BOLETIM MENSAL GRALHA AZUL No. 53 - DEZEMBRO 2014

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GRALHA AZUL - No. 53 - DEZEMBRO - 2014 - SOCIEDADE BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES - SOBRAMES - PR GRALHA AZUL GRALHA A ZUL Conto de Natal Rubem Braga Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos. — Que é? O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado: — Porcaria... Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados. — Péra aí... Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses. — Vamos ver aqui… Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima. Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo. Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim! — Mulher! Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor. — Péra aí… Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.

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GRALHA AZUL - No. 53 - DEZEMBRO - 2014 - SOCIEDADE BRASILEIRA DE MÉDICOS ESCRITORES - SOBRAMES - PR

GRALHA AZULGRALHA AZUL

Conto de Natal

Rubem Braga

Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.— Que é?

O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:— Porcaria...

Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.— Péra aí...

Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.— Vamos ver aqui…

Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima. Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo. Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!— Mulher!

Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.— Péra aí…

Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.

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O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha. De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.— Não...

Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.- Eh, mulher...

Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.— Oh, graças a Deus...

Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.

O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.— Eu acho que o jeito...

O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.

No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café. Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!— Natal?Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava...

Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!

A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:— Eh, pai, vem vê...— Uai! Péra aí...

O menino Jesus Cristo estava morto.

Texto extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza - Rio de Janeiro, 1964, pág. 39.

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EXCERTOS DE UMA AMIZADEJosé Carlos Serufo SOBRAMES - MG

"Definir amizade é um desafio que já esgotou muitos e há muito...Na opinião do filósofo chinês Confúcio (551-479aC), para conhecermos os amigos é necessário

passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade.

Quem são os amigos que se apresentam em nossas vidas, escolhidos ou frutos do acaso, apresentados seriam pelo anjo da guarda? O pai da filosofia ocidental, o ateniense Sócrates (469-399aC), que nada escreveu – o relato de sua obra chegou-nos através de seus discípulos/amigos, em especial Platão e Xenofonte -, recomenda para se conseguir a amizade de uma pessoa digna é preciso desenvolvermos em nós as qualidades que nela admiramos. Significa que damos o tom dos amigos que temos ou no ensinamento popular - “Diga-me com quem andas, que te direi quem és”, a despeito de ter não suas raízes na bíblia, em Provérbios 13:20, recebeu o fino arremate do argucioso humor de Millôr Fernandes (1923-2012) “Pois é: Judas andava com Cristo. Cristo andava com Judas”.

No mesmo Provérbios, 17:17, Salomão (xx-931aC), o principal escritor deste livro, volta ao registro do tema amizade: “O amigo, o é em todos os momentos; é um irmão na adversidade”.

Benjamin Franklin (1701-1790), bebendo nesta fonte exclamou que “um irmão pode não ser um amigo, mas um amigo será sempre um irmão”.

Embora não o tenha substituído no comando da academia, que tomou rumos incompatíveis com suas crenças, Aristóteles (384-322aC), filho de médico, aluno de Plantão e considerado seu DNA pensador, seguiu carreira solo pelo mundo, tornou-se professor de Alexandre o grande e deixou-nos uma soberba reflexão: “A amizade é uma alma com dois corpos”.

Nas palavras do Nobel da paz, autor da célebre frase “Eu tenho um sonho...”, pastor protestante, nascido em Atlanta, USA, e deletado por opositores, Martin Luther King (1929-1969): “No final não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos”.

Numa inspiração beirando o erotismo da amizade colorida, a indisciplinada cantora francesa de ópera, Sophie Arnould (1740-1802), manifestou-se: “a amizade é irmã do amor, mas não na mesma cama”. Assim, nos traz grandes reflexões de momentos fincados no passado e do amor amigo com requintes de paixão, privilégio de poucos.

Particularmente, atrai-me a expressão do escritor, jornalista e humorista norte-americano, Kim Hubbard (1868-1930), pseudônimo de Frank Hubbard, mais tarde apossado por outros atores e escritores, que assevera “amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você”.

Então caro amigo, pode ser que um dia deixemos de nos falar... Mas, enquanto houver amizade, faremos as pazes de novo, como tão bem pontuou o alemão, estrelado Nobel, construtor dos pilares da física, mais conhecido pela sua formula de fácil memorização e é igual a emecê ao quadrado, mas também um perspicaz pensador, Albert Einstein (1879-1955).

Assim, amizade é algo muito particular. Posso afirmar que para mim é um cafezinho quente, uma notícia aliviadora de tensões, um sonoro fiadaputa, uma banana real, uma opinião ácida, o brilho de um olhar de apoio, a proteção de uma justificativa ou um paletó e gravata, em especial, quando este se faz a necessidade da hora”.

Caro amigo Serufo, muito obrigado pelo artigo e pela gravata!!!!

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2014 -Anno DominiÉ Natal.

Este exemplar do Boletim Mensal Gralha Azul da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional do Paraná é muito significativo. Como atual Presidente Nacional desta entidade, em término de mandato e como Editor Responsável, creio ser oportuna uma mensagem.

Os requisitos para que ela seja verdadeira é que venha do coração.

As mensagens usuais nesta época natalina concorrem para encher nossos olhos de lágrimas com mensagens de amor e esperança. Ousei contar um conto. O "Conto de Natal", escrito por Ruben Braga.

Em suas linhas, muito bem escritas, com notável sutileza, surpreende-nos desde o início. O ”empurrão do arame farpado com o dedo grande do pé, para que desse passagem à mulher com "barriga enorme de 8 ou 9 meses” até a chegada em uma estrebaria. Assim recria uma passagem bíblica, conhecida por todos nós.

Vai além. Passa também pela perda do emprego - demitido por Coronel Desidério até a fome do menino de 6 anos a mordiscar uma broa dura. O choque final com a presença do menino Jesus Cristo morto na manjedoura.

Não havia Reis Magos. Não havia luz, querosene. Ninguém para ajudá-los. A sós entre escuridão, relâmpagos, chuva e frio. É a recriação do moderno, do atual, da ausência de preocupação do Estado com a saúde integral de toda

Como interpretar essa a falta total de dignidade. Como interpretar a saga de um momento na vida de uma família, na profunda miséria, na desesperança da continuidade de suas vidas? Na busca pela fé, a esperança de um novo filho, nascido em dia de Natal, com o nome de Jesus Cristo e vê-la abruptamente esvair-se aos seus olhos?

Rubem Braga ousou. Através deste quadro nos expõe em nossa mais crua parte da humanidade, mais frágil, a linha entre a vida e a morte, nossa insignificância e pequenez. Também nossos desígnios mesclados com alegria na descendência. Nossos “meninos Jesus Cristos”.

Há que se perguntar sobre nossa sensibilidade. Perdeu-se nos "jornais nacionais"? A natureza animal em busca da sobrevivência assumiu definitivamente seu caráter em todos nós? Estaremos cegos e obliterados em relação ao sofrimento do próximo?

Acredito no bem. Nos homens de bem. Nas mulheres de bem. No mundo do bem. Admiro e aprecio o bem bom. Acredito na paz. Acredito na saúde. Acredito na amizade (vide Serufo acima). Enfim, acredito que não sou o único.

A todos, desejo um verdadeiro Feliz Natal!!!!

Editor Responsável: Sérgio Augusto de Munhoz Pitaki. [email protected]