BONET, Octavio - A Equipe de Saúde Como Um Sistema Cibernético

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    2 EDIOCEPESC - IMS/UERJ - ABRASCO

    ' Rio de Janeiro 2010

  • A Equipe de Sade como um Sistema Ciberntico

    0CTAV10 BONET

    Quais as colaboraes a buscar e quais os conflitos a evitar, que incurses d uns no terreno cjos outros no devemos fazer? E, ainda, que questes nos colocais s quais

    poderamos atualmente responder? (MAUSS, 2003, p. 318).

    Las antiguas creenas se estn desvaneendo j hoy andamos a tientas buscando nuevas... todavia no disponemos de otra respuesta para dar a los antiguos problemas (BATESON,

    1989, p . 177).

    1. IntroduoNossa primeira epgrafe foi extrada de um ensaio que Marcell

    Mauss publicou em 1924, no qual propunha possveis relaes prticas entre a Sociologia e a Psicologia. Seria possvel dizer que sua preocupao essencial era que lidamos com uma espcie de realidade que necessariamente nos obriga a entrar em relaes prximas com outras reas:

    no so mais fatos especiais dessa ou daquela parte da mentalidade, so fatos de uma ordem muito complexa, a mais complexa imaginvel, que nos interessam. E o que chamo fenmenos de totalidade, dos quais participam no apenas o grupo, mas tambm, por ele, todas as personalidades, todos os indivduos em sua integralidade moral, social, mental e, sobretudo, corporal e material (MAUSS, 2003, p. 336 - nfase no original).

    O interesse de Mauss era dar uma dimenso concreta s explicaes sociolgicas e, necessariamente, ao pretender explicar a realidade na sua dimenso concreta, temos que atentar para facetas dos fenmenos que fazem parte das preocupaes de outras disciplinas. Segundo Karsenti, Mauss se encontrava numa poca em que o debate pela emancipao de cada cincia j havia passado e cada uma tinha clara conscincia do pertencimento a uma cincia geral do homem (KARSENTI, 1997).

    D outor em A ntropologia; professor adjunto do D epartam ento de C incias Sociais da Universidade Federal de Ju iz de Fora; integrante do Grupo de Pesquisa LAPPIS do CNPq. Endereo eletrnico : octbon@ alternex.com .br.

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    J na segunda epgrafe, Bateson est se referindo busca por uma epistemologia relacional e holstica que foi o eixo central da sua produo nas diferentes reas da cincia de que participou. Na sua trajetria se viu envolvido, a partir dos anos 40, na construo de um conhecimento que atravessava as barreiras disciplinares e que teria como objetivo entender os fenmenos da realidade seguindo os padres que conectam suas diferentes facetas. Assim, inscrever-se- ia na construo, junto com muitos outros, do que hoje se conhece como o paradigma da complexidade1.

    Os dois exemplos mostram claramente uma preocupao essencial no processo de produo cientfica do sculo XX: estabelecer conexes entre os diferentes campos de saber que se tinham estruturado ao longo do sculo XIX. Como parte desse processo, nas ultimas dcadas do sculo XX, no campo da sade, comeou a ganhar fora a idia de que, para responder realidade complexa com a qual os profissionais de sade lidam necessrio o trabalho em equipe. E com isso as cincias vinculadas sade se enfrentam com o desafio de produzir uma prtica que, associando seus diferentes enfoques, consiga dar conta da realidade na sua complexidade (NUNES, 1995; ALMEIDA, 1997; PORTO e ALMEIDA, 2002).

    O objetivo deste texto pensar, a partir de trabalhos cientficos que se colocaram como tema o trabalho em equipe multiprofissional, os desafios e dificuldades que essa modalidade de trabalho apresenta. P retendem os, assim , p rob lem atizar o conceito de equipe multiprofissional de sade a partir das diferentes formas de organizao do processo de trabalho e, tambm, luz das mudanas derivadas da introduo dos modelos complexos.

    2. Modernidade, Disciplinas e as Equipes Multiprofissionais de Sade

    A partir das mudanas que vm acontecendo no sistema de saude no Brasil nas ltimas dcadas - a implementao do SUS e posteriormente, do PSF - comeou a se perceber a necessidade d formar novos profissionais. Estes teriam que responder s novas demandas geradas pelo sistema e, ao mesmo tempo, s demandas geradas pelas mudanas sociais. A conseqncia lgica desse cenrio foi a percepo da necessidade de modificaes nas estratgias de

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    formao dos profissionais, que teriam que passar a responder s diretrizes do sistema de sade vigente: a ateno integral sade e o trabalho em equipe (CECCIM e FEUERWERKER, 2004). Esses autores mostram como j se estariam produzindo as mudanas curriculares tendo como objetivo a integralidade, atravs de uma formao multiprofissional que d conta da complexidade do processo sade-doena. Pedrosa e Teles (2001, p. 304) seguem essa direo quando expressam que o trabalho em equipe se torna um pressuposto para a integralidade das aes em sade.

    Muitos trabalhos ressaltam a importncia da constituio de equipes de sade para responder s mudanas necessrias do sistema (CECCIM, 2004; CECCIM e FEUERWERKER, 2004; SILVA et al., 2002; PEDROSA e TELES, 2001; PEDUZZI, 2001; SOUZA, 1999; CAMPOS, 1997), mas tambm nesses mesmos trabalhos j esto expostos os problemas enfrentados na implementao dessas equipes multiprofissionais de sade. A maioria dos trabalhos que estamos considerando mostra que a principal dificuldade das equipes multiprofissionais de sade se encontra nas relaes estabelecidas no cotidiano entre os profissionais, a partir das quais se despertam dois fantasmas: o da perda da identidade profissional e o da perda do poder-autonom ia. Podemos concordar com Campos, ento, afirmando que o problema das equipes reside no paradoxo entre a autonomia disciplinar e o controle pelas instituies (CAMPOS, 1997).

    Como exemplo dessas dificuldades, podemos citar o trabalho de Stephan Souza (1999), que se refere aos problemas de comunicao derivados do fato de que essas comunicaes comeam no momento em que os procedimentos tradicionais esto esgotados e so chamadas as outras disciplinas, mas na posio de complementares ou acessrias (SOUZA, 1999, p. 11). Posteriormente diz: pe dura a justaposio de disciplinas sem integrao conceituai entre'elas, em que cada uma reproduz apenas sua especificidade, com total ausncia de comunicao (SOUZA, 1999, p. II )2.

    Silva et al. (2002), em trabalho referido s equipes multiprofissionais que trabalham em centros de referncia para DTS/Aids, mostram que a implementao dessas equipes no tem garantido respostas adequadas, j que as prticas dos diferentes profissionais so freqentemente isoladas e muitas vezes concorrentes, demonstrando

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    uma dificuldade de interao entre diferentes competncias tcnicas (SILVA et al., 2002, p. 109). Numa direo semelhante trilhada por Stephan Souza, os autores demonstram como o trabalho coletivo est fortemente organizado em torno do modelo mdico, em que as demais reas, no-mdicas, agregam seus trabalhos em tomo da racionalidade clnica (SILVA et al., 2002, p. 114). Os autores descrevem que o trabalho em equipe no percebido de forma clara pelos sujeitos entrevistados, derivando numa justaposio de aes.

    Pedrosa e Teles (2001, p. 309), em estudo qualitativo cujo objetivo identificar as temticas que geram diferenas entre os membros das equipes do Programa de Sade da Famlia, encontram que o relacionamento interno da equipe revela a inexistncia de responsabilidade coletiva pelos resultados do trabalho, levando descontinuidade entre as aes especficas de cada profissional. Referindo-se tambm s equipes mulprofissionais no mbito do PSF, Silva e Trad (2005) destacam que os problemas de estruturao da equipe estudada derivaram, em parte, das condies de trabalho em que a equipe se organiza, assumindo um grande nmero de tarefas e, por outro lado, das dificuldades de comunicao associadas permanncia da hierarquia entre as profisses3. Embora constatem essas dificuldades, os autores mostram a existncia de um princpio de articulao no processo de trabalho durante o prprio atendimento do usurio.

    Na reviso que acabamos de fazer, percebe-se que uma das questes-chave na estruturao e organizao das equipes de sade est relacionada com a dificuldade de comunicao entre as diferentes disciplinas que integram as equipes. Podemos pensar que essa dificuldade produto do processo de formao da cincia na modernidade. Podemos dizer, ento, que somos vtimas do prprio processo que nos criou: a modernidade.

    A ideo lo g ia que fundam enta nossa m odern idade o individualismo, que fora muito bem trabalhado por Durkheim, Weber, Elias, Dumont, Foucault, Boltanski e, mais prximo de ns, por Luiz Fernando Duarte, que numa frase sintetizou como conseqncias do desenvolvimento dessa ideologia centrada no indivduo: a racionalizao e o afastamento do sensvel, a fragmentao dos domnios e a universalizao dos saberes, a interiorizao e psicologizao dos sujeitos pU A RTE, 1998, p. 19). Essa ideologia

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  • individualista encontrava seu brao operativo no cientificismo empirista, que favoreceu o desenvolvimento da especializao do saber e uma representao da realidade construda segundo o modelo do experimento, ou seja, dissociando as partes e, com isso, perdendo as relaes que unem essas partes, perdendo o padro que as conecta.

    Sem entrar na discusso sobre as conseqncias positivas da metodologia empirista, cremos ser possvel aceitar a afirmao de Bateson, quando afirma: o experimento um mtodo de torturar a natureza para obter uma resposta do ponto de vista da nossa prpria epistemologia, sem levar em conta a epistemologia j imanente na natureza (BATESON 1993, p. 257).

    3. Em Busca de Respostas: a emergncia da indisciplinaNos diferentes trabalhos que colocaram o problema das equipes

    de sade, so mostradas vias alternativas de organizao que permitiriam sair da armadilha ou do crculo vicioso que a prtica cotidiana poria no caminho das equipes. Alguns dos autores dirigem sua reflexo priorizando a constituio de modelos de estruturao das equipes no cotidiano e outros enfatizam propostas do cunho mais epistemolgico.

    Tanto em Campos (1997) quanto em Peduzzi (2001), encontramos tentativas de exp lic itar os modelos que fundam entariam as configuraes possveis das equipes de sade. Campos (1997, p. 248) explica que existem dois modelos de organizao do trabalho em equipe: o primeiro, que chama de agregao vertical de profisses ou de grupos heterogneos de especialistas, se caracteriza pelo desentrosamento entre as categorias profissionais, que com o tempo derivaria em conflitos; e um segundo modelo, que se caracterizaria pela nfase na horizontalidade das relaes, com uma distribuio mais homognea do poder e das responsabilidades. Este modelo gera resistncia pela perda da identidade profissional.

    J Peduzzi (2001, p, 306) diferencia dois tipos de organizao das equipes: como agrupamento de agentes e como integrao de agentes. O primeiro tipo de estruturao se caracteriza pela justaposio das aes, e o segundo, pela articulao das mesmas e a interao dos agentes. O que iguala ambas modalidades de organizao das equipes a presena das tenses entre as diversas concepes e os exerccios

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    de autonomia tcnica, bem como entre as concepes quanto independncia dos traba lhos espec ia lizados ou a sua complementaridade objetiva (PEDUZZI, 2001, p. 106).

    Tanto Campos quanto Peduzzi, nos trabalhos citados, concordam com a importncia de manter as definies precisas dos ncleos de competncias e das responsabilidades (Campos) e das especificidades de cada trabalho especializado, embora sublinhando a necessidade de flexibilizar a diviso do trabalho (Peduzzi). Mas salientam que possvel estabelecer equipes multiprofissionais de sade, escolhendo como trao distintivo do trabalho dos profissionais de sade a defesa da vida (CAMPOS, 1997, p. 253) e estabelecendo um agir- comunicativo, que pressupe um horizonte tico compartilhado (PEDUZZI, 2001, p. 108).

    Entre os trabalhos que trazem uma abordagem epistemolgica, queremos sublinhar o texto de Porto e Almeida (2002), que, no contexto de uma reflexo sobre o campo da sade do trabalhador, faz uma reviso do processo de desenvolvimento da cincia complexa no campo da sade.4 Das caractersticas dessa cincia da complexidade nos interessam o resgate da possibilidade de gerar snteses e de superar as dicotomias, cristalizando uma direo diferente da fragmentao da realidade como a que se encontra na cincia hegemnica; e em segundo lugar, queremos destacar a caracterstica de os sistemas complexos, especificamente os sistemas sociais, possurem uma ordem de complexidade que os autores chamam de emergente ou reflexiva (PORTO e ALMEIDA, 2002, p. 339).

    Esta ltim a ca rac te r s tica est d iretam en te associada interdependncia dos componentes e necessidade de entender os mltiplos discursos e olhares que atravessam os recortes disciplinares. Assim, para dar conta desses sistemas sociais complexos, faz-se necessrio assum ir as estratg ias de in tegrao d iscip linar: multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar - esta definida como a radicalizao da interdisciplinaridade, pela articulao de um amplo conjunto de disciplinas em torno de um campo terico e operacional particular (PORTO e ALMEIDA, 2002, p. 340).

    Na mesma linha de argumentao, Ceccim (2004), em trabalho no qual reflete sobre equipe de sade e integralidade, desenvolve a idia da perspectiva entre-disciplinar. Partindo da idia de que um

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    projeto teraputico da integralidade e da resolutividade muito mais complexo do que podem responder o recorte e circunscrio de uma profisso isolada (CECCIM, 2004, p. 263), o autor prope que, para que seja possvel alcanar essa perspectiva entre-disciplinar, necessrio experimentar a terceira margem ou lugar mestio. Essa terceira margem a margem da travessia, a da falta de identidade das margens (CECCIM 2004, p. 264). Essa terceira margem a que permite a emergncia do "entre-disciplinar1 que produz a reinterpretao dos limites profissionais e assim permite compor uma interveno coletiva (CECCIM, 2004, p. 269). O entre manifesta-se no momento em que comeamos a aceitar que as fronteiras passam a ser difusas, no momento em que comeamos a aceitar a possibilidade criativa embutida na certeza da falta da segurana disciplinar.

    As idias de multi, inter, entre-disciplinar so respostas percepo de que nossos problemas tm limites que no coincidem com nossos limites profissionais. E por isso que, como expressa a segunda epgrafe deste trabalho, estamos atrs de novas respostas para antigos problemas. Quando percebemos que estvamos torturando a realidade, que nossos problemas tinham ramificaes que iam alm dos saberes de uma profisso, surgiu a necessidade do trabalho em quipe; e quando comeamos a ver que determinadas caractersticas c';_ nossos problemas s podiam ser tratadas nas suas redes de relaes, surgiu a necessidade de uma perspectiva integral. Na busca dessa perspectiva que se chegou ao momento da emergncia do entre; que se chegou nesse lugar mestio, ou da terceira margem.

    4. A Equipe de Sade como uma MenteA possibilidade de gerar essa tica do entre-disciplinar de que

    fala Ceccim s pode ser pensada se nas equipes multiprofissionais de sade se produz um tipo de organizao que as aproxime do que chamaremos de mente ou esprito. Para entender o que estamos querendo dizer quando falamos em mente e em que sentido uma equipe de sade pode ser considerada uma mente ou esprito, temos que fazer um percurso por algumas idias que Gregory Bateson desenvolveu ao longo da sua obra.

    Bateson foi um cientfico notvel. Bilogo de formao, converteu-se Antropologia fazendo pesquisas no comeo da dcada

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    de 1930, em Nova Guin; posteriorm ente, desiludido com a Antropologia britnica do momento, comeou a trabalhar nas reas de Psiquiatria e Comunicao Social, para finalmente fazer estudos de Etologia5. No seu ltimo livro, ele afirma que, embora tenha trabalhado em mltiplas reas, sempre esteve atrs da mesma coisa: uma epistemologia ciberntica e relacional6.

    Mesmo estando interessado em superar as dicotomias nas quais o pensamento ocidental se fundamentava, Bateson manteve a distino entre dois mundos, do pleroma e da creatura. O primeiro o mundo material, fsico, das foras e dos impactos, nele no h distines; o segundo o mundo das diferenas e das distines, que o mundo do vivo (BATESON, 2000, p. 462). O mundo da creatura pode ser pensado como uma mente\ ou seja, como um conjunto de elementos que se encontram em interao, que essa interao seja desencadeada por diferenas, que necessite energia externa, que estabeleam relaes circulares e que os sucessos posteriores sejam transform aes dos sucessos precedentes (BATESON, 1982, p. 81). J deve ter ficado claro que essa concepo de m en te eq u iv a len te id ia de s istem as autocorretivos e aplicvel, portanto, a organismos, ecossistemas e grupos humanos. Qualquer desses elementos da mente pode ser considerado uma mente individual, dependendo do nosso interesse e do nvel de anlise em que estivermos trabalhando.

    Outra caracterstica desses sistemas mentais que a organizao de seus elementos hierrquica; essa hierarquia nos leva questo dos tipos lgicos, ou nveis lgicos (BATESON, 2000, p. 280-281). A teoria dos tipos lgicos afirma basicamente que uma classe no pode ser membro de si mesma; que uma classe de classes no pode ser um dos seus membros e que existe, portanto, uma diferena entre os membros e as classes compostas por eles. Por exemplo, a classe das cadeiras diferente de cada cadeira que um membro da classe. Bateson utilizou essa teoria para pensar nos diferentes nveis de aprendizagem, entre outros problemas, mas ela pode nos ajudar a pensar as relaes que se estabelecem entre os membros da equipe de sade.

    O ltimo dos conceitos que queremos trazer para a discusso o chamado de cismognese (BATESON, 1958, p. 175-176 e 319; BATESON, 2000, p. 67-68). Bateson desenvolveu esse conceito para

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    pensar as relaes entre os indivduos e os grupos humanos, e o definiu como o processo de diferenciao progressiva nas normas de comportamento resultante da interao acumulativa. Diferenciou dois tipos de cismogneses: simtrica e complementar. Na primeira delas, uma conduta como a concorrncia respondida com uma conduta igual, ou seja, com concorrncia; na segunda, a resposta atitude de concorrncia ser a de submisso. As duas modalidades levam a essa diferenciao progressiva, podendo ocasionar a destruio do sistema de interao que as inclui.

    Desde o momento em que desenvolveu essas idias na sua etnografia, Naven, Bateson percebeu que havia uma questo que complicava todo o modelo: por que os sistemas no se desintegram? Na resposta a essa pergunta, Bateson faz a passagem da tipologia ao processo. Ele percebeu que tinha que relacionar os dois tipos de cismogneses ao longo do tempo e definiu um terceiro tipo, que chamou de recproca-, uma combinao entre os dois tipos anteriores. Neste tipo, num determinado momento, a interao fundamentalmente simtrica deixa lugar complementar e vice-versa. Dessa forma, o sistema se mantm num equilbrio dinmico, conservando a tenso do mesmo num nvel aceitvel.

    Queremos propor que, se a equipe multiprofissional de sade conseguisse criar uma estrutura que operasse como uma mente no sentido que acabamos de definir, como esse conjunto de circuitos autocorretivos, teria maiores possibilidades de alcanar o enfoque integral no atendimento sade. A equipe multiprofissional de sade seria, desse modo, de um nvel ou tipo lgico superior ao das profisses que inclui, tendo, assim, caractersticas diferenciais acima das profisses que a formam e que surgem da interao entre eles.

    Se os membros dessa equipe conseguissem manter suas inter- relaes fora da linha da cismognese, o que significa que aprenderam a brincar com as hierarquias ou, em outras palavras, que esta se transformou em contextuai, de modo que cada profisso que integra a equipe pode, em determinadas situaes, estar numa posio de hegemonia e, em outro momento, numa posio de subordinao, e dessa forma evitar o colapso do sistema - essa equipe estaria frente possibilidade de alcanar o que Ricardo Ceccim chamou de terceira margem ou lugar mestio.

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    Seguindo essa linha de raciocnio, a equipe de sade, em busca de implementar um enfoque integral, teria que se transformar em uma interseo transitada, no no sentido de espao onde trajetrias diferentes se cruzam, mas de uma estrutura difusa onde trajetrias entram em circu ito s au to -regu lados que po ssib ilitam uma complementao de perspectivas e com isso nos aproximam do momento criativo do surgimento do entre-disciplinar. A busca no tem que estar atrs de um indivduo que encarne a integralidade embora seja necessrio que os membros individuais tenham uma mente mais plstica, mais flexvel, do que especializada - , mas de um associado que facilite a circulao entre saberes7. No se trata de aprender a transitar o caminho dos outros, mas de saber que se faz caminho ao andar - isto , de ter a coragem de andar sem um caminho certo; de saber que, como afirma Geertz, os gneros esto misturados (GEERTZ, 1997, p. 33).

    A condio de possibilidade dos cuidados integrais no trabalho em equipe depende, assim, de que todos sejamos um pouco pr- modernos, ou, como diz Latour, no-modernos, que faamos uma viagem at onde no estejamos presos s nossas profisses. Talvez nesse momento tenhamos a coragem de deixar as nossas praias conhecidas e nos aventuremos naqueles lugares mestios. A noo de integralidade, como princpio norteador das prticas nas equipes multiprofissionais de sade, pode ser interpretada como uma linha de fuga, como uma resistncia modernidade, como a busca de integrar aquela realidade que a modernidade dissecou.

    Lvi-Strauss, no seu famoso texto sobre a eficcia simblica, afirma que o que o xam tenta fazer na cura induzir na paciente uma transformao orgnica, que se associa a uma reorganizao estrutural que conduzisse a doente a viver intensamente um mito [...] cuja estrutura seria, no nvel do psiquismo inconsciente, anloga quela da qual se quereria determinar a formao no nvel do corpo (LVI-STRAUSS, 1996, p. 233). Estruturas que tambm so compartilhadas pela comunidade onde a cura est sendo desenvolvida.

    Sem seguir Lvi-Strauss em todas as concluses do trabalho, levantamos esta questo porque, sendo parte da creatura, no sentido batesoniano, tanto os profissionais da equipe, a prpria equipe e os usurios esto conformados por estruturas que so anlogas, ou,

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    usando os termos de Bateson, so mentes. Estaramos propondo a tarefa de reestabelecer os circuitos conectivos, de buscar o padro que os une, com o objetivo de reconstruir as relaes que a modernidade separou.

    Notas1 No processo coletivo de construo do paradigm a da com plexidade no podemos deixar de m encionar as contribuies de Morin (1996) e Capra (1988).2 E m ' nosso prprio trabalho de cam po, pudem os perceber que esses problem as estavam presentes, ou sim plesm ente a busca do trabalho em equipe perm anecia no n vel do d iscurso. Ou seja, falava-se bem da equipe de sade, da necessidade de ou tras p ro fiss es para dep o is co n tinu ar com um a p r tica d isso ciad da equipe, m an ten do-se naqu ilo que se co nsidera com o p arte da sua prtica . , ..d iv idual.3 A h ierarquia entre as profisses faz com que se evitem fazer com entrios sobre o trabalho do outro quando se refere a um profissional de nvel superior (SILVA e TRAD, 2005, p. 32).4 N esse traba lho , Porto e A lm eida d iscrim in am trs verten tes , hum an ista , social crtica e da com plexidade, atravs das quais se teria construdo a crtica da cincia da co m p lex id ad e c in c ia no rm al,5 A partir da sua pesquisa de campo em Nova Guin, Bateson escreve sua monografia Naven (1958), que uma tentativa de descrever a vida do povo Iatmul, especificamente do r itua l naven , desde trs pontos de v ista: em ocional, funcional e estrutural. interessante que o que tinha que ser um trabalho etnogrfico de descrio se converte numa descrio dos problemas enfrentados no trabalho de descrio. Duas contribuies fundamentais do livro so o. conceito de cismognese e o posfcio de 1958, em que se apresenta uma releitu ra do livro a partir das idias da ciberntica.6 O livro se chama na sua edio original Angels Fears, de 1987 (a edio que citamos neste artigo a traduo em esp anh o l), que foi pub licado aps sua m orte e foi finalizado pela sua filha, tambm antroploga, M ary Catherine Bateson.7 A id ia de que no tem os que buscar um superp ro fiss ion a l que d conta dos problem as individualm ente est presente em todos os textos citados neste trabalho.

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