Bp legal 683-outubro2011

1
Outubro de 2011 8 Brasil Presbiteriano BP LEGAL emos na Palavra de Deus um amplo espa- ço dedicado à temática social. O cuidado e a pro- teção material dos menos favorecidos estão presen- tes nas Escrituras Sagradas desde os tempos de Moisés (Lv 19.9-10; 24.35-38), passando pelos profetas (Is 58.6-10), tendo como sumo exemplo a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo, enquanto encarnado (Mt 5.7; 6.1-4; 7.12) alcan- çando também os ensinos apostólicos (Rm 12.4-8, Gl 5.27-33; Tg 2.15-16; 1 Jo 3.17-18). Modernamente, em que pesem as incursões históri- cas de movimentos religio- sos como o do “Evangelho Social” e da “Teologia da Libertação”, seguidos por forte reação conservadora, o fato é que prevalece no seio de nossa igreja uma genuína e equilibrada visão sobre o valor das práticas de misericórdia, expressas e ampliadas na forma de educação, missões e bene- ficência. Neste último caso, veri- fica-se que, em meio às atividades eclesiásticas de várias igrejas locais, se encontram presentes diversos “projetos sociais”, mantidos sob a forma de creches, orfanatos, asilos ou centros de assistência social, os quais, embora justificados por uma visão acurada e sensível à Palavra de Deus, nem sempre são mantidos de forma juridi- camente adequada, dando ensejo a eventuais confli- tos com a regulamentação existente, comprometendo até mesmo a normalida- de da Igreja Local que se lança a tais empreendimen- tos. Portanto, cumpre obser- var alguns cuidados a quem desejar instituciona- lizar um desses projetos sociais. Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre as organizações religiosas (previstas no artigo 44, inc. IV, do Código Civil) e outras organizações que, não obstante sejam basea- das em princípios ou valo- res religiosos, não se desti- nam ao culto religioso, isto é, não são igrejas. Organização religiosa é o termo designado no Código Civil para entidades que têm a finalidade precípua da realização do culto reli- gioso e que se regem por princípios de ordem hierár- quica alicerçados em um credo ou confissão. Trata- se das igrejas, que são pro- tegidas pelo Decreto 119- A, de 07/01/1890, vigente até os dias de hoje, e que estabeleceu a separação entre Estado e Igreja após a Proclamação da República, consagrando a liberdade de culto. Se além do culto e das atividades espirituais cor- relatas, a organização reli- giosa também empreende a beneficência ou a assis- tência social, é conside- rada pela lei civil como uma entidade mista. Se o culto é atividade secundá- ria, cessa a caracterização como organização reli- giosa, sendo-lhe afastadas as prerrogativas inerentes à liberdade e à hierarquia religiosa, consagradas no sistema constitucional e civil pátrio. Tem-se, nesse caso, não uma igreja, mas provavelmente uma asso- ciação de orientação reli- giosa. É recomendável, portan- to, que os atos inerentes à igreja e os de cunho social, idealizados sob forma de creches, asilos ou orfana- tos, ainda que premidos por preceitos religiosos, se desenvolvam separa- damente, respectivamente sob a forma de organização religiosa e associação civil. As associações são pes- soas jurídicas constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos e que se regu- lam por um estatuto cria- do e mantido, não sob um princípio hierárquico, mas pela vontade de seus asso- ciados, dentro dos limites estabelecidos pelo Código Civil em seus artigos 53 a 61. É clara a diferen- ça quando se verifica que, enquanto na organização religiosa a ordenação de um pastor é feita por pres- bíteros (e não pelos seus membros), na associação, a nomeação de sua direto- ria é feita pela assembléia geral de seus associados. A alusão à confissão religiosa que se vincula a uma associação pode estar presente na declaração dos seus valores e princípios regedores, e até mesmo no nome da entidade, mas suas atividades serão aque- las estabelecidas pelos associados, excluindo-se as inerentes ao culto, típico das organizações religio- sas. No mais, para que uma associação que se dedique à assistência social seja considerada beneficente, e consequentemente possa obter prerrogativas como isenções de contribuições para a seguridade social a ela conferidas, faz-se necessária a certificação da entidade na forma estabele- cida pela Lei 12.201/2009, regulamentada pelo Decreto 7237/2010, dentre outras inúmeras obrigações estabelecidas no nível fede- ral, estadual e municipal. Portanto, se por um lado “é assegurado o livre exer- cício dos cultos religio- sos” (inciso VI do art. 5º da Constituição Federal), por outro, a assistência social é tida como “direi- to do cidadão e dever do Estado”, sendo constituída como política de seguri- dade social não contributi- va, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integra- do de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimen- to às necessidades básicas (art. 1º , Lei 8742/93). Assim, na temática social, aqueles que, com base nas escrituras e sen- sibilidade cristã, desejarem ir além do que nos é ins- tituído por meio do ofício diaconal, deverão preparar- se para enfrentar uma men- talidade estatal que avoca para si o papel de realiza- ção e regulamentação, sob seu crivo, das atividades de assistência social. A Questão Social e o Papel das Associações de Orientação Religiosa Ricardo Barbosa V O Dr. Ricardo de Abreu Barbosa, é advogado e presbítero da 1ª IP de São Bernardo do Campo, SP “Prevalece no seio de nossa igreja uma genuína e equili- brada visão sobre o valor das práticas de misericórdia, expressas e amplia- das na forma de educação, missões e beneficência.”

Transcript of Bp legal 683-outubro2011

Page 1: Bp legal 683-outubro2011

Outubro de 20118BrasilPresbiteriano

BP LEGAL

emos na Palavra de Deus um amplo espa-

ço dedicado à temática social. O cuidado e a pro-teção material dos menos favorecidos estão presen-tes nas Escrituras Sagradas desde os tempos de Moisés (Lv 19.9-10; 24.35-38), passando pelos profetas (Is 58.6-10), tendo como sumo exemplo a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo, enquanto encarnado (Mt 5.7; 6.1-4; 7.12) alcan-çando também os ensinos apostólicos (Rm 12.4-8, Gl 5.27-33; Tg 2.15-16; 1 Jo 3.17-18).

Modernamente, em que pesem as incursões históri-cas de movimentos religio-sos como o do “Evangelho Social” e da “Teologia da Libertação”, seguidos por forte reação conservadora, o fato é que prevalece no seio de nossa igreja uma genuína e equilibrada visão sobre o valor das práticas de misericórdia, expressas e ampliadas na forma de educação, missões e bene-ficência.

Neste último caso, veri-fica-se que, em meio às atividades eclesiásticas de várias igrejas locais, se encontram presentes diversos “projetos sociais”, mantidos sob a forma de creches, orfanatos, asilos ou centros de assistência social, os quais, embora

justificados por uma visão acurada e sensível à Palavra de Deus, nem sempre são mantidos de forma juridi-camente adequada, dando ensejo a eventuais confli-tos com a regulamentação existente, comprometendo até mesmo a normalida-de da Igreja Local que se lança a tais empreendimen-tos.

Portanto, cumpre obser-var alguns cuidados a quem desejar instituciona-lizar um desses projetos sociais.

Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre as organizações religiosas (previstas no artigo 44, inc. IV, do Código Civil) e outras organizações que, não obstante sejam basea-das em princípios ou valo-res religiosos, não se desti-nam ao culto religioso, isto é, não são igrejas.

Organização religiosa é o termo designado no Código Civil para entidades que têm a finalidade precípua da realização do culto reli-gioso e que se regem por princípios de ordem hierár-quica alicerçados em um credo ou confissão. Trata-se das igrejas, que são pro-tegidas pelo Decreto 119-A, de 07/01/1890, vigente até os dias de hoje, e que estabeleceu a separação entre Estado e Igreja após a Proclamação da República, consagrando a liberdade de culto.

Se além do culto e das atividades espirituais cor-relatas, a organização reli-giosa também empreende a beneficência ou a assis-tência social, é conside-rada pela lei civil como uma entidade mista. Se o culto é atividade secundá-ria, cessa a caracterização como organização reli-giosa, sendo-lhe afastadas

as prerrogativas inerentes à liberdade e à hierarquia religiosa, consagradas no sistema constitucional e civil pátrio. Tem-se, nesse caso, não uma igreja, mas provavelmente uma asso-ciação de orientação reli-giosa.

É recomendável, portan-to, que os atos inerentes à igreja e os de cunho social, idealizados sob forma de creches, asilos ou orfana-tos, ainda que premidos

por preceitos religiosos, se desenvolvam separa-damente, respectivamente sob a forma de organização religiosa e associação civil.

As associações são pes-soas jurídicas constituídas pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos e que se regu-lam por um estatuto cria-do e mantido, não sob um princípio hierárquico, mas pela vontade de seus asso-ciados, dentro dos limites estabelecidos pelo Código Civil em seus artigos 53 a 61. É clara a diferen-ça quando se verifica que, enquanto na organização religiosa a ordenação de um pastor é feita por pres-bíteros (e não pelos seus membros), na associação, a nomeação de sua direto-ria é feita pela assembléia geral de seus associados.

A alusão à confissão religiosa que se vincula a uma associação pode estar presente na declaração dos seus valores e princípios regedores, e até mesmo no nome da entidade, mas suas atividades serão aque-las estabelecidas pelos associados, excluindo-se as inerentes ao culto, típico das organizações religio-sas.

No mais, para que uma associação que se dedique à assistência social seja considerada beneficente, e consequentemente possa obter prerrogativas como

isenções de contribuições para a seguridade social a ela conferidas, faz-se necessária a certificação da entidade na forma estabele-cida pela Lei 12.201/2009, regulamentada pelo Decreto 7237/2010, dentre outras inúmeras obrigações estabelecidas no nível fede-ral, estadual e municipal.

Portanto, se por um lado “é assegurado o livre exer-cício dos cultos religio-sos” (inciso VI do art. 5º da Constituição Federal), por outro, a assistência social é tida como “direi-to do cidadão e dever do Estado”, sendo constituída como política de seguri-dade social não contributi-va, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integra-do de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimen-to às necessidades básicas (art. 1º , Lei 8742/93).

Assim, na temática social, aqueles que, com base nas escrituras e sen-sibilidade cristã, desejarem ir além do que nos é ins-tituído por meio do ofício diaconal, deverão preparar-se para enfrentar uma men-talidade estatal que avoca para si o papel de realiza-ção e regulamentação, sob seu crivo, das atividades de assistência social.

A Questão Social e o Papel das Associações de Orientação Religiosa

Ricardo Barbosa

V

O Dr. Ricardo de Abreu Barbosa, é advogado e presbítero da 1ª IP de

São Bernardo do Campo, SP

“Prevalece no seio de nossa igreja uma genuína e equili-brada visão sobre o valor das práticas de misericórdia, expressas e amplia-das na forma de educação, missões e beneficência.”