Essa casa é minha!Teve que passar a noite na casa da tia.Chorou de raiva durante a noite.Sentiu-se humilhado. Dormiu mal.Era a segunda vez que fora expulso de casa. Mas, ir pra onde? Se sustentar de quê? Teve que retornar para a casa de sua mãe na manhã seguinte.Foi à escola de óculos escuros.Os olhos estavam vermelhos e inchados.Não haveria aula. Apenas entregas de resultados.Confirmou que estava aprovado. Não comemorou com os outros.Sentou-se sozinho do lado de fora da sala.Olhou pra frente.Despediu-se com os olhos de Lucia que conversava com algumas amigas.Pensou em fazer uma nova tentativa, desistindo logo em seguida da idéia.

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Entre as amigas que conversavam com Lucia estava Natasha.Seria esquisito.Afora isso estava triste, rouco, com os olhos mareados e não conseguiria articular suas idéias.A noite anterior ainda lhe doía.Achava que a vida não lhe era muito grata.-Vai ficar pro ano que vem – pensou com tristeza.

ano seguinte traria algumas mudanças.O

Ivan não iria mais a escola. Raimundo conseguira um trabalho e iria estudar a noite. Restariam Jorge, Raul e Marcio.Durante as férias fizeram questão de manter contato.No Natal organizaram uma festa na casa de Raul.Foi uma coisa pequena, porém, divertida.As coisas entre Marcio e a irmã de Raul pareciam estar acertadas. Raimundo também compareceu a festa. Jairo e Ivan foram as ausências.

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Jorge conseguiu por um breve período esquecer seus problemas.-Ano que vem, a KGB vai agitar ainda mais aquela porcaria de escola!Era Raul empolgado que falava.A certa altura da noite começaram a conversar sobre as preferências de cada um em relação às mulheres.Cada um descreveu seu tipo ideal.Jorge permaneceu calado até ser questionado pela irmã de Raul.-E você? Qual o seu tipo de mulher?-Não tenho preferências.-Tem sim! – interrompeu Raimundo – tem que ser baixinha, ter cabelos escuros e longos, usar óculos...Jorge deu um sorriso sem graça.A irmã de Raul pareceu não entender, mas não insistiu no assunto.Aquela lembrança o entristecia.Sentia-se derrotado quando se lembrava de Lucia.Esperou um momento de distração dos amigos, pegou seu copo e foi para o lado de fora sozinho.Olhou para o céu. Não procurava por Deus. Apenas olhava as estrelas.

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Era uma noite bonita. Uma bela lua, muitas estrelas e raríssimas nuvens. Típico do verão baiano.Sentiu lágrimas brotando nos olhos.Seu peito doía. O coração estava machucado.Raul aproximou-se.-É Lucia, não é?Jorge permaneceu calado. Se tentasse falar naquele momento, se desmancharia em lágrimas.A vida parecia difícil demais para ser suportada.-Quando recomeçarem as aulas, eu vou te ajudar com isso. Eu a conheço o bastante para freqüentar a casa dela. Vou te ajudar.Jorge sentia muita gratidão pelo amigo. Não sabia o porquê, mas, era fato que Raul não gostava de Lucia.Então ir até a casa dela deveria não ser uma tarefa das mais agradáveis para ele. Coisa de amigo mesmo.-Agora, vamos voltar pra festa antes que todos estranhem sua ausência e queiram saber o que está acontecendo.Voltaram pra dentro da casa.Jorge bebeu e riu com os outros.

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Risadas forçadas.Sentia-se triste, mas, agora tinha um pouco da sua esperança renovada.O Réveillon não foi muito bom.A família estava cada vez mais desunida.Seu pai dormiu bêbado logo cedo. Sua mãe passou a noite de mal humor.Os meses passaram e a vida familiar deteriorava cada vez mais.Após o Carnaval, veio o reinicio das aulas.Como no ano anterior, a primeira semana foi vazia.Jorge estava ansioso para rever Lucia.Mas não a viu naquela primeira semana.Sabia que ela havia sido aprovada e que iria cursar o terceiro ano. Então era só aguardar a normalização das aulas e descobrir em que sala ela estudaria.A sua sala ele já sabia onde era. No corredor onde Lucia havia lhe emprestado o livro no ano anterior.Andou pelos corredores semi-desertos até chegar à saída.Sentou-se no pátio sob uma arvore. Fazia calor.Uma moça morena aproximou-se e sentou ao seu lado.

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-Oi. Seu nome é Jorge, não é?Isso não chegaria a lhe causar estranheza, pois, durante o ano anterior havia se tornado relativamente popular.Apesar de não ser natural uma “caloura” já saber seu nome.-Nós nos conhecemos?-Meu nome é Vânia. Sou irmã de Gleide. É que ela fala tanto de você que eu vim estudar nessa escola só pra te conhecer.Jorge corou. Era muito sensível a elogios.-Prazer.Ela inclinou-se e beijou-lhe o rosto.Ele retribuiu o beijo.-Nós nos veremos muito ainda esse ano.Jorge não respondeu.Ao longe, viu Gleide se aproximando.Ela tinha se tornado durante o ano anterior sua grande amiga no Sucupira. Freqüentemente eram vistos juntos.Conversavam bastante e Jorge pensava que, se ele não fosse tão apaixonado por Lucia, eles poderiam namorar.-Vejo que já se conheceram.-Pelo que percebi, eu acabei de conhecer sua irmã porque ela já me conhecia.-Eu falo muito de você. Mas, só falo bem.

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-Obrigado por mentir pra Vânia por mim.Os três riram.-Acho que vocês ainda vão se ver muito esse ano.Era a segunda vez que Jorge ouvia aquilo em menos de cinco minutos.Para bom entendedor meia palavra basta, já dizia o ditado.Porém para Jorge, Lucia era prioridade.Além do fato se estar apaixonado, agora era questão de honra. Era seu orgulho que estava em jogo. Ele precisava ao menos tentar reaproximar-se dela.Porém nada disse.Não se sentia confortável em comentar com outras pessoas sobre seus fracassos.Principalmente este.Sem se preocupar com sutilezas, mudou bruscamente o assunto da conversa.Vânia o olhava e Jorge pôde notar um brilho diferente nos olhos dela.Ao que parecia, ele tinha correspondido às expectativas dela.Conversaram mais um bom tempo até que chegou a hora de se despedirem.-Amanhã a gente se vê Jorge.Recebeu mais um beijo de Vânia.

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Uma coisa nela tinha deixado uma boa impressão em Jorge: era uma pessoa que realmente corria atrás do que queria.Talvez por ter faltado tanto essa determinação nele, passou a admirar quem o tinha.Despediram-se e ele foi sozinho até o ponto de ônibus.No dia seguinte estourou mais uma greve dos professores. Essa tinha sido logo no começo do ano antes mesmo das aulas começarem de verdade.Durou um tempo razoável.Ficar em casa não era uma tarefa fácil pra Jorge.Seus problemas familiares pioravam quando passava muito tempo em casa.Ou talvez eles apenas ficavam mais evidentes.Acompanhava com ansiedade os noticiários na esperança que a greve acabasse.Havia muito tempo que não via Lucia.Estava angustiado.Muita coisa tinha acontecido com ele. Já conseguia controlar sua timidez. Era outra pessoa.

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Jorge sentia que havia sofrido profundas alterações em um ano no Sucupira.E, de certa forma, devia muito disso a Lucia.“É impressionante como podemos marcar a vida de uma pessoa sem ao menos termos noção do que estamos fazendo.” – pensava.Sonhava com Lucia. Tanto de forma figurada como de forma literal.O tempo passava e sua vontade de reaproximar-se e, quem sabe, conquistá-la apenas aumentava.Finalmente a greve acabara.Voltou ao Sucupira apenas para perceber que, a primeira semana após a greve, também seria uma semana vazia.Na falta do que fazer resolveu se divertir um pouco e, foi assistir a uma aula da professora Murcia em uma das turmas do primeiro ano de Administração.Não pretendia ter um comportamento similar ao de Roberto Carlos em relação aos alunos novatos, mas, na condição de “veterano” sabia que teria alguns privi-légios. Assistir uma aula do primeiro ano era um deles.

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Entrou na sala antes da professora e sentou-se numa das cadeiras da frente.Passou completamente despercebido, pois, os alunos novatos não o conheciam.Quando a professora Murcia entrou, o olhou com certa surpresa.-Isso é uma visita?-Apenas vim aprender um pouco mais.Ela sorriu.Apresentou-se aos novos alunos e começou a lecionar.O assunto era interessante. Relacionava a arte à vida.Jorge participou de forma ativa da aula.Discordava e questionava a professora a todo instante.Esta lhe respondia com paciência e naturalidade.A certa altura, Jorge notou que uma das alunas levantou-se e saiu da sala.Cerca de cinco minutos depois voltou com a diretora.-Essa aluna foi queixar-se que tem um aluno atrapalhando a aula.Todos ficaram em silêncio.-E quem seria esse aluno? – perguntou Murcia.

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-Aquele ali! – apontou a novata para Jorge.Este permaneceu impassível.-Acho que ela se equivocou. É verdade que Jorge não é desta turma, mas, com a experiência adquirida no ano passado, ele está me dando uma grande ajuda na con-dução dessa aula.-Bom – ponderou a diretora – já que a professora Murcia está dizendo, acho que realmente houve um equivoco por parte da aluna. Mas, você não deveria estar assistindo aula na sua sala?-Deveria.-E por que não está?Jorge olhou bem para a diretora antes de responder.-Eu achei que a senhora tinha essa resposta. Por que não estou? Por que não há nenhum professor dando aula em minha sala?A diretora tinha sido obviamente pega de surpresa.-Esse é um assunto que trataremos depois. Agora tenho que ir.Após a saída da diretora, Jorge pôde observar um leve sorriso no rosto de Murcia.

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Jorge também sorriu por dentro. Aquele cara tímido estava sendo sepultado aos poucos.

om o passar dos dias, as aulas normalizaram.C

Roberto Carlos e Beto continuavam na escola. Franklin e Pedrão não.Mas isso não diminuiu a tensão entre os dois grupos. As coisas permaneceram iguais.A diretora estava empenhada em descobrir quem eram os componentes da já lendária KGB.Jorge agora era um dos mais conhecidos e populares alunos do Sucupira.Apesar disso, dessa vez ele não foi eleito para cargo de liderança da classe.Mas, ainda assim, permanecia tendo acesso a diretoria e ao grêmio estudantil.Mas, dentre tantas mudanças, a que mais intrigava Jorge era: onde estava Lucia?Ela simplesmente não havia aparecido mais na escola.Desde o começo da formação da KGB, Jorge por ter acesso ao Grêmio e a sala da

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diretora, tornou-se o centro de informação do grupo.Sempre que era necessário descobrir algo, ele era requisitado.Então, não foi muito difícil descobrir se ela ainda estava matriculada no Sucupira.Difícil foi medir o tamanho da decepção quando constatou que ela havia mudado para o turno da manhã.Agora era melhor desistir. Não teria como procurá-la num turno oposto ao seu.No momento em que mais se sentia preparado, teria que desistir.Era um golpe duro de assimilar.Mas, apesar da decepção, a vida tinha que continuar.Juntou os cacos e seguiu em frente.Tinha ainda que se preocupar com a turma de Mecânica.Afinal, aquele era o último ano deles. Se tivessem que fazer algo contra Jorge, Raul e Marcio aquele era o momento.Até a direção do Grêmio havia mudado.O presidente agora era um aluno que ninguém nunca tinha visto na escola.

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Jorge não demorou a descobrir que ele, na verdade, era um ex-aluno da própria escola.Um ex-aluno ligado à diretora atual.Em um dia de aula vaga, Jorge resolveu dar uma passada no Grêmio pra observar de perto esse novo-velho aluno.Chamou Raul e dirigiram-se para lá.Foram extremamente bem-recebidos.-Sempre é bom contar com a participação de ex-membros. É um incentivo pra mim que comecei agora na presidência.Jorge a partir desse dia passou a freqüentar ativamente a instituição estudantil.Chegou até a ser indicado para representar o Sucupira numa convenção estadual para a qual a escola havia sido convidada.-Seria divertido, mas, eu declino do convite.Essas idas ao Grêmio renderam um episódio que muito divertiu Jorge.Estavam ele e Raul na sede da instituição quando o presidente chegou eufórico com um embrulho na mão.-Que bom que vocês estão aqui! Não sabem o que acabou de acontecer.-O que acabou de acontecer?

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-Eu recebi um pacote com essa caixa dentro.Tirou da sacola uma caixa de sapatos com a seguinte inscrição de fabrica: calçados KGB.Jorge e Raul se entreolharam.-O que vocês acham disso? – perguntou olhando atentamente para os dois amigos.Raul pegou a caixa como que para analisá-la com mais cuidado.Jorge gargalhava por dentro, mas, manteve-se impassível e, com uma expressão de incredulidade respondeu:-acho que alguém lhe deu um par de sapatos de presente. Parabéns.A decepção nas feições do presidente era visível e patética.-Não! Vocês não entenderam...Nesse momento, outras pessoas chegaram e a conversa teve que ser interrompida.Jorge e Raul aproveitaram para sair.-Sabe Jorge, tá na cara que esse sujeito está aqui pra nos investigar.-E tá na cara que ele é um bestão. Não é uma ameaça.Concordaram e deixaram o assunto morrer.

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Após um pequeno momento de silêncio, Raul tornou a falar.-Jorge, está na hora de contra-atacar.-E como faremos isso, Raul?-Você sabe como se faz uma bomba-relógio?Jorge sabia. Era uma bomba caseira feita com um cigarro sem filtro preso ao pavio de uma dessas bombas de São João.Era fato sabido desde o começo do ano anterior que a diretoria da escola fechava os olhos para tudo que Roberto Carlos e companhia faziam na escola, mas, naquele ano parecia que não só havia conivência como também apoio.Dava a impressão de que tudo que pudesse ser feito para anular a KGB era permitido.Por esse motivo talvez, o presidente do Grêmio era um ex-aluno e Roberto Carlos estava cada vez mais ousado.Não os olhava torto ou fazia pequenos cercos. Agora eram ameaças claras.-Tem gente que não vai sair vivo da escola esse ano.Ou coisas do tipo: -Não se preocupe Beto. Você vai dar seu troco.

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Por isso, Jorge já imaginava que a idéia da bomba era relacionada a Roberto Carlos.-Lembra que a primeira idéia era colocar as listas pulando o muro do fundo da escola?-Lembro.-Dá pra fazer se chegarmos um pouco mais cedo.-Dá pra fazer o quê?-Vamos precisar de um cigarro, fósforos e um pouco de fita adesiva.Jorge começava a imaginar o que passava pela cabeça de Raul.-Não vai dar pra conversarmos agora. Lá vem suas amigas. Nos falamos depois.Eram Gleide e Vânia que se aproximavam.-Jorge, você já sabe da novidade?-Não. Que novidade?-A professora Murcia vai colocar como tema na terceira unidade o teatro.-Até aí, normal.-A novidade é que esse ano nós vamos assistir a uma peça no Teatro Santo Antonio.-Que legal! Murcia está sempre inovando.-Vânia quer saber se você não quer ir com ela.

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Jorge foi pego de surpresa por aquele convite.Mas, que tinha a perder? Lucia não podia mais ser prioridade. Ele provavelmente nunca mais a veria.Não podia ficar indo ao Sucupira pelas manhãs para procurá-la. Não teria nenhuma desculpa.Já havia pensado em pedir o prometido auxilio de Raul, mas, achou melhor não fazê-lo.-Convite aceito – respondeu finalmente.Despediu-se das duas irmãs e procurou Raul.-Diga-me Raul. Em que está pensando?-Vamos fazer uma bomba-relógio e colar embaixo da cadeira de Roberto Carlos.

ra uma idéia completamente desvairada. Jorge adorou.E

Combinaram como e quando seria feito.-Precisa chamar Jairo?-Não. Dessa vez vamos ser só nós dois.Jorge sabia que era muito mais arriscado que colocar listas no mural, mas, também

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era mais recompensador. Se era guerra declarada então que agissem como tal.Se fizessem bem feito, por mais que as suspeitas caíssem sobre eles, nada poderia ser provado.Seria como a KGB: ninguém na escola tinha mais dúvidas sobre a participação deles no grupo, mas, apesar das indiretas vindas de todos os lados, ninguém podia acusá-los diretamente. Não havia provas concretas. Tudo que tinham eram suspeitas.Os dias seguintes foram de estudos e observações. Fez-se necessário que analisassem bastante o que iriam fazer para que nada desse errado.Nem mesmo Marcio ficou sabendo dos planos dos dois.Aquele era um assunto de tamanha seriedade que não se permitiam tratar abertamente. Todos os preparativos foram feitos fora da escola.Mas, alguns dias antes de porem os planos em prática, aconteceu o passeio ao teatro.Apesar de, inicialmente, o evento ser destinado apenas aos alunos do primeiro ano, todos os alunos da sala de Jorge

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compareceram. Ele achava incrível como as noticias corriam no Sucupira. Todos os dezesseis alunos de sua classe já sabiam do convite que Vânia havia lhe fei-to. Por isso compareceram em peso.Dentro do ônibus Jorge e Vânia pouco conversaram. Era um tanto quanto constrangedor saber que, pelo menos um terço das pessoas que estavam presentes olhava para eles.Ao descerem do ônibus ainda era necessário caminhar em torno de dez minutos até chegarem ao teatro. Atrasaram um pouco o passo e conseguiram um pouco de privacidade. Apesar disso não tocaram em qualquer assunto relativo a namoro.Porém, apesar de não falarem, o clima dizia tudo.Enquanto andavam ela pegou em sua mão.Andaram de mão dadas quase todo o caminho. Gleide fizera questão de andar um pouco mais a frente.-É para não atrapalhar vocês – disse com um sorriso sem-vergonha no rosto.

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Chegando ao teatro, soltaram as mãos para evitar que os amigos dele fizessem a já esperada algazarra.Entraram e sentaram-se um ao lado do outro. Os colegas de classe de Jorge estranhamente sentaram-se justamente do lado oposto deles.A apresentação começou com todas as luzes apagando-se. Jorge abraçou Vânia. As luzes voltaram a ser acesas. Ao final do primeiro ato, o processo se repetiu.Temendo uma possível onda de gritos e assobios, Jorge achou melhor não tomar nenhuma atitude enquanto as luzes estivessem acesas. Não causaria uma boa impressão.Quando as luzes se apagaram aproveitou e beijou Vânia. Não foi um beijo muito demorado, pois, logo as luzes se acenderam.Nos atos seguintes o processo se repetiu. Nenhum dos seus colegas sabia o que estava acontecendo. Da forma que Jorge queria. E assim foi durante o transcorrer da apresentação.-O primeiro passo foi dado. Depois, a sós, namoramos de verdade – pensou.

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Porém, em um dos atos, quando Jorge beijou Vânia as luzes acenderam mais rapidamente e todos no teatro podiam vê-los se beijando. Ou pelo menos todos que estivessem olhando para eles.O que, no caso, pareciam ser todos os presentes.Pois, no momento em que as luzes se acenderam foi uma gritaria geral. Parecia que o teatro ia desabar. A algazarra foi tão grande que até os atores da peça pararam por alguns segundos pra rir.Vânia ficou um pouco sem jeito, mas, Jorge resolveu tirar proveito da situação. Já que todos tinham visto e a gozação já havia sido feita, não havia mais motivo para esconder-se. Esqueceu da peça e passou a beijá-la sem constrangimento.-Como é que eu vou fazer a redação sobre a peça agora, Jorge?-Depois Gleide te ajuda.Assim, acabaram sendo esquecidos pelos outros alunos.Na volta, evitaram intimidades pois, dentro do ônibus, fatalmente a algazarra continuaria.

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-E então, estamos namorando? – perguntou Vânia ao retornarem a escola.-Acho que sim.“Até porque depois de hoje seria difícil negar isso” – pensou.Despediram-se.No ponto de ônibus, encontrou-se com Raul e Marcio.-Demorou a chutar a gol, mas quando chutou toda a torcida gritou!Riram muito da observação de Raul.Contaram a Marcio sobre a idéia da bomba-relógio.-Vão precisar de ajuda?-Não. Eu e Raul faremos isso. Só precisamos combinar um horário para chegarmos juntos na escola. Pra não levantar suspeitas.Marcaram de se encontrar no SESI de Mussurunga. Jorge e Raul iriam chegar meia hora antes, “fazer o serviço” e voltar para encontrar Marcio.-Faremos amanhã.Todos concordaram.Tomaram a condução e foram pra casa.Jorge pensava em como seria a reação geral em relação a bomba. Agora sim, as

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tensões iriam aumentar. Pensava também em tudo o que aconteceu no teatro. Mas, estranhamente não pesava se tinha sido bom ou ruim ter ficado com Vânia. Seu pensamento estava voltado para a repercussão que aquilo poderia tomar. Com tanta algazarra ao redor daquele beijo...Era sabido por Jorge que Lucia tinha duas irmãs que também estudavam no Sucupira. Uma delas parecia ser indiferente a presença de Jorge na escola. Essa tinha se transferido também para o turno da manhã. Já a outra...Bem, a outra parecia ter certa antipatia por ele. Jorge imaginava que talvez fosse pelo mesmo motivo que a amiga de Lucia tinha lhe taxado como otário. Por ele ter realmente agido como um otário por um ano inteiro.Essa estudava ainda pela tarde. E, se aquela noticia corresse com a velocidade que ele achava que ia correr...Quanto tempo levaria para Lucia saber que ele tinha namorada?Jorge sabia que suas chances com Lucia eram zero, mas ainda assim aquilo lhe

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preocupava. De que forma aquilo seria recebido por ela?Por que aquilo lhe preocupava tanto? Porque Lucia ainda lhe incomodava tanto? Qualquer outra “apaixonite” já haveria de ter sido curada. Qualquer outra menos essa. Era chegada a hora de parar pra pensar o que realmente Lucia significava em sua vida.Se iria começar a namorar Vânia tinha que esquecer Lucia. Não seria justo usar uma para esquecer a outra. Não seria honesto. Mas, por outro lado, até quando ficaria sozinho por causa de um sentimento que nem sabia se era ou não correspondido? Se tivesse a possibilidade de escolher entre uma e outra nem pensaria. Mas, obviamente, esse não era o caso.Sacudiu a cabeça como se quisesse jogar pra longe os pensamentos. Não conseguiu. Precisava urgentemente de uma boa noticia em relação a esse assunto.Pensou novamente em pedir a ajuda de Raul, mas novamente afastou a idéia.-Não dá pra voltar pra uma casa que não existe mais – pensou.

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Não gostaria de passar sua vida ligado a um fracasso do passado. Pois era assim que se sentia em relação a isso: como um fracassado.Nunca estivera tão perto e ao mesmo tempo tão longe de alguém. E nunca gostara de forma tão intensa de uma pessoa. Principalmente de uma pessoa que nem chegara a conhecer direito.Mas, ficar se maldizendo não resolveria seus problemas. Sabia que teria que tocar o resto de sua vida sem Lucia. Talvez com a constante lembrança mas, fatalmente, sem a sua presença.Talvez fosse melhor assim. Talvez Raul estivesse certo. Talvez uma Testemunha de Jeová não combinasse com um “roqueiro”.Passou uma boa parte da noite pensando nesse assunto sem que chegasse a nenhuma conclusão.No dia seguinte, conforme combinado, chegou a Mussurunga meia hora antes do normal. Raul já estava lá esperando.-Está tudo aqui. Um cigarro sem filtro, fita colante e uma bomba “de mil”.

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Era uma bomba típica de festas juninas, porem, das grandes.Jorge e Raul não usavam mochila e, portanto, não faria sentido chegarem à escola com uma logo nesse dia. Por isso, esconderam os apetrechos do jeito que deu.O mais difícil era esconder a bomba que teve que ser levada na mão enrolada numa folha de jornal.Escolheram o caminho mais longo e menos usado pelos estudantes para que não corresse o risco de serem vistos.Caminharam em silêncio. Raul parecia estar tranqüilo, confiante e até um pouco alegre. Jorge estava tenso e nervoso, mas não pensava nem de longe em desistir da empreitada.Os riscos eram pra lá de conhecidos. Se fossem vistos seriam imediatamente associados ao episódio. Nesse caso estariam dando provas materiais de seus envolvimentos com a KGB. Seriam expulsos da escola e comprometeriam sensivelmente seus futuros.Porém, mesmo assim, Jorge estava decidido a terminar a “missão”.

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Chegaram finalmente ao muro do fundo da escola.Pularam-no e deram de cara com um extenso matagal.Parecia mais frente de casa abandonada que fundo de escola.Atravessaram o matagal.Ao sair, tomaram cuidado para não deixar nenhum vestígio das plantas nas roupas. Atravessaram uma pequena calçada de cimento e chegaram ao fundo do labora-tório de Mecânica. Jorge se esgueirou até uma das janelas e constatou que este estava vazio.Cruzaram um pequeno corredor até os fundos da sala em que Roberto Carlos estudava. Novamente olhando pela janela, Jorge descobriu que esta também estava deserta.Fez sinal para Raul. Este desenrolou a bomba, acendeu o cigarro e prendeu-o ao pavio.Aproximaram-se lentamente da porta da sala. Entraram.Jorge tinha ficado encarregado de descobrir em qual das cadeiras Roberto Carlos costumava sentar-se.

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-É aquela.-Então vamos lá.

udo tinha que ser feito da forma mais rápida e eficiente possível. T

Além do horário de chegada deles ter que coincidir com o de Marcio, a qualquer momento podia aparecer um dos alunos ou um dos funcionários.Jorge ficou vigiando por uma das janelas enquanto Raul virava a cadeira e, rapidamente, prendia a bomba com a fita colante.Cuidadosamente recolocou a cadeira no lugar. -Podemos sair?-Podemos. Tá tudo deserto.Saíram tomando o cuidado de verificar novamente se havia alguém no laboratório de Mecânica. Continuava deserto.Passaram pelo matagal e pularam o muro dos fundos.Tornaram a retirar os vestígios de mato das roupas e retornaram rapidamente ao SESI. Tinham ainda que evitar possíveis

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encontros com outros alunos. Não seria fácil explicar porque eles caminhavam em direção oposta ao colégio.Chegaram com um pequeno atraso e encontraram Marcio.-E aí? Tudo certo?-A primeira parte foi feita com sucesso. Vamos esperar pela segunda.Marcio entendera o que Raul queria dizer. Se a bomba explodisse a “operação” teria dado certo.Voltaram à escola como se tudo estivesse normal. Pelos cálculos que haviam feito não tardariam muito a descobrir se algo aconteceria ou não.Ao chegar Jorge foi recebido por Vânia e Gleide. Raul e Marcio se dirigiram para sua sala de aula.-Não posso ficar muito tempo com você, pois tenho a primeira aula hoje. No intervalo nos falamos Jorge.Era tudo que ele queria naquele momento. Precisava estar atento ao burburinho da escola para saber o resultado da recente aventura.Os primeiros quarenta minutos se passaram e nada foi relatado. Pelos

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cálculos feitos por eles, a bomba já deveria ter estourado, mas nada foi ouvido.Reuniram-se em local reservado.-É obvio que algo deu errado!-Mantenha-se calmo Raul. Talvez o assunto tenha sido abafado até conseguirem descobrir quem foi o autor.-Não sei Marcio. Acho que concordo com Raul. Alguma coisa saiu errada. De qualquer forma, é melhor voltarmos para a sala. Qualquer atitude diferente de nossa parte pode levantar suspeitas.Todos concordaram com Jorge e voltaram pra sala de aula.Lá chegando ficaram sabendo o que ocorreu.-Vocês já estão sabendo o que aconteceu na sala de Mecânica?-Não. O que aconteceu?-Colocaram uma bomba “de mil” embaixo da cadeira de Roberto Carlos!-É mesmo?A expressão de surpresa e incredulidade estampada no rosto de Raul era algo cinematográfico. Jorge tinha vontade de rir.

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-Mas, pra sorte dele e azar de todo mundo que não gosta daquele sujeito, a funcionária que faz a limpeza chegou mais cedo e achou a bomba antes que ela estourasse. A diretora prometeu expulsar os culpados.-É, ele deu muita sorte – ponderou Jorge.Voltaram a se reunir.-Como é que pudemos nos esquecer da funcionaria da limpeza!Raul estava visivelmente contrariado com o fracasso da “missão”.-Realmente foi uma falha – ponderou Jorge.-E o pior é que agora não poderemos fazer uma nova tentativa.-Ao menos valeu a experiência, Raul. Valeu pela adrenalina.-Isso é verdade, Jorge.-Agora vamos voltar aos nossos afazeres normais para não “dar bandeira”.Voltaram à classe apenas para saber que não teriam mais aulas naquele dia.Jorge despediu-se de Vânia e foi pra casa.Os três amigos esperavam certa pressão por parte da diretoria por causa da bomba. Mas, essa pressão não aconteceu.

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Os dias seguintes passaram sem novidades. O relacionamento com Vânia estava indo bem e a KGB permanecia na ativa com Jorge e Jairo sistematicamente burlando a vigilância da escola e atualizando as listas no mural. A estas a diretoria permanecia respondendo, o que mostrava aos amigos a força que o grupo havia conseguido.Talvez para quebrar a monotonia, ou porque Marcio passara a se ausentar da escola por causa do trabalho e Jorge passava um tempo razoável com Vânia, Raul aproximou-se de uma das turmas do primeiro ano de Administração. Por coincidência, da mesma que Jorge havia tido problemas ao assistir uma aula da professora Murcia no começo do ano.Passaram a se ver menos dentro da escola, porém sempre saiam juntos. Não só por amizade, mas também por questão de segurança. Eles tinham certeza que alguma represália sofreriam por parte de Roberto Carlos.Era fato que, após o incidente da bomba, eles estavam quietos demais.

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Cessaram as provocações e as indiretas. Podia-se dizer que estavam muito ocupados com as tarefas escolares ou que se assustaram com a seriedade da investida dos três amigos, mas essas eram teorias otimistas demais. E Jorge nunca acreditou em coincidências boas. Tinha plena certeza de que algo estava pra acontecer.E, realmente algo aconteceria logo em seguida, mas nada que Jorge pudesse prever. Porém, um pequeno evento mudaria completamente sua rotina na escola.Durante os meses que se passaram até ali, pouca coisa havia mudado na vida pessoal dele. Tanto em casa quanto na escola, as coisas seguiam seu ritmo normal. Estava bem consigo mesmo no Sucupira. Tinha uma namorada, era extremamente popular na escola, ajudava Raul com a KGB e suas notas o levavam a crer que não teria dificuldades em ser aprovado para o terceiro ano. Já em casa as coisas continuavam de mal a pior.

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Permaneciam as brigas com sua mãe e o alcoolismo de seu pai.Pelo menos em relação a escola tudo mudaria com uma noticia que, para a maioria era extremamente desagradável mas, para Jorge, apesar de mexer com sua cabeça deixou-lhe feliz e esperançoso.Foi Raul que trouxe a boa (?) nova.-A diretora anunciou que passaremos a ter aulas de educação Física a partir da semana que vem.-Ué? Mas não disseram que estaríamos livres disso por que não tinha professor? Arrumaram um no meio do ano?-Exatamente! Que saco!-Eu não gosto muito de exercícios, mas não fiquei tão contrariado. Vai ser no lugar de qual aula?-É aí que está o problema. As aulas vão ser pela manhã.Imediatamente o coração de Jorge disparou.-Pela manhã?Era a desculpa que ele esperou por tanto tempo.Alem de ter um pretexto para estar na escola no turno matutino, arranjara um

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motivo para não ficar preso à lojinha e ter dinheiro pra ficar indo para a escola pela manhã.Mas, o mais importante era poder tentar se reaproximar de Lucia.Porém antes deveria terminar com Vânia. Nunca foi de sua índole enganar as pessoas. Sabia que decepcionaria sua atual namorada, mas o simples pensamento de ter uma chance por menor que fosse com Lucia valia qualquer coisa.Por outro lado, não pretendia magoar Vânia. Teria que pensar em como resolver essa situação o mais rápido possível. Mais precisamente em uma semana.Nesse dia teve que ir sozinho pra casa, pois Raul disse ter que participar de uma reunião com o pessoal do primeiro ano de Administração. Jorge então aproveitou para caminhar sozinho. Era assim que pensava melhor. Despediu-se de Vânia e andou até o ponto de ônibus.Pensou que gostaria de caminhar mais e foi até o setor C, onde Lucia morava, não para vê-la, pois sabia ser tarefa difícil, mas por ser lá o ponto de ônibus imediatamente

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anterior ao que costumava ficar. O ponto posterior era área dos amigos de Roberto Carlos. Era no setor G.Desceu uma rua de barro, passou em frente aos prédios e subiu um beco pavimentado que o levaria diretamente ao ponto de ônibus.Caminhava lentamente de cabeça baixa pensando em como faria as coisas dali pra frente.Quando levantou a cabeça avistou no beco quatro alunos da turma de Mecânica. Um do terceiro ano e dois do segundo.Não eram todos, mas boa parte dos alunos do segundo ano de Mecânica viraram amigos de Roberto Carlos e companhia. Era o caso daqueles três.Voltar não era uma opção aquela altura.Respirou fundo e seguiu em frente.

aluno do terceiro ano Jorge não conhecia e nem lhe fazia diferença. Assim como um dos alunos do

segundo ano. Já os outros dois a historia era diferente.

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Um deles era criador de problemas “a lá” Roberto Carlos. Ganhou imediatamente a antipatia de Marcio. O que Roberto Carlos era para Raul e Beto pra Jorge, Wellington era pra Marcio.-Antipatia a primeira vista – dizia Raul.O outro, Jorge já conhecia do colégio anterior. Lá ele nunca lhe causara problemas. Já no Sucupira, ele vivia a mandar indiretas para os três amigos. Estava nitidamente entrando num terreno que não conhecia. Seu nome era Marcos.À medida que Jorge se aproximava notava que, realmente, teria problemas pra sair daquele beco.Conhecia a situação que estava presenciando. Olhares atravessados e risadas de canto de boca.“Sintomas claros de quem quer aprontar com os outros.”Continuou caminhando lentamente. Colocou a mão no bolso e pegou uma pequena tesoura dobrável que costumava usar junto com o chaveiro e prendeu-a na mão de forma que pudesse usar como uma soqueira improvisada.

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Levantou a cabeça e olhou diretamente para os quatro adversários. Neste momento eles estavam bloqueando completamente a passagem.-Agora ou vai ou racha.Ao aproximar-se, marcos tomou-lhe a frente.-E aí, parceiro?Jorge o olhou com cara de poucos amigos, mas nada respondeu.Marcos mantinha um sorriso irônico no rosto. Jorge olhou ao redor. Estava cercado. Apertou a tesoura na mão.-Wellington quer saber se você sai na mão com ele.Tirou a mão com a tesoura do bolso. Colocou a outra mão no peito de Marcos e falou:-Eu quero que vá pro inferno ele, você e quem mais achar ruim.Com a mão que estava postada no peito de Marcos o empurrou retirando-o da sua frente.Fechou com mais força a mão da tesoura. Continuou caminhando. Agora estava de costas para eles. Tinha que se manter atento. Apurou os ouvidos. Parecia que eles

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tinham sido surpreendidos pela reação de Jorge. Nada disseram. Tampouco esboçaram reação.Jorge chegou ao ponto de ônibus, mas não parou.Atravessou a rua e ficou de um local mais distante observando.Nenhum dos quatro subiu atrás dele. Também não permaneceram onde estavam. Ao contrario, voltaram em direção à escola.-Eles estavam me esperando. Com certeza, algo vai acontecer.Voltou ao ponto. Esperou um pouco, pegou a condução e voltou pra casa.-Eu e Raul precisamos ter uma conversa amanhã.No dia seguinte reuniu-se com o amigo e contou-lhe o ocorrido.-Pegaram você num momento em que estava sozinho. Gostei de sua resposta.-Mas não foi isso que fez com que eles parassem. Foi uma provocação. Mandaram um recado.Raul concordou.-Não podemos mais caminhar sozinhos fora da escola.

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-É, mas eu ainda tenho uma coisa que preciso resolver sozinho.-E o que seria? – quis saber Raul.-Por enquanto prefiro guardar pra mim mesmo.-Você tem que tomar cuidado pela manhã. Eles tem aula prática e você vai ter aulas de Educação Física.-Nós teremos, não é isso?-Não Jorge, eu consegui um atestado para não participar das aulas.Enquanto caminhavam, Raul lhe fez um convite:-O pessoal do primeiro ano pediu para que eu ajudasse na peça deles. Na verdade, Murcia nos indicou. Quando começarem os ensaios, você pode me ajudar?Jorge pensou duas vezes. A moça que havia se incomodado com sua presença durante a aula de Murcia estava nesse grupo. Tudo que ele não precisava era de mais uma pessoa enchendo seu juízo.-Preciso também que você peça a ajuda de Jairo. Tenho um papel pra ele.Jorge concordou sem muita convicção.Os dias se passaram e sua relação com Vânia começou a ficar ruim. Ele

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simplesmente não conseguia mais ser o mesmo com ela. Sabia que ela não tinha culpa nenhuma em relação a sua confusão sentimental, mas inconscientemente, a via como um empecilho para sua tentativa de reaproximação de Lucia.Chegou a ouvi-la comentando com uma amiga:-Nossa, como Jorge tá ficando chato!Com o passar dos dias também começaram as aulas matutinas para Jorge.Como Raul havia alertado, os alunos de Mecânica realmente tinham aulas práticas pela manhã.Porém, diferente das demais aulas do Sucupira naquela época, eles realmente tinham que ficar na sala, pois o professor não faltava. Então era só não permitir que os horários coincidissem. Nada de muito difícil.Aproveitou para, discretamente, procurar por Lucia pelos corredores. Não sabia em qual sala ela estudava. Tinha dificuldades em movimentar-se pela escola pelo fato de estar de short e camiseta. A direção não permitia que passassem do bebedouro com aqueles trajes.

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-Sempre esse bebedouro – pensava Jorge.Nas primeiras semanas não a encontrou. Chegou a cogitar a possibilidade de Lucia não estudar mais no Sucupira.Mesmo assim, não conseguia ficar mais com Vânia. Não se sentia bem em estar com ela e pensar em Lucia todo o tempo. Por outro lado, sentia uma profunda admi-ração pela namorada. O jeito dela correr atrás do que queria, para Jorge era algo admirável.Algo que ele próprio demorara muito para aprender a fazer.Decidiu que a melhor coisa era induzi-la a terminar o relacionamento. Começou, a partir daí, a se tornar uma pessoa de difícil convivência.Era época de revolução social no país. O presidente Fernando Collor de Mello sofria forte pressão tanto política quanto da imprensa e popular.No dia marcado para a passeata dos “cara-pintadas”, Jorge faltou a um compromisso com Vânia para ir à mesma.Foi o suficiente. O que já estava complicado tornou-se impossível. O relacionamento estava terminado.

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Jorge sentia que, a parte ruim era que a amizade ficou comprometida. E isso ele não queria. Gleide também se afastou.As aulas de Educação Física e a constante procura por Lucia continuaram.Até que um dia Jorge conseguiu vê-la.Foi um alivio e uma frustração ao mesmo tempo.Alivio por que ele pôde ter a certeza que ela ainda estudava no Sucupira. Frustração por não ter podido se aproximar dela.Aula de educação Física causava suor. Assim não daria pra tentar conversar com ela.-E o pior é que o ano está acabando. O tempo está curto e logo, logo, terminam as aulas.À tarde participou da primeira reunião com o grupo de teatro de Raul. Paralelamente foi convidado para integrar outra peça. Sabia que não deveria se envolver em tantas coisas ao mesmo tempo, mas acabou aceitando. Ao menos, manteria a cabeça ocupada.Por outro lado, tinha uma pequena garantia de não estar sozinho em momento algum do dia.

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Exceto pela manhã.Não conseguiu mais encontrar Lucia pela manhã o que o deixou um pouco frustrado.Os dias foram passando e, como Jorge pensara, o final do ano se aproximava a passos largos.Chegou o dia da primeira apresentação teatral.Tudo transcorreu sem problemas.Já a segunda apresentação, com o grupo de Raul, seria o clímax da guerra velada entre os amigos e o grupo de Roberto Carlos.

az-se necessário voltar um pouco no tempo para entender o que realmente aconteceu.F

Tudo começou no dia em que Jorge participou da primeira reunião com a turma do primeiro ano de administração com os quais Raul apresentaria a peça teatral.Com o passar do tempo Jorge se tornara uma figura enigmática para a maioria dos alunos novatos. Seu visual exótico e sua alternância de humor faziam dele uma pessoa completamente imprevisível e isso chegava até a assustar alguns.

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Sabendo disso, ele fazia questão de cultivar essa fama.E foi justamente o que fez nesse dia. Entrou na sala com Raul e sentou-se de costas para todos. Enquanto Raul falava, Jorge rabiscava coisas incoerentes no quadro-negro.E assim foi nas três primeiras reuniões.Com o inicio dos ensaios, foi começando a se enturmar.Era um grupo pequeno de pessoas. Composto na maioria por mulheres. Eram oito no total.E apenas dois homens. Eduardo e Catiano.Nunca se soube se foi proposital ou não, mas na peça escrita por Raul eram necessários quatro homens.Chamaram então Jairo pára participar. Este depois de ver a quantidade de mulheres participantes, ficou mais que empolgado com o convite.Posteriormente foram feitas mudanças necessárias no roteiro e mais pessoas foram convidadas.Entre essas pessoas Carlos, que recentemente fora aclamado campeão de fisiculturismo do bairro, e Zezinho que era

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mais um amigo de infância de Jorge que tinha ido estudar no Sucupira.Fechado o grupo, foram distribuídos os papeis e começaram os ensaios.Jorge, por ter um pouco mais de experiência, acabou ficando como responsável por orientar o resto do grupo em relação à apresentação. Isso e o papel que lhe foi concedido no enredo, um detetive que se disfarçava de mulher, acabou fazendo com que ele caísse nas graças de todos.A inclusão de Jairo no elenco causou a primeira polêmica em relação à peça: a diretora tentou proibir sua participação alegando ser ele um “elemento estranho” ao colégio.Após muito bate-boca, o grupo conseguiu que ele fosse aceito abrindo caminho assim para que outros grupos convidassem pessoas não-matriculadas na escola. Algumas dessas pessoas, inclusive eram atores amadores experimentados o que serviu para aumentar o nível das apresentações.Por Jairo ser uma pessoa alegre e desinibida, o entrosamento foi rápido.

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O ginásio era cedido para que cada grupo ensaiasse uma vez por semana.Já nos primeiros ensaios, Jorge e Raul notaram a presença constante de Roberto Carlos, Beto, Wellington e boa parte da turma de Mecânica no ginásio.Em principio jogando futebol ou basquete, depois simplesmente sentados olhando os ensaios.-Aí tem coisa – pensava Jorge.Era o último ano deles na escola e Jorge tinha certeza que, antes do final, eles aprontariam alguma. E tudo levava a crer que já tinham data marcada. O dia da apresentação.Os amigos alem de preparar a apresentação, se preocupavam também em resguardar-se para o que poderia vir a acontecer.O envolvimento de Raul e Jorge com a turma de Administração resultou por render frutos inesperados como, por exemplo, um princípio de namoro entre a irmã de Jorge, que começou a comparecer às reuniões e ensaios, com Eduardo.Até que chegou, finalmente, o dia da apresentação. Mais uma vez o ginásio

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estava lotado com alunos tanto do Sucupira quanto de outros colégios de Mussurunga.Devido ao sucesso do ano anterior, as apresentações estavam ainda mais concorridas.Estavam também as irmãs de Raul e Jorge e a mãe de Catiano.E Lucia? Para conseguir se concentrar, Jorge preferiu nem saber.Os dois compareceram na escola já pela manhã. Jorge para sua apresentação com a outra turma e Raul para observar.Devido a reformas que estavam sendo feitas no ginásio, estavam amontoadas num canto do ginásio uma pilha considerável de barras de ferro. Aquilo não agradou nem um pouco a Jorge.Já no inicio da manhã, um dos alunos de Mecânica, derrubou essa pilha ao tentar retirar uma das barras.Jorge e Raul então foram conversar com a professora Murcia.-É melhor evitar um problema maior. Pra que ele estava mexendo nas barras de ferro? – argumentava Raul.

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-Todos na escola sabem dos problemas entre vocês e eles, mas asseguro que eles vão se comportar.Aquele argumento de Murcia não convencia Jorge, que achou por bem pedir a proibição da entrada deles no ginásio. Murcia não concordou.-Eu vou conversar com eles. Não vai ter problema.O Maximo que os amigos conseguiram foi a retirada das barras de ferro do ginásio.Já era um começo, mas não era o bastante.Durante a apresentação de Jorge, eles compareceram em peso.Passaram boa parte da apresentação atirando bolinhas de papel em Jorge.Este achou melhor ignorar as provocações. Porem, aquilo só serviu para fortalecer sua convicção de que, aquele seria o dia em que, finalmente, eles dariam a cartada de-cisiva naquela “guerra” que travavam.Como a apresentação terminou em torno das onze horas da manhã, não fazia muito sentido Jorge e Raul irem para suas casas e depois retornarem ao Sucupira. Então resolveram permanecer na escola para o período da tarde.

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Enquanto esperava o almoço que seria servido na cantina da escola, Jorge resolveu caminhar um pouco para aliviar a tensão.Durante a caminhada pelos corredores da escola, Jorge pôde vislumbrar os dois lados da atual situação no Sucupira: por um lado viu que Roberto Carlos e sua turma também permaneceram na escola e, com certeza, iriam para a apresentação da tarde; viu também Lucia saindo da escola, provavelmente indo para casa. Não se atreveu a dar asas ao pensamento de tentar falar com ela do lado de fora. Àquela altura seria muito arriscado.Sentiu-se um pouco frustrado por, mais uma vez, não poder tentar se reaproximar dela. Os motivos até mudavam, mas o resultado era sempre o mesmo. E, para seu desespero, o ano letivo estava cada vez mais próximo do seu final.Como Lucia já cursava o terceiro ano, estava se despedindo do Sucupira.Aquilo era preocupante para Jorge. Tinha àquela altura menos de dois meses para tentar resolver essa situação.

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Cada vez que pensava em nunca mais lhe ver, sentia uma angustia a sufocar-lhe o peito.Já começava a cogitar a possibilidade de pedir ajuda a Raul, independente de ele gostar ou não de Lucia.-Eu conheço essa cara – disse Raul aproximando-se – e sei exatamente o motivo. E ele usa óculos.Jorge sorriu, mas não respondeu.-Olha, eu a encontrei e conversei com ela. Não citei nomes, apenas disse que tinha um amigo meu interessado nela.Não dava pra fingir que não estava interessado. Alem de Raul saber que ele era louco por Lucia, a situação era complicada demais para disfarces.-E o que ela disse?-Disse que era pra você ir procurá-la para conversar.Jorge sentiu o coração disparar. Era obvio e lógico para ela que o amigo que Raul citara era ele. E se ela aceitou ao menos conversar, talvez não guardasse mágoas. Talvez ele tivesse alguma chance afinal.

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Aquela era a melhor noticia que Jorge poderia ter recebido. Nada seria melhor para aliviar a tensão daquele dia.Porém, para cada alegria dada, uma tristeza é acrescentada.E Jorge descobriria a verdade contida nessas palavras antes do que imaginava.Mas, antes teria que encarar mais uma prova à sua coragem. A apresentação teatral da tarde estava por vir e, com ela, o possível clímax das rusgas criadas há mais de um ano entre eles e a turma de Roberto Carlos.Era a hora da verdade.

revendo o que poderia vir a acontecer, Jorge, Raul e Jairo decidiram deixar pelo menos Carlos preparado. Ele era,

naquele momento, uma espécie de arma secreta deles. Afinal, era campeão de fisi-culturismo.

PContaram a ele uma parte da historia e o alertaram sobre o que estava por vir.-Deixa vir. O dele já está guardado.

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Aquela reação de Carlos era bem-vinda, mas ao menos para Jorge, não era o bastante. Ele sozinho não daria conta de todos os alunos de Mecânica.E a condição física de Jorge não havia se alterado com o passar do tempo. Continuava menor e mais magro que todos. Retirou-se da presença dos outros e carre-gou algumas cadeiras quebradas para o fundo do palco.-Aonde você vai com isso? – perguntou-lhe uma das componentes do grupo.-Essas cadeiras vão atrapalhar as pessoas de se acomodarem. Vou tirar elas daqui para que ganhemos espaço. Afinal, hoje é dia de superprodução, não é mesmo?A moça sorriu e Jorge retirou-se. Na verdade não era bem pra isso que ele queria as cadeiras.Quando voltou viu que todos estavam bastante descontraídos. Jairo divertia a todos contando suas historias. Raul permanecia quieto num canto.Na medida em que o tempo passava, Jorge ficava mais tenso. Ele podia sentir a tempestade se aproximando.

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Finalmente as portas do ginásio foram abertas e, as pessoas começaram a chegar.Talvez devido à fama que tinham alcançado no ano anterior, talvez devido a um horário mais favorável, o fato é que o ginásio nunca esteve tão lotado como naquela tarde.Os novatos estavam nervosos por se apresentar diante de tanta gente. Jorge estava nervoso por constatar que, todos os adversários haviam comparecido e se posicionado à frente do palco.Antes mesmo de a apresentação começar, Roberto Carlos já dava seu show particular. Apoiado pelos colegas ele gritava, assobiava e pedia o inicio das apresenta-ções.Jorge olhou para Murcia e viu em seu semblante, um ar de preocupação.-Agora ela percebeu que não vai conseguir controlar a situação – pensou.Se existia uma professora que Jorge gostava e admirava, essa era Murcia. Mas, desta vez, ela havia cometido um erro na opinião dele.Agora era esperar e pagar pra ver.

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Finalmente chegou o momento do inicio da apresentação.Porém, a algazarra feita por Roberto Carlos era tanta que, se fazia impossível a apresentação.Munida de um microfone, Murcia subiu ao palco e pediu silêncio.De nada adiantou. A algazarra não só continuou como aumentou.-É hora de tomarmos uma atitude, Jorge.-E o que podemos fazer Raul?-Venha comigo.Os dois amigos foram à frente do palco e tomaram o microfone de Murcia.Raul cumprimentou a platéia e pediu que as pessoas tivessem educação e fizessem silêncio.Jorge foi menos delicado ainda.-Pedimos que os alunos decentes dessa escola mostrem que tem boa educação e façam silêncio. E eu peço aos alunos de fora que não tomem como exemplo e não nos julguem iguais a esses animais do terceiro ano que não tem a mínima noção de educação e cultura. Mostrem que são inteligentes, ou seja, que são diferentes deles.

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Foi aplaudido de pé pela grande maioria das pessoas.Olhou diretamente para Roberto Carlos e viu que, tanto ele quanto Beto os fuzilavam com os olhos.Raul sorria.-Meus parabéns Jorge. Você os humilhou na frente de todo mundo.-É. Agora vamos ver o preço que teremos que pagar por isso.Voltaram pra trás do palco apenas para constatar que, a algazarra continuava.-Não tem jeito. O dia vai ser hoje – pensou Jorge.Sua preocupação agora era com sua irmã e a de Raul que estavam no meio da platéia.A primeira cena da peça era com Jairo. Ele entrou no palco, mas não conseguiu encenar.Foi recebido com uma chuva de bolinhas de papel.Jorge preparava sua maquiagem quando viu Jairo entrando furioso no vestuário.-Aquele imbecil – rosnava.Ouviu Murcia mais uma vez pedir silêncio e educação. Jorge sabia que aquele pedido não seria atendido.

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Largou a maquiagem e foi para o local onde havia guardado as cadeiras. Pacientemente começou a quebrá-las e separar as pernas de metal da parte de madeira.Jairo voltou ao palco e mais uma vez foi recebido por vaias, gritos e bolinhas de papel.De onde estava, Jorge apenas ouvia.Foi nesse momento que tudo estourou.Jairo perdeu a paciência e explodiu. Se Roberto Carlos falava alto, Jairo falava mais.-Vá pro inferno! – gritava Jairo com uma exaltação que Jorge nunca tinha visto.Roberto Carlos tentou responder, mas a voz de Jairo abafava a dele.-Vá pro inferno! – repetiu.Mais uma vez Roberto Carlos tentou retrucar e mais uma vez viu sua voz ser abafada pela de Jairo.-Vá pro inferno e não vai ter mais peça nenhuma! – gritou jogando o microfone no chão.De onde estava, Jorge sorriu.-É agora – sorria um sorriso nervoso.Viu Raul passar por ele e ir até o palco.

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Continuou pacientemente a quebrar as cadeiras.-Jairo – chamou – Aqui estão nossas armas improvisadas. Ajude-me a fazer mais.Jairo assim como Zezinho, Eduardo e Catiano mesmo sem saber exatamente o que estava acontecendo, correram para ajudá-lo.Carlos pegou uma das barras de ferro da cadeira e disse:-Atraiam ele aqui pra dentro que eu garanto que vivo ele não sai!Lá fora Raul encarava Roberto Carlos.-Você é um imbecil! Um idiota que se acha muita coisa, mas não passa de um verme!Roberto Carlos tentava subir ao palco e era seguro por Murcia.-Gente, pelo amor de Deus, parem com isso!A turma de Roberto Carlos se juntou a ele na frente do palco e tudo indicava que iam invadir o vestuário.Foi quando Jorge e os outros surgiram munidos com as barras de ferro.Nesse momento, a correria foi geral. Todos queriam sair urgentemente do ginásio.

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Jorge aproveitou a confusão, pegou uma faca que tinha trazido na sacola, colocou sob a camisa e saiu do ginásio. A barra de ferro na mão e a faca na cintura. Naquele momento ele só tinha uma preocupação: sua irmã.Tinha no pensamento que, se algo acontecesse com ela, alguém iria se dar mal.Ao sair pôde ver que os seguranças e os professores homens tentavam apaziguar os ânimos.Raul permanecia sobre o palco e Roberto Carlos e companhia embaixo sendo contidos pelos professores.Ele já tinha combinado com Raul que, pela sua maior facilidade de mobilização em meio a multidões, seria o mais indicado para sair do ginásio para procurar suas irmãs.Então podia sair sem se preocupar com os amigos.Olhou mais uma vez pra trás e viu que Beto o observava.Encontrou a irmã de Raul chorando abraçada a sua irmã.Ela o olhou com os olhos mareados.

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-Não chore – disse com veemência.Sabia que se a irmã chorasse, ele também cederia.-Vamos – disse enquanto as abraçava – vocês não podem ficar sozinhas aqui fora.Olhou para a porta do ginásio e viu que Beto estava lá o aguardando.

ão tinha para onde voltar. Se não era seguro para as duas moças ficarem do lado de fora do ginásio, pra ele

muito menos.NEra arriscar passar por Beto ou ficar desprotegido e sozinho fora do ginásio.Pegou novamente a barra de ferro e colocou a mão sobre a faca que trazia na cintura.Aproximou-se da entrada do ginásio.-Eu vou pegar você! Por aqui você não vai passar!Sua irmã começou a chorar. A irmã de Raul estava desesperada.Olhou para elas. Olhou para Beto e constatou pela milésima vez que ele era

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bem maior. Apertou a barra de ferro na mão.-Você não vai fazer nada! Você não passa de um otário!Àquela altura, Jorge sentiu que não tinha mais nada a perder.Era se comportar como um covarde e passar a vida inteira nessa condição ou chamar Beto e seus próprios fantasmas pra briga.A única pessoa que se interpunha entre os dois era a diretora da escola.Talvez tenha sido pela presença dela, talvez pela surpresa diante da reação de Jorge, mas o fato é que Beto não reagiu.Jorge não esperou e entrou no ginásio.De repente, alguém gritou:-A mãe de Catiano chamou a policia!-Eu não tenho medo de policia! – rosnava Roberto Carlos ainda separado de Raul pelos professores e seguranças.-O difícil agora vai ser passar por eles e subir ao palco – imaginava Jorge.Nesse momento ouviu-se uma sirene ao longe. Era a policia.

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Um dos seus amigos falou algo aos ouvidos de Roberto Carlos e este se retirou junto com sua turma do ginásio.Jorge encostou-se a um canto com as duas moças de forma a não ser notado e esperou que todos saíssem.Após a retirada aproximou-se dos amigos.-O que eles não sabem é que meu tio é policial – gabava-se Catiano.-Dá pra você me explicar o que está acontecendo? – pedia Zezinho.Jorge estava satisfeito. Conseguira trazer as duas pra dentro do ginásio em segurança.Nesse momento, os policiais entraram acompanhados pela mãe de Catiano.-Já sabemos o que aconteceu e vamos escoltar vocês até São Cristovão.Jorge voltou a sair do ginásio. Precisava saber exatamente qual era a situação de momento.-Jorge – disse um dos seus colegas de classe – Roberto Carlos e os amigos estão no setor G esperando vocês.Jorge agradeceu a informação e voltou ao ginásio. Contou aos policiais o que soubera.

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Estes enviaram uma viatura para averiguar. Momentos depois souberam que, ao avistar a viatura eles dispersaram.-Mesmo assim vamos escoltar vocês.Assim saíram escoltados Jorge, Raul, suas irmãs, o grupo que apresentaria a peça e a vice-diretora.Esta passou boa parte do caminho conversando com Raul que, de forma polida, porém firme, deixava claro de quem era a culpa pelo ocorrido.Mas Jorge estava sem paciência nenhuma para aquele tipo de conversa e, se intrometeu de forma ríspida e inesperada até mesmo para Raul.-Vai à merda! É muito fácil vir com essa conversinha agora! Vocês tiveram dois anos para evitar que tudo isso acontecesse, mas nada fizeram. Acharam melhor se esconder atrás do manto da conivência. Enquanto os calouros se curvavam ficava fácil pra vocês fingirem que nada acontecia, agora que a merda estourou vocês querem encontrar um culpado!A vice-diretora estava de olhos esbugalhados. Parecia não acreditar no que

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havia acontecido. Talvez esperasse isso de qualquer outra pessoa, menos de Jorge.Este a olhou com desprezo e adiantou o passo.-Vou cuidar de minha irmã em vez de ficar aqui ouvindo merda!Não se tratava de uma atitude para desafiar a vice-diretora. Jorge realmente estava furioso.Chegaram finalmente a São Cristovão. Enquanto todos foram para suas casas Jorge, Jairo e as moças foram para a casa de Raul.Enquanto elas se recuperavam, eles se reuniram.-Isso ainda não acabou – dizia Raul – Hoje é sexta-feira. Temos até a segunda-feira de manhã para nos precavermos contra as próximas atitudes deles.-E o que faremos?-eu vou prestar uma queixa preventiva contra Roberto Carlos daqui a pouco, mas isso não é o suficiente.-O restante deixe comigo – interrompeu Jairo – Meu primo é tenente da PM. Domingo eu e Jorge vamos a casa dele ver o que dá pra fazer.

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Despediram-se na porta da delegacia.-Dessa parte eu cuido sozinho. Amanhã vocês fazem o restante.Jorge e Jairo não comentaram nada no caminho para não preocupar a irmã.Já em Itinga, Jorge foi à casa de Jairo onde combinaram o que fazer.No sábado foram à casa de Raul. Este tinha novidades.-prestei queixa contra Roberto Carlos. Na segunda-feira vou entregar uma intimação de comparecimento a ele. E logicamente, Jorge vai me acompanhar.-Eu não perderia isso por nada!No domingo foram à casa do primo de Jairo. Lá chegando explicaram a situação.-Amanhã vai ter uma viatura esperando por vocês no módulo policial do setor G. Vocês vão ser acompanhados até dentro da escola. Chegando lá mostrem esses elementos aos policiais que eles cuidarão do resto. Se depois eles tentarem alguma coisa, façam o que for necessário e voltem a me procurar.Saíram da casa do tenente um pouco menos preocupados.Mas, Jorge sabia que isso ainda não tinha acabado e que, a

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segunda-feira seria um dia tenso. Mas que podia terminar de forma gloriosa. Eles finalmente podiam vencer aquela “guerra” e mostrar aos alunos que ninguém é intocável.Chegou a segunda-feira e, antes de ir pra escola Jorge e Jairo passaram na casa de Raul para que todos chegassem juntos ao setor G.Caminharam em silencio boa parte do caminho. Apenas Jairo parecia descontraído.-Raul – perguntou Jorge – o que você acha que somos nessa escola?-Como assim?-Veja bem, não somos os heróis da escola, pois estamos contra as autoridades.-Certo, estamos contra a diretoria.-Mas também não somos vilões porque boa parte dos estudantes que sofreram nas mãos de Roberto Carlos e companhia nos apóia.-Também é verdade. O que somos então?-Quem não é nem herói nem vilão só pode ser chamado de uma forma...-De que forma?

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-De anti-heróis. E é assim que eu quero ser chamado a partir de agora: Jorge anti-herói.Raul sorriu. Parecia se divertir com a idéia do amigo.Mas para Jorge aquilo era sério. Não era só pela situação de momento em relação a Roberto Carlos e a diretoria, mas por toda mudança que experimentara até ali. Chegara ao Sucupira como uma criança tímida e, aos poucos, se transformava num homem capaz de superar seus próprios limites. Sabia que amadurecera muito em menos de dois anos. E sabia também que ainda teria experiências inesquecíveis para experimentar não só nos próximos dias, mas também no ano que ainda lhe restava na escola.Agora se sentia, em verdade, outra pessoa. O Jorge que chegara ao Sucupira com sua mãe para efetuar a matrícula no ano anterior, pouco tinha a ver com aquele que caminhava rumo ao módulo policial do setor G. Não tinha nem melhorado nem piorado. Apenas mudado.Ainda restava resolver a situação pendente com Roberto Carlos e Beto, ainda restava provar pra si mesmo que seria capaz de se

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reaproximar de Lucia e, acima de tudo, ainda restava um ano inteiro no Sucupira, mas pretendia colecionar o máximo de vitorias possíveis.E quando as vitorias não viessem, queria ter sabedoria para assimilar os fracassos e tirar deles as lições que necessitaria para prosseguir na longa estrada da vida.E nada melhor para iniciar uma nova fase que uma nova denominação.Por isso, a seriedade da nova alcunha que escolhera para si: Jorge anti-herói.Em meio aos seus devaneios, finalmente chegaram ao setor G.Ao longe já dava pra ver a viatura parada em frente ao módulo.

s policiais demonstraram interesse e seriedade em relação ao problema dos amigos. Recolheram o Maximo

de informações possíveis a respeito de Roberto Carlos e companhia.

O-Nada como ter parente influente – pensou Jorge.

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Apenas um dos policiais não acompanhava a seriedade dos outros.-É verdade que esse tal de Roberto Carlos é mais feio do que eu? Disseram-me que ele parece um filhote de urubu com morcego.Era impossível não rir. Os amigos foram para a escola de maneiras diferentes. Raul foi dentro da viatura e Jorge e Jairo foram andando escoltados pelo policial “engraçado”.Porém, como a viatura trafegava bem lentamente, todos chegaram quase ao mesmo tempo.Quando Jorge entrou na escola, a cena que viu foi inesquecível: Roberto Carlos, Beto, Wellington e companhia estavam de costas apoiados na parede da entrada da escola sendo revistados.E para deleite dos amigos, Franklin e Pedrão também estavam na mesma situação.“Porém cabe questionar o que eles estão fazendo aqui.”O pátio da escola estava dividido entre uma sorridente maioria composta principalmente de “calouros” e uma minoria composta de “veteranos” de Mecânica que

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se mostravam indignados diante da situação.Entre “bem-feitos” e “que absurdos”, Jorge passou direto e entrou na escola.Nesse momento sabia estar relativamente seguro. Recebeu congratulações dos colegas de classe. Agradeceu e procurou se informar sobre o porquê das presenças de Franklin e Pedrão na escola naquele dia.Não foi difícil confirmar o que já desconfiava: eles estavam ali para ajudar a aprontar mais uma para os amigos.Foi até o fundo da quadra de esportes e, pôde constatar que, escondidas atrás de moitas estavam ao menos uma dezena de barras de ferro prontas para serem usadas contra Jorge e seus colegas.Voltou para o pátio da escola e constatou que os policiais já haviam se retirado.Jairo havia voltado com os policiais e Raul havia ido para a sala de aula.A caminho da sala Jorge foi interpelado por uma das amigas de Roberto Carlos.-Pra que essa palhaçada?-Marginal tem que se entender com a polícia.

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-E, por acaso, eles fizeram alguma coisa em vocês?-Não deu tempo. Só pra te informar, eu já sei das barras de ferro escondidas lá na quadra.A amiga de Roberto Carlos ficou sem ação. Decerto nem imaginava que Jorge tinha aquela informação.Ele a deixou a procurar palavras e se afastou.No caminho para a sala de aula encontrou Raul.-Ainda não acabou. A diretora convocou uma reunião com nossa sala lá na biblioteca pra agora.Foram até a biblioteca onde toda a turma já estava.Entraram e sentaram.Em seguida a diretora e sua vice começaram um discurso sobre como se comportar em uma instituição de ensino.-Foi criada uma situação desagradável e sem precedentes aqui na escola por um motivo banal. E tudo causado por um “elemento estranho” a escola.Aquilo foi o limite para Jorge. Raul o havia aconselhado a agir com cinismo e apenas

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ouvir o que elas iriam dizer, mas ele não estava disposto a ouvir aquelas palavras em silêncio.-Um elemento que deixou de ser estranho quando foi autorizado por vocês a participar do evento da escola.-Como você pode nos chamar de vocês? Temos que ser chamadas de senhoras...-É que eu costumo ter tratamento respeitoso por pessoas que eu respeito. Mas, se isso encerra a questão, volto a afirmar: ele deixou de ser um elemento estranho quando recebeu autorização das senhoras para participar do evento.A diretora fez cara de incredulidade. Mais uma vez, ninguém esperava aquela reação de Jorge.-Esse menino chegou à escola com cara de anjo e agora se comporta desse jeito!-Como a senhora mesma pode ver, não tenho asas e nem aureola. E nunca disse que era um anjo.-Vocês erraram em chamar a policia...-Erramos porque nos defendemos? Quem ia nos garantir proteção? Vocês duas?Aquilo foi o bastante para todos os presentes. Os colegas de classe de Jorge

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tomaram a palavra e passaram a defendê-lo contra os argumentos da diretora e de sua vice.A reunião se encerrou sob forte tumulto.Jorge retirou-se antes que acabasse.Soube depois que, a intenção da diretora era suspender os dois amigos da escola. Mas, diante dos protestos dos outros, foram obrigadas a recuar da decisão.Ainda restava mais uma coisa a fazer naquele dia: entregar a intimação a Roberto Carlos.-Eu dava qualquer coisa para ter estado nesse momento – diria Raimundo ao saber do ocorrido.-Não vamos entregar nos corredores. Vamos entrar na sala dele num momento que não tenha aula, mas esteja cheia. Ele tem que sentir o gosto de ser humilhado. Igualzinho ao que ele fez com todo mundo nesse tempo em que estudou aqui.Jorge concordou com Raul. Se for necessário dar uma lição em alguém, que ela seja completa para que só seja preciso ser dada uma única vez.Nesse dia, os dois amigos não assistiram mais aulas. A adrenalina de Jorge estava

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alta demais para ficar quarenta minutos sentado ouvindo um professor falar.Já Raul parecia estar mais calmo. Sua única preocupação era entregar a intimação a Roberto Carlos.A sala dele estava demasiadamente quieta.Jorge aproximou-se para observar se estava havendo aula e se Roberto Carlos estava lá.Pedrão e Franklin já haviam ido embora, mas haviam orientado Roberto Carlos sobre o que fazer naquela situação.Ele sabia que, naquele momento, qualquer atitude que tomasse contra Raul ou contra Jorge podia lhe custar caro.Usando um dos seus muitos contatos, Jorge descobriu que a turma de Mecânica teria um horário livre após o intervalo seguido por uma prova na ultima aula.-Esse é o momento. Todos estarão lá estudando para a prova.E assim ficou combinado.Durante o intervalo, porém, as provocações de praxe continuaram.Quando os dois amigos passavam na frente da cantina puderam ouvir Roberto Carlos falando em alto e bom tom:

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-Toda vez que eu vejo uma porcaria, me dá vontade de vomitar. E o barulho que o vômito faz é assim: Raul!Jorge pôde sentir a irritação de Raul em seu semblante.-Calma, são só vinte minutos até o intervalo acabar. Aí você vai ter sua forra.Raul nada respondeu.Os dois amigos passaram o resto do intervalo na biblioteca.Jorge tentou ler para acalmar-se enquanto Raul rabiscava coisas incoerentes num papel.Finalmente tocou o sinal indicando o fim do intervalo.-É agora! – esbravejou Raul.Esperaram alguns minutos para que todos se acomodassem em suas salas.Em seguida caminharam pelos corredores quase desertos da escola.Jorge pensava em todos os apertos que havia passado naquele período. Desde a primeira humilhação no dia em que conheceu Marcio até o trocadilho com o nome de Raul alguns minutos atrás.Experimentava um misto de ansiedade e nervosismo. Não dava para prever como aquele encontro terminaria. Afinal eram

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apenas eles dois numa sala lotada de homens que os detestavam.Olhou para Raul que mantinha uma expressão fechada.Gostaria de saber o que passava pela cabeça do amigo, mas achou melhor permanecer em silêncio.Adentraram o corredor onde se localizava a classe de Roberto Carlos e pararam na porta da sala.Entraram em silêncio sob os olhares de toda a turma e pararam na frente da cadeira ocupada por Roberto Carlos.

oberto Carlos estava de cabeça baixa escrevendo. Raul parou em sua frente e Jorge logo ao lado.R

Raul até com certo desprezo mostrou o papel dobrado a Roberto Carlos quando este levantou a cabeça.-Pode colocar aí em cima.-Não. Você tem que assinar.Roberto Carlos assinou o papel e Raul lhe informou a data da audiência.

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Os dois amigos saíram. O silêncio imperava na sala.Não voltaram para a sala de aula. Foram direto para o ponto de ônibus.Raul parecia satisfeito com o seu desempenho.-Eu esperei dois anos por esse momento. Você viu a cara dele quando entreguei o papel? “Bote aí.” E eu disse “Não. Você tem que assinar.”Raul ria de uma forma que Jorge nunca havia visto.Aquele seu constante tom sério havia desaparecido por alguns minutos.-Jorge, a audiência é amanhã. Você vai, não vai?-Claro. Não vou deixar meu amigo sozinho num momento desses.Na manhã seguinte, os dois amigos foram até a delegacia de São Cristovão.Lá chegando, viram que Roberto Carlos já estava.O delegado avisou que apenas Raul e Roberto Carlos seriam ouvidos.Foram conduzidos então à sala do delegado.

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Jorge ficou do lado de fora aguardando. Foram aproximadamente vinte minutos de espera.Tempo bastante para colocar as idéias em ordem.Se tudo corresse bem naquele dia, Jorge teria apenas mais duas coisas para resolver no Sucupira.A primeira era uma matéria em que ele não andava bem. Precisaria de uma nota alta para ser aprovado. Bastava estudar.A outra, ainda mais importante, se referia a Lucia.Muitos dias haviam se passado desde que Raul tinha falado com ela.Com toda agitação referente ao problema com Roberto Carlos, não sobrou tempo para as outras coisas.Ademais não podia se arriscar a transitar sozinho no turno da manhã. Não podia esquecer que, nesse período, havia aulas de Mecânica.Alem disso, independente do que acontecesse naquele dia, Raul estaria mais resguardado que ele.Porém, pelo que sentia por Lucia, tudo ara válido.

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Saiu da delegacia e ficou esperando do lado de fora. Sentia-se um pouco sufocado. Pensar em Lucia sempre lhe causava certo desconforto. Passava a ter palpitações e ficava um pouco triste. Ela era até ali, seu grande fracasso.Por mais que tivesse mudado e por mais coisas que tivesse realizado naquele período, não conseguia esquecer o quanto havia sido idiota em relação à Lucia.Realmente era outro homem agora, mas isso não era garantia que conseguiria consertar aquele erro.“Porém, piorar é impossível.”Bastava não fazer mais nenhuma besteira. Talvez não tivesse mais nenhuma chance com Lucia, mas tinha que tentar.Se perdesse, perderia com honra. Não se sentiria um imbecil, como se sentia agora.Voltou para dentro da delegacia a tempo de ver Roberto Carlos saindo da sala do delegado. Este parou em sua frente e o fuzilou com os olhos.Jorge saiu do caminho e ele passou.Raul saiu logo em seguida.-Vamos conversar lá em casa.

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Caminharam em silêncio até a casa de Raul.Lá chegando, Jorge ficou sabendo o que tinha acontecido.- O delegado disse o seguinte: “negão, eu já percebi que Raul não é flor que se cheire, mas se ele estiver andando na rua, escorregar e cair você tá preso.”-E Roberto Carlos?-Ficou mudo.Riram os dois.-Acho que agora vamos ter sossego na escola por um bom tempo.E assim foi. O resto da semana foi de uma tranqüilidade nunca experimentada pelos dois amigos antes.Ainda assim, por questão de prudência, estavam sempre juntos na escola.Na semana seguinte Raul foi chamado pela professora Murcia para uma demorada conversa.Na volta Raul contou a Jorge o teor dessa conversa.-A professora Murcia disse que Roberto Carlos chegou na casa dela chorando e pedindo pra ela conversar com a gente para retirar a queixa contra ele. Para não atrapalhá-lo no futuro profissional.

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Jorge se sentia inclinado a sugerir que a queixa fosse retirada, mas não podia deixar de pensar que aquilo poderia ser um embuste. Afinal a segurança dos dois esta-va em jogo.Pediram para que Jairo consultasse o primo.-Ele disse para não retirar a queixa, mas dizer que retiramos. Se ele realmente se comportar, aí tiramos de verdade.E assim fizeram. Roberto Carlos, Beto e todos os outros passaram a não incomodar os dois amigos. Alem disso, não se via mais as brincadeiras de mau gosto pelos corredores da escola.-Precisamos conversar Jorge.-Sobre o quê, Raul?-Sobre a KGB. É hora de recrutar novos membros.-A diretora e a vice estão nos seus últimos dias à frente da escola, pois ano que vem vai ser trocada a direção, e nós vencemos a “guerra” contra Roberto Carlos e com-panhia. Que sentido tem renovar a KGB?-Temos que renovar nosso legado. Nós vencemos nossos problemas, mas outros problemas surgirão quando sairmos daqui. A KGB tem que continuar existindo.

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Meio a contragosto Jorge concordou e foram convocados Catiano e Eduardo para serem os novos membros do grupo.Foram feitos testes com os dois. Catiano passou com louvor e Eduardo, nem tanto.Apesar de Raul ter ficado entusiasmado com os resultados do primeiro, para Jorge suas respostas foram superficiais. Típicas de quem quer ser aprovado num tes-te.Porém, os dois foram aceitos numa votação que incluiu Jorge, Raul e Jairo.Decisão que se mostrou errônea pouco tempo depois.Catiano seduzido por uma promessa feita pelo presidente do Grêmio de lhe conseguir um cargo na instituição, traiu a confiança de todos e entregou os nomes dos componentes da KGB.Porém, devido às negativas dos dois amigos, a falta de provas e a pouca credibilidade de Catiano, nada foi feito.Mas a seqüela dessa situação foi a paralisação das atividades da KGB.O que não causou um grande impacto, pois como Jorge havia observado, a KGB havia cumprido todos os seus objetivos.

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-Deixa pra lá, Raul. Nossa parte nós já fizemos.-A minha realmente já foi feita. Mas, e você?-O que tem eu?-Já fez tudo que gostaria de ter feito aqui no Sucupira?-Você sabe que não.Como sempre acontecia, Jorge sentia um pouco de tristeza.-Vá pra casa.-Você também não vai Raul?-Eu vou agora à casa de Lucia. Isso tem que ser resolvido o quanto antes. Amanhã te digo o que aconteceu.Foi um fim de tarde e uma noite de pura ansiedade para Jorge. Não pôde dormir direito. O que Raul falaria para Lucia? O que ela responderia? O que ele próprio diria a ela?A manhã seguinte não lhe traria tranqüilidade. Ficou inquieto até a hora de ir para a escola.Lá chegando, esperar por Raul foi outro suplicio. Quando o amigo chegou, a aula já havia começado.

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Esperou até o intervalo para poder perguntar o que tinha ocorrido.-Eu fui até a casa dela. Inventei uma desculpa qualquer e comecei a conversar. Num certo momento, toquei no assunto com ela. Ela respondeu: “eu não disse pra ele ir conversar comigo?” Agora só depende de você. O que você vai fazer?-Eu venho amanhã de manhã mesmo resolver isso de uma vez por todas.

a manhã seguinte, Jorge foi ao Sucupira.N

Logo percebeu que teria um obstáculo a superar: sua própria ansiedade.Passara a noite ensaiando o que iria dizer a Lucia. Nada do que imaginava era satisfatório.Parecia que sempre faltava algo e que tudo que pensava era bobo.Não poderia simplesmente chegar e pedi-la em namoro. Tinha que dizer algo. Uma coisa sucinta e explicativa.Algo que fosse um misto de explicação e galanteio.

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Passou muito tempo até que elaborasse um texto que convencesse a si próprio.Chegara ali com convicção do que iria dizer.O problema era que, por mais que ele tivesse mudado em relação a todas as outras coisas, Lucia ainda era um tabu.Ela era seu limite. Pensar nela era o bastante para deixá-lo alterado.Pensar em falar com ela então, era o suficiente para desequilibrá-lo completamente.Mas estava decidido que falaria com ela naquele dia. Não importava o que viesse a acontecer.O dia seria aquele.Estava tão ansioso que não conseguia parar em um mesmo lugar.Caminhou pela escola durante boa parte do tempo que teve que esperar.Entrou, foi até o bebedouro. Nunca entendeu por que, mas beber água sempre lhe acalmava.Sempre, exceto dessa vez.Possivelmente naquele dia nada seria capaz de acalmá-lo.Jorge tinha a certeza que aquele seria um dia inesquecível em sua vida. Para o bem

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ou para o mal, sabia que aquele dia o marcaria para sempre.O que, verdadeiramente, Jorge sentia por Lucia?Nem ele mesmo sabia explicar. Era inaceitável até mesmo para ele tamanha ânsia por estar com uma pessoa.Não era compreensível sentir tanto carinho por alguém que ele nem conhecia.E mais inexplicável ainda era todo aquele descontrole emocional e físico quando a via.Começava a se questionar se conseguiria mesmo conversar com ela.Estava tudo pré-ensaiado. Mas ele conseguiria falar tudo que sentia?Caminhava sozinho pela escola.Saiu dos corredores e se dirigiu para o pátio.Andou pelas sombras das arvores. Foi até o portão e voltou.Sua cabeça estava cheia de dúvidas.-Meu Deus, ainda estou descontrolado desse jeito a essa altura do dia?Sua insegurança era tão grande que ele não saberia o que fazer nem se a resposta dela fosse positiva.

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Mas ainda assim ele tinha que insistir naquilo. Tinha que ser naquele dia.Ele sentia que se não fosse naquele dia, não seria mais nunca.Voltou para a sombra das arvores.Nesse momento foi despertado dos seus devaneios por uma risada seguida de uma voz desagradavelmente conhecida.Levantou o rosto e viu que a irmã de Lucia que parecia não gostar dele conversava com outra aluna que ele não conhecia.Ela estudava pela tarde, mas devia estar também tendo aulas pela manhã.Jorge, por estar distraído ouviu apenas o trecho final da conversa.A irmã de Lucia dizia o seguinte:-Está apaixonado mesmo! Veio pela manhã para se declarar!E emendou a frase com uma risada debochada.Para Jorge aquilo era preocupante. Um péssimo sinal.Era hora de pensar em desistir. Não seria uma derrota e sim, uma retirada estratégica.Agora sentia medo.

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Lembrou-se do juramento que tinha feito a si mesmo.E daí se ouvisse um não da parte dela?Com certeza seria melhor que a dúvida que o acompanharia a vida toda. Melhor a dor da recusa do que a da incerteza.Decididamente não passaria o resto da vida imaginando que talvez devesse ter tentado.Preferia pensar que havia, ao menos, tido coragem de tentar mesmo que em vão.Mas, se tinha que ser derrotado não seria com platéia. Muito menos com uma platéia que, nitidamente, torcia contra ele.Seria naquele dia, mas nos seus termos.Levantou e dirigiu-se para o portão de saída da escola.Olhou para trás e viu a irmã de Lucia a olhá-lo com as sobrancelhas levemente arqueadas numa expressão de estranheza.“Deve estar achando que eu desisti. “Se eu tivesse um mínimo de sensatez, era o que eu devia fazer mesmo.”Mas, não podia negar que se entregava naquele momento a um fino fio de esperança de que seus instintos e suas observações estivessem embotados pelo nervosismo. Talvez se não cometesse

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nenhum erro conseguisse, ao menos, a tão sonhada reaproximação.Não tinha como saber exatamente que caminho ela tomaria até sua casa. Existiam vários. Porém, havia um local que, independente de que direção ela tomasse, teria que passar por ali.Ficar na escola deixou de ser uma opção interessante.Caminhou lentamente até os prédios onde tinha sido abordado por Wellington e Marcos.Por ali ela teria que passar de qualquer jeito.Foi até a escadaria dos prédios e sentou-se próximo ao telefone publico.Agora era só esperar.Jorge nunca fora uma pessoa ansiosa, mas naquele dia estava à flor da pele. Não conseguia controlar seus nervos.E o pior é que não tinha noção de quanto tempo teria que esperar.Levantou. Foi até o orelhão. Voltou.Andou de um lado para o outro.Atravessou a rua.Olhou nas possíveis direções em que ela viria.

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Tornou a atravessar a rua.Sentou-se de novo na escada.Esperou mais alguns minutos que pareceram uma eterni-dade.Levantou-se.O ônibus que costumava pegar para ir pra casa estava parado do outro lado da rua. Talvez como um sinal para que ele desistisse daquela idéia.Talvez o melhor fosse mesmo ir pra casa. Esquecer. Deixar o passado no passado.Sentou-se de novo.Aquela espera era angustiante.Quanto mais tempo demorava mais nervoso ele ficava.Decidiu repassar mentalmente tudo que havia ensaiado na noite anterior. Não podia cometer erros.Foi nesse momento que percebeu que não lembrava mais de uma palavra sequer.Levantou-se novamente. Desceu a escadaria. Olhou para outro possível caminho que poderia ser tomado por Lucia. Não a viu.Voltou para a escada. Sentou-se.Tornou a levantar e atravessou novamente a rua.

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Dessa vez, seu coração disparou.Estava distante, mas dava pra ver claramente que Lucia se aproximava ao longe.-Essa é a hora H – pensou.O nervosismo aumentou. Tornou a atravessar a rua.Desceu metade das escadas. Parou e respirou fundo.Decididamente não se lembrava de uma palavra sequer das que pretendia dizer a ela. Teria que ser na base do improviso.-Talvez seja melhor assim. Sai mais sincero – tentou convencer a si mesmo.Subiu de novo as escadas. Agora era só questão de tempo.Ela, em principio, baixou a cabeça como se olhasse para seus próprios pés. Ajeitou a mochila. Levantou vagarosamente a cabeça. Mexeu nos óculos e, finalmente abriu a boca para responder.Jorge estava a ponto de ter um ataque cardíaco tal era a forma descompassada que seu coração batia.Aquela pequena pausa dada por Lucia parecia uma eternidade.

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Finalmente ela falou. E quando o fez foi num tom firme e decidido.-Primeiro que eu já tenho namorado. Segundo que seria ridículo namorar com você porque eu não te conheço.Aquelas palavras caíram sobre Jorge como uma bomba devastando tudo dentro dele.Que ela não ficaria com ele, já era previsível. Que ela tivesse namorado, era uma possibilidade. Mas, ela dizer que sequer o conhecia...O que a teria feito dizer aquilo? Será que realmente não se lembrava dele? Ou será que era resultado de mágoa guar-dada? Ou ainda, seria um castigo por ele ter se comportado de forma tão idiota por tanto tempo?Se fosse esse último motivo, a dor de Jorge era ainda maior.Era maior pelo simples fato de que, para aquele pensamento, não havia defesa. Ele realmente sentia que tinha sido um idiota por todo aquele tempo.Não teria sentido tentar explicar seus motivos a ela. Isso não interessava. O que havia acontecido não poderia ser apagado nem remediado.

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-Era só isso?Não. Não era só isso. Jorge tinha tanto para lhe dizer, mas agora nada que dissesse faria sentido. De repente sentia-se oco. Tinha vontade de chorar. Baixou a cabeça e respondeu com a voz fraca e quase inaudível.-Era.Ela então foi embora.Jorge dessa vez, não pôde ver aquele sorriso que tanto havia lhe encantado. Pôde ver apenas um semblante fechado e ouvir palavras duras.Estava machucado como nunca antes.Ficou parado no mesmo lugar por alguns minutos. Não conseguia reagir. Não conseguia pensar. Até as lagrimas que suplicavam para sair estavam paralisadas.Quando finalmente conseguiu se mexer, não sabia para onde ir.Desceu as escadas e vagou sem rumo por entre os prédios.Queria apenas um lugar tranqüilo e vazio.Precisava chorar ou iria explodir.Sentia uma imensa dos no peito ao mesmo tempo em que parecia estar vazio por dentro.

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Sentou-se numa caixa de água atrás de um prédio e precipitou-se a chorar.Chorou por mais tempo do que lhe era permitido lembrar. Aquela era, sem sombras de dúvidas, a maior e mais amarga derrota que sofrera na vida. Não pelo que tinha acontecido, mas pelo jeito que tinha acontecido.Por outro lado, aquilo de alguma forma, reforçava suas convicções recentes.Havia falhado por causa da sua timidez, do seu despreparo para enfrentar as situações que a vida lhe apresentara, por ter deixado que seus problemas tomassem conta de sua vida e, principalmente por sua covardia no momento de lutar pelo que queria.Aquela era sua lição final. Tudo que havia conquistado e o tanto que havia crescido e evoluído naqueles dois anos, nada significavam diante daquele acontecimento.Sentia-se derrotado e humilhado.Lucia era o que Jorge mais queria na vida. Mas, em verdade, o que tinha feito de concreto para conquistá-la?

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Não sentia raiva ou mágoa dela. No fundo, sabia que ela estava certa.Sentia apenas uma imensa tristeza a tomar-lhe o espírito.Estava fraco e vulnerável naquele momento.Retirou os óculos escuros do bolso e colocou no rosto. Deveria estar com os olhos inchados e estava ali há tanto tempo que já era possível ouvir o burburinho dos alunos do turno da tarde se dirigindo para a escola.Tentou se controlar. Estava muito difícil. Não conseguia parar de chorar.Levou tempo, mas finalmente, conseguiu conter as lagrimas. Só não conseguia esconder a profunda tristeza que sentia.De repente, Raul surgiu ninguém sabe de onde.-E aí, velho? Ta aí desde que hora?-Cheguei aqui pela manhã.-Tomou coragem e veio conversar com Lucia?-Isso mesmo.-E como foi?Jorge contou a Raul sobre as palavras que Lucia havia lhe dito, pausadamente, tomando cuidado para não voltar a chorar.

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-Não lhe conhece? É por causa dessas coisas que eu não gosto dela!Caminharam em direção à escola.-Eu não vou conseguir assistir aula hoje.-O que vai fazer?-Não sei. Eu não posso ir pra casa agora. Preciso ficar sozinho. Assimilar o que aconteceu.-Ficar sozinho não é uma opção pra você agora. Vamos pra escola. Você precisa se animar um pouco.-Eu não posso assistir aula. Estive chorando e meus olhos estão inchados. Não posso tirar os óculos.-Então não vamos pra sala de aula.Jorge acabou passando à tarde na escola. Não assistiu aula. Passou a tarde zanzando pelos corredores sempre acompanhado por Raul.O que fez aquela tarde inteira? Nem ele mesmo lembra. Sua cabeça estava longe. Ele só conseguia lembrar-se do rosto sério de Lucia e de suas palavras.-Seria ridículo namorar com você porque não te conheço.A palavra “ridículo” e a frase “não te conheço” vinham a sua memória com força.

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A tarde finalmente acabou e Jorge pôde ir embora da escola.Caminhou cabisbaixo e silencioso até o ponto de ônibus. Raul tentava puxar conversa em vão.Jorge não conseguia falar.Chegou em Itinga mas não foi pra casa. Perambulou pelas ruas do bairro sem rumo. Parecia um zumbi.“Ridículo.”“Não te conheço.”Aquilo não saia de sua mente por um único instante. Parecia ser mais do que podia suportar.Chegou em casa em torno de dez da noite. Seus pais e sua irmã já estavam dormindo.Foi até a cozinha e ligou o radio tomando o cuidado de baixar o volume para que ninguém acordasse. Não se sentia disposto a explicar o que tinha acontecido.Começou a chorar de novo. Não de forma compulsiva. Sem soluços. Apenas lágrimas que brotavam em seu rosto e que ele não conseguia conter.Rabiscou algumas palavras num pedaço de papel. Palavras desconexas. Não conseguia raciocinar direito.

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Só conseguia pensar nas duras palavras que Lucia havia lhe dito.No radio começou a tocar uma bela canção de Raul Seixas.“Tente outra vez” – dizia a musica.Como tentar de novo? Estava derrotado. Esse era o único fato.Mas, não era só isso que a música dizia. Aquela letra começou a tomar espaço no espírito machucado de Jorge. Começou a lhe dar ânimo.Ainda chorava lágrimas amargas, mas ao menos agora, voltava a lembrar que a vida teria que continuar.Pegou novamente a caneta e o papel. Redigiu um pequeno e emocionado bilhete. Se os motivos de Lucia fossem aqueles que ela alegou, ele estaria mais uma vez fazendo papel de bobo.Porém, se a coisa tivesse acontecido sob o ângulo de Jorge, aquilo era necessário.No bilhete ele lhe pedia desculpas e reafirmava seus sentimentos por ela. Deixava claro também que, não deixaria de ter esperanças de um dia poder remediar o que tinha acontecido.Assinou e guardou no bolso da calça.

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Ficou sem dormir uma boa parte da noite. Os primeiros raios do sol o alcançaram ainda acordado. Finalmente, o cansaço o venceu e acabou dormindo.Na manhã seguinte voltaria ao Sucupira. Queria fazer papel de bobo uma última vez. Queria entregar-lhe o bilhete que havia escrito.

orge praticamente não dormiu. Conseguiu um leve cochilo. Leve e conturbado.J

Levantou cedo e foi ao banheiro.Olhou-se no espelho e achou que parecia ter envelhecido alguns anos em uma única noite tanto metaforicamente quanto fisicamente.Seus olhos estavam inchadíssimos. Tomou banho, trocou de roupa, pôs os óculos escuros e saiu.Foi até o Sucupira lá chegando, principiou a procurar por Lucia. Conseguiu avistá-la de longe e concluiu que não teria coragem de entregar-lhe pessoalmente o bilhete.

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Primeiro porque estava muito triste e poderia começar a chorar. Aí sim, seria ridículo. Segundo porque existia a forte possibilidade de que ela simplesmente não aceitasse receber o bilhete. Aí seria vergonhoso.Mas, o bilhete precisava ser entregue.Jorge procurou Zezinho na escola. Não foi difícil encontrá-lo.-Preciso de um favor.-Qual? -Lembra quem é Lucia?-Uma baixinha que, quando passei de ônibus, vi você conversando ontem?-Essa mesmo. Dava pra entregar isso a ela?-Tranqüilo.-Por favor, não leia.-Tudo bem.Feito isso, achou melhor voltar pra casa. Depois do dia anterior, era muita pretensão achar que Lucia ia querer falar com ele.No inicio da tarde, quando saia de casa para voltar ao Sucupira, encontrou Zezinho.-Entreguei o bilhete a ela.-E aí?-Cheguei pra ela e perguntei “você é Lucia?” ela respondeu que sim. Aí entreguei

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o papel. Ela abriu e leu. Mas nada comentou.Era mais ou menos o que Jorge esperava. Despediu-se de Zezinho e foi para a escola.Os dias seguintes foram difíceis. A sensação de vazio na alma não lhe abandonava. Recebeu a boa noticia que havia sido aprovado na matéria em que estava tendo dificuldades.O ano letivo estava acabado.Ano seguinte iria completar dezessete anos de idade. Era hora de sair da lojinha dos pais e trabalhar em outro lugar. Para isso teria que pedir transferência para o turno da noite. Comentou sobre isso com Raul.-Eu também vou passar para a noite ano que vem pelos mesmos motivos.Então, pelo menos nesse aspecto, as coisas continuariam iguais.Durante as férias, nada aconteceu que mereça ser registrado.Foram dias vazios e enfadonhos.Jorge lamentava o ocorrido em relação à Lucia, mas sabia que a vida tinha que continuar.Eram três meses longe do Sucupira.

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Arranjou alguns trabalhos temporários, viajou... Enfim, voltou a viver.Quando esse período passou, chegou a hora de voltar à escola.Dessa vez, não existia empolgação ou incentivo extra. Era apenas para conseguir o diploma.Não havia mais Roberto Carlos e Beto, não havia mais a KGB, a diretora era outra e, não havia mais esperança em relação à Lucia.De certa forma, isso lhe libertou de algumas amarras que ele próprio havia colocado em sua vida.Estava mais triste, isso era fato. Porém, estava mais solto, mais desinibido e muito mais maduro.Tudo que havia acontecido no Sucupira acelerou sua transformação de adolescente para homem.E isso se via nas primeiras semanas de aula. Diferente do primeiro ano, não teve dificuldades para se enturmar ou para assumir a condição de líder da classe.Um fato ilustrativo foi a decisão da nova diretora de modificar o modelo da camisa dos alunos e impor que, todos comprassem

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a nova farda.Jorge não só foi contra como tomou atitudes em represália.Primeiro, em reunião com a diretora, foi claro em relação a sua discordância argumentando que “além de ser um gasto desnecessário pra quem está no último ano, é um modelo de extremo mau gosto.”Em segunda reunião, apareceu com um pedaço de pano preto preso sobre o escudo. A idéia havia sido de Raimundo, mas foi Jorge que a executou, sem nenhum constrangimento.E ao ser questionado pela diretora do por que daquela atitude, respondeu:-Estou de luto.-E quem morreu?-O ensino do Sucupira. Aqui ao invés de melhorar o que nos é ensinado, impõem-nos gastos com estética.Esse era o novo Jorge. Transformara todo o sofrimento por Lucia e toda a coragem que adquirira na “guerra” com Roberto Carlos em atitudes.A idéia do pano preto por sinal, virou mania na escola. De repente, todos estavam usando um pedaço de pano negro sobre o escudo do Sucupira.

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Alguns, como confessou um amigo que estudava no turno da tarde, nem sabiam por que estavam usando. Mas usavam.Em relação às mulheres também estava mais solto. Levava ao pé da letra o juramento que havia feito a si mesmo. Não tinha mais vergonha de nada. Sentia que, nada mais tinha a perder.Mas, como sempre, algo iria acontecer para voltar a abalar seu já dolorido coração.Jorge, Raul e Raimundo continuavam a andar juntos na escola como no primeiro ano.Então, as amizades que faziam eram coletivas.Um desses novos amigos chamava-se Claudio.Paquerador, de boa conversa e extremamente divertido, ele logo caiu nas graças dos amigos.Afinal, agora eram “tempos de paz.” Não existiam mais tensões ou motivos para brigas. Era mais fácil cultivar amizades.

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E Claudio, de certa forma, preencheu o espaço deixado por Marcio na convivência dos três amigos.Um dia, ele e Jorge estavam conversando trivialidades quando, de repente, surgiu a pergunta:-Você tem uma tristeza escondida que vive tentando disfarçar, Jorge. O que aconteceu?-Impressão sua.-Não é não.-É verdade que me aconteceu algo no ano passado que tirou um pouco minha alegria. Mas nada que eu não consiga superar com o tempo.-Me conte.Jorge sentiu que já era hora de tentar falar com alguém sobre aquele assunto que tanto lhe machucara. E Claudio além de inspirar confiança, era uma pessoa de fora que não tinha acompanhado o ocorrido. Teria então uma opinião isenta.Claudio ouviu atento ao relato resumido de Jorge. Ao término, fez uma pequena pausa antes de falar.

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-Você disse que ela se chama Lucia e mora no setor C?-Disse.-Descreva-a.Jorge o fez.Claudio mais nada comentou. Ao contrario, mudou bruscamente de assunto.Jorge estranhou o comportamento do amigo, mas deixou o assunto morrer.Não tinha mais nada a acrescentar e, os problemas alheios costumavam não empolgar as pessoas por muito tempo.Sendo assim, não se falou mais nesse assunto por alguns dias.Mas, não tardou para Claudio voltar ao assunto.-Sabe aquela historia que você me contou sobre Lucia?-Sei.-Tenho novidades.Jorge sobressaltou-se. Que tipo de novidade Claudio teria sobre aquele assunto?-Eu já conheço Lucia há algum tempo então, resolvi falar com ela sobre você.

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-E?-Primeiro que esse negócio de dizer que não conhece as pessoas parece ser mania dela porque aconteceu o mesmo comigo. Ela também disse que não me conhecia.-Bom, pelo menos não foi só comigo. -O fato é que, pelo que eu conversei com ela...“Era necessário mesmo aquela pausa?” – pensou Jorge, tentando conter a ansiedade.-... Se você for lá ter uma conversa, ela é sua.-Não. Pode parar. Eu já ouvi isso antes. Não vou passar por aquilo de novo.Claudio calou-se.Novamente deixaram o assunto morrer.Mas aquilo não saiu da cabeça de Jorge. Valia à pena tentar de novo? E se fosse apenas mais uma forma de humilhá-lo? Não dava pra saber o que passava na cabeça dos outros. Ele não tinha como saber se ela não guardava ressentimentos dele. Decidiu que, dessa vez, não ia arriscar sofrer de novo.Só voltou ao assunto alguns dias depois por não agüentar mais de curiosidade.

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-Claudio, baseado em quê você chegou à conclusão de que eu conseguiria ficar com Lucia?-Sinceramente, eu não me lembro.Era mais um mistério insolúvel em relação à Lucia que Jorge teria que amargar.Até aquele dia não sabia por que Raul não gostava dela, não sabia por que ela tinha se apresentado como Paula e agora, não sabia por que Claudio tinha achado que Jorge ainda tinha chances.Mas entre mistérios, frustrações e desilusões, a vida tinha que continuar.O ano letivo acabou. Jorge conseguiu seu diploma. Raul e Raimundo também.Começou a trabalhar. Conheceu outras pessoas. Namorou, casou, teve duas filhas lindas, divorciou-se...Com o tempo, perdeu contato com os amigos e criou novas e fiéis amizades. A vida continuou.Não conseguiu trabalhar com Eletrotécnica. Nenhum deles conseguiu.E Lucia? Jorge a viu mais duas vezes após aquele período.

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A primeira vez, dois anos depois, ele estava angariando vestimentas para doação a instituições de caridade. Acabou parando em Mussurunga.No entrar e sair de ruas chegou a que ela morava. Não explicou aos outros o porquê, mas recusou-se a ir até o final daquela rua.Sabia quem encontraria na última casa. De nada adiantou. Enquanto esperava pelos outros, a viu andando em sua direção.Com aquele sorriso lindo que o fez se apaixonar anos atrás. Era impressionante como ela ainda conseguia desequilibrá-lo emocionalmente.Jorge experimentou as mesmas sensações da primeira vez que conversara com ela.Toda aquela tremedeira, aquele excesso de suor, aquele descontrole das próprias idéias...Ela parecia olhar pra ele. Ou não. Esse seria mais um dos mistérios relacionados a ela. Ele não esperou que ela se aproximasse.Entrou na rua ao lado. Dois anos haviam se passado e Jorge ainda não tinha cicatrizado as feridas. Não se sentia preparado para ter um novo contato com Lucia.

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A segunda vez foi três meses após esse encontro.Estava novamente em Mussurunga, agora acompanhando uma amiga.Ele lhe contava coisas que tinha feito naquele bairro na época da escola. Coisas que não foram contadas nessa narrativa.-E as meninas? Houveram algumas, não houveram?-Houveram.-E teve alguma que marcou mais?-Teve uma. Aquela.Jorge podia ver claramente Lucia caminhando um pouco mais a frente com suas irmãs. Desta vez, com certeza, ela não o viu.Assim ele pôde olhá-la uma última vez. Uma última e demorada vez.Pôde relembrar de tudo que havia acontecido de bom e de ruim.Chegou novamente a constatação do obvio: o homem que se tornara e o que ainda viria a ser, o que ensinaria a seus filhos e tudo o mais que aconteceria em sua vida dali por diante, ele devia àquele período em que estudou no Sucupira.

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O resto de sua vida seria baseada no que aprendeu e descobriu naqueles dois emocionantes anos.Mas, mais do que isso, aquele seria um período inesquecível em sua existência por ter sido a época em que descobriu o amor em sua mais pura essência.Amaria outras vezes, é certo.Amaria, por exemplo, suas filhas. Mas seria um amor diferente.Em relação a uma mulher aquele amor seria inigualável.Apesar dos percalços, seria uma época pra ser lembrada com carinho pelo resto de sua existência.O mesmo carinho que sentia ao vislumbrar Lucia ao longe. A mesma sensação que sentia ao observar coisas simples, porém marcantes como o pôr e o nascer do sol ou o esplendor de uma bela noite de lua cheia.Lembrou da música que ouviu naquela noite triste quando chorava por ter sido rejeitado por ela: “Não diga que a vitoria está perdida/se é de batalhas/que se vive a vida.”

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Sentiu novamente aquela doçura na alma que só mesmo a visão dela podia lhe proporcionar.Coisas assim não podem ser expressas em palavras, mas existia uma que podia resumir o que aquela historia significou para Jorge:-Linda – sussurrou.A amiga fez cara de quem não concordara muito.Jorge permaneceu parado olhando-a se afastar. Parado não apenas por estar ali de pé sem se movimentar, mas parado no tempo e no espaço a vislumbrar a coisa mais linda que já havia visto na vida.Talvez essa coisa maravilhosa não tenha sido propriamente Lucia. Talvez tenha sido todas as emoções e sensações que ele pôde experimentar por causa dela.-É incrível como podemos transformar a vida de uma pessoa sem termos a menor noção do que estamos fazendo.-De que é que você está falando, Jorge?Ele não respondeu de imediato. Suspirou.

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-É uma longa historia.-Eu gostaria de ouvir.-Não hoje. Um dia, eu conto pra você. Um dia eu conto pra todos. É uma historia que merece ser contada. Não sei se terei talento para mostrar o quanto ela foi bonita e emocionante. Mas, mesmo assim, um dia eu contarei. Talvez um dia eu escreva um livro. Um livro que mostre que amores não correspondidos também proporcionam belas histórias.

FIM

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JORGE FILHO

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