Brasil Como Problema Darcy Ribeiro

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Brasil Como Problema* Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Co queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando,desgastando milhõesde mestiosbrasileiros, na produ!o n!o do que eles "onsomem, mas do que d# lu"ro $s "lasses empresaria Ao longo dos sé"ulos, %iemos atribuindo o atraso do Brasil e a pen&ria dos b falsas "ausas naturais e hist'ri"as, umas e outras imut#%eis. (ntre in"on%enientes do "lima tropi"al, ignorando-se suas e%identes %antagens. A"usa-se, também, a mestiagem,des"onhe"endoque somos um po%o feito do "aldeamento de índios "om negros e bran"os, e que nos mestios "onstituímos melhor de nosso po%o. )ambém se fala da religi!o "at'li"a "omo um defeito, sem olhos para %er a magni "amente reali adas dentro dessa fé. # quem se re ra $ "oloni a!o lusitana, "om nostalgia por uma mirí "a "ol holandesa. / toli"e de gente que, %isi%elmente, nun"a foi ao 0uriname. (1iste até quem queira atribuir nosso atraso a uma suposta 2u%enilidade do p que ainda estaria na minoridade. (sses idiotas ignoram que somos "ento e tan mais %elhos que os (stados 3nidos. Di em, também, que nosso territ'rio é pobre - uma balela. 4epetem, in"ans#% nossa so"iedade tradi"ional era muito atrasada - outra balela. Produ imos, "olonial, muito mais rique a de e1porta!o que a Améri"a do 5orte e edi "am ma2estosas "orno o 4io, a Bahia, 4e"ife, 6linda, 6uro Preto, que eles 2amais )rata-se, ob%iamente, do dis"urso ideol'gi"o de nossas elites. 7uita gente sua ino"8n"ia, o interiori a e repete. De fato, o &ni"o fator "ausal ineg#% é o "ar#ter das "lasses dominantes brasileiras, que se es"ondem atr#s desse h# "orno negar que a "ulpa do atraso nos "abe é a n's, os ri"os, os bran"os, que impusemos, desde sempre, ao Brasil, a hegemonia de uma elite retr'grada, atua em seu pr'prio bene "io. 6 que temos sido, histori"amente, é um proletariado e1terno do mer"ado inter Brasil 2amais e1istiu para si mesmo, no sentido de produ ir o que atenda ao sobre%i%8n"ia e prosperidade de seu po%o. (1istimos é para ser%ir a re"lamos Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Co queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente queimando, desgastando milhões de mestios brasileiros, na produ!o n!o do q "onsomem, mas do que d# lu"ro $s "lasses empresariais 5!o nos esqueamos de que o Brasil foi formado e feito para produ ir pau-de lu1o europeu. Depois, a&"ar para adoar as bo"as dos bran"os e ouro para en Ap's a independ8n"ia, nos estruturamos para produ ir algod!o e "afé. o2e, so2a e minério de e1porta!o. Para isso é e1istimos "omo na!o e "omo go%ern in éis ao po%o enga2ado no trabalho, sofrendo fome "r9ni"a, sempre ser%is $ alheias do mer"ado interna"ional. 6 mer"ado interna"ional, que nos %iabili a no plano e"on9mi"o, é a peia que "ati%eiro e $ pobre a. / ne"ess#rio que se2a assim: Por que outros po%os qu foram mais pobres e menos ilustrados, "omo é o "aso dos (stados 3nidos, nos frente:

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Brasil Como Problema*

Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda , um moinho de gastar gentes. Construmo-nos queimando milhes de ndios. Depois, queimamos milhes de negros.

Atualmente, estamos queimando, desgastando milhes de mestios brasileiros, na produo no do que eles consomem, mas do que d lucro s classes empresariais.

Ao longo dos sculos, viemos atribuindo o atraso do Brasil e a penria dos brasileiros a falsas causas naturais e histricas, umas e outras imutveis. Entre elas, fala-se dos inconvenientes do clima tropical, ignorando-se suas evidentes vantagens.

Acusa-se, tambm, a mestiagem, desconhecendo que somos um povo feito do caldeamento de ndios com negros e brancos, e que nos mestios constitumos o cerne melhor de nosso povo.

Tambm se fala da religio catlica como um defeito, sem olhos para ver a Frana e a Itlia, magnificamente realizadas dentro dessa f.

H quem se refira colonizao lusitana, com nostalgia por uma mirfica colonizao holandesa. tolice de gente que, visivelmente, nunca foi ao Suriname.

Existe at quem queira atribuir nosso atraso a uma suposta juvenilidade do povo brasileiro, que ainda estaria na minoridade. Esses idiotas ignoram que somos cento e tantos anos mais velhos que os Estados Unidos.

Dizem, tambm, que nosso territrio pobre - uma balela. Repetem, incansveis, que nossa sociedade tradicional era muito atrasada - outra balela. Produzimos, no perodo colonial, muito mais riqueza de exportao que a Amrica do Norte e edificamos cidades majestosas corno o Rio, a Bahia, Recife, Olinda, Ouro Preto, que eles jamais conheceram.

Trata-se, obviamente, do discurso ideolgico de nossas elites. Muita gente boa, porm, em sua inocncia, o interioriza e repete. De fato, o nico fator causal inegvel de nosso atraso o carter das classes dominantes brasileiras, que se escondem atrs desse discurso. No h corno negar que a culpa do atraso nos cabe a ns, os ricos, os brancos, os educados, que impusemos, desde sempre, ao Brasil, a hegemonia de uma elite retrgrada, que s atua em seu prprio beneficio.

O que temos sido, historicamente, um proletariado externo do mercado internacional. O Brasil jamais existiu para si mesmo, no sentido de produzir o que atenda aos requisitos de sobrevivncia e prosperidade de seu povo. Existimos para servir a reclamos alheios.

Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda , um moinho de gastar gentes. Construmo-nos queimando milhes de ndios. Depois, queimamos milhes de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhes de mestios brasileiros, na produo no do que eles consomem, mas do que d lucro s classes empresariais

No nos esqueamos de que o Brasil foi formado e feito para produzir pau-de-tinta para o luxo europeu. Depois, acar para adoar as bocas dos brancos e ouro para enriquec-los. Aps a independncia, nos estruturamos para produzir algodo e caf. Hoje, produzimos soja e minrio de exportao. Para isso existimos como nao e como governo, sempre infiis ao povo engajado no trabalho, sofrendo fome crnica, sempre servis s exigncias alheias do mercado internacional.

O mercado internacional, que nos viabiliza no plano econmico, a peia que nos ata ao cativeiro e pobreza. necessrio que seja assim? Por que outros povos que, no passado, foram mais pobres e menos ilustrados, como o caso dos Estados Unidos, nos passaram frente?

Qual a causa real de nosso atraso e pobreza? Quem implantou esse sistema perverso e pervertido de gastar gente para produzir lucros e riquezas de uns poucos e pobreza de quase todos?

Como uma das principais naes pobres do mundo, estamos desafiados, at internacionalmente, a buscar e encontrar caminhos de superao do subdesenvolvimento autoperpetuante em que fornos todos metidos pela poltica econmica das potncias vitoriosas no ps-guerra. Tanto mais porque no h, em nenhum lugar da Terra, um modelo comprovadamente eficaz de ao contra a crise poltico-econmica em que estamos afundados.

O mundo subdesenvolvido tem os olhos postos em ns. Espera do Brasil alguma soluo para nossos problemas comuns. Todos j suspeitam que, persistindo no papel de proletariados externos dos povos ricos, nos perpetuaremos na pobreza. Todos perguntam: como romper com essa perverso econmica e com a tragdia social que dela decorre para duas teras partes da humanidade?

impossvel nos isolarmos do mercado mundial, que nos viabiliza economicamente. Mas se impossvel o isolamento, pelo menos suicida a postura dos que querem continuar regidos to rigidamente pelo mercado internacional, que torna inalcanvel uma prosperidade generalizvel a todos os brasileiros.

O desafio que enfrentamos , pois, o de conquistar uma nova forma de intercmbio internacional, (que no seja to onerosa para ns. Isto importa em reordenar as foras produtivas para que elas atendam primacialmente s necessidades nacionais de prover nutrio, assistncia, moradia, educao a toda a populao, e necessidade, tambm imperativa, de produzir divisas para atuarmos dentro do mercado mundial, comprando tecnologias.

Queremos, do capitalismo, o que ele deu Amrica do Norte ou Austrlia, por exemplo, como economias situadas no mercado mas sabendo tirar dele proveitos prprios. Nenhuma outra nao conseguiu tanto quanto eles e, provavelmente, s o Brasil tem condies de repetir a faanha, graas nossa disponibilidade de recursos naturais, de terras agriculturveis e de mo-de-obra qualificada

obra qualificada. A tarefa deles foi bem mais simples que a nossa, porque so meros transplantes sensabores (1.1 Europa, que limparam o seu territrio dos nativos e reconstituram a paisagem de onde vieram. No nosso caso, trata-se ele criar um Povo Novo pela fuso de matrizes muito diferenciadas, que dar lugar a tini novo gnero de sociedade.

Nossas potencialidades vm sendo coactadas, de um lado, pela armadilha em que camos ao aceitar formas de intercmbio internacional que nos empobrecem. Isso era inevitvel, porque partimos da condio de um proletariado externo, cuja mo-de-obra no existia para si mas para produzir gneros exportveis, Nossas classes dominantes s sabiam mesmo fazer isso, porque eram, de fato, representantes locais cio mercado internacional. De outro lado, vem sendo coactadas pelo monoplio da terra e sua conseqncia principal, que foi urbanizao catica, devida ao translado de 100 milhes de brasileiros para a vida famlica das cidades. Essa massa humana, que a parte substancial de nosso povo, jamais ter acesso aos bens da civilizao enquanto nossa economia estiver enquadrada nas diretrizes que as elites nos impem.

Causas e Culpas

Vivemos, ns brasileiros, uma conjuntura trgica. 0 prprio destino nacional est em causa e objeto de preocupao da cidadania mais lcida e responsvel. O aspecto mais grave e inquietante da crise que atravessamos de natureza poltica. Frente a ela, as diretrizes econmicas, postas em prtica por sucessivos governos, se caracterizam por uma incrvel teimosia na manuteno de uma institucionalidade fundiria que condena o povo ao desemprego e fome, pela mais crua insensibilidade social, por um servilismo vexatrio diante de interesses alheios e pela mais irresponsvel predisposio a alienar as principais peas constitutivas do patrimnio nacional.

Dizem, tambm, que nosso territrio pobre - uma balela. Repetem, incansveis, que nossa sociedade tradicional era muito atrasada - outra balela. Produzimos, no perodo colonial, muito mais riqueza de exportao que a Amrica do Norte e edificamos cidades majestosas corno o Rio, a Bahia, Recife, Olinda, Ouro Preto, que eles jamais conheceram.

Outra caracterstica sua animosidade frente ao Estado, visto como a fonte de todos os males. Ser assim? Onde, nesse mundo, uma economia nacional floresceu sem um Estado que a conduzisse a metas prescritas? Onde esto esses empreendedores privados cuja sanha de lucrar promoveria o progresso nacional? Crero esses fanticos do neoliberalismo que o estado gerencial das multinacionais - que so entre ns o setor predominante das classes empresariais -se comove pelo destino nacional?

O que cumpre fazer em nosso Pas no nenhuma modernizao reflexa, dessas que atualizam um sistema produtivo apenas para faz-lo mais eficaz no papel de provedor ele bens para o mercado mundial. , isto sim, um salto evolutivo condio de economia autnoma que exista e viva para si mesma, isto , para seu povo. Para tanto, temos que nos associar aos outros povos explorados, para denunciar e por um termo ordem econmica vigente que faz os povos pobres custearem a prosperidade dos povos ricos atravs de um intercmbio internacional gritantemente desigual.

Sobre essas bases que se tem, necessariamente, de formular nosso projeto prprio de integrao do Brasil na civilizao ps-industrial, sempre atentos aos interesses nacionais, priorizando sempre o desenvolvimento social, ou seja, os interesses populares. A via da modernizao reflexa pelo desenvolvimento dependente s nos faria fracassar na civilizao emergente, tal como fracassamos ao tios integrarmos, por este mesmo caminho, civilizao industrial.

S ns brasileiros, podemos definir esse projeto do Brasil que que ser. No ser, obviamente, o Brasil desejado pela minoria prspera que esta contentssima com o Brasil tal qual , e que s quer mais do que j tem. Mas o Brasil dos explorados e oprimidos que o modelo econmico vigente j levou a nveis incomprimveis de misria e desespero.

Somos Todos Culpados

Nunca faltaram vozes de denncia desse carter cruel de nossa sociedade. Inclusive vozes de reconhecimento de que nossa elite que ternos de debitar o desempenho medocre do Brasil na civilizao vigente. Cabe, agora, nossa gerao perguntar que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifcio e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, no tem culpa neste Pas dos analfabetos? Quem, rico, est isento de responsabilidades neste Pas da misria? Quem, saciado e farto, inocente neste nosso Pas da fome? Somos todos culpados.

Nossos maiores, primeiro, ns prprios, depois, urdimos a teia inconstil que a rede em que nosso povo cresce constrangido e deformado. A caracterstica mais ntida da sociedade brasileira a desigualdade social que se expressa no altssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distncia que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferena dos poderosos e de pavor dos oprimidos.

Nada do que interessa vitalmente ao povo preocupa de fato elite brasileira. A quantidade e a qualidade da alimentao popular no podia ser mais escassa, nem pior. A qualidade de nossas escolas, a que o povo tem acesso, to ruim, que elas produzem de fato mais analfabetos que alfabetizados.

Os servios de sade de que a populao dispe so to precrios que epidemias e doenas j vencidas no passado voltam a grassar, como ocorre com a tuberculose, a lepra, a malria e inumerveis outras.

A soluo brasileira para a moradia popular, na realidade das coisas, a favela ou o mocambo. No conseguimos multiplicar nem mesmo essas precarssimas casinhas de maribondo dos bancos da habitao e das caixas econmicas.

Nossa elite, bem nutrida, olha e dorme tranqila. No com ela. Desafortunadamente, no s a elite que revela essa indiferena fria ou disfarada. Ela se espraia por toda a opinio pblica, como hedionda herana comum de sculos de escravismo, enormemente agravada pela perpetuao da mesma postura ao longo de toda a repblica.

A triste verdade que vivemos em estado de calamidade, indiferentes a ele porque a fome, o desemprego e a enfermidade no atingem os grupos privilegiados. O seqestro de um rapaz rico mobiliza mais os meios de comunicao e o Parlamento do que o assassinato de mil crianas, o saqueio da Amaznia, ou o suicdio dos ndios. E ningum se escandaliza, nem sequer se comove com esses dramas.

A imprensa s protesta mornamente e o faz quando ecoa o que se divulga l fora. Parece haver-se rompido o prprio nervo tico da nossa imprensa, que nos deu, no passado, tantos jornalistas cheios de indignao em campanhas imemorveis de denncia de toda sorte de iniqidade. Hoje, quem determina o que se divulga, e com que calor se divulga qualquer coisa, no so os jornalistas, o caixa, a gerncia dos rgos de comunicao. E esta s est atenta as razes do lucro.

O que foi feito para pr cobro a essa situao de calamidade? Na realidade dos fatos, nada foi feito. As vozes e o poderio dos que defendem os interesses do privatismo e as razes do lucro sobrepujam o clamor pelo atendimento das necessidades mais elementares do povo brasileiro. Nada mais espantoso em nossos dias do que o fato de que quase ningum se rebele contra o horror da paisagem humana do Brasil. Estamos matando, martirizando, sangrando, degradando, destruindo nosso povo! O conjunto das instituies pblicas e das empresas privadas dessa nossa ingrata Ptria brasileira cios anos 90, o que faz, efetiva e eficazmente, gastar o nico bem que resultou de nossos sculos desta triste histria: o povo brasileiro.

Somos, hoje, uma parcela pondervel da humanidade. Somamos mais de cento e sessenta milhes de brasileiros. Seramos uma latinidade nova e lou se alcanssemos coisas to elementares como todo brasileiro comer todo dia, toda pessoa ter acesso a um emprego e toda criana progredir na escola. Mas no h nada disso. Nem h qualquer perspectiva de que isso se alcance em tempos previsveis, pelos caminhos que vimos trilhando.

O lamentvel que temos tudo de que se necessita para que floresa no Brasil uma civilizao bela e solidria. Herdamos uma das provncias maiores, mais belas e ricas do planeta. Somos um povo movido por uma incansvel vontade de viver e de trabalhar, ativado pelo desejo mais intenso de felicidade, animado por uma alegria inverossmil para quem enfrenta tanta misria. Contamos, ainda, com um corpo de empresrios e de tcnicos motivados e qualificados para a empresa de auto-superao que o Brasil tem que realizar.

Seremos impotentes para realizar as potencialidades de nossa terra e de nosso povo? mesmo inevitvel que continuemos enriquecendo os ricos e empobrecendo os pobres? Existe, por a, algum projeto nacional alternativo, j formulado, que nos d garantia de redeno?

Reiterar na rota poltica e no modelo de ao econmica que praticamos s nos d segurana de perpetuao do atraso e at mesmo de genocdio, ou seja, de matana intencional do povo brasileiro, que o que est em curso.

A ordem econmica vigente nada mais terna dar ao Brasil, seno misria e mais misria. O modelo de capitalismo que se viabilizou entre ns - alis muito lucrativo - impotente para criar uma prosperidade generalizvel a todos os brasileiros.

Genocdio - estamos matando nosso povo

A situao Brasil to grave que s se pode caracterizar a poltica econmica vigente como genocida. Esto matando nosso povo. Esto minando, carunchando a vida de milhes de brasileiros. Desnutrida, desfibrada , nossa gente acabar se tornando mentalmente deficiente para compreender seu prprio drama e fisicamente incapacitada para o trabalho no esforo de superao do atraso.

Vivemos um processo genocida. O digo com dor, mas com o senso de responsabilidade de um brasileiro sensvel, ao drama de nosso povo. O digo, tambm, como antroplogo habituado a examinar os dramas humanos.

Vivemos, com efeito, um processo genocida que faz vtimas preferenciais entre as crianas, os velhos e as mulheres; entre os negros, os ndios e os caboclos.

Quantas crianas brasileiras morrem anualmente de fome, de inanio ou vitimadas por enfermidades baratas, facilmente curveis? Estatsticas estrangeiras, cautelosas, falam de meio milho. Estatsticas nacionais, menos cautas, contam mais ele oitocentas mil. Quantas sero essas crianas que poderiam viver, e morreram? Cada uma delas nasceu de uma mulher, foi amada, acariciada numa famlia, deu lugar a sonhos e planos, nos dias, nas horas, nas semanas, nos meses, nos breves anos de sua vida parca. Seguindo a tradio, muita me chorou resignada, achando que melhor fora que Deus levasse sua cria do que a deixar aqui nesse vale de lgrimas.

Sobre este drama to brasileiro, se ala outro ainda maior. Impensvel h uns poucos anos. Indizvel. Refiro-me ao assassinato de crianas por aparatos parapoliciais. Uma vez, quando chegava do exlio, vendo a misria que se estendeu sobre o Pas, multiplicando trombadinhas, previ, horrorizado, que acabaramos por ter uma guerra das Foras Armadas contra os pivetes.

Essa guerra atroz est em curso. No ainda uma operao militar das Foras Armadas. Mas j uma guerra cruenta contra a infncia e a juventude pobres, travada por organizaes paramilitares clandestinas. Consentidas pelo Governo. Ignoradas pela Justia. Apoiadas por pequenos empresrios assustados e por pessoas que se sentem inseguras, essas organizaes crescem, aliciando combatentes, vale dizer, criminosos, para a triste tarefa de estancar a vida de milhares de crianas e jovens vistos como perigosos.

Quantos jovens estamos matando a tiros cada ano? Ignoramos! Os nmeros internacionalmente difundidos e que nossa imprensa repete falam de um pouco mais de quinhentos nas principais cidades. Mas todos sabemos que seu nmero muitssimo maior.

Outras vtimas desse genocdio so as mulheres brasileiras, mortas em abortos malconduzidos. Tambm no sabemos contar os nmeros espantosos dessas brasileiras, morrendo ou se inutilizando no esforo de no ter mais filhos. Quem assume a culpa de suas mortes e do sofrimento de tantssimas delas que, malcuidadas, levam, vida afora, suas genitlias rotas e estropiadas? No h aqui um feio crime de conivncia de quantos condenam o aborto clandestinidade?

Pior ainda que esse genocdio, mil vezes pior para o destino de nosso povo, o caso daquelas mulheres, milhes delas, induzidas a esterilizar-se em programas sinistros de conteno da natalidade. Est em curso, em nossa Ptria, todo um enorme e ricamente financiado programa internacional clandestino de controle familiar pela esterilizao das mulheres pobres, sobretudo das pretas e mestias. Seu xito tamanho que se avalia j, oficialmente, com nmeros do IBGE, em 44% as mulheres brasileiras em idade fecunda j esterilizadas. Castradas.

Esse nmero espantoso faz temer que j no sejamos capazes nem mesmo de repor a populao que temos. Acaso a populao brasileira excede aos recursos de nosso territrio? No! Decisivamente no. Nosso territrio frtil maior que o dos Estados Unidos e a populao deles o dobro da nossa. Temos, portanto, ainda possibilidade de aumentar a nossa participao no gnero humano. O que excede no Brasil a populao marginalizada e excluda pela fora de trabalho pelo desemprego generalizado, provocado pelo sistema econmico vigente, fundado na precedncia do lucro sobre a necessidade.

Mas h quem saiba muito bem quantos brasileiros, a seu juzo, devem existir no ano 2050. No s sabe, como atua para que esse medonho nmero desejvel deles se cumpra sobre ns. Organizaes estrangeiras e internacionais, atuando criminosamente em nosso Pas, j esterilizaram mais de sete milhes de brasileiras.

Fazem-no atravs de mdicos subornados que induzem suas clientes a permitir que lhes seccionem as trompas no curso de partos, realizados atravs de cesarianas. O Brasil, para escndalo mundial e vergonha nossa, o Pas em que mais se realizam esses partos cirrgicos. , tambm, aquele em que mais vezes se utiliza desse procedimento para esterilizar mulheres.

So nacionais os tristes dinheiros desse suborno? Quem aprovou, neste Pas, tal poltica demogrfica? Que instituio suficientemente autorizada e responsvel decidiu quantos brasileiros existiro no futuro? Algum, clandestinamente, decidiu e esta aliciando os capadores de mulheres Brasil adentro.

Quem ponderou sobre os convenientes ou os inconvenientes de deixarmos de ser uma populao majoritariamente juvenil, para sermos uma populao majoritariamente senil? O que se est fazendo ao esterilizar to grande parcela de nossa populao feminina forar a optao por uma maioria de idosos.

Nosso povo preservar, depois dessa drstica cirurgia, a vitalidade indispensvel para sair do atraso ou estar condenado a afundar cada vez mais no subdesenvolvimento? Quem est interessado em que o Brasil seja capado e esterilizado? Sero brasileiros?

* Captulo do livro de Darcy Ribeiro, O Brasil como Problema, editado em 1995, no Rio de Janeiro.