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  • BOSQUEJO DA HISTRIA DA POESIA E DA LNGUA PORTUGUESA*

    Cristiane Martos Pires Raquel Maria Ries Priscila Schwartz

    ADVERTNCIA

    Fui sempre muito pouco amigo de dar satisfaes. Porm esta minha repugnncia no filha de presuno, nem de orgulho. De todo o meu corao o digo, e todos os que me conhecem, o sabem. Nascem da persuaso, em que estou, de que a justificao de uma coisa est na maneira por que essa coisa se faz. E aplicando esta generalidade s composies literrias, cada vez me conveno mais que os prlogos, prefcios, avisos a leitores, etc. nada fazem, nem fizeram, nem faro nunca ao conceito que da obra se forma.

    E princpio foi este, porque na fachada do meu poema no pus tal cerimnia. Revendo-

    o, porm agora, examinando este ENSAIO, e conhecendo-lhe infindos defeitos, que me tinham escapado; sendo-me impossvel emend-los; resolvo-me a dar satisfao; no para pretender justific-los, e salvar-me da crtica com sutilezas, e argcias; mas para fazer confisso pblica deles.

    Se me lcito, porm dizer duas palavras em meu abono, direi que tanto o poema,

    como as notas, e ensaio so da minha infncia potica; so compostos na idade de dezessete anos. Isto no impostura: sobejas pessoas h, que me viram comear, e acabar ento. certo que desde esse tempo at agora, em que conto quase vinte e dois, por trs vezes o tenho corrigido; e at submetido a censura de pessoas doutas, e de conhecida filologia, como foi o Excelentssimo Senhor S. Luiz, que me honrou a mim e a este opsculo com suas correes. Mas todos estes cuidados no puderam (enquanto a mim) tirar-lhe o vcio do nascimento.

    Eis aqui a minha confisso geral. Os que me absolverem ficar-lhes-ei muito obrigado;

    os que no quiserem, pacincia; no me mato por isso. Comecei esta obrinha por desenfado: acabei-a por divertimento: publico-a por amor das artes: se me criticarem, rio-me, e no fico mal com ningum.

    * A pesquisa, a transcrio e a atualizao do presente texto integram as atividades do Grupo de Pesquisa em Estudos Lusfonos da UTFPR, realizadas com o apoio do CNPq. Acadmicas bolsistas de Iniciao Cientfica do Curso de Licenciatura em Letras da UTFPR Cmpus Pato Branco

  • A QUEM LER

    A minha primeira ideia quando intentei esta coleo, foi dar ao pblico um extrato das melhores poesias de nossos clssicos. Refleti depois que no seria ela completa, porque alguns gneros a que no trataram aqueles ilustres escritores: e em to rica literatura como a portuguesa, pena fora mostrar pouquidade e pobreza. Resolvi-me por esse motivo a sair dos limites clssicos. Mas ainda aparecia outra dificuldade: espcies h de poesia em que no escreveram seno autores vivos; aterrava-me a lembrana de haver de julgar e escolher obras que aguardam ainda o conceito da posteridade, quase sempre nico tribunal reto das coisas dos homens, especialmente de matria de gosto. Todavia o mesmo motivo de querer fazer esta escolha o mais completa que possvel, me determinou a arrostar essa outra escolha. Procurei nos escritores vivos cingir-me quanto racionavelmente pude a mais geral opinio, escolhendo aqueles trechos que mais aprovados tem sido; observando pela minha parte a mais rigorosa imparcialidade que humanamente se pode. E sendo, como sou, alheio a toda disputa e rivalidade literria e potica, se alguma hora no decurso desta obra julgarem deslizei dessa proposta impassibilidade, peo que o atribuam a erro de meu juzo, no a propsito deliberado

    Queria eu tambm ao princpio conservar a cada escritor sua particular ortografia; mas

    a isso obstaram dois insuperveis obstculos. Primeiro no haver, sobretudo nos clssicos, uma base boa ou m em que cada um deles fundasse a sua ortografia para se poderem regularizar as incalculveis anomalias que se encontram em uma mesma obra, na mesma pgina s vezes. Segundo que havendo sido muitas das obras de nossos poetas antigos e modernos publicadas pstumas, impossvel acertar com o verdadeiro sistema ortogrfico deles. Esta impossibilidade aumentou ainda e se estendeu aqueles que apesar de publicarem suas obras em vida, caram em mos de novos editores todos ignorantes ou descuidados (nenhum conheo, a quem fique mal o epteto) que em vez de as melhorarem, estragaram e confundiram tudo. Ora de alguns desses no foi possvel, por mais diligncias que se fizeram, descobrir as primeiras edies, as quais, segundo observei, ainda assim, no serviriam de muito.

    Muito tempo hesitei se daria lugar nesta coleo a um poeta (hoje morto) em quem de certo houve algum engenho, mas que ignorou e desprezou a tal ponto a lngua, to cinicamente violou o decoro do estilo, as mais indispensveis regras do gosto e da boa razo, que seus poemas so uma sentina de galicismos, e um apontoado de termos baixos, de expresses que no usa gente de bem, de construes brbaras, de versos prosaicos, semeados aqum alm de uma ideia feliz, de um bom verso, de uma imagem potica. J se v que esta descrio a ningum quadra seno ao Santos e Silva. Cedi tambm neste ponto opinio que o considera mais do que ele vale, e escolhi o que me pareceu menos brbaro da tal excntrica Brasiliada: e provvel que escolhesse mal, porque difcil julgar um homem bem quando est caindo com sono.

    Fui obrigado a por um grande pedao, porque em maior espao apareceria um maior nmero desses

    poucos descuidos felizes do autor.

  • Acresciam a estes dois motivos a feia aparncia que teria a obra que mais houvera ficado recosida manta de retalhos furta-cores, do que uma coleo de poetas da mesma lngua.

    Determinei, pois imprimir tudo com regular e geral ortografia; cujos princpios extrai

    do uso dos melhores clssicos, uso que nem sempre seguiram, mas que manifestamente se v quiseram seguir; e so estes:

    I. Conservar fielmente a etimologia quando se lhe no ope a pronncia.

    II. Combin-la com a pronncia quando esta se ope a inteira conservao daquela.

    III. Nas palavras de raiz incgnita seguir o uso geral.

    IV. Nas diversas modificaes dos verbos conservar sempre a figurativa quando a pronncia no obsta.

    V. No por acentos (agudo e circunflexo que so os nicos portugueses) seno onde a

    palavra sem eles se confundiria com outra. (Tambm me servi do agudo para marcar a direse por no estar ainda adotado entre ns o sinal (..) que bem necessrio).

    Julgo haver prestado algum servio literatura nacional em oferecer aos estudiosos de

    sua lngua e poesia um rpido bosquejo da histria de ambas. Quem sabe que tive de encetar matria nova, que portugus nenhum dela escreveu, e os dois estrangeiros Bouterweek e Sismondi incorretissimamente e de tal modo que mais confundem do que ajudam a conceber e ajuizar da histria literria de Portugal; avaliar decerto o grande e quase indizvel trabalho que me custou esse ensaio. No quero d-lo por cabal e perfeito; mas o primeiro, no podia s-lo. Alm de que, a maior parte das ideias vo apenas tocadas, porque no havia espao em obra de tais limites para lhe dar o necessrio desenvolvimento.

  • BOSQUEJO

    DA

    HISTRIA DA POESIA E LNGUA PORTUGUESA

    I

    Origem de nossa lngua e poesia

    A LNGUA e a poesia portuguesa (bem como as outras todas) nasceram gmeas, e se criaram ao mesmo tempo. Erro comum, e geral mesmo entre nacionais, pela maior parte pouco versados em nossas coisas, o pensar que a lngua portuguesa um dialeto da castelhana, ou espanhola segundo hoje inexatamente se diz.

    Das variadas combinaes das primitivas linguagens das Espanhas com o Grego, o

    Latim, com os brbaros idiomas dos invasores do norte, e ao fim com o Arbigo, nasceram em diversas partes da Pennsula diversssimas lnguas que nem dialetos se podem chamar geralmente, porque, alm de no haver uma comum, de muitos deles to distinta a ndole e to oposta que se lhes no colhe semelhana.

    Ningum ignora hoje que o Proenal foi a primeira que entre as lnguas modernas se

    cultivou, mas que por sua breve dura no chegou nunca perfeio. Das naes da Espanha, as mais vizinhas aquele crepsculo de civilizao primeiro melhoraram sua linguagem: mas tambm lhes coube igual sorte; nunca de todo se poliram. O Castelhano e o Portugus, que mais tarde se cultivaram, permaneceram pelo sabido motivo da conservao da independncia nacional, e vieram a completo estado de perfeio e carter cabal de lnguas cultas e civilizadas. O Biscanho, Catalo, Galego, Aragons, Castelhano, Portugus e outras mais foram e so ainda alguns distintos idiomas: porm s os dois ltimos tiveram literatura prpria e perfeita, linguagem comum e cientfica, tudo enfim quanto constitui e caracteriza (se licita a expresso) a independncia de uma lngua.

    Grande semelhana h entre o Portugus e Castelhano; nem podia ser menos quando

    suas capitais origens so as mesmas e comuns: porm to parecidas como so pelas razes de derivao; no modo, no sistema dessas mesmas derivaes, na combinao e amlgama de idnticas substncias e princpios se v todavia que diversos agentes entraram, e que muito variado foi o resultado que a cada uma proveio. Filhas dos mesmos pais, diversamente educadas, distintas feies, vrio gnio, porte e ademo tiveram: h contudo nas feies de ambas aquele ar de famlia que a prima vista se colhe.

    Este ar de famlia enganou os estrangeiros, que sem mais profundar, decidiram logo,

    que o Portugus no era lngua prpria. Esse achaque de decidir afoitamente de tudo velho,

  • sobretudo entre franceses, que so o povo do mundo entre o qual (por filucia de certo) menos conhecimento h das alheias coisas.

    Sem dvida que a lngua portuguesa comeou com seus trovadores, nicos no meio

    do estrepido das armas que algum tal qual cultivo lhe podiam dar; e provvel que assim fosse com pouco melhoramento at os tempos de El-rei D. Diniz, que no remanso da paz de seu reinado protegeu e animou as letras, que ele prprio cultivou tambm.

    II

    Primeira poca literria; fins do XIII at os princpios do XVI Sc.

    D. Joo I o eleito do povo, e o mais nacional de todos os nossos reis, deu ao idioma ptrio valente impulso, mandando usar dele em todos os atos e instrumentos pblicos, que at ento se faziam em Latim. Foi esta lei carta de alforria e de cidade para a lngua que at ali vivera escrava da dominao latina, a qual sobrevivera no s ao imprio romano, mas a tantas conquistas e reconquistas de to desvairados povos.

    Aqui se deve por a data da verdadeira aurora das letras em Portugal, que por singular

    fenmeno pouco visto entre outros povos, raiou ao mesmo tempo com a das cincias; por maneira que quando o romntico alade de nossas musas comeava a dar mais afinados sons, e a subir mais alto que o at ali conhecido, as cincias e as artes cresciam a ponto de espantar a Europa, mudar a face do mundo, e alterar o sistema do universo.

    Desde ento at a morte de El-rei D. Manuel, tudo foi crescer em Portugal; artes,

    cincias, comrcio, riqueza, virtudes, esprito nacional. Muitas foram as produes de nossa literatura naquele sculo de glria em que Gil Vicente abriu os fundamentos ao teatro das lnguas vivas, Bernardim Ribeiro poliu e adereou com alguns mimos da antiguidade o gnero inculto dos romances1 e seguiu (quase o segundo) o caminho encetado pelo nosso Vasco de Lobeira nas composies romanescas; e ao cabo mostrou aos rsticos pastores do Tejo alguns dos suaves modos da flauta de Sicilia que nenhuma lngua viva at ento ouvira soar.

    1 No no sentido de novelas, mas no que ento se lhe dava.

  • A natural suavidade do idioma portugus, a melancolia saudosa de seus nmeros nos levaram cultura deste gnero pastoril, em que raro poeta nosso deixou de escrever, quase todos bem, porque a lngua os ajudava; nenhum perfeitamente; porque (ainda mal) deram as cegas em imitar Sannazaro, depois Boscan e Garcilasso, e copiaram pouco do vivo da natureza, que to bela, to rica, to variada se lhes apresentava por todas as quatro partes de que em breve constou o mundo portugus, e das quais todas ou assunto ou lugar de cena tiraram nossos buclicos. Nem deste geral defeito2 (o Mximo que por ventura se lhes nota) pode fazer-se exceo; seno for alguma rara em favor de Cames e de Rodrigues Lobo. O Tejo, o Mondego, os montes, os stios conhecidos de nosso pas e dos que nos deu a conquista, figuram em seus poemas; porm raro se v descrio que recorde alguns desses stios que j vimos, que nos lembre os costumes, as usanas, os preconceitos mesmo populares; que da vem poesia o aspecto e feies nacionais, que so sua maior beleza3.

    Bernardim Ribeiro foi um tanto mais original em sua simplicidade, o que lhe falta de

    sublime e culto sobeja-lhe em brandura, e numa ingnua ternura que faz suspirar de saudade, daquela saudade cujo poeta foi, cujos suaves tormentos to longo padeceu, e to bem pintou.

    Foi seu contemporneo Gil Vicente fundador do teatro moderno, de cujas obras

    imitaram os castelhanos; e delas se espalhou pela Europa o mau e o bom dessa irregular e caprichosa cena, que ainda assim suas belezas tm.

    O prprio Gil Vicente no deixa de ter seu cmico sal, e entre muita extravagncia

    muita coisa boa. Bouterweeck e Sismondi parece que escolheram o pior para citar; muito melhores coisas tem, particularmente nos autos, superiores sem comparao s comdias. A soltura da frase, e a falta de gosto so os defeitos do sculo; o engenho que da transparece do homem grande e de todas pocas.

    2 Reservo-me para uma edio que pretendo publicar do nosso Plauto, fruto de longo e penoso trabalho, para examinar melhor este ponto, e demonstrar o que aqui enuncio.

    3 Comum tambm nos outros gneros de poesia, onde quer que entre o descritivo.

  • III

    Segunda poca literria; idade de ouro da poesia e da lngua desde os princpios do XVI at os do XVII Sc.

    Com a morte de El-rei D. Manoel declinou visivelmente a fortuna portuguesa: certo que as artes progrediram, que a lngua se aperfeioou; porm esse movimento era continuado ainda do impulso anterior e j no prometia longa dura assim sucedeu. D. Joo III colheu os frutos do que D. Manoel havia semeado; mas de lavras suas, nem ele nem seus sucessores viram colheita.

    Uma coisa todavia que muita influncia teve sobre a lngua e literatura portuguesas e

    que a instituies de D. Joo III se deve, foi o cultivo das lnguas clssicas, que na reformao da Universidade de Coimbra aumentou muito. Os modelos gregos e romanos foram ento versados de todas as mos, estudados, traduzidos, imitados. Aperfeioou-se a lngua, enriqueceu-se, adquiriu aquela solenidade clssica que a distingue de todas as outras vivas, seus perodos se arredondaram ao modo latino, suas vozes tomaram muito da eufonia grega; de um e de outro desses idiomas lhe vieram as muitas, e principalmente da grega, os muitos hiprbatos; com o que vai rica, livre e majestosa por todas as provncias da literatura, que tem decorrido, no havendo a gnero de composio, para o qual, ou por doce demais como o Toscano, no seja prpria, - ou por muito spera e guindada como o Castelhano, no se adapte, - por curta como o Francs, no se chegue, - por inflexvel e rspida como o Alemo e Ingls, se no amolde.

    Claro que a histria, a oratria, todas as artes do discurso deviam de florescer com

    tal aumento. Com elas todas medrou e cresceu a poesia na delicadeza, na harmonia, no gosto; porm desmereceu muito, demasiado na originalidade, no carter prprio, que perdeu quase todo, na nacionalidade, que por muito pouco se lhe ia. Todos os deuses gregos tomaram posse do maravilhoso potico, todas as imagens, todas as ideias; todas as aluses do tempo de Augusto ocuparam as mais partes da poesia; e muito pouco ficou para o que era nacional, para o que j tnhamos, para o que podamos adquirir ainda, para o que naturalmente devia nascer de nossos usos, de nossas recordaes, de nossa arqueologia, do aspecto de nosso pas, de nossas crenas populares, e enfim de nossa religio.

    S de Miranda, verdadeiro pai da nossa poesia, um dos maiores homens de seu sculo,

    foi o poeta da razo e da virtude, filosofou com as musas, e poetizou com a filosofia. Seu muito saber, sua experincia, seu trato afvel, e at a nobreza de seu nascimento, deram-lhe indisputada superioridade a todos os escritores daquele tempo, dos quais era ouvido, consultado e imitado. S de Miranda exerceu sobre todos os poetas daquela poca a mesma espcie de imprio que veio a ter Boileau em Frana, e mais modernamente Francisco Manoel entre ns. Introduziu na poesia os metros italianos, e os modos, versos e combinaes de rimas de Dante e Petrarca: e desde a quase se abandonaram inteiramente (exceto nas voltas e glosas) os nossos antigos versos de redondilha, e absolutamente os de arte maior e menor,

  • que ainda assim muito prprios so para certos assuntos, segundo com feliz exemplo no-lo mostraram antigos e modernos poetas. Nem o mesmo S de Miranda igualou nunca em composies hendecasslabas a pureza, a correo, a naturalidade e sublime simplicidade de suas redondilhas nas epistolas, que hoje so seu maior e quase nico ttulo de glria.

    So de admirar suas comdias, e so notvel monumento para a histria das artes pela

    feliz imitao dos antigos, e pelo que excedem quanto at ento se tinha escrito. Porm o teatro portugus criado pela musa negligente e travessa de Gil Vicente e Joo Prestes, carecia de reforma, mas no podia suportar uma revoluo. As comdias de S de Miranda sem carter nacional muito clssicas de mais no eram para reform-lo: o mesmo direi, e o mesmo sucedeu s de Ferreira, a algumas poucas mais que depois vieram. O efeito destas composies, alis preciosas, foi funesto: os literatos enjoaram-se (e com razo) do teatro nacional, e no se deram a corrigi-lo e melhor-lo: o pblico preferia (e com razo tambm) o com que fora criado, o que o interessava, o que o divertia, e antes queria rir com as grosserias dos autos populares que bocejar e adormecer-se com as finuras de arte e correes dessas comdias, que tudo tinham, menos interesse, onde todo esprito havia, menos o nacional.

    Se houveram S de Miranda e Ferreira escolhido assuntos portugueses, se houveram

    pintado os costumes nacionais, e presenteado ao pblico, em vez de quadros italianos, um espelho em que ele visse a si e aos seus usos, e se risse de seus prprios defeitos; fico em que houveram reformado o teatro em vez de lhe empecer: e acaso gozaramos ainda hoje em uma cena rica e abastada dos resultados desse impulso, quando no temos seno que chorar, e vivemos, sobre o teatro, das migalhas que mendigamos a estrangeiros pelo triste meio de tradues, que (as dramticas sobretudo) nunca podem ser boas.

    S de Miranda escreveu, alm disto, algumas clogas bastante frias, vrios sonetos

    geralmente de pouca monta. Um deles a morte de Leandro e Hero excelente, mas castelhano, e por esse achaque no o inclui na escolha4

    No posso deixar de querer mal a to ilustre portugus pelo muito que escreveu nessa

    lngua estranha; com que no s privou a natural do fruto de suas tarefas, mas fez maior dano ainda com o exemplo que abriu; exemplo funesto que nos cerceou a literatura, que nos defraudou de uma Diana de Monte-Maior, de tantas boas coisas mais, e ao cabo ia perdendo a lngua.

    Mas eis a Antonio Ferreira para combater esse mal em sua origem: ei-lo a esse

    portugus verdadeiro, ardente amador da lngua, clamando a todos, pugnando contra todos os que no prezavam e aditavam o ptrio idioma com as produes do engenho e das artes. O profundo conhecimento dos clssicos gregos e latinos, o finssimo gosto que em seu estudo tinha adquirido, a felicidade com que sempre os imitou, a pureza da frase, as riquezas com que adornou a lngua deram aos versos de Ferreira grande popularidade entre os literatos e cortesos (que, ao avesso de hoje, as letras viviam ento quase s na corte) e fixaram determinadamente o gnero clssico entre ns.

    4 A. Rib. dos Santos traduziu este soneto em portugus e (coisa inexplicvel em tal homem!) o deu por seu.

  • Cegou-se, todavia, o nosso bom Ferreira na imitao dos antigos; copiou-os, no os imitou: e da, enriquecendo a lngua, empobreceu a literatura, porque a avezou a esse hbito de copista; cancro que ri o esprito criador; alma e vida da poesia nacional. To cega foi esta imitao, que seus mesmos versos, aos quais hoje ningum defende da nota de speros e duros (e muitos direi errados) os fazia assim de propsito por querer usar das elipses gregas e latinas, a que repugna a ndole de nossa lngua, s tolerveis em certas vozes que na prosa mesma se pronunciam e escrevem no final com m ou sem ele. Este desagradvel defeito dos versos de Ferreira principalmente sensvel nas dices que tem final no que chamamos (mal ou bem) ditongos nasais de [o], e muito mais quando nele o acento predominante da palavra.

    Os sonetos so frios, desengraados; nas clogas h belezas muitas e muito grandes,

    mas espalhadas: nenhuma destas composies tomada por si pode merecer o nome de bela. Porm das odes, h delas que so puramente horacianas, e se lhes falece a elevao (que no era esse o gnio de Ferreira) sobeja-lhe a graa, a elegncia e a adornada filosofia, que no agradam menos, nem de menos valor e mrito so que os xtases pindricos, ou os requebros anacrenticos. O que sem dvida que nas lnguas vivas Ferreira foi o primeiro imitador feliz de Horacio, e o primeiro dos modernos que pulsou a lira clssica. Das epistolas, h algumas que podem pleitear em conciso e fino dizer com as boas do lrico romano. Quanto pureza da moral, ao nobre patriotismo, quele generoso sentimento da honrada liberdade de nossos avs, quele entusiasmo da virtude; esse respira, mostra-se e resplandece em todas as suas obras.

    Mas a verdadeira Glria de Ferreira a Castro, produo admirvel por si mesma, pelo

    tempo em que a escreveu, por todos os lados por que se considere. No ainda lquido entre os fillogos se era possvel o ter visto Ferreira a Sophonisba de Trissimo, que muito poucos anos antes da Castro apareceu: mas sem a mnima questo reconhecida a superioridade da tragdia portuguesa italiana: pasma como sem ver um teatro, sem mais exemplares que os gregos e latinos, pudesse Ferreira tratar to delicadamente um tal assunto em um gnero desconhecido da antiguidade. notvel a primeira cena da Castro, a cena de El-rei e dos cavaleiros no ato II., a do ato III. Em que o coro traz a Castro as novas de sua cruel sentena, onde aquela pergunta de Ignes: morto o meu senhor, o meu infante? rasgo de sublime, porm de um sublime todo sensibilidade, ao qual nem o quil mourt de Corneille pode comparar-se; e finalmente os coros, que sem paixo so superiores a todos os exemplares da antiguidade, e no tem que invejar aos to gabados da Athalia. No dou a Castro por uma tragdia perfeita: ainda em relao ao seu tempo e aos conhecimentos da cena de ento tem ela defeitos: no haver uma cena em que se encontrem Pedro e Ignez, no haver algum esforo do infante para lhe valer, deixam a pea muito nua de ao e lhe entibiam o interesse. A versificao (que todavia de preferir aos versos sesquipedais e impados com que hoje est pervertida a cena portuguesa) peca geralmente por dura; mas essa mesma por vezes bela; e para bons entendedores muito h que estudar; e oxal que os nossos dramticos lessem e relessem bem a Castro, e aprendessem ali, pelo menos, naturalidade e verdade de expresso, que tanto lhes falecem.

    No estava ainda neste auge a poesia portuguesa quando um homem pouco

    conhecido dos letrados, mas j celebre por suas aventuras e valor, foi para to longe da

  • ingratssima ptria despicar-se de seu desamor com a mais nobre vingana; a de levantar-lhe um padro, com que no entram as idades, e que conservar ainda o nome portugus quando j ele houver desaparecido da terra. Muita erudio (pois sabia quanto se soube em seu tempo), engenho dos que vem ao mundo de sculos a sculos se reuniram em Cames. Esse homem levantou a cabea l das extremidades da sia, e viu tudo pequeno a roda de si, todos os poetas pigmeus, todos acanhados com, as lnguas modernas ainda mal perfeitas, escravos da imitao clssica, incertos e entalados todos entre o cego respeito da antiguidade e as novas precises que as novas idias, que o novo estado do mundo requeria. Teve nimo para conceber e fora para executar um rasgado e necessrio atrevimento de se abrir caminho novo, de criar enfim a poesia moderna, dar no s a Portugal, mas Europa toda um grande exemplo, e constituir-se o Homero das lnguas vivas.

    No me da espao o acanho de meus limites para dizer de Cames o que era

    indispensvel; antes a celebridade de seu nome me deixar parar aqui para dar lugar a tratar de menos conhecidos nomes. S direi que a influncia de Cames na nossa poesia, e em toda a literatura portuguesa foi tal que desde ento at hoje ainda se no deixou de sentir, mesmo nas pocas em que mais desvairados tem andado nossos poetas com as empolas do gongorismo, ou mais lunticos com os esfusiotes do elmanismo. Quase que no houve gnero de poesia que no tratasse: tem sonetos admirveis; clogas (sobretudo as primeiras) excelentes; mas principalmente de todas as poesias menores so o mais sublime e perfeito as canes, gnero a que deu uma nobreza e elevao desconhecida mesmo em Petrarca: sirva de prova e exemplo aquela que comea- Junto dum seco duro e estril monte. Dos Lusadas, de suas belezas e defeitos, das controvrsias sobre umas e outros, est cheio o mundo literrio.

    Contemporneo de Cames e ousado tambm como ele a encetar a carreira pica foi

    Jeronimo Cortereal. O Crco de Diu, que notvel monumento literrio, e que de certo se teve algum exemplar foi a Itlia do Trissino, uma fria narrao, em que h belas idias aqum alm, muita riqueza de linguagem, pouca de poesia, e pelo geral maus versos. E contudo talvez Cortereal o primeiro (em data) poeta descritivo; e criou ele acaso esse gnero de que tanto blasonam hoje ingleses, alemes, e at franceses, e que todavia ns tnhamos sculos antes deles. J no Crco de Diu h muitas boas descries: mas no naufrgio de Sepulveda h delas sublimes.

    Entre muito devaneio de imaginao e de mau gosto, entre aqueles inspidos

    requebros de Pan e de Protheu aparece todavia a morte de D. Leonor que um trecho da mais bela poesia, da mais fina sensibilidade que se tem composto.

    De todos esses poetas que ento floresceram na minha opinio o menos poeta esse

    Pero dAndrade Caminha, a quem da amizade e celebridade de Ferreira e Bernardes vem talvez o maior renome. Ainda assim tem algumas odes boas, simplicidade com elegncia por partes de suas composies: epigramas so alguns excelentes.

    Sobreviveu a todos estes e ptria, que no tardou em perecer, o suave cantor do

    Lima que levado por D. Sebastio para testemunhar seus autos feitos, de que devia fazer um poema, perdeu-se com seu rei, e jazeu cativo em frica. Pondo de parte a questo das clogas (na qual de certo no andou de boa f Faria e Sousa) a qual, ainda que prpria do lugar,

  • muito longa para os meus limites; Bernardes foi excelente poeta; e com quanto sua linguagem pobre, e em geral pouco variadas suas composies; a suavidade de seu estilo, certa melancolia de expresso que lho requebra e embrandece daro sempre a Bernardes um lugar muito distinto na poesia portuguesa.

    Mas j a nao se perdera nos areais de frica, j a glria portuguesa estava ofuscada;

    com ela foram (como sempre vo) as boas artes. Ainda brilham a espaos fascas do grande luzeiro que se apagara; mas j no eram seno fascas.

    Ainda Luis Pereira deplora na Elegiada a runa da ptria, mas esse canto fnebre

    quase o canto de cisne da poesia nacional, que parece querer fenecer com ele, e j nele moribunda se mostra. H excelentes oitavas derramadas por esse poema, algumas descries felizes, grandssima riqueza de linguagem; mas pouco mais.

    J Ferno Alves do Oriente difuso, intrincado nos primeiros labirintos dos conceitos

    italianos mostra a visvel decadncia da poesia: j as musas que to lous, e ingenuamente belas tinham folgado pelas vrzeas do Tejo e do Mondego com Ferreira e Cames, aparecem afeitadas com arrebiques e cores falsas, como essas damas para quem se desbota a flor da idade e lhe querem ainda suprir o vio com emprestados ornamentos, gentilezas compradas, e postias. E todavia h na Lusitnia transformada pedaos lricos excelentes, e alguns buclicos sofrveis. Assim ele nos dissesse mais do seu Oriente do que nos disse: assim houvesse enriquecido a literatura com mais imagens de tantas que sua sia lhe oferecia, e com que houvera aditado a me ptria. Onde o fez, naquela cloga em que conta a histria de Saladino, ele verdadeiramente poeta; e se da tirarem alguns trocadilhos que tinha aprendido em Itlia, excelente e digno de imitar-se o resto.

    IV

    Terceira poca literria; principia a corromper-se o gosto e a declinar a lngua. Comeo, at o fim do XVII Sc.

    Porm os sintomas do Gongorismo e Maneirismo se manifestavam j em Itlia e Castella; no perfeitos ainda, no no auge a que os levaram os dois poetas, alis engenhosos, cujo nome vieram a tomar; mas j assim mesmo a poesia moderna estava toda gafa dessa lepra de soberba requintada.

    Vasco Mousinho de Quevedo, que sem disputar depois de Cames, nosso primeiro

    pico, a tem j em toda a nobreza de seus versos a quebra de bastardia desse defeito, que todavia nele ainda raro. Mas que belezas tem esse to mal avaliado Affonso Africano, a que a cegueira e o mau gosto tem querido preferir a quixotica e sesquipedal Ulyssea, a hiperborea e campanuda Malaca! No regular o poema, no um todo perfeito; o maravilhoso frio, e a ao toda no muito bem deduzida; mas que riqussimos episdios a enfeitam! A descrio de Zara, o jardim encantado onde aporta o prncipe D. Joo, e alguns outros trechos so cunhados com o selo da verdadeira poesia, e animados da luz que s d o engenho. Quanto ao estilo,

  • com poucas excees fluido e elegante; custa a achar em to longo poema uma rima forada ou m: e a mesma linguagem, suposto decline um tanto da primeira pureza, ainda de boa lei e valiosos quilates.

    Desta poca tambm Rodrigues Lobo, cujo grande lugar como prosista no aqui

    prprio de examinar: de seu merecimento potico a comum opinio tem com justia decidido dando-lhe uns dos primeiros (eu quisera o primeiro) lugar entre os buclicos antigos; e outro muito diferente e inferior entre os picos. E certo o Condestabre, apesar de muitos e bons pedaos descritivos, frouxa e morna composio. Que diferente era a flauta que ia soando pelas margens do Lis, a dulcssima flauta de Lobo, quando comparada com a tuba heroica, para cuja altivez lhe falecem natureza e arte! Seus pastores so verdadeiros pastores, sua linguagem verdadeira do canto, no lhes saem pelos golpes do pelico as alfaias da cidade, to mal encobertas pelos outros buclicos, os quais, sem exceo do prprio Cames todos pecam por muito sabidos e letrados, por discretos e galantes mais que soem ser aldeos e pastores.

    Alm disso h derramados pela Primavera, Pastor peregrino, etc., pedaos lricos de

    suma beleza, romances excelentes e verdadeiramente dignos de admirao e estudo.

    Tnhamos perdido a independncia; perdemos logo o esprito nacional, o timbre, o amor ptrio (que amor da ptria poder haver em quem ptria j no tem!); a lisonja servil, a adulao infame levou nossos desonrados avs a desprezar seu prprio riqussimo e to suave idioma, para escrever no gutural Castelhano, preferindo os sonoros helenismos do portugus s aspiradas aravias da lngua dos tiranos. Vergonha que s tem par nas derradeiras vergonhas com que nos enxovalharam a lngua e a fama os tarellos, francelhos, gallici-parlas e toda a caterva dos gallo-manos!

    Em Castelhano escreviam j esses degenerados portugueses: mas pouco importava

    que o fizessem, que nisso fraca perda tivemos ns: de toda essa safra de versos castelhano- portugueses pouco ou nada h que espremer.

    Desta comum baixeza se alevantou o honrado e douto magistrado Gabriel Pereira do

    Castro, que depois de ter aberto na jurisprudncia um caminho novo e naquele tempo to difcil por grandes verdades ento perigosas, tomou ousado a trombeta de Homero, e no se arrojou a menos que a competir ao mesmo tempo com a Ilada e Odissia; que tanto abraa o assunto de seu poema. Grande a concepo, bem distribuda as partes, regularssimo o todo, regular e bela a ao, bem entendidos os episdios; mas o estilo...o estilo , prottipo da Fnix-renascida, o requinte do gongorismo, cujo patriarca foi entre ns, pervertendo-nos, sombra de uma grande fama e brilhante engenho, todo on resto escasso que de gosto tnhamos ainda, intrincando a poesia (seno que tambm a prosa por mau exemplo) num ddalo inextricvel de conceitos, de argueias, de exageraes, de afetada sublimidade, falsa e v grandeza; com que todo veio a terra a poesia nacional, e acabou a grande escola de Cames e Ferreira que tantos e tamanhos alunos havia produzido. E supunha esse homem vaidoso ter sobrepujado com as queixotadas da sua Ulisseia as naturais belezas dos divinos Lusadas!

    Quase o mesmo errado trilho, mas que menos brilhante e com inferior engenho,

    seguiu S de Menezes na Malaca. Esse poema que tanto tem engrandecido o mau gosto, na

  • minha opinio um dos derradeiros ttulos de glria da literatura portuguesa. E todavia bem regular, bem concebido, e a espaos se lhe encontram grandes rasgos de gentileza potica. A fala de Asmodeu no conselho infernal faz lembrar muito a de Lcifer em Milton. Porm quando agitado o poeta do gnio mau que avexava e endemoninhava os poetas de ento, comea a guindar-se, a transpor os derradeiros limites da naturalidade; esquece todo o deleite que algumas estncias mais descuidadas nos haviam causado, e foroso desemparar a dura tarefa de to incomoda leitura, porque verdadeiramente incomoda e cansa tal estilo, tal frase, tanto hiperblico luxo e destemperado alambicar.

    V

    Quarta poca: idade de ferro; aniquila-se a literatura, corrompe-se inteiramente a lngua- fins do XVII, at meados do XVIII Sc.

    Mas ainda estes tinham sua nobreza, havia no sei que grande entre todas essas nuvens de talco; talvez lhes viesse dos assuntos: porm se os discpulos que ainda quiseram ir avante, deram em fazer silvas, acrsticos, e engendraram todos os outros monstros (originrios, segundo Diniz, do pas das bagatelas) e destilando mais e mais as quintas essncias dos conceitos, tanto torceram e retorceram o j delgado fio potico, que de todo o quebraram. S Manoel da Veiga o atou momentaneamente em uma ou duas liras da Laura de Amphriso. Logo tornou a estalar: e por a andaram as pobres musas portuguesas jogando as cabras-cegas pelas clogas do Poliphemo e Galatea, pelos romances hendecasslabos, e por todos outros esconderijos do gosto depravado, de que boas amostras se conservam no precioso tombo da Fnix-renascida e alguns outros hoje ignorados livros dessa triste data.

    E todavia j ns tnhamos recobrado to gloriosamente nossa independncia, j o

    nome portugus tornara a ser honra e nobreza, e ainda essa lepra castelhana lavrava.

    Dois grandes escritores, ambos prosistas e ambos dignos de muito louvor, concorreram para a continuao deste mal. Quem podia deixar de admirar Vieira? Quem no iria levado pela torrente da sua eloquncia? Quem resistiria aos mpetos de arrebatamento de Jacinto Freire? O grande talento de ambos, a vasta erudio e desmedido engenho de Vieira sobre tudo, fizeram grande dano literatura: sabiam, escreviam perfeitamente a lngua, tinham grande crdito na corte, tratavam grandes assuntos, animavam o nobre e sincero entusiasmo da glria e liberdade nacional: tudo foi aps eles; imitaram-lhes vcios e virtudes: como no distinguiam em Vieira o grande orador, o grande filsofo do gongorista afetado (quando o era) no estremavam em Jacinto Freire o historiador, o panegirista do declamador, do acadmico vo; ruim e bom seguiam. E como mais fcil imitar a afetao, que a naturalidade, as argucias de m arte, que as graas de boa natureza; os imitadores foram alm de seus tipos no afetado, no mau deles, ficaram imenso aqum do que nesses era belo e para imitar.

    Nem o conde da Ericeira que traduziu a Arte potica de Boileau e dele levou to

    imerecidos e banais elogios, tomou dela triaga bastante para se curar do veneno comum: e

  • ainda assim melhor sua frigida Henriqueida que os outros versos que por ento se faziam em Portugal: porm o nico olho que o fez rei em terra de cegos, no lhe era bastante para ver o acertar com a vereda da posteridade. A morreu no seu sculo e jaz pela poeira de alguma livraria de bibliomnico.

    As academias de historia, de literatura do tempo de D. Joo V, as associaes ridculas

    de todos os nomes e descries que ento se formaram, a mais e mais empeioraram o mal, que progressivamente cresceu at o ministrio do Marques de Pombal.

    VI

    Quinta poca: restaurao das letras em Portugal - Meio do sculo XVIII at o fim

    A civilizao e as luzes que a geram, tinham-se estendido do sul para o norte. A corrupo que aps elas vem em seu marcado perodo, as fora apagando, ou enevoando ao menos, na mesma direo. De sorte que pelos fins do sculo XVII o meio dia, que havia sido bero da ilustrao da Europa, quase se enoitava das trevas da ignorncia, as quase pareciam voltar como em reao para ponto de onde partira a primeira ao da luz que as dissipara.

    O norte, que mais tarde se havia alumiado, progredia no entanto: as boas letras, as

    artes, as cincias floresciam na Inglaterra e por quase toda a Alemanha. Milton, Descartes, Newton e Linneu brilharam ao setentrio da Europa; e ns meridionais estudvamos as cathegorias e as summas, aguvamos distines, alambicvamos conceitos, retorcamos a frase no discurso, torcamos a razo no pensamento.

    Porm a face do mundo estava comeada a mudar: as antigas barreiras que a poltica e

    os preconceitos erguiam entre povo e povo quase desapareciam; as mtuas necessidades, e at o mesmo luxo, faziam quase indispensvel preciso as permutaes do comrcio; e o comrcio fraternizou as naes.

    Reciprocamente se estudaram as lnguas, generalizou-se esse estudo: ento que

    exatamente os sbios comearam a ser de todos os pases: os bons livros pertenceram a todas as lnguas; e verdadeiramente se formou dentro de todos os estados um estado que (sem os inconvenientes do status in statu dos ultramontanos) com justia e exao obteve e mereceu o nome de repblica das letras, a qual uma universal, e sem perigo de chisma.

    Os efeitos desta alterao no modo de existir do universo foram sensveis: as luzes no

    s reverteram (sem retrogradar) do norte para o sul, mas se difundiram gerais. A Frana viu ento o sculo de Luiz XIV; Itlia deixou santo Toms e os concetti por melhor filosofia e melhor gosto; Espanha teve o seu Carlos III; e Portugal no reinado de El-Rei D. Jos subiu altura dos outros povos, seno que em muitas coisas acima.

    E ainda na reforma da universidade no tinham aparecido Monteiros-da-Rocha e os

    outros portugueses que dali expulsaram a barbaridade entrincheirada em Coimbra como em sua ultima cidadela da Europa, e j a razo e o gosto recobravam seu imprio na literatura; j

  • as odes do Garo, as obras do padre Freire e de outros ilustres fillogos haviam afugentado as silvas, os acrsticos, e os campanudos perodos do conde da Ericeira, regenerada a poesia e restituda a lngua.

    Outra vez ainda o limitado deste bosquejo me impede de mencionar outros engenhos

    que tanto mereceram da ptria e da literatura e remoaram a perdida lngua de Cames. Exige o meu assunto e o meu espao que me estreite no crculo potico.

    Garo foi o poeta de mais gosto e (por aventurar uma expresso que no legitima,

    mas pode ser legitimada portuguesa) de mais fino tato que entre ns apareceu at agora. Haver em outros mais fogo, outros fervero em mais entusiasmo, criaro acaso mais, porm a delicadeza de Garo s tem rival na antiguidade. A musa pura, casta, ingnua, nunca lhe desvairou: em suas composies h delas onde a mais aguada crtica no esmiunar um defeito. Tal a cantata de Dido, umas das mais sublimes concepes do engenho humano, uma das mais perfeitas obras executadas da mo do homem. Todo se deu ao gnero lrico, especialmente ao Horaciano; e nesse ningum o excedeu, antes ningum o igualou. A ode virtude, a que se intitula o Suicdio (que pela primeira vez sai a lume nesta coleo) outras muitas que longo fora enumerar, so de uma beleza, de uma correo, de um acabado (como dizem os pintores) que dificilmente se imitar, tarde se chegar a igualar.

    No da mesma sorte Antonio Diniz, que mais arrojado, mais pomposo, menos correto

    e elegante, assim correu mais caudalosa, porm menos pura torrente. Enquanto lrico, tem rasgos pindricos verdadeiramente sublimes; mas o todo de suas odes em demasia ornamentado; e elas entre si pecam amide de monotonias e repeties. Talvez o jugo dos consoantes, que to desnecessariamente se imps, o acanhou a isso. Mas nas anacrenticas ele sem disputa o primeiro poeta portugus, e digno rival do ancio de Teios. No gnero buclico tambm nos deixou muito bonitas coisas, nenhuma perfeita. Porm a verdadeira coroa potica do Diniz Thalia lha teceu, que no outra musa. O Hyssope o mais perfeito poema heri-cmico de seu gnero5 que ainda se comps em lngua nenhuma: se no castigado da dico o excede o Lutrin; no desenho da obra, na regularidade do edifcio, na imaginao, foi o discpulo de Boileau muito alm de seu grande mestre: e com mais exao se diria de um e outro o que de Cames e Tasso presunosamente disse Voltaire: que se a imitao daquele fizera este, a sua melhor obra era essa. O palcio do gnio das Bagatelas, a conversa do deo na cerca dos capuchos, a ressurreio e vaticnio do gallo assado, a caverna dAbracadabro sero, enquanto houver gosto, estudados como exemplar pelos literatos, lidos e relidos sempre com prazer por todos os amigos das artes.

    Aps estes vem o virtuoso e honrado Quita, a quem pagou a ptria com misria e fome

    as imensas riquezas que para a lngua e literatura de seus versos herdou. Um pobre cabeleireiro, a quem as musas que serviu, os grandes que com elas honrou nunca tiraram do triste oficio, pode de sua baixa condio social alevantar-se do primeiro grau literrio, que acaso lhe disputam ignorantes ou presunosos, nenhum homem do gosto deixar de lho dar.

    5 Digo de seu gnero, porque Orlando furioso tambm heri-cmico, mas de outro gnero.

  • Este em meu humilde conceito o nosso melhor buclico: tomo a liberdade de contrastar a opinio comum, porque o meu dever de crtico me obriga a enunciar lealmente o meu pensamento. Tenho para mim (e fico que acharei quem me siga se de boa f quiserem entrar no exame) que imensa cpia de composies pastoris, as quais no so riqueza, mas desperdcio de nossas musas, ou pecam por empoladas, por inverossmeis, por baixas, por demasiado naturais, por sobejo elevadas. Um meio termo dificlimo de tocar, de nele permanecer, um estilo singelo como o campo, mas no rstico como as brenhas, so dos mais difceis requisitos que de um poeta se podem exigir. Se tem engenho, custa-lhe a moldar-se e a ret-lo que no suba mais alto que a difcil medida, e raro deixa de a exceder, de perder-se do bosque e acabar em jardins cidados e conversas de damas e cavalheiros o que comeara no monte ou na vrzea entre pastores e serranas.

    Nem Virgilio dali escapou, nem Sannazaro, nem Cames; Gessner sim, e depois de

    Gessner, o nosso Quita. No digo que no tenha defeitos, ainda em seu gnero pastoril; mas a boa e honrada crtica fala em geral, louva o bom, nota o mau, porm no faz timbre em achar defeitos e erros na menor falta para se regozijar da censura. Grandes homens, grandes erros: a natureza da mediocridade cingir-se a tristes preceitos para esconder sua mesquinhez: porm de tais nunca falou posteridade. Horacio e Boileau foram atrevidos quando lhes cumpriu, e desprezaram regras e arte quando os chamou a natureza, e lhes mostrou sublime. Philinto, que os sabia de cor, tambm se levantou acima das regras, e nunca foi tamanho. E todavia foi ele o maior poeta de seu sculo: mas os grandes engenhos no contraveem a lei, so superiores a ela, e so eles viva lei.

    Muito distinto lugar obteve entre os poetas portugueses desta poca Claudio Manoel

    da Costa: o Brasil o deve contar seu primeiro6 poeta, e Portugal entre um dos melhores.

    Deixou-nos alguns sonetos excelentes, e rivalizou no gnero de Metastasio, com as melhores canonetas do delicado poeta italiano. A que dirige lira com sua palidonia imitando a to conhecida do mesmo Metastasio Nice, Grazie all ingani tuoi, pode-se apontar como excelente modelo. Nota-se em muitas partes dos outros versos dele vrios resqucios de gongorismo e afetao seiscentista.

    E agora comea a literatura portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produes

    dos engenhos brasileiros. Certo que as majestosas e novas cenas da natureza naquela vasta regio deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expresses e estilo, do que neles aparece: a educao europia apagou-lhes o esprito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e da lhes vem uma afetao e impropriedade que d quebra em suas melhores qualidades.

    Muito havia que a tuba pica estava entre ns silenciosa, quando Fr. Jos Duro a embocou para cantar as romanescas aventuras de Caramuru, o assunto no era verdadeiramente herico, mas abundava em riqussimos e variados quadros, era vastssimo

    6 Em antiguidade.

  • campo sobretudo para a poesia descritiva. O autor atinou com muitos dos tons que deviam naturalmente combinar-se para formar a Harmonia de seu canto; mas de leve o fez: s se estendeu nos menos poticos objetos; e da esfriou muito do grande interesse que a novidade do assunto e a variedade das cenas prometia. Notarei por exemplo o episdio de Moema, que um dos mais gabados, para demonstrao do que assevero. Que belssimas coisas da situao da amante brasileira, da do heri, do lugar, do tempo no pudera tirar o autor se to de leve no houvera desenhado este, assim como outros painis?

    O estilo por vezes afetado: l surdem aqui e ali seus gongorismos; mas onde o poeta

    se contentou com a natureza e com a simples expresso da verdade, h oitavas belssimas, ainda sublimes.

    Depois de Diniz o lugar imediato nos anacrenticos pertence a outro Brasileiro.

    Gonzaga, mas conhecido pelo nome pastoril de Dirceu, e pela sua Marilia, cuja beleza e amores to clebres fez naquelas nomeadas liras. Tenho para mim que h dessas liras algumas de perfeita e incomparvel beleza: em geral a Marilia de Dirceu um dos livros a quem o pblico fez imediata e boa justia. Se lhe houvesse por minha parte de lhe fazer alguma censura, s me queixaria, no o que fez, mas do que deixou de fazer. Explico-me: quisera eu que em vez de nos debuxar no Brasil cenas da Arcdia, quadros inteiramente europeus, pintasse os seus painis com as cores do pas onde os situou. Oh! E quanto no perdeu a poesia nesse fatal erro! Se essa amvel, se essa ingnua Marilia fosse, como a Virginia de Saint- Pierre, sentar-se a sombra das palmeiras, e enquanto lhe revoavam em torno o cardeal soberbo com a prpura dos reis, o sabi terno e melodioso, - que saltasse pelos montes espessos a cotia fugaz como a lebre da Europa, ou grave passeasse pela orla da ribeira o tatu escamoso, - ela se entretivesse em tecer para o seu amigo e seu cantor uma grinalda no de rosas, no de jasmins, porm dos roxos martrios, das alvas flores dos vermelhos bagos do lustroso cafezeiro; que pintura, se a desenhara com sua natural graa o ingnuo pincel de Gonzaga!

    Justo elogio merece o sem sensvel cantor da infeliz Lindoia que mais nacional foi que

    nenhum de seus compatriotas brasileiros. O Uraguai de Jos Bazlio da Gama o moderno poema que mais mrito tem na minha opinio. Cenas naturais muito bem pintadas, de grande e bela execuo descritiva; frase pura e sem afetao, versos naturais sem ser prosaicos, e quando cumpre sublimes sem ser guindados; no so qualidades comuns. Os Brasileiros principalmente lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nele verdadeiramente nacional, e legtima americana. Mgoa que to distinto poeta no limasse mais o seu poema, no lhe desse mais amplido, e quadro to magnfico o acanhasse tanto. Se houvera tomado esse trabalho, desapareceriam algumas incorrees de estilo, algumas repeties, e um certo desalinho geral, que muitas vezes beleza, mas continuado e constante em um poema longo, defeito.

    Muito h que os nossos autores desampararam o teatro: eis a o faceto Antonio Jos, a

    quem muitos quiseram apelidar Plauto portugus e que sem dvida alguns servios tem a esse ttulo, porm no tantos como apaixonadamente lhe decretaram. Em seus informes dramas algumas cenas h verdadeiramente cmicas, alguns ditos de suma graa; porm essa degenera amide em baixa e vulgar. Talvez que o Alecrim e Mangerona seja a melhor de todas, e de

  • certo o assunto eminentemente cmico e portugus: hoje teria todo o mrito de uma comdia histrica: e se fora tratada no gnero de Beaumarchais, produziria uma excelente pea.

    VII

    poca, segunda decadncia da lngua e literatura: galicismo e tradues

    volta este tempo se formou a academia das cincias de Lisboa pelos generosos esforos do duque de Lafes. Esse corpo cientfico, de quem tanto bem se augurou para a lngua e literatura nacional, nem fez tudo o que dele se esperava, nem uma parte muito pequena do que podia e lhe cumpria fazer: mas nem foi intil, nem, como alguns tem querido, prejudicial. E todavia sua fora moral no foi bastante para vencer um mal terrvel que j no tempo de sua criao se manifestava, mas que depois, cresceu e avultou a ponto, que veio a tornar-se quase indestrutvel.

    Este mal foi a galomania, que sobre perverter o carter da nao, de todo perdeu e

    acabou com a j combalida linguagem: frases brbaras repugnantes ndole do idioma, termos hbridos, locues arrastadas, sem elegncia, formaram a algaravia da moda, e prestes invadiram todas as provncias das letras. Estudar a lngua materna, como aquela em que e falamos e escrevemos, dos mais difceis estudos, h mister longa e porfiada aplicao. Que bela inveno para a ignorncia e para a preguia no foi esta nova linguagem mascavada e de furtacores, que todos podiam saber sem fadiga, cujas leis cada um moderava e arbitrava a seu modo, alterava a seu sabor com to plena liberdade de conscincia! Foi a religio de Mafoma: propagou-a, a incontinncia, a soltura, o desenfreio do apetite. Desprezaram-se os clssicos, apodaram-se de ignorantes, de ranosos; e os que no ousavam, por algum resto de vergonha, desacatar assim as honradas cs dos nossos mestres, saram ento com o banal e ridculo pretexto de que ningum podia l-los pelas matrias que trataram; que tudo eram sermes, vidas de santos, histrias de conventos, de frades. Vergonhosa desculpa! Com qu as dcadas de Barros, que foi talvez o primeiro que introduziu com feliz execuo o estilo clssico na histria moderna, so crnicas de conventos? Ferno Mendes Pinto, o primeiro europeu que escreveu uma viajem regular da China e dos extremos da sia, so vidas de santos? E dessas mesmas vidas de santos, quantas delas so de sumo interesse, divertida e profcua leitura? A vida de D. Fr. Bartholomeu dos Mrtires tem toda a valia das mais gabadas memrias histricas, de que hoje anda cheia a Europa, e que ningum taxou ainda de pouco interessantes. Quando outra coisa no contivesse aquele excelente livro seno a narrao do conclio de Trento, a viagem e estada do arcebispo em Roma, j seria ele uma das mais curiosas e importantes obras do sculo XVI. E D. Francisco Manoel de Mello, e Rodrigues Lobo, e Cames, e grande cpia de poetas de todos os gneros, - tudo isso so sermonrios, vidas de santos?

  • Misria o que o geral dos portugueses jurou nas palavras de quatro peralvilhos que essas calunias pregavam: passou em julgado que os clssicos no se podiam ler, e ningum mais quis tomar o trabalho nem sequer de examinar se sim ou no assim era.

    Neste estado de coisas apareceram em Portugal dois homens extraordinrios, ambos

    dotados pela natureza de prodigioso engenho potico, Francisco Manoel e Bocage. Aquele, filho da escola de Garo e Diniz, cultivou muito tempo as musas clssicas, e j imbudo no gosto da antiguidade, j imitador e rival de Horacio e Pndaro, comeou a ser conhecido em idade madura. Este, quase desde a infncia poeta, apareceu no mundo em toda a efervescncia dos primeiros anos, ardente cantor das paixes, entusiasta, agitado do seu prprio natural violento, rpido, insofrido, sem cabal instruo para poeta, com todo o talento (raro, espantoso talento!) para improvisador.

    Ambos comearam imitando os grandes mestres de seu tempo seguindo cada um em

    seu gnero o estilo e gosto adotado e geral desde a restaurao das letras no meado do sculo. Mas no so engenhos grandes para seguir, se no para fundar escolas: nem tardou muito que cada um, por seu lado, no sacudisse todo jugo da imitao, e seguisse livre e rasgadamente um trilho novo. Bocage a quem seu fado, por mais aventureira lhe fazer a vida, levou ao antigo teatro das glrias portuguesas, voltando da sia foi recebido em Lisboa entre os aplausos dos muitos admiradores que j tinha deixado na viril infncia de seu talento potico. Argumentou-se esta admirao com os novos improvisos do jovem poeta, com a extrema facilidade, com o muito sonoro de seus versos. O fogo de suas ideias ateou o entusiasmo geral; a mocidade se inflamou com o nome de Bocage: de entusiasmo degenerou em cegueira, em mania; no lhe viam j defeitos; menos ele em si mesmo. Ningum duvidava que os improvisos dos cafs do Rocio eram superiores a todas as obras da antiguidade, e que um soneto de Bocage valia mais que todos esses volumes diversos do sculo de Joo III e do de Jos I . Esta era a opinio comum da mocidade; e to geral se fez, tantas vezes a ouviu repetir o objeto de tal idolatria, que fora era que a acreditasse, que com ela se desvanecesse e desvairasse.

    Isso lhe aconteceu. O temperamento irritvel e ardentssimo de Bocage o levava

    naturalmente s hiprboles e exageraes: essas eram as mais admiradas de seus ouvintes; requintou nelas, subiu a ponto que se perdeu pelos espaos imaginrios de sua criao fantstica, abandonou a natureza, e a sups acanhado elemento para o gnio. Mais ele repetia eternidades, mundos, cus, esferas, orbes, frias, gorgonas; mais dobrava o aplauso; mais delirava ele, mais o admiravam. Ao cabo, nem ele a si, nem os outros a ele o entendiam.7 A par e passo que as ideias desvairavam, desvairava tambm o estilo, e enfim se reduziu a uma continuada anttese, perptuos trocadilhos, tours-de-fource, pulos, saltos, rompantes, castelhanadas, com que se tornou montono e (usarei uma expresso de pintor) amaneirado.

    A metrificao de Bocage, julgam-na sua melhor qualidade; eu a pior; ao menos, a que piores efeitos causou. No fez ele um verso duro, mal soante, frouxo, porm no so esses os

    7 Assim lhe sucedeu, principalmente em muitos dos, por natureza e essncia. Hiperblicos elogios dramticos: gnero de composio extravagante e quase sempre ridculo.

  • nicos defeitos dos versos. As vrias ideias, as diversas paixes e afetos, as distintas posies e circunstncias do assunto, do objeto, de mil outras coisas, - variada medida exigem, como exige a msica vrios tons e cadencias. A mesma medida sempre, embora cheia e boa, - o mesmo tom, embora afinado, - a mesma harmonia embora perfeita, - o mesmo compasso, embora exato, fazem montona e insuportvel a mais bela pea de msica ou de poesia. E tais os versos de Bocage, que nos pretendem dar para tipo seus apaixonado cegos: digo cegos, porque muitos tem ele (e nesse nmero que conto!) que o so, mas no cegos. Imitar com o som mecnico das vozes a harmonia ntima da ideia, suprir com as vibraes que s podem ferir a alma pelo rgo dos ouvidos, a vida, o movimento, as cores, as formas dos quadros naturais, eis a a superioridade da poesia, a vantagem que tem sobre todas as outras belas artes: mas quo difcil perceber e executar esse delicadssimo ponto! Poucos o conseguiram: Francisco Manoel foi entre ns o que mais finamente o entendeu e executou, mas nem sempre, nem cabalmente.

    Porm nos intervalos lcidos que a Bocage deixava o fatal desejo de brilhar, em alguns

    instantes que, despossesso do demnio das hiprboles e antteses, ficava seu grande engenho a ss com a natureza e em paz com a verdade, ento se via a imensidade dessa grande alma, a fina tmpera desse raro engenho que a aura popular estragou, perdeu o pouco estudo os costumes desregrados, a misria, a dependncia, a soltura, a fome. Muitas epistolas, vrios idlios martimos, algumas fbulas, e epigramas, as cantatas, no so medocres ttulos de glria. Dos sonetos h grande cpia que no tem igual nem em portugus, nem em lngua nenhuma, de uma fora, de uma valentia, de uma perfeio admirveis. O resto pequeno e pouco. A linguagem pobre; s vezes fcil, mas em geral escassa. Sabia pouco a lngua; a fora do grande instinto lhe arredava os erros; mas as belezas do idioma, s as d e ensina o estudo. As tradues de Ovdio Delille e Castel so primorosas.

    Mas de tradues estamos ns gafos: e com tradues levou o ultimo golpe a

    literatura portuguesa; foi a estocada de morte que nos jogaram os estrangeiros. Traduzir livros de artes, de cincias necessrio, indispensvel; obras de gosto, de engenho, raras vezes convm; quase impossvel faz-lo bem, mngua e no riqueza para a literatura nacional. Essa casta de obras estuda-se, imita-se, no se traduz. Quem assim faz acomoda-as ao carter nacional, d-lhes cor de prprias, e no s veste um corpo estrangeiro de alfaias nacionais (como o tradutor), mas a esse corpo d feies, gestos, modo, e ndole nacional: assim fizeram os Latinos, que sempre imitaram os Gregos e nunca os traduziram; assim fizeram os nossos poetas da boa idade. Se Virgilio houvera traduzido a Ilada, Cames a Eneida, Tasso os Lusadas, Milton a Jerusalm, Klopstock o Paraso Perdido; nenhum deles fora tamanho poeta, nenhuma dessas lnguas se enriquecera com to preciosos monumentos: e todavia imitaram uns dos outros, e dessa imitao lhes veio grande proveito.

    Esta mania de traduzir subiu a ponto em Portugal, e de tal modo estragou o gosto do

    pblico, que no s lhe no agradavam, mas quase no entendia os bons originais portugueses: a poesia, a literatura nacional reduziu-se a montonos sonetos, a trovinhas de amores, a inspidas enfiadas.

  • De versinhos anes a ans Nerinas

    To baixos nos puseram os admiradores e imitadores de Bocage, a quem justamente a crtica estigmatizou com o nome de elmanistas, - e de elmanismo sua afetada escola. Neles se mostraram exagerados os defeitos todos do entusiasta Elmano, sem nenhum dos grandes dotes, das brilhantes qualidades do poeta Bocage.

    Alguns h, contudo, de quem esta assero no deve entender-se em todo o rigor da

    frase. Joo Batista Gomes, autor da Castro, mostrou nela muito talento potico e dramtico. Dentre os bastos defeitos dessa tragdia sobressaem muitas belezas. Desvaira-o o elmanismo. Derrama-se por madrigais quando a austeridade de Melpomene pedia conciso, fora e naturalidade; perde-se em declamaes, extravaga em lugares comuns, inverte a dico com antteses, destri toda a iluso com versos amide sesquipedais e entumecidos; mas por meio de todas essas nvoas brilha muita luz de engenho, muita sensibilidade, muita energia de corao; predicados que com o estudo da lngua que no tinha, com a experincia que lhe falecia, triunfariam ao cabo do mau gosto do tempo, e viriam provavelmente a fazer de Joo Batista Gomes o nosso melhor trgico. Atalhou-o a morte em to ilustre carreira, e deixou rfo o teatro portugus que de tamanho talento esperava reforma e abastana.

    Mas enquanto Bocage e seus discpulos tiranizavam a poesia e estragavam o gosto,

    Francisco Manuel, nico representante da grande escola de Garo, gemia no exlio, e de l com os olhos fitos na ptria se preparava para lutar contra a enorme hidra cujas inmeras cabeas eram o galicismo, a ignorncia, a vaidade, todos os outros vcios que iam devorando a literatura nacional.

    A sua epstola sobre a arte potica e lngua portuguesa, pode rivalizar com a de

    Horacio aos Pises: fora de argumentos, eloquncia da poesia, nobre patriotismo, finssimo sal da stira, tudo ali peleja contra o monstro multiforme.

    Que direi das odes? Minha ntima persuaso que nunca lngua nenhuma subiu to

    alto como a portuguesa na lira de Francisco Manuel. Que h em Pndaro comparvel ode a Afonso dAlbuquerque? Onde h poesia sublime, elegante, imensa como seu assunto, na dos novos Gamas? Se o patriotismo falasse alguma hora aos degenerados netos de Pacheco e Albuquerque, que poderia ele dizer-lhes igual quela inestimvel ode que se intitula Netuno aos portugueses? E quando a liberdade troa na espada de Washington, submete os raios de Jpiter ao cetro dos tiranos aos ps de Franklin, ou tece pelas mos de Penn os laos de fraterna unio! Que imenso, que grandioso o cantor de tamanhos objetos! Quando nas odes a Venus, a Marfisa, a Mrcia voltando inopinada, no hino noite se requebra em amoroso jbilo, ou se enternece de saudade, todo graas e primores de linguagem, de imaginao, de estilo, de delicadeza, de inimitvel poesia. No gnero Horaciano no ele to puro e perfeito como Garo, mas nem entendeu menos nem imitou pior o seu modelo.

    Entre as epstolas h muitas admirveis: dos contos e das fbulas, alguns como

    elegante sal e chiste. As tradues do Oberon de Wielland, da Guerra pnica de Silio Itlico, mas sobre todas, a dos Mrtires de Chateaubriand, so tesouros de linguagem e de poesia.

  • Nenhum poeta desde Cames havia feito tantos servios lngua portuguesa: s por si Francisco Manuel valeu uma academia, e fez mais que ela, muita gente abriu os olhos, e adquiriu amor a seu to rico e belo, quanto desprezado idioma: e se ainda hoje em Portugal h quem estude os clssicos, quem no se envergonhe de ler Barros e Lucena, deve-se ao exemplo, aos brados, s invectivas do grande propugnador de seus foros e liberdades.

    Nos ltimos perodos de sua longa vida afrouxaram as enrgicas faculdades deste

    grande poeta, e exceto a traduo dos Mrtires (que assim mesmo tem seus altos e baixos) quase tudo o mais que fez tbio e morno como de octogenrio se podia esperar. O nmio temor de cometer galicismos, a que tinha justo e santo horror, o fez cair em arcasmos e afetao demasiada de palavras antiquadas e excessivos hiprbatos. No so porm estas faltas, nem tantas nem tamanhas como o pregou a inveja e a ignorncia.

    Muito honrosa meno deve a histria da lngua e poesia portuguesa a Domingos

    Maximiano Torres, cujas clogas rivalizavam com as de Quita e Gessner, cujas canonetas so, depois das de Cludio Manuel da Costa, as melhores que temos. Foi este muito ntimo de Francisco Manuel, mas tenho por muito exagerados os elogios que dele recebeu.

    Antonio Ribeiro dos Santos, honra da magistratura portuguesa, foi imitador e mulo de

    Ferreira: poucos engenhos, poucos caracteres, poucos estilos h to parecidos; se no que o autor dos coros da Castro era muito maior poeta, e o cantor do grande D. Henrique muito melhor metrificador. Esta ode ao infante sbio, algumas outras a vrios heris portugueses, algumas das epistolas, e especialmente os versos que lhe ditava a amizade para o seu Almeno, so de uma elegncia e pureza de linguagem rarssima em nossos dias.

    Este Almeno Fr. Jos do Corao de Jesus, missionrio de Bracannes, que traduziu os

    primeiros livros das metamorfoses de Ovdio em excelente, riqussimo, purssimo portugus, mas em maus versos: e ainda assim, alguns deles so felizes: de estudar, de versar com mo diurna e noturna esse comeo de traduo para quem quiser conhecer as riquezas de uma lngua que compete, emparelha, vence s vezes, a sua prpria me latina.

    Duas ou trs odes deste virtuoso e erudito padre so muito bonitas.

    Nicolau Tolentino o poeta eminentemente nacional no seu gnero: Boileau teve mais

    fora, mas no tanta graa como o nosso bom mestre de retrica. E de suas stiras ningum se pode escandalizar; comea sempre por casa e primeiro se ri de si antes que zombeteie com os outros. As pinturas dos costumes, da sociedade, tudo to natural, to verdadeiro! Confesso que de todos os poetas que meu triste mister de crtico me tem obrigado a analisar, nico este em cuja causa me dou por suspeito: tanta a paixo, a cegueira que tenho pelo mais verdadeiro, mais engraado, mais bom homem de todos os nosso escritores. Aquele bilhar, aquela funo de burrinhos, aquele ch, aquelas despedidas ao cavalo deitado margem; o memorial ao prncipe, o presente do perum, so belezas que s no admiraro atrabilrios zangos em perptuo estado de guerra com a franca alegria, com o ingnuo gosto da natureza.

    De Jos Anastacio da Cunha, que das matemticas puras nos deu o melhor curso que

    h em toda a Europa, desse infeliz engenho (que talento houve j feliz em Portugal?) a quem no impediam as retas de Euclides, nem as curvas de Arquimedes de cultivar tambm as

  • musas, de to ilustre e conhecido nome que direi eu seno o muito que me pesa da raridade de suas poesias? Todas so filosficas, ternas e repassadas de uma to meiga sensibilidade algumas, que deixam na alma um eco de harmonia interior que no vem do metro de seus versos, mas das ideias, dos pensamentos. Todavia h mister l-lo com preveno, porque (provavelmente estropiada de copistas) a frase nem sempre portuguesa de lei.

    O padre A. P. de Sousa Caldas, brasileiro, dos melhores lricos modernos. A poesia

    bblica, apenas encetada de Cames na parfrase do salmo super flumina Babylonis, foi por ele maravilhosamente tratada; e desde Milton e Klopstock ningum chegou tanto acima neste gnero.

    A cantata de Pigmalio, a ode O homem selvagem so excelentes tambm.

    Aqui me cai a pena das mos: o estdio livre para a critica imparcial acabou. Nem

    posso continuar a exerc-la sem temor, nem o faria ainda assim, pois no quisera ver revogadas minhas presumidas sentenas pela severa posteridade, quase sempre anuladora de juzos contemporneos.

    No posso todavia fechar este breve quadro sem patentear a admirao, e o indizvel

    prazer que me deu o poema do Passeio do Sr. J. M. da Costa e Silva, cuja existncia tinha a infelicidade de ignorar (to pouco sabemos ns portugueses das riquezas que temos em casa!) e que no sei que tenha que invejar a Thompson e Delille, se no for na pouca extenso e, acaso dir mais severo juiz, em algum verso de demasiado elmanismo. Quanto a mim, folgo de me lisonjear com a esperana que seu autor lhe dar a amplido e mais (poucos mais) retoques com que ficar por ventura o melhor poema desse gnero.

    Apesar dos motivos referidos, pedirei uma vnia mais para mencionar como um

    poema que faz suma honra ao nome portugus, a Meditao do Sr. J. A. de Macedo, que tem sido censurada por quem no capaz de entend-la. No sei eu se ela tem defeitos; obra humana, e de certo lhes no escapou; mas sublimidade, cpia de doutrina, frase portuguesa, e grandes ideias, s lho negar a cegueira ou a paixo.

    Cita-se com elogio o nome do Sr. J. F. de Castilho, jovem poeta que se despica da

    injuria da sorte que o privou da vista, com muita luz de engenho potico.

    Os ditirambos do Sr. Curvo Semedo, as odes do Sr. J. Evangelista de Moraes merecem grande favor do pblico: os aplogos do Sr. J. V. Pimentel Maldonado so por certo dignos da maior estimao.

    As Gergicas do Sr. Mozinho dAbulquerque que fizeram a reputao potica de seu

    benemrito autor, alguns lhe acharam demasiada erudio, e queriam mais poesia e menos cincia. Eu por mim tomarei a confiana de pedir ao ilustre poeta, em nome da literatura portuguesa, que na segunda edio de sua to til obra no desdenhe de aproveitar os muitos e riqussimos ornatos que habilmente pode tirar de nossas festas rurais, de nossas usanas (como freiras, seres, desfolhas, etc.), das descries de nosso formoso pas; com que decerto far mais nacional e interessante seu estimvel poema. No sei tambm se alguma incorreo tipogrfica ou de cpia, seria origem de vrias imperfeies e impurezas de linguagem, que os escrupulosos (e em tal matria foroso s-lo) lhe notam.

    Tudo isso esperamos os portugueses que nos vangloriamos de sua excelente obra, v- lo melhorado na prxima edio que j reclama o pblico impaciente.

    A literatura portuguesa no mostra presentemente grandes sintomas de vigor: mas

  • h muita fora latente sob essa aparncia; o menor sopro animador que da admirao lhe venha, atear muitos luzeiros com que de novo brilhe e se engrandea.

    FIM