Bras lia - A Utopia que Lucio Costa Inventou · ... utopia que Lucio Costa inventou ... simbolizado...

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Brasília: utopia que Lucio Costa inventou Anna Paula Canez Centro Universitário Ritter dos Reis Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Brasil Hugo Segawa Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Brasil O presente trabalho é um registro das manifestações de um sonhador que sonhou acordado. O recorte busca em escritos de Lucio Costa os vislumbres utópicos que alimentaram o sonho de uma cidade, e a costu- ra, engendrada pelos autores, é um pretexto para ressaltar as visões utópicas e a "chegada" do futuro, no discurso orgulhoso do criador de Brasília. Desde a defesa da sua concepção, mesmo não concretizada na plenitude pensada por Lucio Costa, até o reconhecimento de uma reali- dade muito além daquela idealizada - um amanhã que se construiu em 50 anos. A completude da proposta do Plano Piloto, corroborada na a- preciação do júri, revela um devaneio, um projeto de desbravamento da nação, simbolizado no “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse” . O lugar ganha sentido. Uma atitude de afirmação, de auto-afirmação, um projeto de nação. A defesa do criador acirrava-se na mesma proporção que as críticas sitiavam a nova capital. O autoritaris- mo militar implantado com o golpe de 1964 mudou os rumos de um de- vaneio político e social que se afigurava nos anos 1950. Brasília, cidade nascida na democracia, tornava-se a capital da ditadura por imposição, por metonímia. Lucio Costa “exilou-se” de Brasília, isto é, manteve-se afastado da cidade por boa parte do período de ditadura militar. Com a gradual redemocratização, Lucio Costa reatou com seu sonho. Em uma entrevista em 1984, em plena Plataforma Rodoviária, o urbanista con- fessou que a Brasília, cidade inventada, não era mais um devaneio. O sonho não mais era dele: “A cidade, que primeiro viveu dentro da minha cabeça, se soltou, já não me pertence, – pertence ao Brasil.” Palavras-chave : Lucio Costa, Brasília, utopia, cidade inventada

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Brasília: utopia que Lucio Costa inventou

Anna Paula Canez Centro Universitário Ritter dos Reis

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Brasil

Hugo Segawa

Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Brasil

O presente trabalho é um registro das manifestações de um sonhador que sonhou acordado. O recorte busca em escritos de Lucio Costa os vislumbres utópicos que alimentaram o sonho de uma cidade, e a costu-ra, engendrada pelos autores, é um pretexto para ressaltar as visões utópicas e a "chegada" do futuro, no discurso orgulhoso do criador de Brasília. Desde a defesa da sua concepção, mesmo não concretizada na plenitude pensada por Lucio Costa, até o reconhecimento de uma reali-dade muito além daquela idealizada - um amanhã que se construiu em 50 anos. A completude da proposta do Plano Piloto, corroborada na a-preciação do júri, revela um devaneio, um projeto de desbravamento da nação, simbolizado no “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse”. O lugar ganha sentido. Uma atitude de afirmação, de auto-afirmação, um projeto de nação. A defesa do criador acirrava-se na mesma proporção que as críticas sitiavam a nova capital. O autoritaris-mo militar implantado com o golpe de 1964 mudou os rumos de um de-vaneio político e social que se afigurava nos anos 1950. Brasília, cidade nascida na democracia, tornava-se a capital da ditadura por imposição, por metonímia. Lucio Costa “exilou-se” de Brasília, isto é, manteve-se afastado da cidade por boa parte do período de ditadura militar. Com a gradual redemocratização, Lucio Costa reatou com seu sonho. Em uma entrevista em 1984, em plena Plataforma Rodoviária, o urbanista con-fessou que a Brasília, cidade inventada, não era mais um devaneio. O sonho não mais era dele: “A cidade, que primeiro viveu dentro da minha cabeça, se soltou, já não me pertence, – pertence ao Brasil.”

Palavras-chave : Lucio Costa, Brasília, utopia, cidade inventada

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Foto: Hugo Segawa

Brasília: utopia que Lucio Costa inventou

Qualquer arquiteto pode sonhar uma cidade. Mas quantos sonharam ci-dades e as viram construídas? Lucio Costa (1902-1998) foi um daqueles poucos privilegiados que, em vida, sonhou, desenhou, construiu e viu florescer “sua” cidade. “Sua” é um modo de dizer. Não obstante a per-cepção do próprio urbanista sobre o simbolismo maior e coletivo da nova capital, sua famosa frase, “Brasília, cidade que inventei”, evidencia sua pessoal ascendência sobre o sonho materializado.

O presente ensaio é, antes de mais nada, o registro sucinto das mani-festações de um sonhador que sonhou acordado.

É sabido como o urbanista inscreveu a proposta no concurso: entregue na última hora, com “apresentação sumária”, representação gráfica sin-gela e a mais poética das argumentações. Poesia que não perturbou a apreciação do júri, que anotou na ata final:

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“Seus elementos podem ser prontamente apreendidos: o plano é claro, direto e fundamentalmente simples – como o de Pompéia, o de Nancy, o de Londres feito por Wren e o de Paris de Louis XV.”1

Fig. II: Plano Piloto de Brasília. Desenho apresentado no concurso. Fon-te: Lucio Costa: registro de uma vivência.

Brasil voltado para o futuro

Desculpando-se da “espontaneidade original” da sua proposição, a idéia que o urbanista oferecia, como ele próprio ressaltou, foi “ intensamente pensada e resolvida”. A completude da proposta, corroborada na apreci-ação do júri, revela um devaneio, um projeto de desbravamento da na-ção, simbolizado no “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele

1 APRECIAÇÃO do júri. In: RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília. Brasília: GDF, 1991, p. 35.

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toma posse”¸conforme escreveu na Memória descritiva do Plano Piloto em 1957:

“Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial.”2

Fig.III: Croquis da Memória Descritiva do Plano. Fonte: Lucio Costa: registro de uma vivência.

2 COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. p. 283.

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O lugar ganha sentido. Uma atitude de afirmação, de auto-afirmação, um projeto de nação, como Lucio Costa asseverou em 1967:

“Fruto embora de um ato deliberado de vontade e comando, Brasília não é um gesto gratuito de vaidade pessoal ou política, à moda da Renas-cença, mas o coroamento de um grande esforço coletivo em vista ao desenvolvimento nacional – siderurgia, petróleo, barragens, auto-estradas, indústria automobilística, construção naval; corresponde assim à chave de uma abóbada e, pela singularidade da sua concepção urba-nística e da sua expressão arquitetônica, testemunha a maturidade inte-lectual do povo que a concebeu, povo então empenhado na construção de um novo Brasil, voltado para o futuro e já senhor do seu destino.”3

Essa vontade de afirmação, de assenhorear o destino, Lucio Costa a transmitiu ao grupo de ilustres visitantes (entre eles, os críticos e histo-riadores Bruno Zevi, Giulio Carlo Argan, Meyer Schapiro, Alberto Sarto-ris, Gillo Dorfles, Tomás Madonado, e profissionais como Eero Saarinen, Richard Neutra, Jean Prouvé, Charlotte Perriand, entre outros) que par-ticipavam, do Congresso Internacional Extraordinário da Associação In-ternacional de Críticos de Arte em Brasília em 1959:

“Mas de uma coisa estou certo – e vossa presença aqui é testemunho disto – com Brasília se comprova o que vem ocorrendo em vários seto-res das nossas atividades: já não exportamos apenas café, açúcar, ca-cau – damos também um pouco de comer à cultura universal.”4

Utopia da cidade contemporânea: lúcida e sensível

A apreciação do júri do concurso do Plano Piloto destacou a propósito do vencedor:

“Tem o espírito do século XX: é novo; é livre e aberto; é disciplinado sem ser rígido”.5

Dirigindo-se aos críticos de arte reunidos no Brasil em 1959, Lucio Cos-ta ressaltava as virtudes de sua capital:

“Várias coisas me agradam nesta cidade que, em dois anos apenas, se impôs no coração do Brasil: a singeleza da concepção e o seu caráter diferente, a um tempo rodoviário e urbano, a sua escala, digna do país e da nossa ambição, e o modo como essa escala monumental se entrosa na escala humana das quadras residenciais sem quebra da unidade do conjunto, e me comove particularmente o partido adotado de localizar a sede dos três poderes fundamentais não no centro do núcleo urbano

3 COSTA, op. cit., p. 301. 4 Ibid., p. 299. 5 APRECIAÇÃO do júri, loc. cit.

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mas na sua extremidade, sobre um terrapleno triangular como palma de mão que se abrisse além do braço estendido da esplanada onde se ali-nham os ministérios, porque assim sobrelevados e tratados com digni-dade e apuro arquitetônicos, em contraste com a natureza agreste cir-cunvizinha, eles se oferecem simbolicamente ao povo: votai que o poder é vosso. A dignidade de intenção que lhe presidiu o traçado, e tão fundo tocou a André Malraux, é palpável, está ao alcance de todos. A Praça dos Três Poderes é o Versalhes do povo.”6

O júri assinalou em sua apreciação que a proposição de Lucio Costa era “o único plano para uma capital administrativa do Brasil”. Todavia, des-de sua concepção, conforme os termos do Relatório do concurso, o ur-banista vislumbrava algo mais do que satisfazer sua finalidade precípua:

“Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação in-telectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do pa-ís.”7

A distopia pós-inauguração e a utopia da superação dos arcaismos

O autoritarismo militar implantado com o golpe de 1964 mudou os rumos de um devaneio político e social que se afigurava nos anos 1950. Brasí-lia, cidade nascida na democracia, tornava-se a capital da ditadura por imposição, por metonímia. A angústia desses tempos difíceis angustiou seu criador, que a defendia em seus princípios, em 1967:

“Contudo, apesar desses problemas de ordem política, econômica e so-cial – aos quais se vieram a juntar agora outros de natureza institucional –, a verdade é que Brasília existe onde há poucos anos só havia deserto e solidão; a verdade é que a cidade já é acessível dos pontos extremos do país; a verdade é que a vida brota e a atividade se articula ao longo dessas novas vias; a verdade é que seus habitantes se adaptam ao esti-lo novo de vida que ela enseja, e que as crianças são felizes, lembrança que lhes marcará a vida para sempre; a verdade é que mesmo aqueles que vivem em condições anormais na periferia sentem-se ali melhor que dantes; a verdade é que a sua arquitetura, despojada e algo abstrata, se insere com naturalidade no dia-a-dia da vida privada e administrativa, o que confere à cidade um caráter irreal e sui-generis que é o seu atrati-vo e o seu encanto; a verdade, finalmente, é que Brasília é verdadeira-mente capital e não cidade de província uma vez que por sua escala e

6 COSTA, op. cit., pp. 298-299. 7 COSTA, op. cit., p. 283.

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intenção ela já corresponde, apesar de todas as suas deficiências atu-ais, à grandeza e aos destinos do país.”8

A defesa do criador acirrava-se na mesma proporção que as críticas si-tiavam a nova capital. Sempre no diapasão de um projeto de Brasil, Lu-cio Costa argumentava em 1974:

“Digam o que quiserem, Brasília é um milagre. Quando lá fui pela primei-ra vez, aquilo tudo era deserto a perder de vista. Havia apenas uma tri-lha vermelha e reta descendo do alto do cruzeiro até o Alvorada, que começava a aflorar das fundações, perdido na distância. Apenas o cer-rado, o céu imenso, e uma idéia saída da minha cabeça. O céu, continu-a, mas a idéia brotou do chão como por encanto e a cidade agora se espraia e adensa. E pensar que tudo aquilo, apesar da maquinaria em-pregada, foi feito com as mãos – infra-estrutura, gramados, vias, viadu-tos, edificações, tudo a mão. Mãos brancas, mãos pardas: mãos dessa massa sofrida – mas não ressentida que é o baldrame desta Nação.”9

Caindo na real: o contraponto às utopias

As críticas mais acerbas miravam para a condição social dos habitantes de Brasília. Já em 1967 o urbanista defendia:

“Mas é natural que Brasília tenha os seus problemas, que são em ver-dade as contradições e os problemas do próprio país ainda em vias de desenvolvimento não integrado, onde a tradição recente de uma econo-mia agrária escravagista e uma industrialização tardia não planejada deixaram a marca tenaz do pauperismo. A simples mudança da capital não poderia resolver estas contradições fundamentais, tanto mais que poderosos interesses adquiridos beneficiam-se desse status quo de ‘a-nomalia crônica’ que, na periferia da cidade, já readquiriu seus direi-tos.”10

Em um texto originalmente em francês, não datado (posterior a 1968), Lucio Costa desenvolveu outros argumentos em defesa de sua cidade:

“Em seguida, começaram a ‘snobar’ a cidade, acusada de ser uma opor-tunidade perdida porque – entre outras falhas – a população pobre esta-va mal alojada. Como se por uma simples transferência de capital o ur-banismo pudesse resolver os vícios de uma realidade econômico-social secular. Como se o Brasil não fosse o Brasil, mas a Suécia, ou outro país qualquer devidamente civilizado. Ora, aqui, até os últimos anos do século XIX, a população obreira era constituída de escravos. Cada famí-lia pequeno-burguesa tinha em casa dois ou três escravos, de modo que

8 Ibid., pp. 301-302. 9 COSTA, op. cit., p. 323. 10 Ibid., p. 301.

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depois da abolição, o comportamento escravagista permaneceu. Por um lado, o operário aceitava como natural sua condição de inferioridade –aqui, a atitude reivindicatória do proletariado é coisa recente – e, por outro lado, os burgueses, apesar da familiaridade no trato com os em-pregados, sempre os mantinham à distância, como anteriormente nas senzalas. Isto explica porque não foi considerada minha proposição ini-cial de prever, ao longo de todo o eixo rodoviário-residencial, moradia para três níveis diferentes de poder aquisitivo – o que,entretanto, não teria resolvido o problema, já que grande parte da população trabalhado-ra é ainda menos que pobre. A mão-de-obra afluiu de toda parte, de mo-do que em torno de cada canteiro surgiram favelas, e foi necessário transferi-las para outros lugares, à medida que o ritmo das construções diminuía.”11

Não é uma flor de estufa

Lucio Costa “exilou-se” de Brasília, isto é, manteve-se afastado da cida-de por boa parte do período de ditadura militar. Com a gradual redemo-cratização, e a convite do governador José Aparecido, o urbanista apre-sentou em 1987 um relatório de avaliação da situação da capital. Escre-veu:

“Vendo Brasília atualmente, o que surpreende, mais que as alterações, é exatamente a semelhança entre o que existe e a concepção original”.12

E reafirma o futuro a vocação da cidade, permeada na História:

“Não menos evidente é o fato de que – por todas as razões – a capital é histórica de nascença, o que não apenas justifica,mas exige que se pre-serve, para as gerações futuras, as características fundamentais que a singularizaram.

É exatamente na concomitância destas duas contingências que reside a peculiaridade do momento crucial que Brasília hoje atravessa: de um lado, como crescer assegurando a permanência do testemunho da pro-posta original; de outro, como preservá-la sem cortar o impulso vital ine-rente a uma cidade tão jovem.”13

É com o retorno do criador à capital, a partir de 1984, que a sua defesa da cidade se torna mais intransigente, sobretudo com o reconhecimento de Brasília como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, em 1988:

11 Ibid., p. 315. 12 COSTA, Lucio. Brasília revisitada 1985/1987. Complementação, preservação, adensamento e

expansão urbana. [Rio de Janeiro]: [s.n.], [1987], p. 1. 13 Ibid., loc. cit.

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“Brasília merece respeito. É preciso acabar com esse jogo de “gosto-não-gosto”, e com essa balda intelectual de fazer frases pejorativas. O que é preciso agora é compreendê-la. Trata-se de uma cidade não con-cluída e, como tal, necessitada de muita coisa. O que espanta não é o que lhe falta, mas o que já tem. [...]

O que ocorre em Brasília e fere nossa sensibilidade é essa coisa sem remédio, porque é o próprio Brasil. é a coexistência, lado a lado, da ar-quitetura e da anti-arquitetura, que se alastra; da inteligência e da anti-inteligência, que não para; é o apuro parede-meia com a vulgaridade, o desenvolvimento atolado no subdesenvolvimento; são as facilidades e o relativo bem estar de uma parte, e as dificuldades e o crônico mal estar da parte maior. Se em Brasília este contraste avulta é porque o primeiro élan visou além – algo maior. [...]

Brasília é, portanto, uma síntese do Brasil com seus aspectos positivos e negativos, mas é também testemunho de nossa força viva latente. Do ponto de vista do tesoureiro, do ministro da Fazenda, a construção da cidade pode ter sido mesmo insensatez, mas do ponto de vista do esta-dista, foi um gesto de lúcida coragem e confiança no Brasil definitivo. E a autonomia e não vassalagem de seu urbanismo e de sua arquitetura, como mundialmente reconheceu a UNESCO ao transformar tão jovem cidade em Patrimônio da Humanidade, é a prova de que trilhamos o ca-minho certo.”14

Lucio Costa reatou com seu sonho. Em uma entrevista em 1984, em plena Plataforma Rodoviária, o urbanista confessou:

“Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreen-deram foi a Rodoviária, à noitinha. Eu sempre repeti que essa Platafor-ma Rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as ci-dades-satélites improvisadas da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa população que mora fora entra em contato com a cidade. En-tão eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasili-enses, essa massa que vive nos arredores e converge para a Rodoviá-ria. Ali é a casa deles, é o lugar onde se sentem à vontade. Eles prote-lam, até, a volta e ficam ali, bebericando. Eu fiquei surpreendido com a boa disposição daquelas caras saudáveis. E o “centro de compras”, en-tão, fica funcionando até meia noite... Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requinta-da, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitima-mente. É o Brasil... E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser,

14 COSTA, op. cit., 1995, p. 323.

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Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais. Na verdade, o sonho foi menor que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído.”15

Fig. IV: Brasília, 2007. Foto: Marcos Almeida

Brasília, cidade inventada por Lucio Costa, não era mais um devaneio. O sonho não mais era dele:

“A cidade, que primeiro viveu dentro da minha cabeça, se soltou, já não me pertence, – pertence ao Brasil.”16

15 Ibid., p. 311. 16 Ibid., p. 331.

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Bibliografia:

APRECIAÇÃO do júri. In: RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília. Brasí-lia: GDF, 1991.

COSTA, Lucio. “Considerações fundamentais” (1988). In: _____. Regis-tro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, pp. 323-324.

COSTA, Lucio. “Fiquem onde estão”. In: _____. Registro de uma vivên-cia. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p.315.

COSTA, Lucio. “Memória descritiva do Plano Piloto” (1957). In: _____. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, pp. 283-297.

COSTA, Lucio. “O urbanista defende a sua cidade” (1967). In: _____. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, pp. 301-303.

COSTA, Lucio. “Saudação aos críticos de arte” (1959). In: _____. Regis-tro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, pp. 298-299.

COSTA, Lucio. Brasília revisitada 1985/1987. Complementação, preser-vação, adensamento e expansão urbana. [Rio de Janeiro]: [s.n.], [1987].