Branco, Preto; Branco, Preto

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- 1 de 4 - Branco, Preto, Branco, Preto As aventuras de um Avô antes de o ser Em dois S e meio, a roda levanta-se e os três estatelam-se no Largo do Carmo. De barriga para o ar, João não consegue tirar o sorriso da cara. E assim fica, só mais um pouco. -§- Lá fora, não tão longe assim, o fedor da guerra sente-se. Em 1938 completa 19 anos. Eugénia, a mais velha dos cinco irmãos, acolhe-o quando ficaram órfãos. Na oficina do cunhado em Faro, começa como carpinteiro nas carroçarias das camionetas, então de madeira. Mas o desejo de estar de chave-inglesa em punho, de volta de um carburador sujo e engordurado, prevalece. Exerce nele um fascínio que não consegue explicar. Nem tenta; chega-lhe a genuinidade

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Exercício de escrita sobre uma história de família em redor de um personagem, sobre a forma de crónica.

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Branco, Preto,

Branco, Preto

As aventuras

de um Avô antes de o ser

Em dois S e meio, a roda levanta-se e os três estatelam-se no

Largo do Carmo. De barriga para o ar, João não consegue

tirar o sorriso da cara. E assim fica, só mais um pouco.

-§-

Lá fora, não tão longe assim, o fedor da guerra sente-se. Em

1938 completa 19 anos. Eugénia, a mais velha dos cinco

irmãos, acolhe-o quando ficaram órfãos. Na oficina do

cunhado em Faro, começa como carpinteiro nas carroçarias

das camionetas, então de madeira. Mas o desejo de estar de

chave-inglesa em punho, de volta de um carburador sujo e

engordurado, prevalece. Exerce nele um fascínio que não

consegue explicar. Nem tenta; chega-lhe a genuinidade

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daquele Dodge, castanho avermelhado, por fora e por dentro,

na ferrugem das entranhas.

O princípio daquele dia inunda-se no cheiro da borracha

quente dos pneus. Quase que se mastiga, como numa refeição

que se come apenas porque se tem fome. Mas não para João.

Não trocaria um dia na oficina por nada.

Tem a cabeça mergulhada debaixo do capot. Com a curta

perna no ar consegue a custo equilibrar-se; tenta chegar àque-

la porca, a que soltará o motor. Move-se na curiosidade de

saber como o pistão, trabalhador incansável nos bastidores, se

desenvencilha a arrastar toneladas. Também o move o caldu-

ço encorajador no alto da cabeça aplicado pelo chefe-

mecânico.

Ao som de dois estoiros e um troar profundo, a cara morena

ilumina-se nos olhos verdes, sublinhados a óleo como numa

pintura de artista. Com o entusiasmo em emergir do camião,

ainda esfrega a cabeça dorida, mas já olha a rua. No brilho do

Sol entrevê uma forma reluzente, difusa, pequena.

- “…” – Um silêncio é tudo quanto o queixo caído lhe permite

dizer.

Precipita-se para ela, largando a ferramenta que ainda há

pouco lutava para conseguir. Nela tudo é espampanante,

aventura, exotismo. Duas rodas encimadas por uma bolacha

redonda cromada que aponta o caminho. A multidão de crian-

ças atropela-se para chegar mais perto. Ver sequer uma moto

é uma raridade, um evento.

João conquista o privilégio inestimável de estar sentado no

negro banco de cabedal. Hesita entre o ímpeto de a conduzir e

permitir-se absorver o momento, a novidade. Atenta em tudo

à sua frente: o depósito rubro pintado à mão; o velocímetro

cheio de promessas aceleradas; o espelho cromado que lhe

devolve o olhar extasiado. Mas a verdadeira maravilha está

mais à frente, na estrada aberta.

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Com uma série de pontapés vigorosos o motor da Harley

balbucia. Impreciso, trapalhão, recorda o bêbado corrido pelo

estalajadeiro no fecho do bar. Queria arrancar sozinho, mas é

tarde demais: em cima da moto são agora três, agarrados o

melhor que conseguem.

Acelera.

Os desenhos são de Ss por toda a rua. A guincharia da rapa-

ziada quase abafa o som do motor. Talvez por isso acelera

mais. Talvez por isso o passeio do jardim na praça chega

demasiado depressa. Talvez por isso algo que devia rolar,

agora voa. Cada um é projectado para seu lado, semeados na

relva fofa.

Um breve minuto teve a audácia de se afirmar em vidas de

muitos anos. Esse instante, de cabeça erguida, grita: “Como

eu há muitos: Vivam-nos.”

Finda a guerra e o racionamento, João usa tudo o que apren-

deu como mecânico e num ápice está ao volante de um

camião. O apelo é forte, demasiado para resistir a uma vida

apontada em linhas brancas pulsantes, intermitentes sobre o

asfalto. Vive então todas as fotografias que hoje traz consigo.

Em cada uma: branco, preto; branco, preto.

-§-

João é o meu Avô. Conta-me esta história muitas vezes, tal-

vez para as não esquecer ou porque a velhice lhe prega parti-

das. Mas nunca são demais. E em cada uma espero, de ouvi-

dos bem abertos, a aventura seguinte. Desde novo que assim

viajo, sem carta nem moto: um pirralho sentado sobre a sua

barriga, com ele deitado no chão.

Dele recebi muitos legados: o da honestidade, do valor do

trabalho, do sentido da honra. Mas é o mesmo pulsar da

estrada que mais sinto em mim, transmitido em sonhos.

João está a chegar ao fim da sua viagem. Mas para mim a

viagem continua e, em cada tira branca no asfalto, lembro-o.

Os olhos marejados, convenço-me, são do vento na cara.

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Exercício de escrita tendo por base uma história de família em volta de um personagem, sobre a forma de crónica. Curso de Escrita em Viagens – Nível II. Escrito por José Bragança Pinheiro a 16 de Maio de 2011