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ISSN 1517-4506 Boletim Formação em Psicanálise PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

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ISSN 1517-4506

Boletim Formação em Psicanálise

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

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InstItuto sedes sapIentIaeDepartamento Formação em Psicanálise

Comissão De CoorDenação Geral, Gestão 2011/2012

antónio sérgio Gonçalves (coodenador), Gisela Giglio armando (primeira secretária), Maria tereza scandell Rocco (segunda secretária), Maria terezinha Cassi pereira Yukimitsu (primeira tesoureira), Mônica salgado (segunda tesoureira)

Comissão De PubliCação

talita Minervino pereira (coordenadora)Cristiana soldano (suplente)

revista boletim Formação em Psicanálise

eDitor

José Carlos Garcia

Comissão eDitorial

antonio Geraldo de abreu Filho, Cristiana soldano, José Carlos Garcia, Lineu Matos silveira, Lucianne sant’anna de Menezes, Margarida azevedo dupas, tatiana Russo França, Valesca Bragotto Bertanha

Conselho eDitorial

Cassandra pereira França (universidade Federal de Minas Gerais), Claudia paula Leicand (Instituto sedes sapientiae), durval Mazzei nogueira Filho (Instituto sedes sapientiae, GRea/IpQ – Instituto de psiquiatria da usp), ede de oliveira (Instituto sedes sapien-tiae, eBep – espaço Brasileiro de estudos psicanalíticos), eliane Michelini Marraccini (Instituto sedes sapientiae), emir tomazelli (Instituto sedes sapientiae), Flávio Carvalho Ferraz (Instituto sedes sapientiae), Francisca Isabel teixeira (Instituto sedes sapien-tiae, sociedade Brasileira de psicanálise de são paulo), José Carlos Garcia (Instituto sedes sapientiae), José F. Miguel H. Bairrão (universidade de são paulo/Ribeirão preto), Lineu Matos silveira (Instituto sedes sapientiae), Maria Beatriz Romano de Godoy (Ins-tituto sedes sapientiae, sociedade Brasileira de psicanálise de são paulo), Maria Lúcia Castilho Romera (universidade Federal de uberlândia), Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (Instituto sedes sapientiae), Marly t. M. Goulart (Instituto sedes sapientiae), Maria Cerruti (Instituto sedes sapientiae), nora de Miguelez (Instituto sedes sapientiae), sonia Maria parente (Instituto sedes sapien-tiae, unIB – universidade Ibirapuera), suzana alves Viana (Instituto sedes sapientiae)

GruPo De DivulGação: Margaret simas Ramos Marques (coordenadora), Mirian arantes Gallo GruPo De entrevistas: Mônica J. s. saliby (coordenadora), Gabriela Malzyner GruPo

De PubliCação De livros: Lucianne sant’anna de Menezes (coordenadora) GruPo De resenhas: Mônica salgado (coordenadora) GruPo De revisão De traDução: tatiana Russo França (coordenadora), nora de Miguelez oFiCina De

textos: Lineu Matos silveira (assessor) Jornal aCto-Falho: Luciana Khair (coordenadora), Fernanda Zacharewicz, talita Rodrigues Marques revisão PortuGuês: stella Regina azevedo alves dos anjos DiaGramação: Wellington Carlos Leardini ProJeto CaPa: silvia Massaro ProJeto GráFiCo: esper Leon Jornalista resPonsável: Marcos daniel Cézari – Mtps 11.193

InstItuto sedes sapIentIaeRua Ministro Godoy, 148405015-900, são paulo, sp(11) 3866-2730www.sedes.org.br / [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP)Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia

Boletim formação em psicanálise / Instituto Sedes Sapientiae, Departamento Formação em Psicanálise. – Vol. 1, no. 1 (maio/jun. 1992) – . São Paulo: O Departamento, 1992-

Ano XIX, v.19, (jan./dez. 2011)AnualPeriodicidade bianual de 1992 a 1994; anual a partir desta data.ISSN 1517-4506

1. Psicanálise – Periódicos. 1. Instituto Sedes Sapientiae. Departamento Formação em Psicanálise.

CDU 159.964.2 (05)

Indexação: Index Psi Periódicos (www.bvs-psi.org.br)

DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE

o departamento Formação em psicanálise tem por finalidade desenvolver atividades de caráter formativo, científico, cultural e de pesquisa em psica-nálise, de acordo com a Carta de princípios do Instituto sedes sapientiae. ele tem como fundamento prover a formação continuada de seus membros, cons-tituindo-se como um espaço de pertinência para alunos, ex-alunos e profes-sores, propiciando interlocução com o Instituto sedes e com a comunidade psicanalítica em geral.

oferece dois cursos regulares, abertos a psicólogos, médicos e profis-sionais com formação universitária: Formação em Psicanálise e Fundamentos da Psicanálise e sua Prática Clínica.

além desses cursos, o departamento promove cursos breves, pesqui-sas, grupos de estudo, eventos científico-culturais, além de publicar a revista Boletim Formação em Psicanálise e o jornal Acto Falho. participa também da Clínica psicológica social do Instituto sedes sapientiae.

sua organização é realizada através do trabalho de comissões, eleitas a cada dois anos entre seus membros. as comissões que compõem o Conse-lho deliberativo do departamento são: Coordenação, Curso, Clínica, eventos, divulgação, publicação, projetos e pesquisa, e alunos. essas comissões têm funções específicas e o objetivo de refletir, discutir entre seus pares e imple-mentar projetos que possam garantir que as propostas do departamento se-jam colocadas em execução.

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2. Seminários clínicos;3. Supervisão individual (no 4º ano);4. Monografia de conclusão de curso: com orientação individual, a ser realizada

após a finalização dos seminários teóricos e clínicos; 5. Estágio opcional na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, sujeito à

seleção e contando com supervisão específica;6. Formação continuada: atividades extracurriculares e no departamento; 7. Acompanhamento clínico: opcional para os alunos do 1o ano, no qual se tra-

balha em pequenos grupos a articulação da escuta clínica com os artigos sobre o método psicanalítico;

8. Realização de análise pessoal: obrigatória durante o curso.

Duraçãoo curso regular tem duração de quatro anos.

Carga horária do curso731 horas.

Horário/concentraçãoQuartas-feiras, com média de seis horas/aula semanais e mais uma hora e meia de atividades.

Seleçãoduas entrevistas individuais. apresentação de curriculum vitae (contendo foto) em duas cópias e um breve texto, no qual justifique sua a busca por esta for-mação (um para cada entrevistador).

FunDamentoS Da PSiCanáliSe e Sua PrátiCa ClíniCa

Corpo docenteantonio Geraldo de abreu Filho, Berenice neri Blanes, Celina Giacomelli, Ma-ria salete abrão nunes da silva, Maria tereza Viscarri Montserrat, patrícia Leirner argelazi.

CurSo Formação em PSiCanáliSe[1]

Corpo Docentearmando Colognese Júnior, Cecília noemi Morelli de Camargo, durval Mazzei nogueira Filho, ede oliveira silva, eliane Michelini Marraccini, emir tomazelli, esio dos Reis Filho, Homero Vetorazzo Filho, José Carlos Garcia, Ligia Valdés Gomez, Maria Beatriz Romano de Godoy, Maria Cristina perdomo, Maria Helena saleme, Maria Luiza scrosoppi persicano, Maria teresa scandell Rocco, nora susmanscky de Miguelez, oscar Miguelez, suzana alves Viana, Vera Luíza Horta Warchavchik.

objetivosCurso de especialização, que tem como objetivo a formação de psicanalis-tas. Busca transmitir a psicanálise em sua especificidade, com base nos três elementos essenciais da formação: análise pessoal, supervisão e es-tudo crítico da teoria psicanalítica a partir dos aportes das escolas fran-cesa e inglesa. Visa desenvolver a escuta transferencial, considerando o sujeito em sua singularidade. trabalha a clínica psicanalítica, desde a des-crição clássica feita por Freud até as formas de sofrimento observadas na contemporaneidade.

Destinado apsicólogos, médicos e profissionais com formação universitária, com expe-riência pessoal em análise individual e com percurso na teoria psicanalítica.

Conteúdo programático1. Seminários teóricos: Formações do inconsciente, o inconsciente, pulsões,

narcisismo, as identificações, neurose obsessiva e histeria, o Complexo de Édipo em Freud, angústia, superego e Édipo Kleinianos, teoria das posi-ções e Inveja em M. Klein, perversão e psicose em Freud e em M. Klein;

1. este curso foi credenciado no Conselho Federal de psicologia em 31 de janeiro de 2003, para espe-cialização em psicologia Clínica, em conformidade com a Resolução CFp 007/01.

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Carga horária do curso68 horas.

observaçãoo segundo ano é opcional e será oferecido para aqueles que cursaram o pri-meiro ano, que tenham interesse na continuidade de seus estudos. Médicos e psicólogos, que optem por dar continuidade ao curso, poderão se candidatar à seleção de estágio na Clínica psicológica do Instituto sedes sapientiae.

Mais informações:secretaria do Instituto sedes sapientiae

Rua Ministro Godói, 148405015-900 - perdizes, são paulo/sp

(11) 3866 2730www.sedes.org.br / [email protected]

objetivoso curso propõe trabalhar os conceitos que fundamentam a psicanálise e que servem de alicerce à sua prática. pretende, com isso, fornecer informa-ção que preencha lacunas a quem já algo conheça e fundamentos a quem desconhece, estimulando o interesse na continuidade do estudo, permi-tindo que uma eventual formação sistemática no futuro se faça sobre uma base mais sólida.

Destinado aÀqueles que se interessam pela psicanálise e que pretendam uma iniciação ao seu estudo: médicos, psicólogos e profissionais com formação universitá-ria em geral.

Conteúdo programático1. Especificidade da Psicanálise: psiquismo e corpo, terapias medicamentosas,

psicoterapias e psicanálise;2. A Divisão do Sujeito: dois conceitos fundamentais: Inconsciente e pulsão,

aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente, o ponto de vista tópico, o Recalque: desejo, conflito e defesa. pontos de vista dinâmico e econômico, discussão clínica;

3. Formações do Inconsciente: atos falhos, sonhos e sintomas, discussão clínica;4. Ponto de vista estrutural: Complexo de Édipo / Identificações, segunda teo-

ria tópica;5. Neurose, Psicose e Perversão: neurose, psicose, perversão, uma introdução à

psicopatologia psicanalítica, discussão de casos: um estudo comparativo,6. Questões da Clínica: a situação analítica, transferência e contratransferên-

cia, Resistência, a interpretação;7. O Analista: diferenças entre formação e informação.8. O tripé da formação analítica: análise do analista, supervisão e estudo da

teoria.

Duraçãoum ano.

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EDITORIAL

o Boletim Formação em Psicanálise abre este número com uma tríade de arti-gos que utiliza o recurso da arte para fazer avançar questões fundamentais do campo psicanalítico, aspecto que nos remete a ideia da psicanálise como uma atividade criativa, seja para o analisante seja para o analista, tendo em vista que é possível construir ficções pela experiência da fala e da escuta. o próprio Freud, em vários momentos, fez uso deste instrumento em reflexões e teori-zações suscitadas pela clínica, como em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1906), Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) ou em Dostoie-vski e o parricídio (1928), dentre tantos outros ensaios conhecidos.

a partir da contextualização histórica dos quatro discursos de J. Lacan, o primeiro artigo, de durval M. nogueira Fº, procura refletir sobre os efeitos que a realidade virtual pode produzir no homem contemporâneo, recorrendo ao cinema e à literatura, em especial no rico contraponto entre os filmes Ma-trix, de andy Wachowsky, e Substitutos, de Jonathan Mostow, mostra diferentes sociedades do futuro e as influências terríficas do avanço tecnológico e cien-tífico, assim como a submissão a determinados discursos, promovendo uma bela discussão sobre o eu, a realidade e a linguagem, deixando-nos a mensa-gem de que a transcendência seria a única maneira de garantir a insubmissão a discursos condicionantes do ser humano.

o segundo artigo traz a inovadora experiência de um grupo de semi-nário clínico, do departamento Formação em psicanálise (ana Raquel B. M. Ribeiro, Fernanda Zacharewicz e Luciana B. Khair, sob coordenação de Ligia V. Gómez), em que o intuito foi discutir a escuta como o elemento essencial na experiência da transferência e contratransferência, com foco na construção da escuta do analista em formação, a partir da prática de relacionar de um caso clínico com produções da literatura (A hora da estrela, de Clarice Lispector), da escultura (O impossível, de Maria Martins) e da música (Luz, de arnaldo antu-nes), possibilitando a construção de três escutas que se completam como Quel-ques Cercles, de Kandinsky, obra que inspirou o nome deste grupo: Nosso círculo.

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em um encantador diálogo entre as obras homônimas A terceira mar-gem do rio, o próximo artigo, de ana Raquel B.M. Ribeiro, procura mostrar a presença dos mecanismos de deslocamento, condensação e figurabilidade no poema (canção) de Caetano Veloso, a partir do que é narrado no conto de Gui-marães Rosa, supondo que a personagem que narra o conto em primeira pes-soa é aquela que ‘sonha’ a canção, fazendo da terceira margem no rio o que encerra o indizível, presente em ambas as obras.

o quarto artigo, de Leonardo B. tkacz, também aborda o tema do indi-zível, entre o corpo e a imagem, propondo esta discussão a partir dos conceitos de corpo e de imagem para a psicanálise, tendo como eixo teórico o conceito de estádio do espelho de J. Lacan e de seus desdobramentos na constituição do corpo do bebê, destacando a importância fundamental do olhar e da voz do outro (mãe), como meio de promoção das bordas garantidoras da imagem do corpo.

encerra a seção de artigos um trabalho na interface psicanálise e psi-cologia, fruto de pesquisa acadêmica de daniel schor, que trata do desenvolvi-mento infantil e procura estabelecer um mutualismo entre a constituição da noção de si-mesmo e do mundo externo, demonstrando que é possível encon-trar na obra de J. piaget elementos fundamentais para se ampliar a compre-ensão sobre fenômenos descritos por d. Winnicott e, em consequência disso, sobre as formas com que experiências muito precoces podem ser determinan-tes na constituição da subjetividade.

na entrevista, temos um bate-papo interessante de Gabriela Malzyner com Bernard Penot, psiquiatra e psicanalista membro da sociedade psicanalí-tica de paris, em que relata sua experiência no hospital-dia CeRep (Centre de Réadaptation Thérapeutique), onde criou, com sua equipe multidisciplinar, um instrumento institucional de pesquisa com psicóticos e pessoas com pertur-bações graves da subjetivação, que se baseia em levar o paciente a subjetivar sua transferência, aspecto que une com a questão da cura psicanalítica e da sublimação.

Finaliza esta edição uma Resenha e uma tradução de obras referentes a Wilfred Bion. a poética resenha, de emir tomazelli, apresenta um livro con-siderado um tributo de James s. Grotstein a Bion e sua obra. Já a tradução, de

Julia paladino sob revisão de Marly t. M. Goulart, é de um artigo de Richard J. Rosenthal (parte de uma obra organizada por Grotstein em comemoração aos 80 anos de Bion), uma leitura pormenorizada, a partir de conceitos bio-nianos, dos aspectos do funcionamento psíquico de Raskolnikov, personagem central do romance Crime e Castigo, de Fiodor dostoievski, o que nos movi-menta como Quelques Cercles, de Kandinsky, ao início deste editorial, na rela-ção da psicanálise com a arte, e na possibilidade do leitor vir a ser afetado por esta experiência criativa.

Lucianne Sant’Anna de MenezesComissão editorial

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SUMÁRIO

ARTIGOSEstamos todos tranquilos!?Are we all calm!?

Durval Mazzei Nogueira Filho 15

O Nosso Círculo: Fragmentos de uma Escuta PsicanalíticaOur circle: fragments of a psychoanalytic listening

aNa raquel BueNo Moraes riBeiro

FerNaNDa zacharewicz

ligia valDes goMez

luciaNa Bocayuva Khair 25

A terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) The third shore of the river: a dialogue between poetry (dream) and prose (vigil)

aNa raquel BueNo Moraes riBeiro 45

Corpo e ImagemBody and Image

leoNarDo BeNi TKacz 57

Revisitando Winnicott em companhia de Piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóicaRevisiting Winnicott in Piaget’s company: notes on the notion of ego immaturity.

DaNiel schor 63

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Artig

o

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ENTREVISTAEntrevista com Bernard PenotgaBriela MalzyNer 81

RESENHAUm facho de intensa escuridão – o legado de Wilfred Bion à psicanáliseA beam of intense darkness - the legacy of Wilfred Bion to Psychoanalysis

JaMes s. groTsTeiN - auTor

eMir ToMazelli 103

TRADUÇÃOA transgressão de Raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividadeRaskolnikov’s Transgression and the Confusion Between Destructiveness and

Creativity

richarD J. roseNThal - auTor

Julia PalaDiNo - TraDuTora

Marly T. M. goularT - revisora 111

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 163

Psicanalista, Mestre em Psiquiatria, Membro do Departamento Formação em Psicanálise, Membro da Seção São Paulo da Escola Brasileira de Psicanálise, Mestre em Psiquiatria pelo Hospital do Servidor Público Estadual – HSPE.

Estamos todos tranquilos!?DURvAL MAzzEI NOgUEIRA FILhO

Resumo: o autor escreve a respeito da influência que a realidade virtual pode vir a produzir no homem do mundo contemporâneo.

PalavRas-chave: psicanálise, Virtualidade, Clínica Contemporânea.

QueremoS?

uma maneira profícua de ler o desenvolvimento de Lacan (1992) sobre os quatro discursos é marcá-los com uma dimensão histórica. não é difícil atri-buir ao discurso do mestre antecedência a quaisquer outros discursos. Basta que concedamos à sua descrição à vontade de domínio e reconheçamos que na fala religiosa usual, das grandes religiões monoteístas às versões míticas sobre a origem das comunidades indígenas, não está ausente uma entidade que criou o mundo e criou os homens para agirem de acordo a seus desígnios. uma entidade que garante que não há fenômeno fora da lei e que o saber so-bre tudo está garantido pelo próprio ato criador. não há o que descobrir, há que agir corretamente.

se aplicarmos esta leitura à história da cultura ocidental não é incor-reto concluir que a ordem regida por deus prevaleceu absolutamente até que os homens arriscaram desafiá-la. o desafio não foi nenhuma declaração a pro-pósito da morte de deus, o desafio foi questionar que nada há a descobrir, que nada há a inventar, que nada há a aprimorar. Questionar, portanto, a perfeição

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da obra divina. Francis Bacon (1979) e o ‘Novum Organum’, de 1620, não obs-tante o respeito às formulações e ao poder religioso, propõe um método espe-cífico à ciência e a destina a cumprir um papel útil à humanidade. descartes, contemporâneo de Bacon, é outro que se insurge diante da tradição escolástica que não questionava a razão da existência dos objetos do mundo e do próprio homem. acena com a dúvida metódica para fundar um sujeito para o pensa-mento: penso, logo existo.

sem preocupação em receber crítica de filósofos e historiadores, des-cartes, Bacon e a multidão anônima de artistas mecânicos, para usar a expres-são de Rossi (1966, p.11), abrem o caminho para novas considerações “sobre o trabalho, sobre a função do saber técnico e o significado que têm os processos artificiais de alteração e transformação da natureza”. está pavimentado o tra-jeto para a era das Luzes e para que não seja mais um surpreendente desafio à ordem divina o homem deixar de lado a tutelagem e libertar-se para usar a razão sem a direção de outrem.

É neste momento da história que situamos a emergência do discurso universitário. Quando o homem recalca o significante-mestre (S1) e promove ao lugar do agente o saber (S2). está instaurada a ciência, com toda ambigüi-dade, virtude, benefício e malefício de sua ação sobre o mundo e o ser. de uma vez por todas, o saber desbancou a obediência.

em um primeiro momento, o mundo natural, onde vivem os homens, foi o objeto privilegiado da ciência de sua cria mais dileta: a tecnologia. não demorou muito para que a volúpia do saber dirigisse o poder para o ser que desenvolveu a ciência. dos passos nesta direção o mais decisivo foi a queda do vitalismo. Foi o momento em que não se atribuiu mais à matéria viva, à substância extensa, propriedades distintas da matéria física. o corpo e a pedra compartilhavam muito mais identidade que a vã razão vitalista poderia supor.

Foi na metade do século XX que esta perspectiva estabeleceu bases que mudaram o rumo do pensamento biológico. a lápide do vitalismo foi proferida por schrödinger (1996) em sua conferência no trinity College de dublin, em fevereiro de 1943. desenvolve um inteligente argumento para sustentar que o trabalho de um organismo exige leis físicas exatas e compara-o a um reló-gio. sua hipótese de que o material hereditário é constituído por um “cristal

aperiódico (p.85)” influenciou Watson, Wilkins e Crick a definir a dupla-hélice do adn e o resto da história é o que vivemos na contemporaneidade. todo e qualquer detalhe em torno da vida orgânica é objeto do escrutínio científico, sem excluir o conjunto de processos que levam à cessação do funcionamento desta máquina.

assim não é à toa que a edição nacional de julho de 2010 da Scientific American lista “os 12 eventos que mudarão tudo e não da maneira que você pensa” (chamada de capa) e inclui 3 relacionados à manipulação do corpo ou ações correlatas. a saber, vida sintética e máquinas conscientes (proposições herdeiras diretas da equiparação do biológico ao físico) e a clonagem humana. Como outras 5 seriam desastres radicais (Big one, guerra nuclear, colisão de asteróide, pandemia mortal e derretimento polar), vê-se que a intervenção na matéria viva, a possibilidade de reproduzi-la fora da natureza, a possibilidade de imiscuí-la de produtos sintéticos, a possibilidade de replicá-la sem a inter-venção sexual são pontos plenamente legítimos da atual ambição da ciência.

não há como saber as consequências desta marcha. Há como afirmar que inócua não será. Linares (2008, p.11) diz que “a expansão do poder tecnoló-gico tem afetado a autoconsciência da humanidade enquanto à compreensão de sua própria natureza e do posto que ocupa no universo”. diante desta constata-ção, se assim é possível escrever, os pensadores dividem-se entre apocalípticos e integrados. os últimos apostam todas as fichas que a humanidade, de posse dos produtos da agora chamada tecnociência, elevar-se-ia sobre a natureza e teria em mãos instrumentos poderosos para safar-se de qualquer tragédia. desde a tragédia da morte individual, marca da humanidade desde a linguagem, até a tragédia decorrente de algum desastre ecológico. Misturam-se neste belo caldo de leituras utópicas a possibilidade de deslindar os mecanismos genéticos do envelhecimento e da morte e, quiçá, criar por meio da engenharia genética células imortais a definir a matéria como ilusão e desenvolver complicadís-simos algoritmos para afirmar que absolutamente tudo em torno resume-se a bits e informação, acenando com a decifração deste código e, portanto, com a possibilidade de controle deste processo e reduzir a matéria, vida biológica incluída, à realidade fundamental cibernética. Longe do peso da vida carnal. Luna e López (2005) classificam pensadores deste jaez de ‘otimistas científicos’

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e ‘otimistas éticos’. Crêem que não somente a humanidade vai alcançar este patamar como apostam que esta perspectiva segue a máxima iluminista de uma ética regida pela razão e pelo igualitarismo. os apocalípticos recortariam este campo de outra maneira. se bem que ‘otimistas científicos’, pois apostam no sucesso da tecnociência, seriam ‘pessimistas éticos’. dado que atribuem o sucesso da ciência à falência de qualquer ética sustentada na responsabilidade. o raciocínio é que a humanidade dedicou-se à liberdade, abandonou o princi-pal discurso – do Mestre – que pedia a obediência, para entregar-se ao domínio pelo discurso universitário e abdicar de construir o próprio destino para além de um hedonismo imóvel.

no primeiro time estão Ray Kurzweil, andy Clark, Marvin Minsky, donna Haraway e Michio Kaku. no outro time Hans Jonas, Jürgen Habermas, Zygmunt Bauman, Jacques ellul e Jean Baudrillard. Como se vê, daria um par-tidaço de futebol de salão.

Resta saber se é o que queremos...Resta saber se é o que desejamos...

FiCção CientíFiCa?

os filmes “Matrix”, de andy Wachowsky e “substitutos”, de Jonathan Mostow, são apocalipses futurísticos.

o cinema e a literatura dividem-se em seus exercícios premonitórios. Há filmes, como “Mad Max”, de George Miller, e romances, como “um cântico para são Leibowitz” de Walter Miller, que descrevem um futuro onde o avanço tecnológico desaparece – em geral, por suas contradições internas – e a hu-manidade é, de uma hora para outra, jogada em uma situação sociocultural primitiva. noutros filmes, “Matrix”, por exemplo, e romances, como “o admi-rável mundo novo”, de aldous Huxley, o avanço tecnológico desenvolve-se de tal forma que não se pode mais pensar na Humanidade como singularidade. a morte do Homem torna-se uma verdade primária.

nas histórias do primeiro tipo, o dilema da humanidade é a reorgani-zação de um mínimo de Lei que não seja, simplesmente, a supremacia do mais forte e proporcione uma distribuição justa do espólio da falência da sociedade. nos filmes do segundo tipo, um homem ou pequeno grupo dá-se conta de que

algo com a realidade está errada. a realidade que a cultura em torno aponta é um engano, apresentado como verdade indiscutível pelo poder da insistência e pela insistência do poder. nos dois tipos de relato, o que ‘salva’ a humani-dade é, talvez, a única especificidade humana: a disponibilidade à transcen-dência. Isto é, a possibilidade de reconhecer o outro. seja o outro como Lei. seja o outro como Real. transcender é ir além da aparência, além da empiria metodológica ou imanente. e esta possibilidade existe se e somente se há uma perspectiva ética em cena.

o personagem de Keanu Reeves, em “Matrix”, é esperado por um pe-queno grupo como o salvador. este pequeno grupo transcendeu. deu-se conta que a realidade oferecida pelo grupo dominante continha furos e convencia apenas pela cumplicidade dos que deixam a luta pelo próprio futuro. o argu-mento se estrutura como uma metáfora futurística do renascimento de Cristo. Cabe salientar que a versão cristã da transcendência – o reconhecimento do outro como deus – se é genuína, não é a única. o outro como Lei ou o outro como Real aproxima-se das versões psicanalítica e existencialista da trans-cendência. o personagem de Bruce Willis, em “substitutos”, é um policial que resgata o espírito dos detetives noir de dashiel Hammet. É a reserva moral em um mundo onde impera o caminho mais fácil. Homens e mulheres ao redor, incluindo a esposa do herói, aceitaram entregar a vida a artefatos tecnológi-cos cibernéticos feitos de material imitador da pele que não envelhecem, são lindos e sedutores. tais corpos cibernéticos é que trabalham, dançam, namo-ram, drogam-se, trepam enquanto os corpos reais estão nos quartos plugados a computadores fruindo, em tempo real, as peripécias dos substitutos.

o filme “Matrix”, então, pertence à categoria das previsões apocalípti-cas onde o traço característico da humanidade – a transcendência – torna-se impedida em função do totalitarismo tecnológico. na história, os sujeitos são mantidos sob controle, imersos em uma onipotente realidade virtual policiada por mandatários de uma instância de comando sobre a qual o espectador nada sabe. neste sentido, “Matrix” exibe um paradoxo que define bem a ambigui-dade, percebida ou não, da humanidade perante a Ciência e a tecnologia. as-sim, enquanto nos divertimos e nos fascinamos com os efeitos especiais, efeitos produzidos pela virtualidade de poderosos computadores, assistimos ao horror

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que a realidade virtual pode constituir. se visto desta forma, o filme propõe uma reflexão entre o prazer e a facilidade imediata que a tecnologia oferta e o preço a pagar pela artificialização e alienação que a tecnologia e a Ciência produzem. o filme revela uma face desta alienação: a realidade virtual, apesar de oferecida por alguém – um homem – que a define, é a ‘realidade real’ que os cidadãos vivem. a atividade subjetiva dos sujeitos naquela cultura é inteira-mente dominada por esta ‘verdade’ sobre o Real oferecido por uma instância de domínio. neste sentido, o filme ‘substitutos’ pode servir como um perfeito antecedente de Matrix. o ambiente não é em nada diferente das cidades con-temporâneas. não há elemento futurístico. o espectador descobre que está no terreno da ficção científica quando é revelado que aqueles belos e felizes huma-nos são artefatos. o ponto é que não há obrigação em viver por meio dos tais artefatos. os sujeitos escolheram substituir o peso da carne, a dor da carne, o horror pelo envelhecimento, o luto pela perda do poder sedutor por um arte-fato tecnocientífico. a servidão voluntária, horror dos iluministas, encontra perfeita guarida no mais íntimo sonho de um sujeito.

É PoSSível?

Há essa possibilidade? Há possibilidade daquilo que se julga ‘realidade’ ser da ordem da construção artificial? e há a possibilidade de homens e mulheres sin-gulares optarem por viver este engano voluntariamente? as histórias de “Ma-trix” e “substitutos” têm, portanto, a chance de não se restringirem a uma das milhares das histórias da imaginação desprovida de praticidade? a humanidade pode, de fato, enganar-se e entregar-se a este ponto? ao ponto de que o que é vivido com todas as qualidades de uma vivência genuína ser um engodo? se a resposta a estas perguntas não recupera em nada o animismo primitivo, nos faz tremer ou nos regozijar pela possibilidade de receber “sim” como resposta.

dois pesquisadores separados por aproximadamente 100 anos, Freud e Maturana, orientam-nos.

em 1895, Freud escreveu o Projeto para uma Psicologia Científica. neste texto, de uma maneira bastante original, o fundador da psicanálise constrói um esboço de aparelho psíquico. a principal característica deste aparelho original é a separação que Freud faz entre o fenômeno bruto da percepção e a sensação

consciente que nos garante a realidade como fenômeno presenciado. entre a percepção bruta e a consciência, Freud interpõe o setor “psi” constituído fun-damentalmente por representações que não copiam os objetos do mundo. e, além disso, estas representações vinculam-se à história do sujeito. Isto é, re-presentam-se as experiências que o corpo vive. Mas, caracteristicamente, as representações, se pretendem orientar e organizar a relação do sujeito à rea-lidade o fazem de acordo com uma lógica própria que não repete a lógica dos objetos e acontecimentos que representam. Como este setor “psi” se interpõe entre a percepção bruta e a sensação consciente, garante da realidade, é lícito concluir que a garantia de realidade recebe uma contribuição importante da organização das representações e, portanto, das experiências históricas e pes-soais do sujeito. Isto é, sendo verdadeira a proposição freudiana, o que chama-mos de realidade inclui a participação daquele sujeito que a descreve e que a vive. outro ponto que Freud salienta neste texto é que justamente por cadeia de representações e realidade obedecerem a lógicas distintas, é fundamental que cada sujeito faça um trabalho que o desvencilhe do poder fascinante das representações e alce ao que denomina ‘principio de realidade’. Isto é, como o aparelho psíquico funciona sustentado na materialidade das representa-ções ele não exige o mundo real, senão como aplacador da carga originária no corpo. Repete-se: se não há nenhuma justificativa em renovar o animismo primitivo, constata-se, desde Freud, que há um hiato difícil de ser transposto entre a realidade e o sujeito que a vive. Isto quer dizer que este pacto objetivo que nos preside não é um dado que se oferece espontaneamente à percepção que, por sua vez, também seria espontânea. não são, na verdade, a realidade e a percepção como dois canais abertos que não recebem influência nenhuma do ator do ato perceptivo.

na década de 60 do século XX, Maturana (2001/1997), um biólogo em nada influenciado pelo pensamento freudiano, conduziu experimentos sobre a percepção visual que levaram à observação que diferentes combinações de comprimento de onda [luminosa] podem gerar a mesma experiência cromá-tica, assim como as mesmas combinações de comprimento de onda podem ge-rar distintas combinações cromáticas. estes experimentos – aqui não descritos – levaram o pesquisador a concluir que a visão é um fenômeno que depende

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da estrutura do sujeito que vive a experiência. outra vez, não há espontanei-dade perceptiva. o último passo das conclusões de Maturana levou-o a mudar a pergunta tradicional sobre a percepção, isto é, deixou de correlacionar a ati-vidade da retina com a cor definida em termos de espectro luminoso objetivo, para correlacioná-la com o nome da cor. Quer dizer: há uma experiência de linguagem além do ato perceptivo. se, sem nenhuma extrapolação indevida, é considerado que o termo representação, em Freud, inclui decisivamente a lin-guagem é notável que autores de interesses e preocupações tão diversas con-cluam da mesma forma que o nexo entre realidade e percepção não pode, e não deve, descrever-se como um fenômeno imediato sem a intervenção de nada mais que a boa fisiologia dos órgãos do sentido e a clareza óbvia da realidade.

desta forma, mesmo que Maturana e Freud não se influenciem reci-procamente, são dois autores que, a despeito de partirem de pressupostos dis-tintos, propõem que o sujeito que percebe participa na construção da realidade onde vive, apesar da evidência empírica que atesta que há o ‘eu’ e a ‘Realidade’. aliás, é a psicanálise que mostrou que esta diferenciação – entre o ‘eu’ e a ‘Re-alidade’ – na verdade, é constituída na rede de laços que se estabelece entre o infante que se desenvolve e os outros que o recebem, para o Bem ou para o Mal.

a conclusão final é que o cérebro, órgão que sustenta a atividade psí-quica, não tem autonomia para captar a realidade, não tem como decifrar a realidade, se não estiver vinculado à linguagem. o antropólogo Geertz (1989, p.57) diz: “o homem precisa tanto de... fontes simbólicas de iluminação para encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não-simbólica constitu-cionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa”. se assim é:

(...) não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos

significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingoverná-

vel, um amplo caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua ex-

periência não teria qualquer forma. a cultura, a totalidade acumulada de tais

padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma con-

dição essencial para ela (GeeRtZ, 1989, p.58).

Como a linguagem é um pacto social sem autor, por mais que a po-tencialidade linguística possa aproveitar-se de detalhes da estrutura cerebral, e participa na constituição da realidade, não é impossível concluir que outras formas de influenciar a atividade de um sujeito que possui um cérebro possam constituir uma realidade com todos os traços de legitimidade. É exatamente este o ponto que as distopias futurísticas que inspiram este texto salientam. em “Matrix”, a humanidade vive com todo o frescor de uma existência plena enquanto está confinada em casulos, imóvel e alimentada por uma complexa rede de tubos e cateteres. em “substitutos”, voluntariamente a humanidade renuncia aos tropeços usuais para viver com plenitude apenas as boas sensa-ções. sem nenhum tipo de risco. pelo descrito, não é, em hipótese nenhuma, negativa a resposta às perguntas acima expressas. a realidade é, sim, uma construção que pode vir a ser artificializada pelo progresso tecnológico e se, porventura, esta seja mais aprazível que a construção que obrigatoriamente todos arquitetamos muitos de bom grado aderirão.

Por Fim...

a referência a Freud e Maturana é para sustentar que o horror virtual que do-mina as sociedades futurísticas de “Matrix” e “substitutos” é possível. a rela-ção do homem à realidade é mais frágil do que a certeza subjetiva supõe. em última análise, significa que a renúncia à crítica, a obediência cega a discur-sos de qualquer natureza tem o poder, sim, de conformar a realidade que ha-bitamos. a linguagem e a cultura são tão condicionantes da realidade quanto a convicção de que o mundo real nos antecede. significa que transcender e sa-car que há algo além de qualquer experiência possível, se traz mais trabalho ao sujeito, é a única maneira de garantir a insubmissão a qualquer discurso que vise dizer como é o Homem ou como são as Coisas. Venha o discurso de onde vier: da Religião, da Ciência, da Rede Mundial ou da televisão.

não há outra maneira de tranquilizarmos.

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Artig

o

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Are we all calm!?

abstRact: The author points out the influence that the virtual reality can produce on mankind in the contemporary world.

KeywoRds: Psychoanalysis, Virtuality, Contemporary Clinic.

reFerênCiaS

BaCon, F. (1620) Novum Organum. são paulo: abril, 1979, 276p.CHoI, C. Q. 12 eventos que mudarão o mundo. In: Scientific American – Brasil,

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sCHRÖdInGeR, e. (1944) What is life? With ‘mind and matter’ and ‘autobiogra-phical sketches’. Cambridge: Cambridge university press, 1996, 184p.

Durval Mazzei Nogueira FilhoRua almirante pereira Guimarães, 298

pacaembu(11) 3862-5716

[email protected]

1. Membro acadêmico do Departamento Formação em Psicanálise do ISS

2. Membro acadêmico do Departamento Formação em Psicanálise do ISS

3. Psicanalista, Professora e Supervisora do Departamento Formação em Psicanálise do ISS

4. Membro acadêmico do Departamento Formação em Psicanálise do ISS

O Nosso Círculo: Fragmentos de uma Escuta PsicanalíticaANA RAqUEL BUENO MORAES RIBEIRO[1] FERNANDA zAChAREWICz[2] LIgIA vALDES gOMEz [3] LUCIANA BOCAyUvA KhAIR [4]

Resumo: o artigo apresenta o resultado de um ano de trabalho em um semi-nário clínico de formação de psicanalistas, do curso Formação em psicanálise do Instituto sedes sapientiae. nessa experiência, produções artísticas foram instrumento para a construção da escuta do analista em formação. três escu-tas de um caso clínico discutido pelo grupo evocaram diferentes ilustrações artísticas da literatura, da escultura e da música, respectivamente. tais ima-gens, emergentes do singular e também do grupo, compuseram o processo de escuta e a elaboração de uma narrativa que transcende o caso original, confi-gurando uma experiência sensorial e associativa fundamental na formação de uma escuta psicanalítica sensível.

PalavRas-chave: escuta psicanalítica, arte, Literatura, escultura, Música.

escutar, escutar e escutar... transforma.

Não desças os degraus do sonho

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Para não despertar os monstros. Não subas aos sótãos – onde Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma. Não desças, não subas, fica. O mistério está é na tua vida! E é um sonho louco este nosso mundo...

Mário Quintana

encontramos reflexões e críticas abundantes de como a nossa escuta é moldada por elementos da cultura, que vão organizando os nossos pensa-mentos e nossas subjetividades, nas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive na psicanálise.

seguindo esse caminho, o presente trabalho é fruto da experiência que foi proposta a um grupo de seminário clínico, sob a minha coordenação, no curso Formação em psicanálise do Instituto sedes sapientiae.

o objetivo ímpar do seminário foi o de possibilitar a cada membro do grupo uma reflexão sobre a escuta, tendo em vista a sua formação como ana-lista. adotamos a prática de relacionar o caso clínico com produções de arte, de literatura e de música; com o intuito de discutir a escuta do analista, como o elemento essencial na experiência da transferência e contratransferência, tão caras à prática psicanalítica. Cada aluno apresentou o caso clínico duas vezes para a supervisão e reflexão em grupo e, num terceiro encontro, cada um trouxe um novo elemento das artes e da cultura articulando-o ao caso já comentado.

passaremos a descrever as principais ideias que fundamentaram te-oricamente o trabalho, seguido das três escutas que articulam o caso clínico com produções artísticas.

pensamos a escuta como o marco inicial de um processo em que ideias, palavras, frases, gestos, são tecidos pela língua falada e escrita. destacamos a ideia de que a língua ou linguagem constitui e organiza o sujeito. e na prá-tica clínica, transforma o analista em seu trabalho e o analisando em suas descobertas.

Roland Barthes considera a língua como expressão máxima do poder.

ocorre em toda parte desde um espaço público representado pelo estado, pas-sando pelas relações familiares e privadas, chegando mesmo até aos impulsos organizadores do sujeito. (BaRtHes, 1997)

diz Barthes (1997, p.13):

... por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação.

Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com de-

masiada frequência, é sujeitar: toda a língua é uma reição generalizada.

esse conceito é ampliado em outro livro do autor ao afirmar a existência na língua de pelo menos cinco elementos (o hábito, a repetição, o estereótipo, o chavão e a cláusula obrigatória), que contribuem para a alienação do sujeito, e revelam como esta é trabalhada pelo poder no contexto social. (BaRtHes, 1987)

não pretendemos aprofundar cada um desses conceitos, somente ire-mos assinalar que, de diferentes maneiras, todos apontam para a perpetuação do sempre igual, da verdade absoluta e do sentido único em nossas expressões linguageiras.

Hoje em dia, vemos o quanto algumas ideias podem se organizar em torno de objetos supostamente paradisíacos, como o da magia de um saber absoluto, da sensação de um poder supremo e de uma Felicidade Infinita. são ideias-objetos, veiculadas como mercadorias que vão sendo consumidas pelo sujeito às custas de sua própria alienação. são condições criadas com a função de apagar contradições, eliminar tensões e evitar confrontos e diversidades. a ilusão de completude ofertada ao sujeito é, então, revestida de permanên-cia e sentida como realidade eterna. Vivemos o encantamento do significado em excesso, dando a ilusão de que tudo pode ser explicado, esgotado e esface-lado, e com isso perdemos o prazer, o lúdico, o não sabido, na construção dos nossos saberes.

Quando Barthes trata a língua humana como um lugar fechado, que subjuga e aliena, traz também a ideia de que a liberdade, a singularidade, só pode existir fora dos significados cristalizados, fossilizados.

pensamos que a psicanálise se aproxima cada vez mais desse contexto, tendo em vista a reflexão do sujeito que é constituído por esses discursos, ao

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tratar do inconsciente –do sujeito cindido, heterogêneo e singular. a teoria la-caniana amplia e aprofunda essas contribuições, com a afirmação de que no sujeito, há sempre algo que vaza, aquilo que permanece enigma, que é – o não sabido, o inominável, o mais pulsional, o gozo.

atualmente assistimos no árduo trabalho de análise, aos momentos de angústia, de estranhamento dos pacientes, ao não conseguirem expressar verbalmente esses estados. Marcadamente denunciam em si a situação da nossa cultura contemporânea. Vivem momentos de gozo, silenciosos, exces-sivos, traumáticos que transbordam e fazem com que tudo permaneça sem-pre igual e desconhecido.

o não sabido e a singularidade também podem ser estímulos para o trabalho, quando nós analistas, escutamos. a sutileza do ato analítico deve li-gar-se à singularidade do sujeito e não à universalidade dos fatos. assim a sin-gularidade considerada como unidade de trabalho e, o não sabido, como fonte permanente de interrogação do sujeito em relação a si e ao mundo, gerando estímulo para a reflexão, foram as condições que nos interessaram para pen-sarmos a escuta em psicanálise.

um dos caminhos de pensar essa questão foi a partir do conceito de texto ou escritura em Barthes (1974, p.81):

texto quer dizer tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado

por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais

ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido,

a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaça-

mento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz,

como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas

da sua teia. se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do

texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia de aranha).

essa noção em Barthes foi norteadora para pensarmos que na escuta há, pelo menos, duas vertentes que podem ser tratadas:

a) a dos significantes que remetem ao significado único, mantendo-nos

no visível, no conteúdo manifesto, em que as palavras cristalizam-se num só sentido ou numa única explicação. a linguagem nesse contexto fica com a função de comunicar, de informar, e mesmo assim não livre de ruídos, equí-vocos e desencontros.

b) outra vertente é aquela em que o significante ao relacionar-se a ou-tros significantes constrói uma rede, composta pelos fios e espaços entre eles, que ampliam infinitamente as possibilidades de significação. uma teia, uma “hifologia” como vemos em Barthes.

podemos dizer que a articulação de significantes vai formando uma rica tessitura, por entre metáforas e metonímias para Lacan (1985), para Freud condensações e deslocamentos, que anuncia o inconsciente – esta é a textura da escuta psicanalítica.

Mas como numa terceira margem do rio, parodiando Guimarães Rosa (1987), uma terceira vertente se delineia, e assinala um outro elemento da rede – os vazados, os espaços que ficam delimitados pelos fios. os vazados passam a constituir lugares invisíveis, que marcam um trânsito para fora da palavra. dito de outra forma: se por um lado o que escutamos vai formando a rede com-posta de linhas da rede, em que a palavra disparada pela pulsão vai se movi-mentando como um caleidoscópio de linguagem, por outro lado, é nos espaços entre os fios e nós da rede, no vazado, que está o fora da palavra, o além da pa-lavra – lugar de caos e de silêncio.

Cabe ao analista escutar e captar esses momentos, até que possam ir adquirindo forma pela linguagem. são momentos que merecem vir à tona, sem qualquer precipitação do analista, sem que este tente encaixar o analisando nas pré-concepções científicas, que modulam os sujeitos, nomeando-os com designações que por vezes o desconsideram em sua singularidade.

percebe-se, então, como a escuta precisa ter a função de descolar a pa-lavra de suas significações prévias, estereotipadas e alienadas para tentar (re)colocá-las em movimento, para que possa aparecer o que ainda não tem visi-bilidade. preparar o campo analítico para o questionamento, para o pensar é trabalho longo. É trabalho do analista em sua escuta, aprender a escovar as palavras como diria o poeta Manoel de Barros (2003).

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tranSgreSSão?

o ato de brincar para Winnicott (1975) evidencia a riqueza de expressão das crianças, com o emergir das experiências e dos processos delas, no longo pro-cesso de constituição e desenvolvimento. pelo brincar as crianças expõem e vão simbolizando o que lhes ocorre internamente. não há nelas um objetivo consciente de comunicar ou informar alguma coisa, mas sim de expressar as suas vivências natural e espontaneamente.

um exemplo disto é o acervo de músicas infantis presentes no imagi-nário da criança e em nossa cultura. diversas vezes já ouvimos e cantamos a música infantil “quem cochicha o rabo espicha... quem escuta o rabo encurta...”.

podemos escutar essa canção popular como tendo a função de man-ter a escuta nos limites tidos como apropriados, segundo ditames culturais, pois vamos crescendo moldando-nos no “como deve ser”, “quais os padrões a espelhar”, etc.; mas, também, podemos ouvi-la através do efeito que nos causa – o prazer pelo proibido. destacamos aqui não o sentido normativo, e sim o efeito atraente e transgressor que o proibido pode disparar. podemos di-zer com relativa certeza que todos nós já cochichamos e escutamos para além do dito “permitido”, não? e, a partir daí, pudemos (re)encontrarmo-nos com situações, pensamentos, afetos, que não imaginávamos... um misto de horror, de gozo, quiçá de prazer, algo novo inaugurando um espaço do pouco dantes navegado, como premissa de explosão e quem sabe libertação.

pois bem, a escuta que vai além do instituído, aquela que amplia limi-tes, que se constitui como uma escuta que tece rupturas, foi a primeira das propostas de reflexão no seminário. pensamos o caráter transgressor da es-cuta como uma das possibilidades de instaurar o pensar, o fazer como criação e novidade, num ofício que se aproxima mais ao fazer artístico pela criação que permite, do que à prática científica clássica.

rePetição ou o De-novo, novo?

na mitologia, conhecemos a ninfa eco, aquela que falava incansavelmente – uma tagarela como ficou conhecida por nós. a deusa Hera mulher do deus maior Zeus, ao sentir-se enganada pela fala incessante de eco a enfeitiçou, con-denando-a a só repetir as últimas palavras do que escutava. eco ficou, então,

eternamente presa aos ditos e não ditos do outro. temos aqui o exemplo de como a repetição do sempre igual contribui à intensificação da alienação e do estranhamento na busca de quem somos, e nos congela, cristaliza, para a possi-bilidade de mudanças e transformações acontecerem. a necessidade de uma es-cuta que vá além da repetição na busca do novo foi outra de nossas atribuições.

ParaDoxo e PermanênCia?

o poema “rose is a rose is a rose is a rose...”, de Gertrude stein, tão amplamente difundido e conhecido, é um marco da modernidade e da linguagem. sem aden-trar nos ensaios feitos sobre este poema, destacamos a ideia do paradoxo que está contido nele. a “rose” é afirmação, é negação pela repetição, é algo além de “rose”, mas permanece sendo “a rose”, também.

a escuta pode ser paradoxal se pensarmos que como na teia, na rede, a palavra pode remeter a vários sentidos, e o que une linhas, o que constrói for-mas vazadas, dá a tessitura da rede. Mesmo quando priorizamos um sentido este é um elemento momentâneo, de um todo de criação contínua – a rede.

podemos usar a metáfora de sermos cavernas, cujas experiências ficam tatuadas em nossa carne e constroem as nossas psiques, como inscrições, es-crituras, hieróglifos que nos marcam, constituem e organizam e podem contar nossas histórias infinitamente. para que possamos fazer descobertas, é neces-sário que as palavras, gestos e silêncios sejam ouvidos nas três condições de escuta apresentadas: descoladas do usual, do antigo; para fora dos ecos repe-titivos do sempre igual; e, em sua condição paradoxal, são possibilidades de abertura para o novo. É preciso que possamos permanecer atentos a um ecoar interno, às vezes um sussurrar, às vezes um trovejar, nos seus movimentos descontínuos e permanentes, lugar de criação.

permanecer para escutar não é tarefa fácil! por entre subidas e des-cidas, encontros e desencontros, que possamos permanecer como nos con-vida Quintana, no mistério da vida, lugar onde, também, habitam enigmas e monstros conhecidos, e quiçá, alguns, possam ser decifrados e (re)integrados na relação terapêutica.

na clínica, os ecos ditos e ouvidos, resquícios das sessões são transfor-mados pela escuta do analista, porque entrelaçados à escuta interna da sua

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subjetividade e de seu arquivo de vida. a escuta do analista se enriquece, se pode flutuar também no cotidiano, usando a arte em suas variadas expres-sões. são instrumentos importantes para o analista na sua prática psicana-lítica, porque aprofundam a compreensão da sua relação com o analisando.

neste trabalho optamos por refletir, a partir de um único caso clínico, as várias possibilidades de escuta das analistas em formação, e as diversas ar-ticulações e entrelaçamentos que houve entre elas, permitindo a construção de um fazer coletivo.

não deixamos de tentar compreender o analisando, nas devidas super-visões clínicas, mas ao ampliarmos as possibilidades de escuta, fomos refinando e transformando, porque permitiu irmos para além da escuta do caso; permi-tiu a criação de diferentes personagens gerados pela escuta singular de cada uma das analistas. trouxe a possibilidade de cada uma poder ir construindo seu estilo próprio, mais pessoal, seu jeito mais natural de ser analista e estar nos seus atendimentos.

Foi possível, a partir do caso clínico analisado, perceber a analisanda se tornar Béa ao ser escutada em conversa com a Macabéa personagem do conto de Clarice (LIspeCtoR, 1998). numa outra escuta, Béa fundiu-se aos tentáculos do Impossível, a escultura de Maria Martins (da Mata, 2008) e sua agressivi-dade pode emergir como instrumento de reflexão. numa terceira possibilidade temos Béa fragmentada na luz, conforme música de arnaldo antunes (antu-nes, 1993) com seu conteúdo de poesia concreta, em que Béa encontra a sua sombra para ensaiar ser.

partes tão diferentes e que ao final compõem um todo sensível e pas-sível de aprendizado. na analisanda num devir longo, trabalho de ourivesaria da dupla analisando/ analista. neste trabalho ampliando limites e formando o analista.

QuelQues CerCles

Formado o grupo, passamos a chamá-lo de “nosso Círculo”, inspiradas por Kandinsky, já que a tela Quelques Cercles (KandInsKY, 1926) ilustra o que foi nosso trabalho. nessa tela, sobre o fundo azul escuro, ficam lado a lado, sobre-postos ou justapostos, variados círculos de diferentes cores, formatos, texturas

e tons, que apesar da singularidade de cada peça, juntas se complementam e formam um conjunto.

artista do século XX, um dos porta-vozes da arte Moderna, o pintor nos provoca e convoca a uma desmontagem da realidade construída e instiga a uma nova leitura, autoral. essa obra suscita a efervescência que vivemos: plu-ralidade de perspectivas, de interpretações, uma “polifonia visual”, inspirada pela escuta e enriquecida pelas obras de arte em suas mais variadas formas.

no álbum da exposição do artista, realizada em paris, editado pelo Mu-seum Centre pompidou (Centre pompidou, 2009, p.45), explica-se que “o círculo é a forma mais modesta, porém a que se afirma mais incondicionalmente; é precisa, mas infinitamente variável; simultaneamente estável e instável; si-multaneamente intenso e suave; única tensão, mas que carrega incontáveis tensões em si mesma”.

os círculos que contêm (ou deixam de fora) cores, contrastes, gritos, sussurros, contornos nítidos ou manchados, precisos ou difusos, esparrama-dos. assim foi a escuta de cada um de nós, singular. assim foi a escuta de nosso grupo, una; um conjunto com círculos que se complementam, formam um todo; diferentes entre si, se sobrepõem, se intersectam, se incluem e excluem, tingem, mudam a cor um do outro, realçam ou simplesmente escurecem. um caldo de estilos e subjetividades de onde pode emergir, a partir de cada escuta singular, uma coletiva.

a seguir, apresentaremos o caso clínico “Béa” e três escutas analíticas que foram construídas, inseridas nessa polifonia visual que citamos, tomando como suporte ilustrações artísticas da literatura, da escultura e da música, respectivamente.

PSiCanáliSe e literatura - um PouCo (um Conto) De BÉa

Béa. assim será chamada por influência de Clarice. não que a paciente Béa seja toda Macabéa – a moça de A hora da Estrela de Lispector – ela o é em sua busca por contornos para existir. Béa parece ainda não saber se existe ou, ao menos, parece ainda não ter encontrado as palavras para nomear-se.

Béa não é só pessoa, só paciente ou caso clínico. Béa é, antes, um per-sonagem criado numa escuta coletiva e atravessada de poesia, imagens, sons e

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palavras. aqui Béa é um conto criado por muitas mãos e que como todo conto tem a marca da vivência de quem o escreve.

na primeira vez em que veio ao consultório, Béa sentou-se encolhida na pontinha da cadeira, apertando a bolsa sobre os joelhos encostados, já quase indo embora. Medicada para evitar a dor de existir, tinha dificuldade de dizer o que se passava com ela mesma, atada que estava à única certeza de que nada do que dissesse poderia prestar.

aos poucos, as palavras apareceram, uma a uma, eclodindo sem que ela pudesse senti-las propriamente como suas. ouvir Béa falar de si é como ler, no conto de Clarice, o personagem-narrador descrever Macabéa – não se tem certeza onde primeira e terceira pessoas se encontram e se distinguem. Lá, no conto, o narrador fala das dores da nordestina, sendo ele próprio nordes-tino e cria em Macabéa uma (in)existência que ele não sabe se é sua também. assim acontece com Béa. Relata fatos que seriam quase como seus, mas não ousa se aproximar deles, talvez pelo medo de sentir a violência que tais fatos embutem. nesse sentido, Béa, assim como Macabéa, “falava, sim, mas era ex-tremamente muda”. (LIspeCtoR, 1998, p.37)

Béa diz não ter amigos por não conseguir conversar. nunca sabe do que as pessoas estão conversando ou quando sabe alguma coisa é incapaz de ter uma opinião a respeito. essa era a mais forte reclamação do então namorado e principal motivo dele para humilhá-la e para sucessivos rompimentos, vivi-dos em sua maioria por Béa como aniquilamento de si mesma.

Ridicularizada em sua existência pelo namorado e pela família, Béa/Macabéa, como diz Lispector (1998, p.36) “não perguntava por que era sem-pre castigada, mas... nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte impor-tante de sua vida”.

o não dizer/ não saber/ não sentir de Béa, assim como de Macabéa, en-contram lugar no corpo, onde o adoecer é a tentativa de um grito de existência.

Béa é quem sustenta, precariamente, a família desde a morte de sua avó, a grande provedora. sem se dar conta de que passou a ocupar o lugar da avó, Béa se “protegeu” sob uma espessa capa de gordura, o que parece não ter sido suficiente porque também desde então passou a ficar constantemente “doente”: crises de febre, fortes dores e formigamento nas pernas, crises de

vômito e diarréia, desmaios, sensação de sufocamento. os médicos (neurolo-gista, gastro, cardiologista, clínico) não encontram nenhuma explicação para esses quadros. os psiquiatras dizem que ela sofre de estresse e depressão. a fa-mília de Béa a ridiculariza por tudo, especialmente pelas doenças, vistas como “frescura”. as febres têm que ser cada vez mais altas para que Béa seja socorrida. o corpo, destituído de desejo, adoece como forma de existir. Béa e Macabéa buscam nas aspirinas o alívio para “não se doer”. nas palavras de Macabéa: “eu me doo o tempo todo. onde? dentro, não sei explicar.” (LIspeCtoR, 1998, 66p.)

doer e doar... “eu me doo... dentro”. Macabéa diz da dor que é também de Béa: o quanto dói dar sua vida, aquilo que há dentro, abrir mão, resignada-mente da própria existência e subjetividade. Como se Béa, ao assumir o lugar da avó, tivesse deixado de viver como si mesma e tivesse assumido uma es-pécie de sucedâneo de existência. Vetorazzo Filho (2010) conta dessa sensação de “imitação do vivo”, experimentada por algumas pessoas, algo que, na rea-lidade, os aproxima mais da ruína de sua subjetividade e que Fedida aponta como a situação em que “a vida é empurrada para longe demais pela sua imi-tação vivente”.

Mas Béa não reclama, sequer tem clareza do lugar que ocupa na famí-lia ou da reprodução da história da mãe – também gorda, doente, traída e hu-milhada pelo marido. Béa apenas sente medo de se afastar de casa, teme pela saúde da mãe e não consegue impor minimamente alguma dignidade. não vive, apenas reproduz, imita. a imitação do vivente é o cotidiano de Béa e está descrita na rotina de Macabéa:

“quando acordava, não sabia mais quem era. só depois é que pensava com

satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. só então vestia-se

de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel

de ser. (...) Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao cor-

rer do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. estes sonhos, de

tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma

prévia experiência de – de êxtase, digamos. (...) não sabia que meditava, pois

não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma

longa meditação sobre o nada. só que precisava dos outros para crer em si

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mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela.

Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.” (LIspeC-

toR, 1998, 43p.)

Macabéa e Béa quase perderam seus empregos pelos persistentes “erros de ortografia”, incapazes que eram de copiar as palavras. ambas só não foram demitidas, por pena. a impossibilidade de reproduzir palavras, por lhes pare-cerem vazias de sentido, denuncia um oco na linguagem. um profundo oco representacional que antecede qualquer questão cognitiva, mas sugere uma falha na constituição do eu. tal falha, no caso de Béa, manteve-se latente até a morte da avó, quando ela relata não apenas o início dos sintomas somáticos, bem como de crescente dificuldade com as palavras (esquecimento, troca de letras e construção de frases sem sentido). Béa conta também como passou a ter dificuldade de organizar coisas e discriminar categorias, sendo capaz de ficar parada, por horas, em frente a um arquivo sem conseguir decidir como opera-cionalizar sua organização. a desorganização interna de Béa ficou exteriorizada no sofrimento corporal e nas dificuldades com a língua e com a vida cotidiana.

pensar a desorganização de Béa a partir do movimento pulsional que a ocupação do lugar da avó provedora pode ter desencadeado implica consi-derar como foram reavivados os processos identificatórios na trama psíquica. a ocupação do lugar da avó provedora não se dá apenas no campo concreto, mas principalmente na fantasmática psíquica. Béa conta que estranhamente “não sentiu tanto assim a morte da avó” (sic), como se esse luto não tivesse sido efetivamente realizado. ao contrário, parece que a dificuldade de Béa em acei-tar a perda, pode ter provocado um movimento regressivo, de buscar interna-mente o objeto perdido externamente, tornando-se ele mesmo. Melancólica, Béa considera-se merecedora das humilhações que recebe do mundo e acredita que não é alguém que valha a pena. Como descrito por Freud (1917), em Luto e Melancolia, a autorrecriminação do melancólico seria na verdade uma queixa contra o objeto perdido. Béa, identificada regressivamente com o objeto perdido, fica indiscriminada do outro, como conta a poesia de sá-Carneiro (1914/1995):

eu não sou eu, nem sou o outro

sou qualquer coisa de intermédio.pilar da ponte de tédio,Que vai de mim, para o outro.

Béa, “pilar da ponte” que sustenta a ligação amalgamada com sua fa-mília. uma “ponte de tédio” porque pouca vida há na reprodução da histó-ria instalada na família desde a avó onipotentemente provedora. enquanto o grupo de parasitas sobreviventes continua esperando a morte chegar, Béa vive o conflito de ter se tornado a provedora do sistema que, ao contrário da avó que apenas repassava os recursos de uma pensão, tem que trabalhar para prover. não por acaso, Béa dizia “não entendo como não me demitem, eu não faço absolutamente nada no trabalho” (sic). nem poderia. na ocupação do lu-gar da avó fica reeditado o roteiro fantasmático da constituição do Ideal do eu: “trabalhar pra quê? pra ganhar essa merreca? eu posso te dar mais dinheiro do que você é capaz de ganhar” (sic), dizia a avó a todos. assim, trabalho tem um significado nessa família de algo penoso e degradante. trabalhar agride Béa porque é ela sozinha que se desgasta para aqueles que nada fazem e, prin-cipalmente, trabalhar a distingue da família e a coloca no lugar de sujeito de suas escolhas – lugar tanto desejado quanto temido.

a ponte que une e separa Béa de sua família representa aqui tam-bém seu conflito fundamental: existir ou desistir? “pilar da ponte” ou “pular da ponte” de tédio? Béa, ao contrário de Mário de sá e de Macabéa, vive, mas adoece. em seu adoecimento há um grito por socorro e uma busca pela vida.

PSiCanáliSe e eSCultura – Será imPoSSível?

Quando Béa foi apresentada, nos impressionou – como bem nos disse sua ana-lista – seu esforço para não ser. Misturada com sua mãe e absorta na repetição de sua história familiar, como na obra de Maria Martins, intitulada o impos-sível. esta escultura, em mármore branco, estava no Malba, em Buenos aires e pode ser vista em da Mata (2008).

na escultura branca de Maria Martins, dois grandes corpos amorfos quase se juntam pelos ávidos tentáculos-boca, que captam toda a nossa aten-ção. não existem rostos, só enormes bocas, que nem isso são. e é, sobretudo,

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o branco que nos capta, já que pela ausência de cores mal se pode distinguir, nessa mordida voraz, os diferentes corpos, em uma tentativa de possuir e do-minar aquele corpo ao lado que “lhe pertence”. o que ouvimos de Béa foi sua destrutividade: silenciosa, devastadora, contagiosa, presente pela ausência... um grande não fazer, não produzir, não reagir, não falar, não associar.

ao ouvir sobre Béa, nos paralisamos, não sentimos raiva, não pudemos reagir. ouvimos lamentos melancólicos, que Béa fala em análise e chora em seu corpo (pelas suas febres, diarréias, etc.).

Foi estranho selecionar a obra de uma artista tão ativa e revolucio-nária para falar de Béa – é como se nem isso ela pudesse. nascida em família abastada, Maria falava línguas, casou-se duas vezes – na segunda vez com um diplomata, Carlos Martins pereira e souza (1884-1964). Viveu na europa, estu-dou escultura em paris, morou no Japão, participou ativamente do movimento surrealista, modernista e esteve lado a lado de grandes nomes como: Marcel duchamp, Mies Van der Rohe, Rufino tamayo, Chagall, Mondrian, Max ernst entre outros. Mas, foi ela quem nos traduziu Béa.

Vemos Béa nesses corpos brancos misturados, indiscriminados, que tentam (tentativa impossível) em seus tentáculos se fundir. Mãe e filha em uma identificação canibal, voraz. separação, diferenciação ou distinção é ame-aça de um corpo dilacerado; ego fragmentado.

em dois momentos ao longo do seminário clínico pensamos em Béa. a seguir nosso reencontro.

Começam a aparecer os tentáculos. Há uma nova possibilidade de li-dar com sua agressividade, que antes não podia aflorar. antevendo e temendo o fim de seu longo namoro, ela, sabendo que seu namorado a trocou por outra, Béa cria um personagem virtual para se relacionar com a rival. aqui a nova Béa (sua personagem), é Zezé, uma Béa masculina, ativa; com quem experimenta sua potência e pode ativamente fazer algo por si própria; pode também sedu-zir e atacar… exercita com sua personagem sua sexualidade e agressividade, o pulsional que precisava encobrir. desconta sua raiva, elabora a sua dor, se vinga do seu – agora – ex-namorado.

a Béa-Burra trocada por outra, agora travestida de Zezé, deixa de ser caça e passa à caçadora: ataca, faz seu namorado sentir-se trocado por outro

(e que outro!). pode saborear sua vingança frugal.Béa desfruta de novas experiências, sutis, mas sem dúvida, novas; com

o término do namoro vive a profunda tristeza do rompimento (e da separação) na análise, não fica paralisada ou dilacerada pela depressão e pode até cuidar da sua feminilidade (vai ao salão).

ela traz um sonho: vê uma coruja, grande, com olhos bem abertos. ela associa a ave a uma má notícia, que pode ser a morte da mãe. acordada, fica muito preocupada com a saúde de sua mãe, teme intensamente pela sua morte.

a realização de desejo, a morte da mãe, expõe “a céu aberto” sua agres-sividade que agora pode aparecer. Morte, separação, autonomia ou apenas di-ferenciação. ela com “olhão” de coruja já pode começar a ver, mas preferia não enxergar. o desejo de poder se separar da mãe é também horror, morte, medo da separação, medo de seu desamparo uma vez que esteja só. um desejo de se-paração que é tão intenso, temido e culpado, que teme que sua raiva mate. se-paração, morrer e matar; sobredeterminações.

encontrar-se com esse “novo” aspecto seu não é fácil: na semana se-guinte a paciente falta e quando volta relata que foi a um psiquiatra. ele re-ceitou medicamentos, mas ela não tomou. será que ela busca (fora da análise) fugir de sua coruja, que enxerga seus desejos? talvez seja possível à Béa, em sua análise, trilhar um caminho para diferenciar-se de sua mãe e constituir sua própria identidade.

o medo de separação, agora, está na relação transferencial (podendo fazer escolhas de amor objetais e não apenas identificações canibalísticas): a possibilidade de separação com a mãe chega pelos encontros com a analista. será que o remédio faz passar “medo de separação” com a analista? a própria paciente começa a digerir essa questão.

PSiCanáliSe e múSiCa - BÉa enQuanto

ProCeSSo – PoSSiBiliDaDe De Ser

para escrever sobre Béa não basta escutá-la em um momento único, é ne-cessário ser capturado pelo processo da paciente ao longo do ano de 2009. a primeira apresentação de Béa foi marcada pelo seu acorrentamento na dinâ-mica familiar, os seus empregos com funções simultaneamente simplórias e

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impossíveis de serem cumpridas. o segundo relato trazia em seu âmago uma nova Béa, que exercia papéis também fora do âmbito familiar, que criava per-sonagens e, embora ainda não por si mesma, era capaz de seduzir como Zezé. a nova Béa que era resultante do trabalho analítico; continuidade da velha Béa, porém começando a se integrar.

Como ilustrar o processo? partiu-se da poesia concreta. a poesia con-creta é composta por partes sem ligação. após a leitura do primeiro momento de Béa, era justamente isso que ela parecia, faltavam conexões entre as partes, mais ainda: as partes mesmas estavam cindidas.

para compreender a poesia concreta necessita-se de um esforço do lei-tor, ou melhor dizendo, um esforço do leitor para ler a obra. será que aqui es-tava referindo o esforço do analista? sim. ouvir a sessão, estar atenta às febres e continuar o trabalho analítico mesmo a partir da vontade estagnadora da paciente eram sem dúvida parte essencial do trabalho desse analista.

a obra escolhida foi Luz, letra e música de arnaldo antunes. a voz grave e a falta de cadência, ou a presença de lacunas abissais entre cada nota, trans-creviam a angústia da paciente. desde essa percepção realizou-se o trabalho sobre a poesia de antunes (1993, p.81):

Luz na luz não é nada

Béa era luz, mas estava impossibilitada de ser. Béa, enquanto luz na luz, não era nada, nem nada era. o que ela poderia ser fusionada na geleia disforme em que consistia seu núcleo familiar nesse momento? perdia-se, nadava no nada. Cabia a ela o desafio do processo de separação da fusão, ca-bia a ela, cortar, morrer para então tornar-se sujeito. tomando como ponto de análise o relato da segunda sessão, quase seis meses depois da primeira, Béa era luz, mas já não mais na luz. Béa afasta-se da luz que cega, pode dar início ao ser, ainda que sombra. o que leva esse ensaio à segunda parte da poesia de antunes (1993, p.81):

só sombra É nada

no primeiro esboço Béa poderia ser sombra enquanto existência par-cial, sombra de final de tarde em dia nublado. Mas pode-se agora tomar a pers-pectiva da sombra como diferenciação, do nada que antes, mesmo com tanta luz, tamanha exposição de seu ser, não havia nada. a sombra é, portanto, agora para Béa possibilidade de ser, mas ainda não em sua plenitude. a sombra de Béa está agora mais próxima do meio-dia, da sombra que ofusca o ser.

Béa ao longo do tempo, dos seis meses que cronologicamente impõe--se entre os dois momentos da apresentação de seu caso, afasta-se da poesia concreta. por si mesma torna-se prosa. e prosa independente do leitor, torna--se prosa por própria autoria. obra escrita a partir da necessidade de ser. onde encontra-se agora o analista?

Béa aos poucos inicia a escrita da própria história. escreve sim sua prosa! Mas às vezes falta-lhe imprimi-la. Imprimir é tirar do arquivo pessoal, é fazer concretamente existente o que antes era possibilidade. É isso que o ana-lista de Béa faz nesse momento. ajuda-a a imprimir, fornece o papel. acessório à obra já escrita, mas fundamental para o real da existência.

Já não é mais assim. em um segundo momento pensar em Béa en-quanto música passa a ser pensar em andante, ainda lento, mas já no limiar dos andamentos considerados rápidos. Béa com maior possibilidade de movi-mento. ao escutar Béa em andante, ritmo de passeio (76-108 batimentos por minuto), escuta-se seus primeiros passos pela rua, o espaço público que a faz sujeito fora da casa, início da separação da família que a aprisiona. Béa ainda não é capaz de andar em Allegretto graciozo (moderadamente rápida e gracio-samente). passeia para poder conhecer o mundo do qual foi privada, passeia com sua analista por vitrines de símbolos criados pela cultura buscando pre-encher as lacunas deixadas pela formação de um suposto sujeito pouco ou nada libidinizado por suas figuras parentais. para que Béa páre de ter febre, de somatizar as inundações libidinais que, no momento, carecem de signifi-cantes, há que acompanhá-la em seu passeio. o passeio que marca o ritmo do

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trabalho psíquico empreendido na dupla analista-analisante dará os elemen-tos necessários para que Béa forme uma mais complexa cadeia associativa, podendo assim dar palavra para o que agora ela escreve no corpo. aos poucos, Beá afasta-se de Macabéa. exige-se ainda olhar para a poesia em si.

para complementar esse ensaio faz-se crucial somar a descrição da imagem da germinação da semente de feijão no algodão. experiência essa que toda a criança faz. Há que se escolher os grãos, os copinhos, pôr o algodão, mo-lhá-lo na medida adequada e deixá-lo à luz. não aguar demais, porque morre. não expor à luz demais, porque morre. e esse exagero de luz aproxima-se da luz da poesia concreta tomada aqui como objeto. Luz na luz não é nada. Im-possibilidade. Morte.

Béa já começa a não se inundar de luz, sai do meio-dia. Já não se deixa invadir pelo seu meio. Béa pode ser meio sombra e começa a germinar. É es-tranho, porque não dá pra ver. dá a impressão que de repente sai o broto. Mas o processo iniciou-se muito antes, o que é visto é somente o resultado disso. É esse o processo que se deu na análise de Béa, e pode-se dizer, com a paciência do analista. o processo de análise é longo, para o paciente e para o analista.

o que resta fazer agora? Continuará Béa a crescer e desenvolver-se? Como todas as crianças sabem, o pé de feijão não se sustenta no algodão! Há que plantá-lo em terra boa para que dê frutos. Como transplantar essa vida? será que isso é possível?

a busca pelo retorno ao medicamento pode ser escutada como essa an-gústia do transplante. Mais uma vez o analista porá folhas na impressora para que Béa continue a escrever-se como sujeito prosa, sujeito conto.

ainDa, algumaS PalavraS

as três escutas, apesar de autônomas, simultaneamente se completam: nos le-vam a um trânsito harmonioso entre singular e coletivo e ainda, a Kandinsky.

Our circle: fragments of a psychoanalytic listening

abstRact: The article presents the results of a full year’s work in a clinical seminar

for psychoanalysts’ training, from the course “Formação em Psicanálise” in “Ins-tituto Sedes Sapientiae”. In this experience, artistic productions were instruments in the construction of the psychoanalyst listening. Three distinct listenings of a clinical case discussed by the group evoked different artistic illustrations from literature, sculpture and music, respectively. The resulting images, which emer-ged from individuals and also from the group, made up the process of listening and developed a narrative that transcends the original case, setting up a sen-sory and associative experience that is crucial to the constitution of a sensitive psychoanalytic listening.

KeywoRds: Psychoanalytic Listening, Art, Literature, Sculpture, Music.

reFerênCiaS

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Artig

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WInnICoTT, d.W.. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, 203p.

Ana Raquel Bueno Moraes RibeiroRua teodoro sampaio, 1020 cj 1101

pinheiros(11) 8388 9965

[email protected]

Fernanda ZacharewiczRua do Radium, 166

(11) [email protected]

Ligia Valdes GomezRua tupi, 267, cj14

(11) 3663 [email protected]

Luciana Bocayuva KhairRua teodoro sampaio, 1020, cj 1101

pinheiros (11) 9142 6117

[email protected]

Membro acadêmico do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

A terceira margem do rio: um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília)[1]

ANA RAqUEL BUENO MORAES RIBEIRO

Resumo: o diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas obras homônimas A terceira margem do rio, permitiu evidenciar os mecanismos deslocamento, condensação e figurabilidade entre as palavras de Caetano Veloso e de João Guimarães Rosa. nesse sentido, a idéia de uma terceira margem no rio que en-cerra o indizível, presente em ambas as obras, permite pensar a palavra como representação de coisa, a palavra em sua materialidade que flexibiliza a relação entre significante e significado (água da palavra). Mas é metaforicamente na relação com o pai que se encerram as raízes de toda cadeia associativa. são os desejos inconscientes, submersos no rio, que regem os operadores e que criam os meandros da rede de associações ora convergentes e ora contraditórias de-nunciando a presença escondida, disfarçada da (i)lógica do desejo inconsciente.

PalavRas-chave: psicanálise; poesia; prosa; sonho.

1. Versão revista e ampliada do trabalho apresentado na XX Jornada do departamento Formação em psicanálise em 2009.

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um Convite...

Caro leitor, permita-me fazer um convite: uma pausa para um deva-neio, um mergulho nas águas (des)conhecidas da Terceira Margem do Rio... se essa não for uma hora conveniente, volte mais tarde, mas, por favor, não prossiga sem antes se dar o tempo de experimentar as águas de Caetano e Milton. e, se agora for um bom momento, acomode-se naquele recanto mais aconchegante e ouça (mesmo) essa música. use o tempo que lhe parecer ne-cessário. aproveite para dar tantos mergulhos quanto for o caso até deixar-se molhar pelas intrigantes palavras desse obscuro rio. depois, e apenas depois, de um belo mergulho na música, sugiro um mergulho no conto homônimo de Guimarães Rosa. só então estaremos prontos para começar a brincadeira... espero por você aqui. (...)

A terceira margem do rio - Caetano veloso e Milton Nascimento

oco de pau que diz: eu sou madeira, beiraBoa, dá vau, tristrizRisca certeira

Meio a meio o rio risilencioso, sérionosso pai não diz, diz:Risca terceira

Água da palavraÁgua calada, puraÁgua da palavraÁgua de rosa duraproa da palavraduro silêncio, nosso pai

Margem da palavra

entre as escuras duasMargens da palavraClareira, luz maduraRosa da palavrapuro silêncio, nosso paiMeio a meio o rio ripor entre as árvores da vidao rio riu, ripor sob a risca da canoao rio vil, vio que ninguém jamais olvidaouvi, ouvi, ouvia voz das águas

asa da palavraasa parada agoraCasa da palavraonde o silêncio moraBrasa da palavra a hora clara, nosso paiHora da palavraQuando não se diz nadaFora da palavraQuando mais dentro afloratora da palavraRio, pau enorme, nosso pai

Mas, afinal por que esse convite? por que deixar-se levar pelos mean-dros de um poema/canção num devaneio? por que entregar-se a essa escuta? na formação de um analista, busca-se incessantemente desenvolver uma escuta capaz de romper a concretude do discurso. Faz-se analista aquele que consegue se aproximar de seu paciente naquilo que ele não sabe que diz ao falar, quando a palavra transcende o significado mais explícito e se apresenta numa rede de

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possibilidades de significação. nesse sentido, o fazer psicanalítico aproxima-se do fazer poético, artístico, que se permite brincar com as palavras. no entanto, contraditoriamente, quais são os espaços criativos em que psicanalistas em formação (ou não) se permitem estar? onde está o lugar da brincadeira com as palavras que permite o exercício da escuta? em meio ao universo teórico austero que emoldura, formata e enquadra, a brincadeira com a palavra parece por vezes acuada, já que tão pouco “séria”...

na linguagem popular, “poeta” e “sonhador” são, às vezes, tratados como sinônimos. trata-se de uma analogia que considera que ambos utilizam a palavra como “coisa”. Regidos pelo significante, o sonho ignora e o poema flexibiliza as relações entre significante e significado. tanto na poesia, quanto no sonho, a palavra se materializa na sua corporiedade: soma e sema. a pala-vra é signo e corpo - é isso que nos ensinam os trocadilhos - e é por isso que os poemas escondem um universo quase infinito de significados que permitem, além de um deleite particular, um exercício de ampliação de escuta.

É conhecida a importância capital do significante em toda e qualquer formação do Inconsciente: chistes, sonhos ou sintomas. Regido pelo processo primário, ambíguo e caótico, o Inconsciente pressiona o eu para manifestar-se, seja no pequeno espaço de um chiste que escapa, num poema demoradamente gestado e sentido, ou nos sonhos. todos os casos encerram a manifestação do desejo inconsciente. Muito antes de Freud, segundo Meneses (2002, p.21), o filósofo grego aristóteles já articulava a imaginação ao desejo: “...a fantasia, quando se move, não se move sem o desejo.” Freud (1900/1996) concorda com o filósofo ao propor que: “...durante o sonho o Inconsciente não pode oferecer nada mais que a força pulsionante para um cumprimento de desejo.”

o desejo, compreendido como mola propulsora de todo movimento psíquico, reproduz a cada momento da vida de vigília ou no sono os registros arcaicos de vivências de satisfação geradas a partir de tensões de necessidades atendidas. o desejo é, portanto, a moção pulsional no aparelho psíquico que arranca a carga da tensão de necessidade na busca da vivência de satisfação. o investimento energético do traço da vivência de satisfação fica tão intenso que resulta numa identidade perceptiva alucinatória. tal identidade de per-cepção passa a constituir o objeto do desejo, que ao ser reproduzido em sonho,

ou em qualquer outra formação do inconsciente, consiste no que ficou conhe-cido como a realização do desejo.

nesse sentido, tanto o sonho como a poesia operam sensorialmente. a elaboração onírica se aproxima, portanto, do processo de elaboração artística - ambas enraizadas nas descargas pulsionais regidas pelo desejo. para Meneses (2002, p.16) “poesia e sonho mergulham numa lógica da ambiguidade, abri-gando a contradição, acionando insuspeitas forças psíquicas. Quando sonha, todo homem é poeta: utiliza os recursos da figurabilidade, a imagem sensível; estabelece analogias que não se impõem à primeira vista”. Meneses (2002, p.20) aponta ainda o que diz Ricoeur acerca de todo latente que exige ser manifes-tado: “onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar” - o que nos traz de volta à proposta desse trabalho.

A Terceira Margem do Rio é um poema particularmente interessante para nosso convite ao devaneio/ exercício de escuta/ interpretação. Isso porque não se trata apenas de um poema maravilhosamente concebido, mas que pre-serva suas raízes na prosa. Caetano criou a canção (poema) a partir do conto homônimo de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, criando um diálogo en-tre poesia e prosa análogo à relação estabelecida entre o sonho e a vida de vigí-lia. a prosa de Rosa parece ordenar, preencher as lacunas deixadas pelo poema de Caetano. Mas poderíamos pensar o inverso. a canção criada por Caetano é a condensação poética do conto de Guimarães Rosa, como se o conto pudesse ser pensado como um evento da vida de vigília que carrega de energia algum elemento inconsciente e se transforma num resto diurno, matéria-prima no-bre para a construção poética do sonho, no caso, a canção, tão mais livre na palavra como “representação de coisa” (Laplanche e pontalis, 2004). Isso per-mite que a canção sirva não apenas de base para a livre associação daquele que a escuta – o que já seria válido – mas para escutar o poema à luz do conto, de forma análoga à escuta de um sonho à luz das associações do analisando.

em outras palavras, suponho aqui nesse exercício metafórico, que a personagem que narra em primeira pessoa o conto é aquele que “sonha” a canção, de onde surge a analogia entre o sonho e a vida de vigília, bem como evidências dos efeitos da força do desejo inconsciente. em oposição a esse su-posto “trabalho do sonho”, o presente “trabalho de análise”, tenta resgatar no

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conto, evidências de como a palavra foi transformada. o presente trabalho es-tabelece, portanto, um diálogo entre poesia (sonho) e prosa (vigília) nas duas obras, procurando evidenciar a presença dos mecanismos de deslocamento, condensação e figurabilidade no poema (canção de Caetano Veloso), a partir do que é narrado no conto de Guimarães Rosa. a seguir, compartilho a expe-riência desse meu mergulho...

ComPartilHanDo meu mergulHo na “TerCeira MargeM do rio”

ouço a música A terceira margem do rio, de Caetano Veloso, e sou tomada por ela. não consigo explicar o que se passa. simplesmente me invade a cadên-cia ritmada desse rio-silêncio, denso sentimento do pai que se faz presente na ausência, na palavra que cala. penso em como me fisga a canção e como não consigo parar de ouvi-la... dezenas de vezes até que a repetição permita acomodar cada som e palavra em mim. sinto como se quase pudesse tocar o mergulho da música e da poesia no inconsciente. Mergulho rápido, invasivo, sem permissão prévia. não há nada a fazer, a não ser sentir que algo foi pin-çado das entranhas e emergiu das profundezas. tal qual Caetano canta sobre o rio, água da palavra.

da narrativa a canção reproduz o efeito enigmático da palavra que si-lencia. de fato, sem o conto, a canção parece codificada como um sonho. tam-bém fica preservado no poema o estilo característico da prosa rosiana, seus neologismos, aliterações, rimas, lirismo e melodia quase musical. o ritmo oscilante entre aceleração e distensão do poema se assemelha ao processo de construção do sonho, em seus movimentos sucessivos de regressão e progres-são no aparelho psíquico.

a aceleração e distensão também aparecem no poema como recurso para deslocamento e condensação de elementos do texto de Guimarães. em seu texto, Rosa (1988, p.32) conta que o pai encomenda uma canoa feita de uma madeira boa, rija, que dure “na água por uns vinte ou trinta anos”. nos versos iniciais do poema (“oco de pau que diz / eu sou madeira beira/ boa, dá vau, tris-triz/ risca certeira”), Caetano estabelece uma aceleração que emparelha “ma-deira beira”, ocultando não apenas “madeira boa”, como “beira boa” - as duas duplas que anunciam o sentido de canoa ao “oco de pau”. Isso porque o “oco

de pau” é “madeira boa” para a canoa, e é a “beira boa” que abre passagem, “dá vau”, para a canoa fazer na água uma risca suave (tristriz) e precisa (certeira).

particularmente o neologismo “tristriz” dá um tom de sonho à canção. Há algo oculto nesse curioso termo que remete à figurabilidade e à condensa-ção características do trabalho do sonho. no primeiro caso, há em “tristriz” a sonoridade da canoa resvalando na água. a própria musicalidade do signifi-cante permite o deslocamento do efeito sonoro de repetição de “tristriz” nos demais pares: “meio a meio”, “rio ri” e “silencioso sério”, como se o som da pala-vra fosse, nesses casos, o elo entre significantes distintos, todos eles apontando para as margens do rio que escondem a “terceira margem” silenciosamente presente. dessa forma, reproduz a imagem, narrada no conto, do pai fortale-cido na sua ausência, por anos a fio visível (sentado na canoa no rio), porém inatingível para o filho.

em relação à condensação, enquanto “tris” condensa “três” e “ris” (de risca) evocando, portanto, a “risca terceira”, “triz” sugere o limiar de “por um triz”. essa condensação expressa o sentimento, presente no conto, do pai que abandona a família para viver/ morrer na canoa - a vida por um triz, expressa no risco na água. É também a água que denuncia a ausência/presença do pai. a água é o lugar de uma fala que cala, e o poema marca isso na oposição (“nosso pai não diz, diz”) que se anuncia entre as margens do rio (“risca terceira”). ou seja, o pai se cala, mas a risca terceira da canoa, sinal do seu abandono, é quem denuncia (“nosso pai não diz, diz risca terceira”).

Há um mistério na imagem imóvel do pai na canoa. por trás do silên-cio e da seriedade do pai esconde-se um riso vil. por deslocamento, a imagem do pai “sério” vista pelo filho, aparece na canção/ sonho como um rio que ri um riso localizado no seu meio (“meio a meio o rio ri”/ “por sob a risca da ca-noa/ o rio vil vi”), ou seja, o riso está naquele que fica no meio do rio, em “sé--rio”, no pai. a condensação que aproxima o riso da seriedade do pai sugere o efeito sádico exercido por ele sobre a família que sofre as consequências do abandono vigiado.

em outro trecho, há a expressão da figurabilidade do sonho - a criação de uma identidade perceptiva, tão vívida no psiquismo que pode ser sentida: “ouvi ouvi” a inaudível “voz das águas”. ainda pela figurabilidade, “ouvi ouvi”

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sugere uma percepção visual e auditiva simultânea: “ouvi ou vi”. a figurabi-lidade é o mecanismo que permite que a regressão se dê temporalmente (do presente para o passado, que ao mesmo tempo reconfigura o passado). ao re-presentar os pensamentos em imagens, o poema/sonho substitui a cena in-fantil que demanda uma expressão, por uma cena recente, vívida e vivida no presente do sonho. a cena infantil que não pode ser esquecida e tampouco re-vivida, pode, no entanto, reaparecer em sonho. É assim que “o que ninguém jamais olvida” permite pensar no registro inconsciente que nunca se perde, e que justamente pela figurabilidade pode ser revivido no psiquismo alucinato-riamente (“o rio vil, vi”). no conto, Rosa (1988, p.32) explicita como a imagem do pai na canoa não poderia jamais ser esquecida: “não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.”

Mas é possível pensar, sob a ótica do pai, que outros registros inesque-cíveis emergem das águas. Lançar-se ao rio aparece como um deslocamento da temática da loucura presente no conto. a terceira margem é o invisível, inau-dível e desconhecido. o pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o desconhecido dentro de si mesmo, a palavra que falta. palavra essa que a água não diz (“água da palavra / água calada pura / água da palavra / água de rosa dura”), que está presente como ausência (“duro silêncio”), mas que ao mesmo tempo detém a possibilidade de revelação (“puro silêncio”/ “entre as escuras duas / margens da palavra / clareira luz madura”). nesse sentido, observa-se a sobredeterminação e, mais uma vez, a condensação.

no poema (sonho) e no conto (resto diurno) a água-palavra é o lugar da ausência do pai, mas também da revelação no sentido de nomeação: “rosa da palavra”, onde a letra da canção explicita, mais uma vez, a relação fluida entre significante e significado. a “rosa da palavra” é tanto a flor, símbolo do poten-cial da fertilidade, local da fecundação para a geração do fruto, quanto o nome de Rosa, autor da palavra. assim, rosa condensa a rosa e o Rosa, bem como a relação poesia e prosa, aqui pensada no diálogo sonho/resto diurno e processo primário/processo secundário.

a revelação da água/palavra se dá na transformação da mobilidade (a

palavra que escapa) em imobilidade (“asa da palavra/asa parada”), seguida da incandescência e luminosidade (“brasa da palavra/a hora clara”), própria da revelação. a “casa da palavra” é “onde o silêncio mora”. a revelação se dá, por-tanto, no não dito, naquilo que subjaz ao ato do pai de não dizer.

“tora da palavra” remete ao pai, numa referência fálica à função de in-terdição que aparece às avessas ao “torar” a palavra, destruí-la no silêncio. É a “proa da palavra”, que toma a frente, que anuncia, penetra e corta a água, mas o faz para o silêncio, numa denúncia da ausência da interdição. É a ausência do pai, é a palavra que voa e escapa.

a “tora” fálica “da palavra” (“rio pau enorme nosso pai”) parece colo-car no sonho/canção a realização do desejo do filho, por associação ao conto/resto diurno. Isso porque, no conto há o elemento, menos explícito na can-ção, do desejo do filho (e da mulher do pai) pelo retorno do pai. desejo de que esse pai ausente pudesse estar falicamente potente e cumprindo sua função de interdição, tão necessária ao filho e à esposa. Contraditória e simultanea-mente, a canção/sonho também permite pensar num desejo inconsciente do filho de que o pai permanecesse longe, na canoa, para que ele próprio pudesse se tornar potente e fálico no lugar do pai. numa relação especular, a “risca ter-ceira” é também a “risca certeira”, como se a risca que inscreve a saída do pai na canoa fosse um tiro certeiro que abre caminho para o terceiro, para o filho.

no conto aparece o conflito e a culpa do filho, possivelmente associados a tal desejo. Rosa (1988, p.32) fala como a vida da personagem torna-se reclusa e sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência do pai: “sou homem de tristes palavras. de que era que eu tinha tanta culpa? se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.”

É também no conto que resgatamos o conflito edípico do desejo de to-mar o lugar do pai e do horror quando tal possibilidade se apresenta concre-tamente. nas palavras de Rosa (1988, p.32):

e falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “pai, o se-

nhor está velho, já fez o seu tanto... agora, o senhor vem, não carece mais... o

senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo

o seu lugar, do senhor, na canoa!...” e, assim dizendo, meu coração bateu no

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compasso do mais certo. ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água,

proava para cá, concordado. e eu tremi, profundo, de repente: porque, antes,

ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de

tamanhos anos decorridos! e eu não podia... por pavor, arrepiados os cabelos,

corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. porquanto que ele

me pareceu vir: da parte de além. e estou pedindo, pedindo, pedindo um per-

dão. sofri o grave frio dos medos, adoeci. sei que ninguém soube mais dele.

sou homem, depois desse falimento? sou o que não foi, o que vai ficar calado.

sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas,

então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem

também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras:

e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

a possibilidade de ocupar o lugar do pai, que gera horror ao filho, ter-mina por fazer o filho tomar o lugar do pai, mergulhado dentro do rio, de onde todo desejo parte e para onde tudo retoma.

deixo o rio, o mergulho brincadeira de palavras e acordo do poema/sonho com a incerteza de quem o sonhou. se não há um sonho no poema de Caetano, tampouco há um inconsciente sonhador no conto de Rosa, quiçá um sonho sonhado a quatro, Caetano, Rosa, a personagem e eu... (...) Mas... afinal, por que não? por que mesmo não?

The third shore of the river: a dialogue between poetry (dream) and prose (vigil)

abstRact: The dialogue between poetry (dream) and prose (vigil), in the homopho-nous works A Terceira margem do rio, shows the mechanisms of displacement, condensation and figurability between the words of Caetano Veloso and João Guimarães Rosa. The idea of a third shore of the river that contains the unspe-akable, found in both works, allows one to think the thing-wordthe word in its materiality that turns looser the relation between referent and meaning (water of

the word). But it is metaphorically in the relation with the father that the roots of the associative chain are found. Unconscious desires, inside the river, conduct the operations and create the texture of the web of associations, sometimes con-verging sometimes conflicting, denouncing the hidden, disguised presence of the (il)logic of the unconscious desire.

KeywoRds: Psychoanalysis; Poetry; Prose; Dream.

reFerênCiaS

FReud, s. (1900). Interpretação dos sonhos (I). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.4, 776p.

LapLanCHe, J; pontaLIs, J.B. Vocabulário da Psicanálise – Laplanche e Ponta-lis. são paulo: Martins Fontes, 2004, 552p.

Meneses, a. B. As portas do sonho. são paulo: ateliê editorial, 2002, 176p.Rosa, J. G. a terceira margem no rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:

nova Fronteira, 1988, p. 77 - 82.VeLoso, C. A terceira margem no rio. disponível em: http://letras.terra.com.br/

caetano-veloso/201521/ acesso em 03/03/2010.

Ana Raquel Bueno Moraes RibeiroRua teodoro sampaio, 1020, cj 1101

pinheiros (11) 8388 9965

[email protected]

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Artig

o

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Psicanalista, membro da associação psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), mestre em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, professor do curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos (C.E.P)

Corpo e ImagemLEONARDO BENI TKACz

Resumo: o artigo propõe a seguinte discussão: entre corpo e imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. para discuti-lo, o texto conceitua o que é corpo e o que é imagem para psicanálise. a partir daí, o eixo teórico percorre o conceito do estádio do espelho de Jacques Lacan, e os efeitos subjetivos de-correntes do circuito pulsional: olhar e voz.

PalavRas-chave: Corpo, Imagem, psicanálise.

estava cá com meus botões e me dei conta de que havia proposto um título para o texto, do qual escrevo dois substantivos ligados por um conectivo. não há artigos. assim ficou: Corpo e Imagem. o dito e o escrito me levaram às se-guintes associações: a ausência dos artigos poderia deixar um espaço vazio. algo como: ( ) Corpo e ( ) Imagem. outra ideia surgiu de chofre: entre corpo e imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível. decido escrever sobre as duas ideias surgidas do imponderável. antes disso, penso que se faz necessá-rio percorrer alguns passos.

Freud pretende, quando inventa a psicanálise, no fim do século XIX e início do XX, criar um novo método para responder aos mistérios da íntima relação entre corpo e mente; ou, como diziam os antigos filósofos: a relação entre corpo e alma. por quase 40 anos, Freud escutou os pacientes e formulou um campo teórico. o que nos interessa, neste momento, é fazer um recorte a fim de discutir o que é corpo e o que é imagem para a psicanálise. para isso,

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trago as contribuições de Jacques Lacan para essa discussão.Corpo, para a psicanálise, não é apenas o corpo com as funções bioló-

gicas; senão, também, um corpo que se constitui a partir da experiência do olhar e a da voz do outro (assoun, 1999). explico: Lacan (1949/1998a) influen-ciado pelas pesquisas sobre os efeitos das observações com bebês entre seis e 18 meses, diante do espelho, elabora uma teoria à qual dá o nome de estádio do espelho. em poucas palavras: o bebê tem, como experiência, a antecipação completa da própria imagem. por que antecipação? porque, nesse período de vida, há incapacidade neurológica para a presciência. e mais: antecipar a ima-gem permite transpor a condição de um “corpo fragmentado” para um “corpo unificado”. o espelho lhe dá a ilusão da imagem completa. algo como um “re-junte” das partes do corpo.

Lacan, então, se interessa pelos efeitos subjetivos decorrentes de uma experiência especular. para que esses efeitos possam advir, ele situa o lugar materno como um lugar central, como condição necessária para tal experi-ência. por quê?

desde o momento da gestação, amamentação e todos os cuidados pri-mários que o rebento recebe fazem do lugar materno o referente para a existên-cia do infans. um referente que amalgama o corpo biológico e o corpo pulsional. Quando me refiro ao corpo pulsional, isso quer dizer: algumas zonas do corpo da criança que vão se constituindo como zonas erógenas, que circunscrevem algum prazer. por exemplo: por meio da boca, o bebê suga o seio materno, de modo que ele obtém, de um lado, a satisfação da necessidade biológica (a fome pelo leite) e, por outro, o registro psíquico da experiência de satisfação (o pra-zer). trata-se de um momento quase poético em que o encontro dos corpos formaria algo como um “corpo para dois”.

Voltemos ao estádio do espelho. o que Lacan propõe? a imagem que é refletida no espelho dá ilusão da completude. Isso porque a mãe é colocada, de forma simbólica, no lugar do espelho. a partir daí, o corpo do bebê é falado, é olhado e é tocado. por conseguinte, alguma imagem pode ser refletida, para o filho. a imagem do corpo que é inscrita pela voz e olhar materno. a inscrição é a marca do reconhecimento.

se pudéssemos registrar uma cena que simbolizasse essa inscrição

invisível talvez pudesse ser descrita da seguinte forma: quando o bebê, no colo da mãe, escuta a voz que emana dela, ele faz o movimento de giro, por onde o olhar se dirige à melodia entoada. no giro, há o encontro dos olhares. e, se uma mãe pudesse lhe dizer algo, nesse instante, por exemplo: “Que bebê mais lindo!” a entonação e modulação da voz, e do olhar materno poderiam deixar uma marca psíquica que se inscreveria, como reconhecimento, na textura da subjetividade.

um outro exemplo, quando uma mãe pode dizer ao bebê: “Você tem olhos que se parecem com os da tia Maria.” esses olhos não apenas enxergam, mas trazem uma inscrição psíquica no corpo. traço de identificação, como ou-tros tantos, todavia um traço primordial que permite a uma criança se cons-tituir em uma cadeia simbólica, cujo efeito a faz pertencer a uma linhagem familiar. Reconhecendo a mãe, desse modo, o filho se insere numa história.

Corpo tocado pela palavra que vem do outro. Corpo que vai se consti-tuindo numa história, engendrando alguma imagem. assim, corpo e lingua-gem são indissociáveis.

Quais os desdobramentos do estádio do espelho? aqui há um acréscimo fundamental na trajetória de um bebê. por ora, respondo a questão da seguinte maneira: o olhar e a voz do outro fazem bordas no corpo. o que isso quer di-zer? Voltemos ao exemplo da amamentação. Vimos que a experiência de satis-fação engendra uma marca psíquica. acrescento: só é possível a experiência de satisfação, quando a zona erógena é contornada por uma “borda” (LaCan, 1962-1963/2005). Resulta daí que, a boca, por exemplo, passa a se constituir não apenas como lugar por onde entram os alimentos; mais ainda, uma zona eró-gena contornada por uma borda – efeito da experiência com o outro. para que serve uma borda? sem dúvida, para circunscrever o prazer; pois, do contrário, ocorreria certo transbordamento pulsional. e a consequência seria colocar um corpo em sacrifício. Lembremo-nos dos vários sintomas que alguns sujeitos fi-cam submetidos: dependência química, bulimia, etc.. esses sintomas aludem à ideia de que o sujeito acreditaria em um “a mais” de prazer. o transborda-mento pulsional pavimenta o caminho, por onde transita a pulsão de morte.

na constituição do corpo de um bebê se faz necessário que a mãe, por meio do olhar e da voz, promova as bordas. aqui há algo central na questão

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do corpo e imagem. Quando me refiro ao olhar e à voz do outro (a mãe) que fazendo as bordas no corpo e que, portanto, têm contornos que possibilitam algum prazer, destaco o algum prazer. por quê? porque o prazer implica em parcialidades e impõe diques ao prazer absoluto. de acordo com Lacan (1969-1970/1998, p.46):

esse saber mostra aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do traço

unário, para começar, ele vem a ser o meio do gozo - do gozo precisamente

na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às ten-

sões usuais da vida.

os desdobramentos do estádio do espelho remetem, assim, à conquista do algum prazer na experiência subjetiva. o prazer, quando circunscrito pelas bordas do corpo, permite ao sujeito olhar-se diante do “espelho” e ver o que é possível ser visto. Retomo o pensamento que me ocorrera no início do texto: entre corpo e imagem haverá, sempre, algo inefável, algo indizível.

do lugar do outro, alguma imagem é refletida. tal que o que se reflete deixa o sujeito sem a última resposta esperada: quem ele é e o que o outro de-manda (LaCan, 1998 b). portanto, a imagem do corpo nunca será simétrica ao ideal de completude. Haverá sempre uma falta constitutiva. Lacan (1962-1963/2005, p.49) ensina:

o investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação

imaginária. É fundamental por ter um limite. nem todo investimento libidi-

nal passa pela imagem especular. Há um resto. esse resto, espero ter conse-

guido fazê-los ter uma ideia de por que ele é o pivô de toda a essa dialética...

em tudo o que é demarcação imaginária, o falo virá, a partir daí, sob a forma

de falta. em toda a medida em que se realiza aqui, em i(a), o que chamei de

imagem real, imagem do corpo funcionando na materialidade do sujeito

como propriamente imaginário, isto é, libidinizado, o falo aparece a menos,

como uma lacuna.

Logo, o que o sujeito olha, na imagem, é aquilo que recobre, reveste o inefável, o indizível. algo como: o revestimento de uma “mancha” (LaCan, 1964/1985). essa mancha estará nos “espelhos” para lembrar sobre a impossi-bilidade de completude entre corpo e imagem.

a indústria cultural e a sociedade de consumo ajudam a revestir a “mancha”: as roupas, os acessórios, nos vestem para encobrir aquilo que não se dá para mostrar e que produz um suave engano naquilo que se mostra. essa é a ideia que está implícita na impossibilidade de uma imagem completa de si. Há sempre um resto impossível de ser visto. o que se vê, então? um invólucro que recobre o assim chamado objeto (resto, mancha, algo inefável).

Certa vez, numa sessão, uma analisanda diagnosticada pelos médi-cos com obesidade mórbida, indagou-me: “Quando você me olha, o que vê?” o enunciado demandava um olhar; que pudesse retornar na forma de uma imagem. Qual imagem possível a ser refletida? o endereçamento da demanda colocava-me numa posição, na qual a resposta retornaria como uma “ima-gem-verdade”. pareceu-me que a única “imagem-verdade” que poderia dizer, naquele momento, e com todas as implicações envolvidas na resposta: “uma mulher.”

Body and Image

abstRact: This paper proposes the following discussion: between body and image there will always be something ineffable, unspeakable. To address this, the text conceptualizes body and image to psychoanalysis. There after, the shaft runs through the theoretical concept of the mirror stage of Jacques Lacan, and the subjective effects arising from the drive circuit: the look and the voice.

KeywoRds: Body, Image, Psychoanalysis.

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Artig

o

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reFerênCiaS

assoun, L.p.. O olhar e a voz: Lições sobre o olhar e a voz. Rio de Janeiro: Com-panhia de Freud, 1999, 208 p.

LaCan, J. (1962-1963). O Seminário livro 10. a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, 366 p.

------- (1964). O Seminário livro 11. os quatro conceitos fundamentais da psica-nálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, 269 p.

------- (1966-1967). O Seminário livro 17. o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, 208 p.

------- (1998a). o estádio do espelho como formador da função do eu. In: Es-critos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p.

-------- (1998b). subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freu-diano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 96 p.

Leonardo Beni TkaczRua pamplona, 1119, cj. 62

Jardins(11) 3253-3473

[email protected]

Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP; Coordenador Técnico do CAPSi do município de Osasco

Revisitando Winnicott em companhia de Piaget: apontamentos sobre a noção de imaturidade egóica[1]

DANIEL SChOR

Resumo: em suas teorias sobre o desenvolvimento humano, donald W. Winni-cott e Jean piaget assumem a existência de uma indiferenciação primordial entre as noções de si-mesmo e do mundo externo, a qual seria característica dos primeiros meses de vida. a partir do reconhecimento do mutualismo com que se opera a constituição de ambas as noções, o presente artigo propõe o di-álogo entre ambas as teorias e busca apontar um dos possíveis planos de arti-culação entre as mesmas.

PalavRas-chave: desenvolvimento; piaget; Winnicott; Cognição; Integração.

em meio ao conjunto dos principais teóricos da psicanálise pós-freudiana, donald W. Winnicott foi, certamente, o autor que levou ao extremo o alcance da noção de desenvolvimento em sua leitura dos fenômenos clínicos. em sin-tonia com a tradição freudiana, e com a kleiniana, o psicanalista mantinha o ponto inicial de suas investigações nas mais incipientes formas de relaciona-mento entre a criança e o mundo. no entanto, Winnicott dava um passo além

1. o presente trabalho é fruto de pesquisa de mestrado realizada com o financiamento do Cnpq.

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da tradição que o precedia na busca pela origem das psicopatologias ao afirmar que sequer a diferenciação entre o bebê e o mundo poderia ser tomada como um fato óbvio. tratava-se de uma abordagem cujo foco estava colocado sobre o estágio anterior àquele em que “o bebê já é capaz de mostrar, através de seu brincar, que ele compreende que tem um interior, e que as coisas vêm do ex-terior” (WInnICoTT, 1945/2000, p. 221).

Quando se consideram as contribuições de Winnicott à psicanálise, deve-se inevitavelmente levar em conta seu ponto de vista a respeito do que foi por ele denominado como desenvolvimento emocional primitivo. tal de-nominação estaria, segundo o autor, referida ao momento anterior à possibi-lidade de se assumir a existência de relações objetais propriamente ditas, a partir das quais já seria possível admitir uma verdadeira relação do bebê com a realidade externa. nesse estágio primitivo, diz ele,

[...] o objeto comporta-se de acordo com leis mágicas, ou seja, existe quando

desejado, aproxima-se quando nos aproximamos e fere quando o ferimos. por

fim, desaparece quando não mais o desejamos. (WInnICoTT 1945/2000, p. 228)

Comportando-se “de acordo com leis mágicas”, o lugar do objeto esta-ria se confundindo com o do próprio sujeito, pois “neste caso o objeto ou am-biente é tão parte do eu quanto são os instintos que o conjuram”, ou seja, “o indivíduo vive num ambiente que é ele mesmo [...]” (WInnICoTT, 1945/2000, p. 231). tal ideia implica que a criança não possuiria ainda uma perspectiva própria, distinta, um lugar de onde avaliar as coisas.

Cremos que seja nesse sentido que Winnicott afirma que o ego, defi-nido por ele como a parte da personalidade que tende a se integrar em uma unidade, advém somente “depois que a criança começou a usar o intelecto para examinar o que os demais veem, sentem ou ouvem e o que pensam quando se encontram com esse corpo infantil” (WInnICoTT, 1962/1983, p. 55). ora, “exa-minar o que os demais veem” implica, mesmo que inicialmente de maneira muito rudimentar, saber-se como um “eu” que apenas assume um ponto de vista entre outros.

seguramente, é possível afirmar que boa parte da teorização

winnicottiana esteve voltada para o entendimento do que poderia garantir ao ser humano, seja pelos cuidados maternos, seja pela clínica, a possibilidade de vir a existir como tal. entretanto, afirma o autor que, para que venha a exis-tir, um ser humano precisa de

[...] auxílio no sentido de alcançar um status unitário, ou um estado de inte-

gração espaço-temporal onde exista um eu (self), que contém tudo, ao invés

de elementos dissociados colocados em compartimentos, ou dispersos e aban-

donados. (WInnICoTT, 1971/1975, p. 98)

eis aí a descrição de um processo intimamente relacionado, como ve-remos, àquele que, em 1937, havia sido denominado por Jean piaget como A construção do real na criança. tendo como foco inicial a compreensão das bases psicológicas do desenvolvimento da racionalidade humana, A construção do real inaugurava um ponto de vista que jamais seria abandonado ao longo da obra de piaget, o qual viria a transformar o campo dos estudos até então pro-duzidos sobre a inteligência humana.

na referida obra, piaget (1937/2002, p. 19) se propunha a investigar o que entendia como sendo uma “elaboração contínua do universo exterior”, eluci-dando o caminho pelo qual a criança obteria uma compreensão dos objetos e leis que habitam o meio. nessa linha, o autor descrevia o que denominava como uma passagem do caos ao cosmo. ao nascimento, dizia ele, a criança se depara com um universo habitado por objetos evanescentes (que desaparecem quando fora de seu campo perceptivo), com tempo e espaço subjetivamente sentidos e uma causalidade onipotente porque reduzida ao poder das ações. pelo fim do período chamado de sensório-motor, ao contrário, ela já se poderia conceber dentro de um cosmo, com objetos, tempo, espaço e causalidade ob-jetivados e interligados. desse modo, ela já se poderia situar como um objeto entre outros objetos, agente e paciente dos eventos em redor.

a rigor, pode-se dizer que o que piaget começava a produzir em A cons-trução do real na criança era uma teoria de alcance ainda imprevisível, e a partir da qual, falar em inteligência, passava a implicar um questionamento acerca da própria maneira como a criança seria capaz de se situar em um meio ambiente.

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dito de outro modo, a “inteligência piagetiana” era uma cujo desenvolvimento estaria diretamente ligado à forma como a criança, ao longo da vida, poderia conceber a natureza das relações estabelecidas entre ela e o mundo, bem como sua própria posição em relação a ele. diz o autor:

em realidade, por um mecanismo em aparência paradoxal, cujo análogo a res-

peito do egocentrismo do pensamento da criança mais velha descreveremos,

no momento em que o indivíduo está mais centrado em si-mesmo é que ele menos

se conhece; e, na medida em que ele se descobre, é que se situa em um universo e o

constitui por essa mesma razão. em outras palavras, egocentrismo significa, ao

mesmo tempo, ausência de consciência de si e ausência de objetividade, en-

quanto a tomada de posse do objeto como tal caminha lado a lado com a to-

mada de consciência de si. (pIaGet, 1937/2002 p. 21; grifos nossos)

Bem, mas o que poderia implicar a ideia de que o indivíduo somente se descobre na medida em que constrói para si próprio a noção de um universo externo? precisamente, que, no início de sua existência, o indivíduo não existe por sua própria consciência, e menos ainda se situa no espaço.

a partir dos estudos cujas conclusões vieram compor A construção do real na criança, piaget passaria a defender arduamente a tese de que, no início da vida, as coisas apenas se ordenariam espacialmente para o sujeito em sua ação imediata e só se fariam permanentes em função dessa ação. nessa me-dida, a criança não seria capaz de dissociar suas ações das próprias coisas. o processo de assimilação do mundo externo estaria, assim, englobando em um ato único os dados da percepção exterior e as impressões internas de natureza afetiva, cinestésica, etc..

dessa maneira, a existência efetiva do objeto permaneceria subordi-nada à percepção, o que significa que o universo continuaria sendo, para o su-jeito desse estágio, um conjunto de quadros que saem do nada no momento da ação para a ele retornarem com a extinção desta. assim, quando a criança encontra, por exemplo, o bico do seio, o que ela reconhece não é o bico do seio, mas “uma certa relação entre o objeto e ela própria, um quadro global no qual intervém todas as sensações ligadas ao ato em curso” (pIaGet, 1937/2002, p. 101).

entende-se, portanto, que a criança da referida fase ignora que seu corpo se encontre no mesmo espaço que um determinado elemento móvel. os mo-vimentos de um objeto se confundem, em sua consciência, com suas próprias impressões cinestésicas e proprioceptivas que acompanham seus movimen-tos oculares, de cabeça ou de tronco.

segundo piaget (1937/2002, p. 117), para que a criança reconheça a mu-dança de posição de determinado objeto, precisa “conceber o universo exterior como sólido, isto é, composto por objetos substanciais e permanentes, sem o que o ato de encontrar um quadro deslocado se confundirá, na consciência do indivíduo, com o ato de recriá-lo”. o universo é, aqui, algo que se desfaz e se reconstitui sem cessar e, por isso, acompanhar um objeto que se move é con-fundido com produzi-lo ou fazê-lo durar.

tratamos, assim, de um momento da vida em que a consciência de si estaria restrita à sensação de poder recuperar, graças a certos atos globais, quadros perceptivos exteriores que, no entanto, não possuem uma relação es-tável entre si, nem com o indivíduo. dessa forma, diz piaget (1937/2002, p. 221), “não há, originalmente, mundo exterior nem mundo interior, mas um universo de ‘apresentações’, cujos quadros estão carregados de qualidades afetivas, cinestésicas e sensório-motoras, tanto quanto de qualidades físicas” (grifos nossos). esse uni-verso primitivo constitui, por conseguinte, tanto o “eu” da criança quanto o objetivo de suas ações.

tudo isso nos leva a assumir que certas qualidades de experiências estão diretamente atreladas aos limites de organização do real conferidos por uma determinada estrutura cognitiva. ao revelar os contornos de uma determi-nada estrutura de pensamento ou de apreensão do real, piaget é, como vimos, incapaz de escapar à inferência de estados subjetivos aos quais tais estruturas estão necessariamente associadas.

Contudo, se a tese defendida por piaget em A construção do real na criança está correta, deve-se assumir, necessariamente, que os estudos sobre a cons-tituição do indivíduo também terão muito a dizer sobre a evolução de suas capacidades na assimilação do mundo externo. eis aí, enfim, o motivo pelo qual acreditamos que a teoria psicanalítica de Winnicott sobre os processos de integração e de personalização do desenvolvimento inicial reconhece que

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estes são aspectos inextricavelmente ligados à apreensão que o bebê realiza do mundo em seu redor.

segundo piaget (1937/2002 p. 118),

[...] para uma inteligência que não distingue um mundo exterior formado

por objetos substancias de um mundo interior ligado ao próprio corpo, as

impressões de todo tipo que emanam desse corpo podem ser ligadas aos mo-

vimentos percebidos, quaisquer que sejam eles: a partir desse momento, o in-

divíduo não conseguirá saber quando são as coisas que se deslocam e quando

é apenas ele [...]

ora, curiosamente, Winnicott (1945/2000, p. 223) ressalta que:

a localização do eu no próprio corpo é muitas vezes tida como óbvia, mas uma

paciente psicótica em análise deu-se conta de que, na infância, ela achava

que sua irmã gêmea no assento ao lado do carrinho era ela mesma. e até se

surpreendia quando alguém pegava a sua irmã no colo e ela ficava parada

onde estava. Sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não tinha se desenvol-

vido. (grifos nossos)

do ponto de vista de piaget, da mesma maneira que as qualidades per-cebidas de fora não são ainda concebidas como objetos permanentes externos situados no espaço, impressões de esforço, expectativa e satisfação não podem ser ainda atribuídas a um indivíduo substancial, interno, situado na consci-ência. temos, portanto, que tanto na perspectiva de Winnicott quanto na de piaget, o bebê de poucos meses ainda estaria longe de atribuir suas intenções e poderes a um eu concebido como diferente do não-eu e oposto ao universo exterior: ambos ainda formariam um único e mesmo conjunto.

na visão de Winnicott (1962/1983, p. 56):

o bebê pode chegar de vez em quando ao princípio de realidade, mas nunca

em toda parte de uma só vez; isto é, o bebê mantém áreas de objetos subjeti-

vos juntamente com outras em que há algum relacionamento com objetos

percebidos objetivamente, ou de objetos ‘não-eu’.

piaget, por sua vez, entende que até o quinto estágio da inteligência sensório-motora, a atividade da criança é por esta concebida como um centro de produção dos movimentos do universo. essa atividade será, aos poucos, li-mitada em seu poder por ações independentes do eu (que começará a se dis-tinguir do mundo entre outras coisas por efeito dessa limitação) e submetida a pressões que emanam do universo externo. se até então a criança tão somente comandava a natureza, aos poucos passará a obedecê-la. nos termos de Win-nicott (1963/1983, p. 83), trata-se do momento em que

[...] o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha

indicam que a comida está prestes a aparecer. ao invés de simplesmente fi-

car excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar

a esperar.

para ambos os autores, em suma, a consolidação do universo consiste em uma eliminação gradativa do egocentrismo inconsciente inicial e na ela-boração de um mundo no seio do qual se situa, finalmente, o próprio indiví-duo. dessa forma, pode-se assumir que, segundo ambas as teorias, a criança se constitui como uma subjetividade e se reconhece como tal na exata medida em que concebe a existência de um mundo objetivo, ou vice-versa, sem que se possa atri-buir qualquer precedência de um desses polos em relação ao outro. safra su-gere uma ideia semelhante a essa ao afirmar que “no ato de conhecimento, o sentido do mundo e o sentido de si-mesmo estão necessariamente em ques-tão. a possibilidade de abordar, de recortar o mundo, está intimamente ligada à minha constituição enquanto ser recortado” (informação verbal)[2].

o mutualismo que acabamos de apontar entre a constituição da noção de si-mesmo e do mundo externo nos leva, então, a admitir a possibilidade de um diálogo entre teorias com propósitos bastante distintos, provenientes de

2. nota do curso perspectivas epistemológicas em psicologia Clínica e psicanálise, ministrado no Instituto de psicologia da usp no segundo semestre de 2006.

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diferentes tradições do pensamento psicológico. Mais do que isso: pensamos que, nesse caso, uma teoria passa, necessariamente, a colocar problemas para a outra, fato que, em tese, as impediria de simplesmente coexistirem pelo ar-gumento de que se referem a “coisas diferentes”.

se assumimos a existência de uma ligação constitutiva entre os cami-nhos de objetivação e de subjetivação traçados pelo ser humano desde o nasci-mento, pode-se questionar até que ponto poderá haver entrecruzamentos entre esses caminhos, tais como concebidos pelos autores que abordamos. nosso intuito na parte seguinte deste artigo será, pois, justamente, o de apontar um dos planos em que se poderia promover entre tais sistemas teóricos uma par-ceria no enfrentamento de questões relativas à elucidação do universo infantil.

Cremos que esta proposta se justifica pela possibilidade de que sua re-alização contribua para ampliar a margem de diálogo entre diferentes teorias do desenvolvimento, o que parece se tornar cada dia mais necessário, tanto do ponto de vista clínico quanto educacional, ou mesmo, puramente teórico. por uma série de razões que envolvem fatores históricos, institucionais e episte-mológicos, os achados de teóricos fundamentais da psicanálise e da psicologia, de modo geral, foram levados a se organizar dentro de áreas do saber conside-radas radicalmente distintas, fazendo com que muitas das intersecções e cor-relações possíveis entre suas ideias jamais fossem consideradas. a ampliação desses diálogos se faz ainda mais necessária na medida em que a prática nos diversos contextos do trabalho com crianças vem aproximando cada vez mais conhecimentos produzidos por diferentes tradições do pensamento psicoló-gico. a ideia do presente trabalho parte também, portanto, da necessidade imi-nente de que esse compartilhamento de espaços venha a produzir uma troca efetiva de saberes, ao invés de admitir mera coexistência ou meras disputas teórico-institucionais.

a temPoraliDaDe na exPeriênCia Do ColaPSo iminente

[...] ‘medo patológico do colapso é o medo de um colapso que já foi experien-

ciado’. Mas há aí um paradoxo, pois o bebê era muito pequeno – ‘não havia

bebê suficiente’ – ao menos para chamar isto de experiência, uma completa

experiência. não havia ego suficiente. (neWMan, 1995, p. 61, tradução nossa[3])

em 1963, Winnicott (1963/1994, p. 70) reuniu em um artigo o que vinha encontrando em seu trabalho diário, ao longo dos anos, com pessoas que so-friam do que ele chamou de “medo do colapso”. embora o título do artigo possa dar a impressão de se referir a algo muito específico, o autor justifica o uso do termo “colapso” justamente por seu caráter vago, podendo significar uma va-riedade de coisas, e ressalta que “um estudo desta área limitada conduz a um reenunciado de diversos outros problemas que nos intrigam quando fracassa-mos em nos sair tão bem clinicamente quanto queríamos fazê-lo”.

o intuito do artigo, diz Winnicott (1963/1994, p. 74), é chamar a atenção para a “possibilidade de que o colapso já tenha acontecido, próximo do início da vida do indivíduo”. tratar-se-ia de um fato que o paciente carrega consigo, escondido no inconsciente, mas, neste contexto especial, o inconsciente quer dizer que a integração do ego não é capaz de abranger algo. o ego é imaturo de-mais para reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal. entretanto, questiona o autor, por que o paciente continua a preocupar-se com isto que pertence ao passado? porque a experiência, responde, não pode cair no passado a menos que o ego possa primeiro reuni-la dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente agora. ou seja, o paciente tem de continuar procurando este detalhe passado que ainda não foi experien-ciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro.

segundo Figueiredo (1998), Medo do Colapso é um dos trabalhos funda-mentais que nos obrigam a repensar a noção, ainda muito arraigada em boa parte do pensamento psicanalítico, de experiência como presentidade, segundo a qual o que se experimenta é aquilo que se dá em presença. de acordo com esta noção, o passado seria aquilo que aconteceu, no sentido do que foi presente outrora, e o futuro é o que acontecerá, no sentido do que virá a ser presente. tendo como pressuposto esta concepção, muitos psicanalistas assumem que

3. […] clinical fear of breakdown is a fear of a breakdown that has already been experienced’. But there is a paradox because the baby was too small – ‘there was not enough baby’ – fully to call it an experience, a full experience. There was not enough ego.

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a tarefa da análise seria a de “reorganizar fatos dentro de um todo dotado de significado”[4] (RICoeuR, 1977, p. 861; tradução nossa), o qual constituiria uma história contínua e singular, tecendo assim tramas que se estenderiam sem se romper e garantindo ao presente uma continuidade, durabilidade e extensão. ou seja, para muitos, a análise consistiria no tecimento de estruturas narra-tivas, através das quais se poderia dar ao passado e ao futuro uma certa reali-dade, na medida em que elas reuniriam, em seu próprio presente, a memória presente do passado e as expectativas presentes do futuro, “costurando-as ao presente presente de uma visão imediata”. (FIGueIRedo, 1998, p. 9)

no entanto, diz Figueiredo, (1998, p. 11)

[...] a presentidade deixa de ser o fundamento da experiência quando o fora

do tempo – o extemporâneo – em todas as suas figuras, é reconhecido como

parte constituinte e indissociável de tudo o que se dá como ‘atualidade vivida’. (gri-

fos nossos)

esse “extemporâneo” diz respeito aos efeitos devastadores do trauma que abre feridas incuráveis quando destrói até mesmo os recursos autorrege-nerativos do psiquismo. seguindo, neste ponto, o pensamento de Winnicott, Figueiredo (1988) fala de traumas como não-fatos, não-acontecidos, “aconte-cimentos inconclusos” após os quais não pode sobrevir uma recomposição do sentido e da história. ora, mas para pensar esta experiência que, paradoxal-mente, se passa com o indivíduo antes da possibilidade de algo ser experimen-tado – dele ser o bastante para experimentar algo, a noção corrente de experiência como presentidade não basta. a questão seria:

Como conceber uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de

fato não aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela

primeira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer? (FIGueIRedo,

1998, p. 11; grifos nossos)

4. [...] ‘reorganize facts into a meaningful whole which constitutes a single and continuous history […]’

segundo Winnicott, embora o colapso temido pelo paciente já tenha sido por ele experienciado no passado, ele não o foi verdadeiramente, pois, na época, “não havia bebê suficiente”, ou seja, o ego desse paciente era, e de certa maneira continuou sendo, incapaz de abranger algo da experiência. Frente a isso, cabe questionar: quais seriam, então, as condições necessárias para que o ego fosse capaz de abranger a experiência? o que (ou a falta de que), na cons-tituição e nas características gerais desse ego, faz dele “imaturo demais para reunir todos os fenômenos dentro da área de sua onipotência pessoal”? aliás, o que significa exatamente reunir a experiência “dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente”?

supomos que, se uma experiência é traumática, ou seja, se tem o status de um “‘acontecimento inconcluso’, após o qual não pode sobrevir uma recom-posição do sentido e da história”, isto se deve tanto a vicissitudes do ambiente quanto às condições do ego que a vivencia. por exemplo: passar fome ou frio por mais de uma hora pode ser insuportável ou mesmo enlouquecedor para um bebê de meses de idade, mas, espera-se, não para uma pessoa de vinte anos. se é assim, há que se questionar que diferenças pode haver na constituição egóica de um e de outro que fazem com que a mesma experiência possa ser para um enlouquecedora e para o outro um fato corriqueiro.

aqui é fundamental frisar que estamos tratando de uma condição, e não de uma garantia. Certamente, devemos levar em conta a possibilidade de que, por uma infinidade de razões, um adulto também não seja capaz de lidar de maneira relativamente tranquila com tais situações. entretanto, diferente-mente do adulto, o bebê com certeza não possui os recursos necessários para organizar sozinho essas experiências, e estará plenamente vulnerável em meio a elas a menos que outra pessoa esteja presente e possa lhe fornecer de fora as condições para tanto. ao contrário do bebê, o adulto provavelmente é alguém capaz de saber que a dor começa e termina; que a fome não é um estado infi-nito de angústia generalizada; que a figura cuidadora saiu, mas não deixou de existir. para o adulto, é possível compreender que essa figura vai voltar por-que ele sabe que, se não a vê no momento presente, é porque ela se encontra agora num outro lugar. ou seja, diferentemente do bebê, ele é capaz de conceber um “outro lugar” fora de seu campo perceptivo.

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em nosso entendimento, as razões disso não são, absolutamente, ób-vias. Frente a isso, nossa aposta é a de que é possível encontrar na obra de Jean piaget elementos fundamentais para que ampliemos nossa compreensão so-bre os fenômenos descritos por Winnicott em seu referido trabalho e, conse-quentemente, sobre as formas com que experiências muito precoces podem ser determinantes da constituição subjetiva.

no último capítulo de A construção do real na criança, intitulado “o campo temporal”, encontramos a seguinte afirmação de piaget (1937/1975, p. 299): “o tempo confunde-se, pois, no seu ponto de partida, com as impres-sões de duração psicológica inerente às atitudes de expectativa, de esforço e de satisfação, em resumo, à atividade do próprio sujeito.” segundo o autor, essa duração será, ao longo do desenvolvimento, relacionada cada vez mais estrita-mente com os eventos do mundo exterior. entretanto, no seu ponto inicial, o tempo ainda não é uma categoria de estruturação objetiva do universo como tal: a sucessão dos atos do sujeito ainda não se insere como sucessão consu-mada numa série de acontecimentos recordados, o que permitiria constituir a história do meio ambiente. ao invés disso, essa história permanece incoerente e fragmentada, e seus fragmentos continuam agarrados à ação presente, concebida esta como realidade única. Mais adiante, o autor afirma, referindo-se ao bebê de menos de 11/12 meses:

[...] sua memória – portanto, a sua percepção do tempo – continua, segundo

nos parece, inteiramente sujeita aos seus gestos práticos, como quando procu-

ramos o nosso relógio no bolso, depois de o termos deposto ainda há instantes

sobre a mesa. Com efeito, se a nossa memória só funcionasse como neste úl-

timo exemplo, não possuiríamos espaço organizado nem objetos: o universo

seria para nós o mesmo que é para a criança da presente fase: um mundo de

reações polarizadas e não de eventos ordenados no espaço e no tempo. (pIaGet,

1937/1975, p. 311; grifos nossos)

e conclui:

[...] a criança da presente fase ainda não é capaz de reconstituir a história dos

fenômenos exteriores nem de situar a sua própria duração na das coisas, de avaliar

a extensão dos intervalos; só está em condições de perceber a sucessão elementar das

suas ações já organizadas. (pIaGet, 1937/1975, p. 313, grifos nossos)

Bem, apenas isto já nos traz uma série de elementos cuja consideração parece crucial na tentativa de responder às questões colocadas por nós ante-riormente. se concordarmos com piaget quanto ao fato de que tempo e espaço já estão dados, de certa forma, em toda percepção elementar, o que significa dizer que toda percepção dura, assim como toda percepção é extensa, já temos um enorme ganho no entendimento de por que o ego de um bebê de meses de idade, com uma temporalidade e uma espacialidade organizadas conforme a descrição de piaget, poderá ser, dependendo da situação a que for exposto, imaturo demais para abarcar a experiência.

agora, tendo em mente tais considerações, propomos atentar para as seguintes declarações de Winnicott (1971/1975, p. 135):

talvez valha a pena tentar formular isto de uma forma que dê ao fator tem-

poral seu devido peso. o sentimento da existência da mãe dura x minutos.

se a mãe fica ausente por mais de x minutos, então sua imagem some, e com

isso a capacidade do bebê de usar o símbolo de união também some. o bebê

está angustiado, mas essa angústia é logo reparada porque a mãe retorna em

x + y minutos. em x + y minutos o bebê não ficou alterado. Mas em x + y + z

minutos o bebê ficou traumatizado. em x + y + z minutos o retorno da mãe

não repara o estado alterado do bebê. trauma implica que o bebê experien-

ciou uma quebra na continuidade de vida, de forma que defesas primitivas fi-

caram agora organizadas para defender contra uma repetição da “ansiedade

impensável” ou contra um retorno do estado confusional agudo que pertence à

desintegração da estrutura egóica nascente.

devemos assumir que a grande maioria dos bebês nunca experienciou a quan-

tidade x + y + z de privação. Isso significa que a maioria das crianças não car-

rega consigo pela vida o conhecimento da experiência de enlouquecimento.

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Loucura aqui significa simplesmente uma quebra no que quer que possa exis-

tir durante a continuidade pessoal de existência. depois de se “recuperar” de

x + y + z de privação um bebê tem de começar de novo permanentemente

privado das raízes que poderiam prover continuidade com iniciação pessoal.

Isso implica a existência de um sistema de memória e de uma organização de me-

mórias. (grifos nossos)

ora, ao que nos parece, as declarações dos dois autores são bastante compatíveis. as conclusões piagetianas sobre a forma de organização do uni-verso infantil nos fornecem parâmetros a partir dos quais as afirmações de Winnicott tornam-se, de nosso ponto de vista, muito mais inteligíveis. se, para um bebê de menos de 11 ou 12 meses, a história do meio ambiente permanece incoerente e fragmentada; se os fragmentos dessa história continuam agarra-dos à ação presente, concebida esta como realidade única; se ele ainda não é capaz de reconstituir a história dos fenômenos exteriores nem de avaliar a ex-tensão dos intervalos; se só está em condições de perceber a sucessão elemen-tar das suas ações já organizadas; se, enfim, a sucessão dos eventos em geral não pode ainda se inserir, para ele, como sucessão consumada numa série de acontecimentos recordados, abre-se uma cortina para compreendermos por que é que um bebê exposto a x + y + z de privação “tem de começar de novo permanentemente privado das raízes que poderiam prover continuidade”, e por que é que a angústia vivenciada por ele pode ser verdadeiramente impen-sável, angústia essa que, segundo Winnicott, dará origem às organizações de-fensivas que chamaremos de psicóticas.

tendo em mente as considerações de piaget, podemos agora retornar à questão de Figueiredo, colocada no início deste item, sobre “Como conceber uma ‘experiência passada’ irrecuperável pela memória – porque de fato não aconteceu – e que só agora – numa nova condição – poderá ser vivida pela pri-meira vez, ou seja, nos meus termos, poderá acabar de acontecer?”, e comple-mentá-la com uma outra, trazida por telles (1997, p. 170):

Que tipo de memória poderia haver sobre algo que tivesse sido armazenado,

por exemplo, fora de um continuum espaço-temporal (ainda não formado)? o

que poderia aparecer na mente do indivíduo pertencente a estágios mais de-

senvolvidos se pudesse ocorrer uma rememoração de uma época em que só

houvesse o que, de fora, chamaríamos de presente?

segundo Winnicott, a experiência não aconteceu porque o ego do bebê não foi capaz de reuni-la “dentro de sua própria e atual experiência temporal e do controle onipotente”. Bem, talvez essa incapacidade refira-se, justamente, ao fato de que determinados acontecimentos do mundo externo (uma ausên-cia muito prolongada da mãe, experiências de dor, fome, frio, etc.) incidiram sobre o bebê numa época e em que, por exemplo, a história do meio ambiente permanecia, para ele, incoerente e fragmentada, de forma que ele não podia ainda reunir os eventos numa série de acontecimentos recordados. se uma ex-periência intensa de angústia e desprazer ocorre num momento da vida em que as condições cognitivas são de tal ordem, poderíamos dizer que ela é trau-mática justamente na medida em que extrapola essas condições.

assim sendo, cremos que “conceber uma ‘experiência passada’ irrecu-perável pela memória – porque de fato não aconteceu” implica, em grande me-dida, em compreender as condições cognitivas a partir das quais ela foi vivenciada. prosseguindo nessa linha de raciocínio, diríamos, muito a grosso modo (pois esta é uma afirmação que certamente demandaria um detalhamento muito maior), que fazer com que ela acabe de acontecer ou possa ser vivida pela pri-meira vez implica em re-significá-la a partir das condições atuais de organi-zação do universo. Isto, no entanto, constitui um novo e imenso problema, o qual deverá ser abordado em uma nova ocasião.

Revisiting Winnicott in Piaget’s company: notes on the notion of ego immaturity.

abstRact: In their theories about human development, Donald W. Winnicott and Jean Piaget assume the existence of a primordial indifferentiation between the notions of self and external world, which would be characteristic of the first

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months of life. Through the recognition of the mutualism with which both notions are constituted, the present article proposes a dialog between both theories and tries to indicate one possible way of connection between them.

Key-woRds: Development; Piaget; Winnicott; Cognition; Integration.

reFerênCiaS

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2000, 455p.

Daniel SchorRua Ministro adauto Lúcio Cardoso, 102

Jd. esmeralda (11) 3731-2733

[email protected]

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Entre

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Psicóloga; psicanalista; membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; supervisora da clínica da Universidade São Marcos; membro efetivo da CEPPAN.

Bernard PenotgABRIELA MALzyNER

introDução

Bernard penot é membro titular da sociedade psicanalítica de paris. Foi mé-dico diretor do Hospital dia para adolescentes, CeRep- MontsouRIs, paris, França de 1988 a 2004. autor de diversos livros publicados no Brasil e na França como: “a paixão do sujeito Freudiano”, “Figures du deni”.

o CeRep (Centro de Readaptação psicoterapêutico) Montsouris é um hospital dia para adolescentes que tem como principal referencia teórica a psi-canálise e o trabalho multidisciplinar. Voltado para o publico de 12 a 20 anos com problemas psiquiátricos, mas sem comprometimentos intelectuais. o Hospital busca ser um espaço de convivência terapêutico e de aprendizagem; visando a integração social e também um projeto terapêutico individual a cada sujeito.

em 2009 tive a oportunidade de trabalho por 10 meses no CeRep Mont-souris e foi a partir desta experiência que surgiu a curiosidade de entrevistar Bernard penot. Há reuniões semanais no CeRep com toda a equipe que atua junto aos adolescentes, onde são discutidos casos e levantadas questões. Busca--se um espaço de compreensão e reflexão. em diversos momentos, ao questio-nar a atuação ou até mesmo a forma como compreendiam o caso, a resposta que me era dada começava com: penot afirma que a transferência se dá através de todos os membros que atuam na equipe, a compreensão de um caso é sem-pre vista pela junção das visões dos membros da equipe multidisciplinar. essa entrevista surge então como possibilidade de dialogar com aquele que fundou as bases do trabalho que é realizado até hoje neste hospital dia.

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a entrevista foi concedida no consultório particular de Bernard penot, à Gabriela Malzyner, em 29 de janeiro de 2010.

entreviSta

Gabriela Malzyner: na entrevista que o senhor deu em 1999 para a revista Percurso, o senhor falou da importância da pesquisa na psicanálise, a partir do seu trabalho no Hospital dia- CeRep Montsouris. o senhor poderia nos falar um pouco do que considera ser pesquisa em psicanálise?Bernard Penot: Bem, há várias maneiras, evidentemente, de se fazer pesquisa em psicanálise. um psicanalista que trabalha sozinho, classicamente, com o divã e a poltrona, pode, é claro, ter espírito de pesquisador. esse foi o caso do próprio Freud, que nunca fez outra coisa senão o que se chama “cures type”, e, no entanto, ele foi, certamente, um grande pesquisador. ele desenvolveu todo seu dispositivo teórico a partir de sua prática do divã, sempre com essa ideia de base que é a experiência que deve ditar a teoria (nunca a ideologia). ele era então muito experimentalista e pudemos efetivamente vê-lo modificar sua teoria à medida da experiência que adquiria da cura. assim, quando ele foi de encontro à reação terapêutica negativa, por exemplo, depois de 1920, desenvol-veu uma teoria que pudesse dar conta disso. É exatamente isso que podemos chamar de pesquisa, mesmo se, claro, isso não tenha a mesma objetividade que uma pesquisa no campo da física, por exemplo, ou da química: já que em psicanálise trabalhamos com material subjetivo e com um instrumento sub-jetivo, a psique do analista!

então fica a pergunta: pode-se fazer pesquisa científica no campo do subjetivo? ou seja, tendo a subjetividade como objeto e um instrumento de observação subjetivo. Veja, eu também faço isso, claro; sou psicanalista com um divã, no meu consultório. Mas o que falei para Percurso, e sobre o que você vem me perguntar hoje, diz respeito à pesquisa psicanalítica em grupo – uma pesquisa conduzida em um quadro institucional. Criamos, efetivamente, no CeRep Montsouris, um instrumento coletivo, um instrumento institucional, a saber, este hospital dia que nos permitia conduzir uma pesquisa sobre registros diferentes daqueles que tratamos em uma cura psicanalítica clássica. Fizemos uma pesquisa que se poderia dizer nos limites da psicanálise.

os pacientes do nosso CeRep eram, principalmente, adolescentes psi-cóticos. a princípio, antigas psicoses infantis que haviam tido uma boa evolu-ção, mas para quem a adolescência constituiu uma prova importante, de modo que eles tinham necessidade de serem re-hospitalizados na adolescência; e, ainda, outras psicoses manifestadas na adolescência sem terem sido detectadas durante a infância. nós criamos, então, esse dispositivo de pesquisa marcado por uma dominante da ótica psicanalítica. ou seja, ainda que a equipe fosse completamente multiprofissional, já que comportava psiquiatras, psicólogos, educadores e, também, artistas, professores. entretanto, você mesma pode no-tar, já que chegou a uma síntese, ainda que cada um conserve sua identidade profissional e seu próprio modo de abordagem ainda assim, fizemos um tra-balho psicanalítico em conjunto, porque nos esforçamos em determinar junto o que em psicanálise chama-se: transferência. É isso. Bem, isso é uma palavra mestra, evidentemente. e o paradoxo de uma pesquisa desse tipo é que ela tem um caráter incontestavelmente psicanalítico, ocupando-se em apanhar uma forma particular de transferência: a transferência que um psicótico pode fa-zer para várias pessoas.

É claramente um processo psicanalítico já que está centrada no fenô-meno absolutamente básico e específico da teoria psicanalítica que se chama transferência. Lacan tinha uma fórmula que acho bem justa. ele dizia que o que especifica o ato do psicanalista é, primeiro e antes de tudo, “suportar a trans-ferência”. então, é uma fórmula incompleta porque se o fato de se ocupar da transferência, de suportar a transferência, é, efetivamente, o que caracteriza a psicanálise em relação a outras formas de psicoterapia (comportamentais, cognitivas, de suporte do eu...), acredito que essa fórmula é incompleta. e aqui, evidentemente, nos deparamos com um defeito maior de Lacan, aquilo sobre o que ele é, em minha opinião, criticável: é que não se trata apenas de suportar a transferência, nem tampouco de utilizá-la, é preciso também conseguir inter-pretá-la, elucidá-la, torná-la perceptível para o interessado, ou seja, o paciente.

GM: pelo paciente?BP: pelo paciente! Quer dizer que em uma cura psicanalítica, você não ape-nas suportar a transferência do seu paciente, você tenta também, suavemente,

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pouco a pouco, com suas intervenções, suas explicações, suas interpretações, que o paciente capte, ele mesmo, alguma coisa, que consiga realizar mental-mente o que acontece, de maneira que ele mesmo se aproprie disso. utilizo aqui um termo que gosto bastante – ainda que seja considerado estranha-mente como não ortodoxo na associação psicanalítica Internacional – e que é o termo de subjetivação. parece-me que o objetivo central do psicanalista é o de chegar a que seu paciente consiga subjetivar sua transferência. ou seja, que parede se contentar com o agir, indefinidamente, assim em sua vida e tam-bém na relação psicanalítica, de se contentar de ali operar uma transferência. Mas que consiga subjetivá-la no sentido de se apropriar dela, de se apropriar dela mentalmente, de fazer dela seu negócio e, rapidamente, ser capaz de en-contrar um meio para agir sobre isso. Mas isso supõe também se deixar fazer suficientemente pela transferência. É toda a riqueza ambígua do termo de sub-jetivação, com sua dupla polaridade: ele comporta a ideia de apropriação, de acessar certo controle, mas ele implica também a ideia de se reconhecer sub-jugado/sujeito por alguma coisa que lhe rege – de se deixar, em suma, domi-nar por seu inconsciente! Há essas duas ideias no termo subjetivação. assim, quando alguém está em cura psicanalítica, pode-se dizer que vai aprender a se deixar levar por seu próprio discurso; e é a regra fundamental da psicaná-lise, deixar vir às coisas como ela veem, sem procurar muito julgar com seu eu consciente: o que não vai se dizer, o que é preciso dizer, o que não é preciso dizer... trata-se de deixar falar e, pouco a pouco, de se deixar levar, de aceitar a apropriação de seu discurso sobre si; e por aí, progressivamente, se subjetiva o inconsciente, se é que posso dizer isso!

enfim, tudo isso para lhe dizer que a prática do trabalho psicanalítico em grupo se faz na mesma ótica; quer dizer que em um hospital dia CeRep nos ocupamos desse fenômeno de transferência que se produz sob nossos olhos e nossos ouvidos. Vamos perceber que há alguma coisa que o jovem paciente, o adolescente, vai transferir para a equipe da problemática inicial dele, sua pro-blemática anterior. então, é isso que vamos nos esforçar para reconhecer em grupo na equipe, através de nosso trabalho de síntese conjunta cada semana. Vamos perceber esse fenômeno que toma formas inesperadas e não forçosa-mente fáceis de suportar (para retomar esse termo de Lacan). os efeitos disso

são, a priori, frequentemente desagradáveis, perturbadores, mais ou menos di-fíceis de suportar; e há também as transferências que são destruidoras, muito carregadas de agressividade, por exemplo. então, nossa experiência particu-lar, no CeRep, começou desde os anos 1970. nós percebemos que, desde que um adolescente recentemente admitido começava a investir no hospital dia, e a aceitar que o hospital dia a equipe, investisse nele, é bem o primeiro sinal desse investimento era que íamos nos encontrar, nós, as pessoas da equipe en-carregadas mais diretamente desse adolescente, em relações muito estranhas, muito surpreendentes. digo “nós”, pois o fenômeno pode implicar cada um, não importa sua profissão – seja professor, terapeuta, artista, ou o que quer que seja... digamos que a transferência não escolhe a função!

então, nos colocando a falar uns com os outros sobre tal adolescente, percebemos que não falamos mais a mesma linguagem. Face a face com um colega com quem estamos acostumados a trabalhar e com quem nos enten-demos bem, em geral, percebemos, subitamente, que não nos entendemos mais; ficamos com a impressão que esse outro é idiota ou incompetente; sus-peitamos até que ele seja perverso... Já que diz coisas que não correspondem absolutamente ao que nós mesmos podemos perceber. então, esse fenômeno, a princípio, nos surpreende e atormenta. É exatamente ele que elucida a vida difícil das equipes psiquiátricas: elas não param de se ver nesses fenômenos, nessa alguma coisa que se transfere para a equipe da dificuldade do paciente. Isso produz um mundo retalhado, um mundo clivado – à imagem do psiquismo do paciente. É como uma fórmula desenvolvida, no exterior, da desorganiza-ção nele – feita de fragmentos, não apenas contraditórios, como é o caso no neurótico, mas antes incompatíveis fragmentos que não podem se articular junto. pensamos na etimologia da palavra esquizo: isso quer dizer splitting, o que veicula um esquizofrênico. o adolescente esquizo no interior produz uma transferência esquizo, clivada; ele pode transferir apenas fragmentos incom-patíveis de relação objetal e isso ainda para diferentes pessoas. É por isso que temos esse efeito primeiro de que as pessoas não possam mais se entender e iniciem uma relação de rejeição mútua, sobre o mundo “mas o que você está falando? Você não está bem?”. Isso vai se produzir não apenas entre psicotera-peutas-psicanalistas, mas também entre dois professores do qual um vai achar

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o aluno genial e o outro, um burro...

GM: e como o senhor pode devolver isso ao paciente e também dosar isso?BP: da seguinte maneira: nosso primeiro trabalho não é o de devolver isso ao paciente. primeiro, temos que acolher isso e fazê-lo trabalhar no dispositivo de acolhida e observação que fabricamos, ou seja, entre terapeutas. aqui, digo terapeutas no sentido amplo; é preciso incluir aqui os educadores, professo-res, artistas, etc.. digamos, então, entre cuidadores... É entRe esses cuidado-res que um trabalho deve, no começo, se fazer, trabalho que secundariamente, se foi suficientemente efetuado entre os cuidadores, vai beneficiar ao próprio paciente. pode parecer um pouco estranho que sem que isso lhe tenha sido explicado (como se faz em uma cura psicanalítica), nós cheguemos a consta-tar, após o trabalho de síntese, efeitos sobre o paciente, sobre sua sintomato-logia. não se sabe muito bem por onde passou (através de sinais primários de cuidadores, sem dúvida), mas já é um resultado. então, não se trata de come-çar por devolver ao adolescente o que acontece de estranho entre cuidadores. por quê? Bem, lhe responderei que é porque não há ainda assinante para o nú-mero, se você entende – ainda não há sujeito podendo receber interpretação.

se você interpretar prematuramente o paciente psicotizado, você inter-preta alguma coisa que ainda não é subjetivável por ele. o que faz justamente disso um psicótico é que há um defeito de produção de sujeito nele, em cer-tos setores de sua vida psíquica. É preciso que, primeiro, isso seja trabalhado no que acontece (transferencialmente) de ambiente primário, de matriz sub-jetivante. Isso remete, certamente, aos progressos que a psicanálise pôde fa-zer depois de Freud no sentido de desprender as condições pré-individuais da subjetivação. eu diria que é preciso que isso seja pré-digerido pelo sujeito nascente... Lacan tinha, aqui também, um termo que me agrada bastante: ele dizia que o jovem sujeito humano, o “sujeito novo” como diz Freud em As pul-sões e seus destinos, o sujeito novo está banhado em uma espécie de matriz de discurso familiar (primeiro familiar, mas não somente familiar). enfim, par-tindo apenas da família, ela constitui como uma espécie de matriz portadora – com seu modo de falar, mas não somente com palavras: de interagir com gestos também, seguramente. o recém-nascido é banhado, no início, em uma

maneira de significar as coisas que constitui uma espécie de pré-digestão, que constitui alguma coisa de já proposto ao jovem sujeito para que ele fabrique sua vida subjetiva a partir daí. Lacan, então, tinha uma bela expressão: você sabe o que é o prêt-à-porter, quando você compra roupas que já estão prontas, as chamamos de prêt-à-porter. são roupas que não fizeram apenas para você, mas que já estão ali e que você experimenta, bom. ele qualificava o discurso familiar de pronto a fantasiar para o novo sujeito! não é ruim como expres-são. Já que se vê bem que se esse “discurso” portador inicial comporta falhas, grandes defeitos de articulação, incompatibilidades, inconsequências, nega-ções, não é (não é à toa que fiz meu primeiro livro sobre a negação), isso que vai marcar a estrutura do novo sujeito.

então a negação é quando alguma coisa se recusa a ser articulada de maneira consequente, que certos dados da vida continuam refratários a tomar um lugar significativo no discurso. É, em suma, uma recusa de significação, o que é diferente da repulsa onde é a representação como tal que desaparece; a ne-gação não faz desaparecer a coisa, mas a priva de significação. Quando há essas coisas em uma família, forçosamente o sujeito novo que nasce nesse contexto vai ser marcado por isso, vai receber disso a marca – le printing – ser marcado com isso em sua vida psíquica. Isso começa nas primeiras trocas mãe-filho. desse modo, se você constata sinais de autismo inicial em uma criança bem jovem, ou manifestações somáticas, como um eczema grave ou ainda, uma anorexia precoce, uma recusa do seio, coisas desse tipo, você vai logo perceber (sobretudo com a ajuda de uma gravação de vídeo porque ao vivo perdemos, com frequência, sinais muito discretos, furtivos, coisas bem pequenas feitas para passar despercebidas) sinais que são enviados ao bebê na interação com o adulto. e se você colocar o dedo em cima e retomá-lo gentilmente com os pais, o sintoma pode desaparecer notavelmente depressa – a anorexia, por exemplo. percebemos, geralmente, que a mãe de um bebê anoréxico envia sinais muito discretos do fato que ela não o ama... Que ela não gosta que ele mame em seu seio... Quando você tem uma mãe um pouco fóbica, por exemplo, isso pode ter consequências enormes; uma fobia banal, discreta, da parte de uma mãe, é bem frequente, certamente, mas isso pode ter consequências desproporcionais sobre o bebê; e isso ainda mais porque a mãe envia esses sinais muito discretos sem

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mesmo perceber e sem que o meio em que vive perceba isso. o importante é que eles são captados “sem deixar passar nada” pelo bebê e que vai imediata-mente adotar uma posição, por exemplo, de rejeição, de recusa, ou de autismo.

então, o que se encontra em jovens, adolescentes que não estão bem e, que têm perturbações graves de subjetivação, como acabo de dizer – a psicose certamente, mas não apenas a psicose, perturbações comportamentais gra-ves também, patologias de comportamentos sem delírio propriamente ditas – então, alguém que tem perturbações graves da subjetivação, percebe-se acaba por servir como receptáculo reprodutor, precisamente, para um sistema de sinalização fragmentado, defeituoso e que envia sinais incompatíveis se neu-tralizando mutuamente. Mas é preciso antes fazer a experiência disso entre cuidadores; e não é fácil porque isso supõe que se organize um dispositivo em que todos os participantes aceitem considerar suas experiências subjetivas como indicativos do que se trata de trabalhar juntos, a propósito do paciente. o problema é que as experiências subjetivas são frequentemente difíceis de re-conhecer porque elas se revestem de uma tonalidade ruim, repreensível. Meu amigo psicólogo e colaborador, Guy scharmann, escreveu um artigo muito pertinente sobre isso[1]: ele tinha percebido, em relação a um jovem adoles-cente, que tinha vontade de afogá-lo quando o levava à piscina, que ele tinha vontade que ele ficasse no fundo! não é fácil relatar isso em síntese porque se tem a impressão de estar em falta profissional. ora, é justamente muito va-lioso restituir isso para colocar em comum – que haja este dado de um desejo de morte sobre este jovem, além de outros investimentos positivos. É colo-cando esses dados que se chega a montar outra vez um pouco de alguma coisa que se pode jogar na origem para cinzelar esse sujeito, no seio das interações familiares. trata-se de fazer desses dados uma retomada – termo felizmente proposto por esse mesmo colégio.

GM: nessa mesma entrevista precedente, o senhor mencionou uma preocu-pação, pintando um panorama pessimista da psicanálise confrontada com outras terapias existentes. o senhor continua com essas mesmas opiniões? e

1. sCHaRMann, G.. «narcisse contre narcisse». In: La Psychiatrie de l’Enfant, XXXI, 2, 1988, p.557.

o que o senhor pensa do futuro da psicanálise?DP: Ressinto de minha parte apenas um pessimismo funcional. ou seja, quanto mais avanço na psicanálise, mais me sinto certo da enorme importância do ponto de vista psicanalítico, na medida em que ele veio historicamente res-ponder a um número de questões cruciais que não se podia mais deixar de se fazer sobre o ser humano. Mas o problema é que trabalhar psicanaliticamente constitui um investimento enorme: é um investimento enorme para um pa-ciente vir durante anos, várias vezes por semana, pagando bem caro... Mas é também um investimento enorme da parte do psicanalista o de dedicar tanto tempo a uma só pessoa e de se implicar tanto pessoalmente. então, quando se trabalha em uma instituição em grupo, é parecido: o investimento é con-siderável no plano econômico. durante essas duas últimas décadas, o poder público perseguiu literalmente nossas instituições por terem um pequeno efe-tivo de pacientes e grande efetivo de cuidadores. exigiam resultados rápidos e comprovados – verificáveis de modo tangível. ora, os resultados são com fre-quência um pouco lentos, com um processo tão complexo, você entende? en-tão, somos obrigados, sem parar, a dar conta do que fazemos ao poder público para justificar o dinheiro colocado no hospital dia e isso nos toma grande parte do nosso tempo terapêutico!

É bem mais fácil aplicar terapias mais simples – cognitivas ou de con-dicionamento, por exemplo. efeitos sintomáticos são ali bem rápidos no plano visível. enquanto que em psicanálise, visa-se efetuar um trabalho de fundo que seja durável. acontece, hoje, você sabe, de receber no meu consultório parti-cular, pacientes na faixa dos 40 anos ou até mais, que são antigos pacientes do meu hospital dia e que vêm ainda me ver de vez em quando. posso ver, um pouco tarde, o caminho que eles fizeram, a partir de seu estado de adolescentes psicóticos. são agora adultos que têm uma vida pessoal, sem deficiência maior (sem delirar, por exemplo). Vê-se quanto foi importante para eles o que fizemos juntos; e, aliás, aos 45 anos me falam ainda do CeRep, porque foi, para eles, uma experiência matricial. É uma etapa intermediária decisiva na existência deles, e eles ainda têm como melhores amigos os jovens que conheceram no hospital dia. dizemos então que: Fizemos bem de termos feito do modo que fizemos, mas em termos de rentabilidade, em termo de utilização do dinheiro

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público, é muito difícil de sustentar em relação às terapias mais simples, que têm resultados mais rápidos no plano sintomático. É nisso que sou um pouco pessimista e que me questiono: será que ainda vamos ter a possibilidade de trabalhar como fazíamos no CeRep Montsouris – de sermos adultos bem qua-lificados pagos para cuidarmos de tão poucos adolescentes, e tanto tempo...? É nisso que sou pessimista, porque é um investimento considerável, que evi-dentemente é essencial se nos colocarmos no ponto de vista do ser humano, de um ponto de vista humanista. Mas não é o ponto de vista que prevalece entre aqueles que nos governam hoje, entre nossos gestores de visão míope... eles dizem que é muito dinheiro colocado em tão poucas pessoas, que, depois de tudo, não serão nunca cidadãos de primeira ordem, hiper produtivos... em suma, por que pagar tão caro para curar alguns patos mancos, você entende? podemos ser pessimistas desse ponto de vista.

GM: É possível pensar em sublimação nos casos de psicose?BP: desse ponto de vista, temos muitos exemplos históricos, não? nós temos grandes poetas como antonin artaud; é um poeta francês que era claramente psicótico e muito criativo. Você tem também pintores bem conhecidos, como Vincent Van Gogh, por exemplo... Bom, são personalidades à beira da psicose, que mostram que a sublimação não é nem um pouco antinômica à psicose. aqui, também, é o mérito de Freud dizer que a sublimação é uma solução pul-sional; ele a descreve como um destino possível da pulsão (1915). Quer dizer que no lugar de se concretizar em uma satisfação erótica direta no plano do corpo, a pulsão vai escolher um objeto não corporal para se satisfazer. É importante ver bem que essa “solução” sublimatória se instala bem cedo na maior parte das crianças. Já vemos crianças bem pequenas investirem em objetos como a pintura, a massa de modelar ou a música... de minha parte, insisti no fato de que a atividade sublimatória começa no que Winnicott destacou como expe-riência transicional – com o transitional object dividido entre mãe e bebê. eles brincam juntos com um brinquedo, uma coisa qualquer, que seja um pano, um objeto que faz gling, gling ou qualquer coisa. ora, já é uma proto-sublima-ção, no sentido de que não é mais o corpo do bebê ou o corpo da mãe que está diretamente em questão para a satisfação, mas que essa passa por um objeto

inanimado, um objeto transicional. acho que as sublimações ulteriores se inspiram todas nessa proto-atividade, e que a aptidão para sublimar depende da experiência precoce: há bebês que foram colocados na via da sublimação muito depressa através de interações com sua mãe, que lhe apresentou obje-tos, que lhes ensinou a tirar satisfações importantes de certos objetos. aqui temos alguma coisa que tem chance de durar a vida toda – desembocando na escritura, na música, etc.. as experiências precoces vão se prolongar na busca de satisfações sublimatórias ulteriores.

eu, pessoalmente, mergulhei nisso quando fiz minha tese em medicina, já faz quase meio século... Meu tema era o futuro das depressões da infância. Fi-quei sensibilizado, de fato, ao ver – através da sequência ao longo curso que nós podíamos fazer em uma estrutura como o Centro alfred Binet (paris, XIII) – o que se tornavam os estados depressivos da primeira infância. É eles podem se transformar em todo tipo de coisa na adolescência ou na idade adulta – quase toda a nosografia! pode, por exemplo, se tornar uma psicose dissociativa, mas quase nunca uma depressão melancólica (isso destaca o simplismo da visão míope das classificações com pretensão nosográfica como o dsM IV!). Mas fui particularmente tocado por uma coisa: descobri o estudo de um inglês, o dr. Felix Brown, (1971), que tinha feito um estudo muito importante para sa-ber se a morte precoce de um genitor, ou dos dois genitores, tinha um efeito sobre o desenvolvimento ulterior – isso poderia favorecer, por exemplo, a de-pressão melancólica na idade adulta? ou até, isso favorecia a psicopatia, a de-linquência, etc.. ele realizou, então, um estudo muito longo, em muitos casos, nas prisões, nos hospitais psiquiátricos, etc.. ele se interessava, em particu-lar, pelos casos de psicose, maníaco-depressivas para verificar se ali se cons-tatava a perda precoce dos pais. Mas não, isso não dava absolutamente nada no plano estatístico. Quer dizer que os melancólicos adultos não tinham per-dido mais pais que a população média. parecido para os psicopatas... ele ter-minou, entretanto, por encontrar alguma coisa de muito significativo: é que mais da metade dos grandes escritores da Inglaterra do fim do século XIX e do início do século XX tinham perdido sua mãe e, com frequência, a mãe e o pai, muito cedo! então, isso é muito interessante porque esclarece sua questão sobre a sublimação. pode-se deduzir daí que a atividade de escrever constitui

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uma maneira de tratar a perda precoce da mãe, por exemplo. eu propus con-siderar que uma sublimação desse tipo prolongava a atividade transicional do lactente. penso na história de um escritor conhecido que, sabendo da morte de sua mãe, trancou-se para escrever ao invés de chorar com seus próximos... acredito que até o reprovaram por não ter ido ao enterro! o tempo todo, ao in-vés de chorar como todo mundo, sua reação foi a de se trancar para escrever, escrever, escrever, durante todos os dias que seguiram o dia da morte de sua mãe. então, minha interpretação disso é a de que esse homem, de fato, se tran-cou com sua mãe em seu escritório para escrever. ou seja, o valor transicional da escritura foi a forma que ele encontrou para se defender de seu luto. então, tudo isso para lhe dizer que os psicóticos não são mais entravados que outros por sublimar; que podemos ter grandes capacidades sublimatórias e sermos esquizofrênicos. Muitos psicóticos sublimam muito – o problema deles seria mais o de poder fazer só isso! de serem incapazes de uma vida amorosa.

GM: no seu artigo, “Latence, sublimation, adolescence”, o senhor fala das “so-luções pulsionais”; então, como fazer a diferença entre solução pulsional e sublimação?BP: ah, não, eu disse que a sublimação é uma solução pulsional. Freud ex-plica muito claramente. ele o diz particularmente em As pulsões e seus desti-nos (Freud, 1915) e também em Narcisismo, uma introdução (Freud, 1914). Você sabe que Freud construiu, nesses anos, o que chamamos sua metapsicologia. então, isso comporta vários artigos importantes. Há A negação, O Inconsciente, e depois ele aborda as pulsões e o destino das pulsões. um dos artigos funda-dores de sua metapsicologia deveria ser a sublimação e vir bem depois, como outro “destino” pulsional precisamente. Mas ele não o fez. e, acredito que isso tenha uma razão bem clara, é que a sublimação é uma satisfação pulsional sem descarga sexual. ora, em As pulsões e seus destinos, Freud define o que ele chama a finalidade da pulsão: a pulsão tem como finalidade se satisfazer, sua finalidade é a satisfação. ela não tem como finalidade seu objeto, ela tem como finalidade obter a satisfação-descarga – não importa o objeto que lhe permita conseguir isso. Mas a sublimação se caracteriza pelo fato de ser uma satisfação sem descarga, sem descarga sexual, sem satisfação sexual direta. está aí o que

Freud qualifica de “mudança de finalidade”, quer dizer que no lugar de, como toda pulsão normal, buscar satisfação pela descarga do prazer – a sublimação é uma satisfação em tensão, um prazer sem descarga. assim, o escritor escreve, e ele escreve, escreve – como o pintor pinta e pinta... – e fazendo isso ele não tem orgasmo, ele persegue uma satisfação em tensão. Logo, é um prazer que vem contradizer o sacrossanto princípio de prazer que prevalecia ainda para Freud nessa época, até 1920. ele ainda estava convencido, em 1915, que toda a vida psíquica era submetida ao princípio do prazer; ele ainda não tinha co-meçado a teorizar o que vai chamar em 1920, Além do princípio de prazer, com a consideração determinante da compulsão de repetição como outro princípio determinante. Vemos, então, que ele não podia teorizar completamente a su-blimação já que esta não poderia ser explicada em função do único princípio de prazer-descarga. ela realiza uma satisfação em tensão, sem descarga sexual, e é preciso então estar no além do princípio de prazer para poder dar conta da solução sublimatória e Freud só começou a conceber esse além em 1920 – tra-zendo o que vamos chamar de a segunda metapsicologia de Freud, com o de-terminismo de repetição e o além do princípio do prazer, como organizadores da vida psíquica, em contradição com o princípio do prazer-descarga. Quando lhe falei há pouco da transferência psicótica, insisti sobre o fato de que isso, o mais das vezes, não tinha nada de agradável – não é nem um pouco uma coisa da qual se possa dar conta em função do princípio do prazer. É desagradável para todo mundo: para o próprio adolescente, com a impressão que sua vida é um pesadelo, e é desagradável para as pessoas que recebem essa transferência e são obrigadas a se arranjarem com ela. Freud tinha começado a perceber isso bem mais cedo a propósito do paradoxo do pesadelo, precisamente – o que nos faz produzir pesadelos? então, para dar conta do pesadelo e da transferência psicótica, é evidente que é preciso estar além do princípio do prazer; mas para dar conta da sublimação, também.

a sublimação é uma satisfação além do princípio do prazer, mas é uma “solução pulsional” de qualquer modo, ou seja, a força pulsional é derivada de um além do princípio do prazer. Como o escritor do qual eu lhe falava que foi se trancar sem dormir, sem beber e sem comer, durante cinco dias depois da morte de sua mãe. ao fazê-lo, ele está bem no princípio do prazer, ele está

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mobilizado pelo imperativo de sustentar sua relação transicional com sua mãe. É um imperativo vital, que poderia, no limite, se tornar perigoso para sua própria vida, para sua auto conservação, levando-o até ao esgotamento. É um pouco parecido com o caso dos grandes místicos, por exemplo; era pre-ciso que um irmão os forçasse a comer ou a dormir de vez em quando, porque, senão, eles eram tão tomados pelo seu prazer estático que podiam morrer as-sim – de fome, de cansaço, de frio... não nos encontramos aqui no primado do princípio do prazer, mas em outra coisa que leva a uma manutenção forçosa de uma relação incondicional ao objeto primeiro da relação transicional. eu não sei se estou sendo claro...

GM: sim, sim, é muito claro. não..., é apenas uma coisa que eu nunca havia pensado, é apenas isso.BP: É mesmo?

GM: Que a sublimação pode ser perigosa.BP: sim, a sublimação pode ser perigosa; e acrescentarei alguma coisa que é muito importante, e que percebemos muito com os psicóticos. É que a subli-mação não pode substituir a vida sexual, a vida amorosa. se você olhar o caso de uma Virginia Wolf, por exemplo, vemos claramente que ela dá provas de uma formidável capacidade sublimatória, que é uma escritora muito criativa; e isso não a impede de se suicidar... Isso faz pensar que a sublimação não per-mite, não assegura a felicidade. É uma satisfação muito importante, mas se dispomos apenas dela, podemos morrer por causa dela – não somente como eu dizia há pouco, por negligência das necessidades vitais, mas por outro defi-nhamento que pode levar ao suicídio. assim mesmo, muitos escritores se sui-cidam. É aqui que reconectamos o ponto da psicose. pois se os psicóticos dão frequentemente prova de capacidades sublimatórias importantes (eu tive mui-tas em meu hospital dia), pode ser até mais que na média da população, eles têm, ao contrário, uma grande dificuldade em realizar uma vida amorosa. É por isso que, com frequência, os psicóticos se suicidam, como os grandes escri-tores, como os grandes artistas... e isso sustenta de um lado, acredito o defeito desesperador na maior parte deles da possibilidade de realização amorosa. É

que a satisfação dada pela relação amorosa tem uma virtude vitalizante, que a sublimação não pode trazer. a realização sublimatória não tem esse caráter vitalizante – no sentido de fazer bem, de deixar feliz, de dar felicidade, de re-carregar as baterias, como se diz. uma sublimação bem sucedida dá uma sa-tisfação maior, um sentimento de realização entre muitas pessoas, mas com a falta de outra coisa, e não pode não impedir seus definhamentos. para mim, minha atividade psicanalítica, por exemplo, é vital, evidentemente, é muito preciosa, mas eu me dou o direito de esquecer, de ter uma vida amorosa im-portante. estou convencido de que se um psicanalista só fizesse psicanálise e não tivesse vida amorosa pessoal, seria alguém perigoso – primeiro perigoso para sua própria saúde, mas não apenas isso.

GM: o senhor acredita que é possível tratar distúrbios graves de subjetivação fora do hospital dia?BP: Bem, aqui, vou responder à sua pergunta deformando-a um pouquinho, se você me permite. Quero dizer que a questão não é a do hospital dia enquanto tal. a pergunta fundamental é que é difícil tratar um distúrbio grave da sub-jetivação de outro modo a não ser se colocando em grupo. então, que isso ocorra em um hospital dia ou outra coisa, pouco importa. o importante é que os dis-túrbios graves da subjetivação necessitam de um trabalho em grupo. por quê?

tenho um amigo, por exemplo, que se chama Claude Balier e que tem trabalhado muito a relação terapêutica nas prisões. para ele, não é o hospi-tal dia é a prisão. ele trabalhou muito tempo com criminosos perigosos, com pessoas que tinham cometido graves delitos, grandes erros – sexuais entre outros... uma coisa é evidente para ele, é que essas pessoas só podiam realizar um trabalho psicoterapêutico na prisão! era necessário para eles o quadro car-ceral para sustentar o trâmite. além do mais, ele coloca como princípio para sua equipe que um terapeuta nunca deve trabalhar totalmente sozinho com esses pacientes. pela razão que lhe dizia há pouco: a transferência entre eles só pode tomar uma forma temível. Quer dizer que os que eles têm a transferir são coisas terríveis e mal articuladas, de tal modo que uma única pessoa não vai poder assegurar recepção da transferência apenas para ela. o paciente vai transferir uma parte de sua experiência tóxica para uma pessoa, e outra parte

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para outra, logo, vai ser necessário trabalhar em grupo.em tais casos, um psicanalista sozinho – não apenas na prisão, mas

com um psicótico perigosamente clivado, esquizo – um psicanalista sozinho com um esquizofrênico, se arrisca muito a ser tomado por uma transferên-cia parcial, parcial e, assim, parcializada, não é? ele não tem nenhum meio de perceber isso no começo. Quer dizer que ele vai ter, por exemplo, uma trans-ferência positiva, ou então, ao contrário uma transferência negativa, uma ex-periência de rejeição, etc.. Mas, o importante é que o que ele pode perceber ali subjetivamente é apenas um pedaço da transferência. o que é caracterís-tico, por consequência, quando se trabalha em grupo com distúrbios graves da subjetivação é que, em um primeiro momento, cada um imagina que sua experiência subjetiva no contato com o caso (conforme ele começa expô-lo em síntese) é completamente objetiva e justificada profissionalmente. se ele percebe o paciente como genial, ou como um sacana ou um cretino, ou sei lá o quê, ele acredita que esse olhar é objetivo, profissional. e é apenas perceber que outro colega, a priori, tão capaz quanto ele, pensa completamente diferente – que não tem nada de genial, que não é bem um sacana, nem um cretino – é o fato de ir de encontro a esse desmentido (com surpresa e incompreensão no início), é ter de vislumbrar que seu ponto de vista não é talvez tão profis-sional assim, que ele pode estar subjetivamente enganado, um ponto de vista parcial, você entende?

É por isso que um psicanalista que fica indefinidamente sozinho com um paciente difícil, com um paciente psicótico, pode durante muito tempo, ignorar que seu ponto de vista é completamente parcial - um mínimo con-tato, de troca de ponto de vista, com outro terapeuta, só seria um médico, um prescripteur, por exemplo, ou outro profissional qualquer... ele percebe então quanto os pontos de vista podem divergir sobre o paciente que ele está tra-tando. eu lhe dizia a pouco que a primeira reação é habitualmente de tomar o outro por incompetente, ou pior...

em todo caso, o analista isolado arrisca-se a ficar indefinidamente com sua parte clivada da transferência, e de não conseguir suspeitar do resto... ele poderá talvez, às vezes, oferecer, entretanto, ajuda ao caso; mas pode também haver consequências deploráveis em tal desconhecimento de uma parte da

vida psíquica de alguém. É desse modo que se tem um paciente que, de re-pente, se suicida, e não se entende por que, alguma coisa assim. digamos que trabalhar completamente sozinho, como psicanalista, tratando de distúrbios graves da subjetivação, é perigoso porque é um dispositivo inconsequente em relação ao que se sabe hoje da gênese primeira de tais entraves à subjetivação.

É então perigoso trabalhar sozinho com um distúrbio grave da subje-tivação, porque sabemos, e para mim isso resulta de trinta e cinco anos de ex-periência, que esses pacientes permaneceram aquém de uma vida relacional integrada – tenho vontade de dizer, aquém do limiar antropológico da posição depressiva, tão genialmente concebida por Melanie Klein na segunda metade do primeiro ano do desenvolvimento.

GM: Logo, se o senhor tem um paciente com distúrbio grave de subjetivação, colabora com colegas psiquiatras?BP: sim, fazemos isso com frequência quando temos um paciente difícil, ne-cessitando uma ajuda medicamentosa conjunta. Mas isso pode acontecer também com pacientes psicossomáticos graves; podemos colocar como con-dição-estrutura da cura psicanalítica que ele veja também, regularmente, um gastroenterologista, se for uma úlcera de estômago, ou um endocrinologista se for um hipertireoidismo, ou outra coisa... É muito importante, então, pres-crever outro, colocar outro cuidador. o mais difícil é ter um mínimo de arti-culação com este outro cuidador – como somos regularmente forçados a isso pela vida em instituição terapêutica. em todo caso, percebemos, desde então, que as coisas se tornam menos constrangedoras, mais respiráveis. são verda-des também algumas patologias suplementares, ou de comportamento – po-demos nos articular com um assistente social, um advogado... temos vários casos difíceis, um trabalho psicanalítico é possível com a condição de não se conceber tudo sozinho – de ser capaz de destotalitarizar o tratamento do caso.

GM: o que o senhor entende como « cura » em psicanálise?BP: Como cura? existe o que chamamos cura tipo, aqui, é o divã/poltrona; então é um dispositivo que foi concebido por Freud para trabalhar com seus pacientes neuróticos. Mas de modo bem empírico, evidentemente. Freud nos

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diz, aliás, por que ele recorreu a esse processo do divã. ele diz, a princípio, cer-tamente, que a pessoa deitada vai se encontrar frente as suas próprias repre-sentações mentais, bem mais do que em frente às mímicas de seu analista. Constatamos isso cada vez que passamos alguém da poltrona para o divã: é, com frequência, uma passagem um pouco sofrida para o paciente que de um momento para outro se encontra privado da segurança do rosto do analista – mas ele ouve bem seu analista reagir assim mesmo em suas costas... Mas o que Freud acrescenta imediatamente, e que, em minha opinião, é decisivo, é que ele não podia suportar passar oito ou dez horas por dia sendo observado! Isso também é cansativo. Realmente, eu que tenho uma prática aqui em con-sultório particular, tenho assim mesmo uma maioria de sessões deitadas no divã. Mas é verdade que ter dois ou três pacientes em uma situação frente a frente, em seguida, me cansa mais. Quando o paciente seguinte se deita, posso relaxar um pouco, deixar à deriva minha escuta; posso até coçar o nariz ou sei lá, fechar os olhos, etc.. posso ter outro tipo de atenção e é isso, me parece, a principal razão do dispositivo divã /poltrona. Mas aqui, me parece que você me perguntava sobre a cura em geral em psicanálise. e eu direi que é antes de tudo uma cura conduzida por um psicanalista!

então, a cura sendo uma coisa designada, precisamente... Queria lhe falar de maneira um pouco geral do que pode fazer um psicanalista hoje. Co-meçarei pelo fato que Freud gostava muito de se referir à psique de seu tempo. ele tem prazer em comparar, em várias passagens de sua obra, o pesquisador psicanalista ao pesquisador físico. É, para ele, o meio de insistir sobre duas coi-sas fundamentais. primeiro, que a psicanálise, apesar de seu objetivo subjetivo, tem vocação de se situar entre as ciências experimentais, as ciências da natu-reza. É, talvez, o ponto mais profundo de divergência com Jung: Freud é um naturalista e repudia qualquer ideia metafísica; ele não tem nenhuma incli-nação para as ideias platônicas, fora de todo contexto neuronal ou endócrino.

a física, hoje, mais ainda do que no tempo de Freud, se acostumou à noção de objetos naturais complexos. ela entende por isso objetos físicos dos quais uma única teoria não é suficiente para dar conta e cujas propriedades não podem ser colocadas em evidência por um único dispositivo experimental (a luz foi historicamente o primeiro objeto complexo com sua dupla natureza

ondulatória e corpuscular que, onde cada elemento necessita de um disposi-tivo diferente para ser observado). então, é pouco dizer que a subjetivação é um objeto complexo!

Mas o ponto importante, que nos diz respeito aqui, e volto à sua per-gunta, é que o que observamos depende do dispositivo de observação que uti-lizamos. Bem, para dizê-lo sumariamente, se utilizarmos um microscópio não veremos a mesma coisa que se utilizarmos um telescópio, evidentemente. É claro. Mais um objeto é complexo, mais o dispositivo de observação se veri-fica decisivo daquilo que observamos. É uma noção evidente hoje para aque-les que buscam observar o trajeto de partículas. Mas é verdade também para a psicanálise, salvo que aqui, nós nos chocamos com o que Lacan chama “a imbecilidade realista” (em seu seminário de 1955 sobre A carta roubada, reto-mado no cabeçalho de seus Escritos). posso falar da imbecilidade objetivante dos médicos que conceberam os dsM – com a ilusão míope de pretender iso-lar dados “simples” e “objetivos” para apreender o psiquismo humano. e isso desconhecendo completamente, que o dispositivo de observação é constituído pelo próprio médico, sendo ele decisivo no que elegerá na observação clinica.

para voltar ao divã, direi que é um dispositivo engenhoso para destacar a neurose da transferência, e é por isso que Freud fez bem em colocá-lo em uso. Mas, se você trabalha como lhe dizia há pouco, como psicanalista no hospital dia, se você trabalha psicanaliticamente em grupo, você vai fabricar um dis-positivo que é favorável à observação de registros psicóticos de transferência, o que não é nem um pouco parecido. Com outros dispositivos, psicanalistas vão poder observar outras coisas: fazendo psicodrama, por exemplo; ou se tra-balhamos em terapias de grupo, podemos ter uma apreensão do imaginário grupal que escapa se tomamos as pessoas individualmente; e o dispositivo de terapia familiar leva a enxergar ainda outro ângulo de visão; e a observação das relações precoces mãe-bebê.

então, quando você me pergunta sobre a cura, direi que há múltiplos tipos de cura psicanalítica segundo o dispositivo que utilizamos. e isso me pa-rece uma evolução feliz para melhor responder à diversidade das demandas terapêuticas de hoje. Falamos cada vez mais em minha sociedade (a socie-dade psicanalítica de paris) de trabalho psicanalítico CoM a criança, ou CoM

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a família, ou CoM os doentes psicossomáticos... Quer um psicanalista traba-lhe sozinho ou em grupo, quer ele trabalhe em instituição ou em consultório particular, quer ele trabalhe com vários pacientes, ou em grupo, que ele utilize o jogo psicodramático ou somente a palavra, todos são dispositivos diferentes, e são curas. Isso pode ser trabalho psicanalítico. Você entende? de fato, uma aproximação psicoterapêutica pode ser qualificada de psicanalítica desde que capture a transferência. eu lhe dizia ao começar que Lacan, em seu primeiro seminário L’acte psychanalytique (1968), estima que o que define o ato do psica-nalista é antes de tudo “suportar a transferência”. Mas fica, em seguida, a per-gunta de como fazê-lo trabalhar, a transferência, como colocá-lo no processo, deixá-lo subjetivável pelo paciente; e aqui eu divirjo de Lacan. Mas para ter tempo de desenvolver isso, seria preciso outra entrevista!...

então, eu lhe dizia, no início, que a noção de subjetivação é, em minha opinião, um conceito chave para definir um trabalho como psicanalítico. po-deríamos dizer, com efeito, que o objeto da psicanálise é a subjetivação, acre-dito que poderíamos dizer isso hoje. e como se trata de um objeto complexo, ele necessita de vários ângulos de aproximação, e também uma teorização complexa. Vemos isso bem pelo autismo, por exemplo: somos obrigados a ter recursos em várias teorias simultâneas para falar do autismo; um psicanalista não deve ter medo de afrontar o fator genético ou outras coisas além da pró-pria psicanálise. não podemos reduzir o autismo a uma só teoria explicativa – nem reduzi-lo à genética, nem reduzi-lo a uma casualidade relacional, há vá-rias coisas que intervêm para levar um distúrbio tão massivo da subjetivação.

acredito que a subjetivação é, sem dúvida, o objeto mais complexo que existe na natureza, a ponto que ele incita a acreditar que não é um objeto na-tural? as religiões, em particular, não pararam de opor a vida da alma humana ao mundo natural. Freud emprega, no entanto, esse termo de seelenleben que foi, a princípio, traduzido impropriamente por vida psíquica. ele nunca pensou que o sujeito humano era de ordem metafísica, que ele escapava aos determi-nismos do mundo psíquico. e é, ao contrário, a contribuição decisiva de Freud sobre o determinismo psíquico – causa maior de escândalo, mais que o sexual.

Gabriela MalzynerRua Veiga Filho, 350

Higienópolis(11) 3822 4046

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Rese

nha

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Psicanalista, doutor em Psicologia, professor do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Um facho de intensa escuridão – o legado de Wilfred Bion à psicanálise[1]

autor do livro: James S. grotstein[2]

EMIR TOMAzELLI

a sociedade psicanalítica de porto alegre em associação com a artmed publi-caram, em 2010, um livro de importância estrutural no que tange, hoje em dia, a uma parte da psicanálise. Livro tremendo; obra tremenda. texto complexa-mente esclarecedor e complexamente portador da notícia de que precisamos estudar mais, muito mais.

É livro para ser lido por qualquer psicanalista, mas é obrigatório para os que respeitam e apreciam a escola inglesa. É particularmente dirigido para aqueles psicanalistas que foram capazes de ler, com admiração e encanto, o pensamento que se desenvolveu a partir de Melanie Klein e que foi incremen-tado pela genialidade e coragem, sem precedentes, de Wilfred B. Bion.

o livro é obrigatório, não só porque é um livro de uma generosidade teórica, como poucas vezes eu vi num texto de esclarecimento sobre a obra de um autor, mas também porque é um tributo de Grotstein, aos psicanalis-tas que gostam de pensar, mais até que de aprender. É um livro sobre o amor que um discípulo tem por seu mestre, e do amor que um cliente pode desen-volver por seu psicanalista - que depois virou amigo querido. É um legado de

1. tradução de Maria Cristina Monteiro / publicação da artmed, 2010, porto alegre/Rio Grande do sul2. Grotstein - analista didata e supervisor no new Center for psychoanalysys e no psychoanalytic

Center of California.

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Grotstein a Bion[3], transformado em um legado de Bion a nós, que está subli-nhado por Grotstein. É uma oferta de iluminação delicada e intimista, onde uma obra respeitosamente lança uma luz, que lhe é própria, na outra. (Grots-tein, talvez, se trate de um autor que pode se atrever a pôr sobre Bion um “fa-cho de escuridão”!)

“Um facho de intensa escuridão” – o nome próprio do livro - já ‘esclarece’, de um modo sucinto a problemática em que seu autor vai nos colocar, para en-tão nos fazer o convite de mergulhar cientificamente, esteticamente, e misti-camente no pensamento ‘metapsicanalítico’ de Wilfred Bion.

Grotstein vai oferecer-nos uma chave para olhar um objeto que se chama Bion, vai nos ajudar a lê-lo, e a estar com ele. Vai nos ajudar a senti-lo mais possível e mais palpável. Mais cognoscível!

Como com todos seus comentadores, Bion vai fazer Grotstein passar por apertos para os quais nem sempre oferece boas soluções, principalmente quando quer fazer novas teorias a partir do que Bion pensa, ou quando quer evoluir de Bion e se põe a discutir com Kant.

Mas de uma forma ou de outra, todos aqueles que escreveram sobre Bion, devem ter tido em mente que Bion é um autor sempre em esquiva de ser lido; sempre evitando ser compreendido, a cada frase; sempre desconfortável para quem o lê, e sempre em confronto com quem o lê, a cada frase.

porém, e ainda além deste confronto que acabo de mencionar, emerge outro confronto nos trabalhos de Bion: o confronto com a psicanálise. ele rara-mente deixa brecha ou dá descanso ao leitor psicanalista interessado; mesmo que escreva para comunicar-lhe questões cruciais sobre a psicanálise; mesmo que sua escrita seja para organizar o universo sobre o qual se debruça, e mesmo que o faça o mais metodicamente possível.

e, por falar em método, sempre gosto de dizer que é sob a regência desse fio de lucidez metódica, e de observação microscopista da realidade clínica, que ele trabalha. É esta microscopia - atrás da que Bion se protege ou se esconde para ‘olhar melhor’. É ela que, ao mesmo tempo, lhe permite a observação do

3. Leia-se José Carlos Calich, que escreve a apresentação à edição brasileira.

‘óbvio não observado’[4], e, ao observá-lo tenta a construção da intuição de onde esse presente traumático vai dar. por esta via faz uma investigação do trauma em seu futuro.

usa como recurso a projeção, uma projeção com função investigativa e intuitiva. É com esta que prevê o evento traumático, sendo trazido do futuro para o presente, invertendo, assim, a teoria temporal do traumático, e a obser-vação clínica da sessão. seu procedimento de investigação sempre está vincu-lado à inversão de perspectivas, e está apoiado na máquina que lança o evento, desconhecido no presente, no futuro do sujeito. esta máquina se chama: ‘iden-tificação projetiva’. É dela que ele se aproveita para estudar cada convite trans-ferencial, em cada encontro pessoal com cada cliente seu. É pelo uso interno e técnico, dessa velha parceira – a “identificação projetiva” – com que ele irá confeccionar a bússola que usará para orientá-lo na sessão com cada cliente. a esta bússola, ele dará o nome de Grade.

É desse modo que Bion transforma a sessão num mapa, e este mapa pode - logo que captado no agora do encontro - antecipar um desastre, uma mudança catastrófica ou uma germinação fecunda e criativa. Isto é: é a partir do presente da sessão, que se oferece como o fenômeno de um “noumenon” - que é o próprio encontro humano - que Bion interpreta. ou seja, é o presente da sessão, que ele sustenta como homem, o que indica o que está “pedindo” aquele que “pede” ajuda. enquanto ele escuta as previsões do futuro, ele faz conjecturas simples que tentam pensar onde algo vai dar, ou onde um sujeito, num estado de emoção como aquele que vive no momento do encontro com ele, vai acabar parando.

Bion ensina desta forma, como, a cada instante, este “noumenon” que aguarda e anseia por nova fenomenização, anseia muito por vir à luz e tomar uma forma. É assim que ele vai trabalhar com a mente do outro, uma vez que procura, enquanto o escuta fazê-lo sonhar o sonho necessário, isto é, enquanto

4. esta é a outra definição que Bion dá para o termo freudiano: ‘ inconsciente’. ou seja, o que está in-consciente pode singelamente ser apenas da ordem do óbvio não observado, e não do esquecido, nem do reprimido. o óbvio, tanto quanto a “carta roubada”, estão escondidos porque estão à luz e disponíveis ao olhar, mas não conscientes nem disponíveis para a observação, menos ainda para a abstração, ou para o conhecimento.

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escuta o cliente ele dá abrigo a pensamentos que precisam de dois pensadores para serem pensados. ou seja, para Bion a psicanálise é o processo de sonhar a dois. e este sonhar é o sonhar de um sonho que só pode ser sonhado a dois, porque uma parte de nossa mente - sempre desconhecida - nos aguarda no fu-turo dentro do outro. ou seja, Bion fala do trabalho como a oferta de um lugar, e de uma crença que é possível depender de outros humanos que permitam que passemos por dentro deles, e com isto encontraremos o significado que ainda não tínhamos em nós, nos momentos que vivemos antes de passar por dentro de alguém que nos sofreu de verdade. É nisto que ele se apóia - e se apri-mora - para pensar o que ele experimenta no encontro com seus analisandos.

É sob esse mesmo comando técnico, o de investigar a dispersão emo-cional que passa dentro de alguém em seu próprio estado emocional pessoal - sem usar o discurso, nem o dispositivo psicanalítico como via de descarga da tensão criada pelo ato de conhecer - que Grotstein vai procurar trabalhar. Vai espelhar-se no mestre e auto-impor-se o “não saber” para, sempre em dúvida, manter-se aberto para o significado que brota do inesperado, quando ouvimos o mundo com ouvidos de psicanálise.

esta era uma disciplina que Bion se auto-impunha. e a mantinha ativa até poder encontrar algo, ou algum sentido, que unificasse a dispersão. daí en-tão, era só ajustar as distâncias e - pronto! - dar o “pulo do gato”.

É com esta concentração interna com que Grotstein vai trabalhar a maior parte do tempo. Xeretando em tudo, pegando cada pedacinho, cada lembrança, cada leitura, cada pesquisa, cada linha escrita e esmiuçando, como quem digerisse material mais duro, nos devolvendo letras e sentenças mais palatáveis, e mais possíveis de serem compreendidas, para nós.

Buscar articulações e conexões associativas é o que Grotstein vai, pa-ciente e inteligentemente, procurar fazer, e com isto vai re-descrever seu au-tor de escolha e seu ex-analista. sob esta ótica vai (re) lê-lo, (re) pensá-lo, (re) explorá-lo, (re) desnudá-lo (algumas vezes), perder-se nele mais e mais vezes... porém, no entanto, todavia, contudo: nunca vai explicá-lo. Quer dizer, vez por outra vai explicá-lo, mas sem simplificá-lo.

Grotstein respeita Bion, além de admirá-lo - mesmo porque não há outro jeito quando alguém se interessa por Bion -, e ressalta que o legado que

ele deixou foi esse de ampliar horizontes, mas nunca foi esclarecer, menos ainda, explicar. Como nos diria Blanchot: “a resposta é a doença da pergunta.” e Bion cria nisto.

Lendo Grotstein, se pode perceber que a função de Bion no interior da instituição psicanalítica - o establishment, como ele a chamava - não foi obser-var que seria necessário um retorno a Freud, menos ainda um retorno a Klein, não tinha a intenção de retornar a ninguém. pegou de cada um o que lhe in-teressava para pensar e usar, e foi em frente. e isto aconteceu de tal forma que ele acabou por se pôr à frente de seu tempo. neste sentido não é inadequado pensar que, na psicanálise, Bion poderia ter o mesmo valor que tiveram Ja-mes Joyce ou samuel Beckett na literatura inglesa, quanto Guimarães Rosa, na literatura brasileira; e todos eles na literatura mundial.

Bion não quis, ou melhor, a ele não coube fazer uma escola, onde só estariam os ‘puros’, menos ainda escrever para dirigir-se ao mundo psicana-lítico com vistas a conquistar a europa, a África, a Ásia, a oceania, como era o olhar de napoleão Bonaparte, sobre o mundo e sobre o outro. não se encontra em Bion, o papel de Imperador, mas o de soldado condecorado na primeira guerra (por prestação de serviços ao povo da Inglaterra, e por ato de bravura em campo de batalha) e como médico, na segunda. Isto se encontra. Bion o soldado, Bion o lutador inabalável.

para quem não sabe - sempre em luta, sempre dando combate -, Bion esteve nas duas grandes guerras, fazendo jus a sua origem huguenote e aos an-cestrais familiares, que lutaram na Índia e na África. o instinto napoleônico: apossamento e conquista - aniquilamento do velho e implantação da nova cultura e linguagem - não será o gesto bioniano por excelência. Bion nunca se dirigiu aos psicanalistas para prescrever-lhes o caminho, nem para alertar--lhes o desvio do mestre, indicando com o dedo todos os que eram impuros, e onde estavam as letras “verdadeiras”, nem como se escreveriam as “verdadei-ras” palavras do psicanalisar.

Bion, essencialmente foi um homem despojado e direto. Foi ele mesmo. um homem fechado, contido, auto-determinado e profundo, completamente incapaz de esconder seus defeitos ou suas falhas, esbarrando em uma fran-queza, que poderíamos chamar, por vezes, de psicótica.

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Certamente, não foi um galã e menos ainda um conquistador. Muito angustiado para relacionar-se com as mulheres, na verdade, foi salvo pelas duas que o quiseram, lhe deram filhos e o admiraram. Fora disto, se restrin-giu a ser um militar, formado em literatura, médico, psicanalista e pensador.

Mas seja qual for o lugar pessoal de Bion na história da psicanálise, o estudo de Grotstein, procura ir onde Bion esteve. e por isto devemos reconhe-cer que Grotstein fez um trabalho de fôlego. Releu cada livro lido por Bion, se aprofundou nos campos do saber e da literatura por onde Bion passeou longa-mente, após as áridas sessões de psicanálise que oferecia a seus clientes; anali-sou-se com ele, avançou esse relacionamento para uma amizade, se embrenhou em mundos íntimos e em mundos onde o cógito mais e mais se aprofunda no ignorado. Mergulhou na epistemologia, geometria, matemática, medicina, fi-losofia da ciência, artes, estética, mística, o místico, e por fim psicanálise. Leu tudo ou quase tudo que Bion leu. tentou compreender as coisas pelo direito e pelas avessas. trabalhou e trabalhou.

tanto Bion como Grotstein, falando sobre Bion, reafirmam que, uma parte importante do processo de conhecer é ser capaz de desconhecer. Isto é, conhecer é ser capaz que reconhecer que é impossível e desnecessário que al-guém saiba de tudo, e que é necessário ignorar para poder aprender. donde se conclui que ensinar é desnecessário. porque, ou não aprendemos nada que experimentamos ou, se experimentamos alguma coisa, ninguém precisa nos ensinar, porque, ao experimentar, já aprendemos.

talvez por estas questões levantadas acima, é que possamos pensar que escurecer o olhar é uma das condições necessárias da observação. a não visão é condição da observação, mesmo porque o óbvio não observado é tão incons-ciente quanto algo que foi banido da consciência pela força da repressão. nem sempre ver, aquilo que está presente, é possível, mas, talvez, seja possível ver o que não se oferece à visão na visão. É por isto que inconsciente, como já in-sistimos tantas vezes, pode ser apenas o óbvio não observado, e Bion era fasci-nado por esse jogo binocular, de desfocar a figura para ver o que está no fundo, retorcendo a perspectiva do próprio olhar.

não ver para ver melhor. ouvir o ricochetear da imagem no espaço, que se deriva do rebatimento das ondas infra-sonoras emitidas por um órgão

que enxerga, mas não é olho, percebe, mas não é órgão.ou seja, para quem vai estudar Bion, melhor será se esse que o estuda

puder mover-se bem na escuridão, sem se aborrecer com a aridez do caminho, nem com a demora na intelecção.

os olhos noturnos de Bion nos remetem aos predadores que caçam no escuro, entre eles, e excepcionalmente metafórico, a coruja é um desses es-pécimes. o outro é o morcego. um deles vê no escuro, a coruja; o outro, mais complexo, “ouve” a visão, ou melhor, capta o escuro por um tipo de audição que “ouve” o ricochetear da onda do sonar no objeto onde ela toca, e assim o conhece. É o olho infra-sonoro.

para nós, mais comuns, Grotstein será luz para nossos olhos cansados de ler sem entender o que Bion escreve. Grotstein será o nosso Virgílio, é ele quem nos guiará na escuridão que é ler Bion. É ele que nos auxiliará nesse es-forço de ver no escuro. É assim que ele vai tentar “esclarecê-lo” ao longo do li-vro. Mesmo assim Bion não se fará visível. Mas, de qualquer forma, visível ou não, a simples leitura de Grotstein já melhora consideravelmente as condição de um possível entendimento da obra bioniana.

no entanto, mesmo com Grotstein, o que aprendemos ao final da lei-tura é que quanto mais entramos na obra bioniana, maior a dificuldade de ver, mais complexa e infinita fica a mente descrita pela veia literária de seu autor.

o purismo determinista de Freud perde todo espaço na teoria de Bion, apesar de ser um componente essencial dela. Bion é um fenomenólogo, Bion é um místico. Freud um cientista positivista, um determinista[5]. este estudou as causas da doença mental. o outro, Bion, foi por outro caminho, estudou a construção do conhecimento, e os programas de fracasso da auto-observação que são superados por programas de auto-ódio e auto-amor, bloqueando e tra-vando a máquina de autoconhecimento.

Com estes novos instrumentos clínico-teóricos Bion desenvolveu uma técnica de observação que se restringia propositalmente ao que estava ali a sua frente. nunca saiu deste ponto. estudou o agora, nunca o passado. estudou o momento e, no momento, quais as possíveis inferências hipotéticas que um

5. neville symington, Joan symington, o pensamento Clínico do Wilfred Bion.

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Tradu

ção

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‘observador neutro’ poderia realizar para descobrir o futuro daquele evento.Bion resumiu-se ao observável, ao real da sessão, por isto se interessa

pouco por interpretações de movimento rígido, vai preferir as projetivas, por-que estas sim facilitam o estudo dos sistemas mentais, que estão em atividade e navegam em direção ao desconhecido, em cada momento da sessão. a “Grade” é valiosa neste momento; é a partir dela que ele “vê” o cliente.

Já que mencionei a grade, gostaria de falar uma última palavra sobre o livro de Grotstein.

Grotstein esclarece a “Grade”. e isto nos alegra. e isto nos faz ver que é com ela que Bion pensa. É ela que permite a um observador, que suporta a ten-são da não resposta, a aguardar o momento até que uma aglutinação se forme e faça algum sentido, e então nesse momento se possa fazer a intervenção analí-tica. É sobre esta aglutinação que Bion procura informar ao cliente. É isto que lhe autoriza a falar sobre o que cada um está fazendo quando se encontra com ele.

para o estudioso a “Grade” deve ser tomada como a chave do psíquico, é ela que permite que haja a mente. a “Grade” é a mãe. a “Grade” permite que possamos compreender onde começa e até onde vai o psíquico, é ela que nos dá acesso a realidade, e é ela que define que Realidade absoluta e Verdade Úl-tima são questões que escapam aos estudiosos, e por isto estão fora do perí-metro e do alcance da “Grade”.

Bem... e assim vai...e assim, nós, por aqui ficamos...Ficamos, e mais uma vez afirmamos a importância de Grotstein, e de

sua leitura ser uma leitura sumamente importante. se puderem leiam, é um belíssimo livro. aproveitem!

É isso aí.

Emir TomazelliRua João alexandre Rochadel, 62

Brooklin [email protected]

Psicóloga clínica, membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

A transgressão de Raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividaderichard J. rosenthal

TRADUÇÃO: JULIA PALADINO

reviSão: marly t. m. goulart

Agradecimento à Maria Lucia Mello, que contribuiu para que a tradução e revisão deste texto fosse possível.

introDução

a obra Do I Dare Disturbe the Universe? A memorial to Wilfred R. Bion foi editada por Grotstein como uma celebração aos oitenta anos do importante psicana-lista inglês[1]. o livro foi dividido em três partes: contribuições clínicas, con-tribuições teóricas e contribuições sobre grupos. o presente artigo, inserido nas contribuições clínicas, é um estudo feito por Rosental que se utilizou de conceitos bionianos para uma leitura rica e pormenorizada dos aspectos de funcionamento mental de Raskolnikov, personagem central da obra literária universal Crime e Castigo de F. dostoievvski. a decisão de traduzi-lo foi tomada por um grupo de membros do departamento Formação em psicanálise que se empenha em estudar e difundir as ideias de Bion.

1. Bion e sua esposa cooperaram na preparação da obra, embora Bion tenha falecido antes da sua publicação.

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boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011tradução – tradução: julia paladino

boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011tradução – a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade112 113

traDução

Crime e Castigo é tida como uma das grandes novelas psicológicas da literatura mundial. Muito frequentemente, Raskolnikov é visto como um homem diri-gido por seu sentimento de culpa, pelo medo de ser preso, de confessar e de ser punido. eu não sinto, no entanto, que esse aspecto seja realçado no texto, pelo menos não da forma que é usualmente entendido. nem concordo com a inter-pretação edípica da novela que tem sido defendida por uma série de escrito-res com mentalidade psicanalítica. o primeiro desses é o próprio Freud (1928), embora a única novela de dostoievski a que ele se referiu especialmente foi a última, os Irmãos Karamazov. Joseph Frank (1975) escreveu um artigo muito reconhecido que revê os erros factuais encontrados em Dostoievski e o parri-cídio. a acepção de Frank (1976, p. 25 a 28) é que um número de lendas sobre dostoievski foi originado ou tem sido perpetuado pelo ensaio de Freud. ofe-recendo minha reinterpretação desse grande romance eu espero não somente orientar a mim mesmo a elementos formais dentro da estrutura narrativa, mas sugerir como as confusões encontradas na leitura de Crime e Castigo re-fletem um de seus temas principais.

o romance parece ter provocado reações mais intensas, comentários mais críticos, na verdade diferenças básicas de interpretação, do que qualquer outra obra de dostoievski. o epílogo do romance continua sendo uma das áreas mais controversas da crítica a dostoievski, especialmente a questão da rege-neração moral de Raskolnikov, de fato, uma boa parte dessas diferenças parece ser fruto da posição moral dos críticos com relação ao romance.

philip Rahv (1960) sugeriu que vejamos Crime e Castigo como uma his-tória de detetives, um tipo especial de história, na qual a identidade do assassino é conhecida desde o começo e o problema para o leitor é desvendar o que mo-tivou Raskolnikov. Rahv vê todo o romance convergindo para a solução desse mistério, e ele leva sua ideia mais adiante sugerindo que o criminoso é em si um detetive tentando penetrar no mistério da sua própria motivação. “nunca está completamente seguro do que exatamente o induziu a cometer o assassi-nato, ele deve espionar a si mesmo continuamente num esforço desesperado para penetrar na sua própria psicologia e alcançar o autoconhecimento que precisa se for assumir a responsabilidade pelo seu ato absurdo e horrendo.”

alguns outros críticos também enfatizaram essa progressão dual: a busca pelo autoconhecimento e o movimento na direção da responsabilidade moral. Raskolnikov é usualmente retratado na crítica literária como um inte-lectual, um tipo de “homem pensante”. Richard peace (1971) o resume como “acima de tudo, um homem cujas ações são baseadas na razão fria e calculista”. George Lukács (1943) descreve como Raskolnikov comete o assassinato com o intuito de “se conhecer”, o crime é entendido como um teste de sua capacidade moral. edward Wasiolek (1959) também interpreta o romance como uma pro-gressão moral, levando a uma redenção espiritual. “nós vemos que Raskolnikov vai do orgulho à humildade, do ódio ao amor, da razão à fé e da separação de seus companheiros a comunicação com eles.” ele vê a estrutura do romance construída em volta de duas cenas principais: o assassinato e a confissão. “a confissão se torna o ponto central do teste de renascimento de Raskolnikov.”

Isto chegou perto, aparentemente, da intenção inicial de dostoievski. nos Cadernos para Crime e Castigo (1931) onde ele descreve Raskolnikov: “n.B. o seu desenvolvimento moral começa no próprio crime, a possibilidade de que tais questões surgissem não teria existido previamente. no último capítulo, na prisão, ele diz que sem o crime ele não teria alcançado tais questionamen-tos e nem experimentado tais desejos, sentimentos, necessidades, esforços e desenvolvimento.”

nada disso, no entanto, como logo ficara aparente, surge no romance. a cada novo passo, vemos Raskolnikov se iludindo com o fim de evitar res-ponsabilidades. ele está tentando não pensar, não sentir e nem se confrontar com a realidade. o romance é experimentado nos termos desse ritmo de fuga e confrontação forçada. Quando ele vai para a sibéria, ele não está mudado, não sente arrependimento, continua sendo tão arrogante e irritado como quando ele cometeu o assassinato. parece que ele não aprendeu nada sobre si mesmo ou sobre suas motivações para o crime. o porquê ele confessou é um mistério tão grande quanto à descoberta do motivo do próprio crime.

tentarei responder a essas questões, e nesse processo espero que sur-jam outras, através da aproximação ao romance pela perspectiva psicana-lítica, tão ricamente realçada pela contribuição de Melanie Klein e Wilfred Bion. Isso irá nos permitir entender a raiva e destrutividade que Raskolnikov

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sente em relação à mãe nutridora, e o ódio de seu próprio ódio que precisa de suas racionalizações, sua necessidade de ver mãe e irmã – na verdade, todas as mulheres com as quais ele está em dívida – como roubando-o e, portanto, merecendo sua hostilidade.

Splitting, operação defensiva essencial que é a base para todas as outras, dá o nome de Raskolnikov (raskol = separar). Splitting excessivo é usado junto com idealização e desvalorização, negação, onipotência e projeção primitiva (identificação projetiva) com o objetivo de evitar sentimentos de inveja e vo-racidade, abandono e dependência e, sobretudo, culpa, relacionada à sua mãe.

o assassinato psíquico, tentativa de aniquilar os sentimentos e aspec-tos dolorosos inaceitáveis do self, é a base para o assassinato da velha agiota e sua irmã. Raskolnikov acredita que a frustração e a dor podem ser evitadas através de ataques destrutivos ao aparato mental capaz de percebê-los. os pen-samentos são tratados como coisas indesejáveis, aptas apenas para a expul-são. tal identificação projetiva patológica resulta em violenta fragmentação e na desintegração da personalidade, as partículas evacuadas são experimen-tadas como tendo vida própria, ameaçando-o a partir do exterior (Bion, 1957, 1958a, 1962a, 1962b).

Crime e Castigo é mais do que uma descrição das mudanças no estado mental deste indivíduo. sem usar a narração em primeira pessoa, dostoievski consegue colocar o leitor parcialmente dentro da consciência de Raskolnikov. a relação entre mecanismos de projeção primitivos e a estrutura de narração é abordada em um estudo anterior (Rosenthal, 1971). os críticos podem dis-cordar do significado de svidrigailov ou sonia, porém eles geralmente reco-nhecem que estes dois personagens pretendem representar dois aspectos da personalidade de Raskolnikov. existe uma sensação de que Crime e Castigo se assemelha a um sonho, um pesadelo, na verdade, no qual todos os persona-gens são o sonhador e toda a ação, os cenários inclusive, são dramatizações de vários estados mentais de uma única consciência. entrando naquele mundo e se tornando o sonhador, o leitor compartilha sua experiência, excitações e desconforto e, provavelmente, confusão também.

antes de começar uma análise textual do romance, gostaria de dar mais uma olhada para a aquisição de conhecimento associada à moralidade, mas

vista do ângulo do vinculo menos K (-K) [Bion, 1962b, p. 95-99]. o conhecimento pode ser usado equivocadamente no sentido de evitar a experiência dolorosa, a possessão de conhecimento poderá ser usada para afirmar a superioridade de alguém. o vinculo –K eleva a moralidade sobre uma busca científica pela verdade, mas o que está realmente sendo afirmado é “superioridade da moral sem nenhuma moral”. um objeto superior, que Bion chama um “super” ego, afirma sua superioridade encontrando faltas em tudo. Logo as relações são des-providas de vitalidade e significado, tornando-se mutuamente prejudiciais e destrutivas. o vínculo pode ser chamado de parasitário, um termo que talvez melhor do que qualquer outro sintetiza a visão das relações humanas apresen-tadas no romance de dostoievski.

a principal característica deste “super” ego é seu ódio por qualquer coisa que ele não conhece, e seu ódio por qualquer coisa nova, inclusive qualquer novo desenvolvimento dentro de sua própria personalidade, que ele vê como um rival a ser destruído. o infanticídio é um tema que percorre este e a maio-ria dos outros trabalhos de dostoievski. o ódio é direcionado também contra o próprio ato do nascimento, visto às vezes como uma ejeção hostil que leva à desintegração ou fragmentação, e outras vezes é culpado pelo sentimento de inferioridade e desamparo e pela consciência persecutória de perceber quão pouco se sabe. Crime e Castigo é precisamente sobre esse tipo de destrutivi-dade, é também um romance sobre criatividade incluindo, em algum nível, o ato de escrever um romance.

i

“seria interessante saber de que é que os homens têm mais medo. dar um novo passo, pronunciar uma nova palavra[2] é o que eles mais temem... mas eu estou falando demais.” (p. 2)

Raskolnikov, no episódio inicial do romance, expressa o respeito que os homens têm pela criatividade. o imaginário espacial relacionado com pensar

2. dostoievski frequentemente usou a mesma expressão: “proferir uma nova palavra” se referindo à sua própria criatividade. por exemplo, numa carta para seu amigo, o poeta a.n.Maikov, maio 15-27, 1869, ele fala do poeta como “criador e fazedor” e escreve: “somente agora você terá o poder de proferir a nova palavra, sua nova palavra” (dostoievski, 1923, p. 71-77).

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algo novo, ir para onde homem algum foi antes, prove um significado da pala-vra “transgressão” no título do romance. a palavra russa prestuplenie, infeliz-mente traduzida para “crime”, mais precisamente significa um passo ao outro lado, ou mais literalmente: um passo sobre uma barreira.

a cena inicial utiliza o imaginário espacial associado com prestuplenie em pelo menos três níveis diferentes. enquanto elabora seus pensamentos al-tivos sobre o instinto epistemofílico dos homens, Raskolnikov está para dar um passo através de um tipo diferente de barreira. ele está saindo discretamente de seu quarto no sótão, tentando evitar sua locatária a quem deve dinheiro e tem vergonha do confronto. ele precisa passar pela porta aberta e atravessar a soleira, com o objetivo de chegar à suposta segurança da rua. no entanto, en-quanto ele tenta amedrontadamente passar por ela sem ser visto, ele não está pensando em como pagar suas dívidas. “a ansiedade da sua posição tinha ces-sado de pesar sobre ele. ele tinha desistido de se importar com aspectos práticos, ele tinha perdido todo desejo de fazê-lo.” sua locatária representa um tormento. “ser surpreendido na escada, ser forçado a ouvir seus julgamentos triviais e irre-levantes, exigindo demandas de pagamento, ameaças e reclamações, e ter que quebrar a cabeça para encontrar desculpas, prevaricar, mentir - não, em vez disso ele desceria as escadas como um gato e escaparia sem ser visto.” (p. 1-2)

a dívida de Raskolnikov, sua obrigação para com essa mulher, é vivida por ele como uma perseguição. para o leitor, ela é uma presença desconhecida do outro lado de uma porta aberta; mais tarde, nós veremos que ela é fácil de li-dar, até mesmo generosa, e a suposição de que ela estaria cobrando e ameaçando faz parte da cena que ele constrói em sua cabeça. sua responsabilidade para com ela é sentida como um enorme obstáculo bloqueando seu caminho. ele tenta lidar com isso evitando ou reduzindo a insignificância. ele tem uma tomada de consciência momentânea de que está com medo de tais “ninharias” repre-sentadas pelo confronto com a proprietária. nós estamos agora em posição de afirmar o segundo significado do símbolo da entrada (soleira da porta). na no-ção de Raskolnikov de responsabilidade, ou obrigação, outra pessoa é concebida como uma barreira. Muitos de seus atos, incluindo os assassinatos, são tentati-vas onipotentes de passar por cima de sua culpa. se essa barreira não existisse, ou se ele conseguisse saltar sobre ela, então ele acredita que poderia ser livre.

o movimento espacial do episódio inicial é coerente com o imaginá-rio do nascimento notado por alguns críticos ao longo de Crime e Castigo. esse movimento de atravessar a soleira da porta separando a segurança do que é conhecido, dos desafios do que não é, seria representativo, e representado pelo próprio ato do nascimento! Raskolnikov começa em seu pequeno e sufocante quarto onde ele permaneceu na cama, não se importando com nada, e um tanto sem vida. ele tenta sair e para isso tem que passar por obstáculos. uma vez do lado de fora, a vida borbulha à sua volta; há movimentos bruscos e há sensações fortes. sua mãe, no entanto, representada pela proprietária que lhe dá abrigo e alimento, não é vista como a doadora de vida, mas como o obstá-culo para o nascimento. Isso é um alerta, quaisquer outros crimes envolvidos, o roubo será um deles. a mãe foi transformada num obstáculo: as suas virtu-des nutritivas e criadoras foram retiradas dela.[3] Com certeza, as reflexões de Raskolnikov sobre criatividade, em suas primeiras palavras para nós, são prece-didas e seguidas de associações com roubo e com o assassinato da velha agiota.

a ideia do assassinato faz com que Raskolnikov se sinta desconfortá-vel; então ao invés de considerar isso, avaliando e talvez rejeitando a ideia, ele a evita. ele reduz isso a uma ninharia. “não é nada sério. É simplesmente uma fantasia para me divertir; uma brincadeira! sim, talvez seja uma brincadeira.” (p. 1) nós veremos muitas vezes que Raskolnikov lida com pessoas desvalori-zando-as e com pensamentos e sentimentos desconfortáveis se livrando deles, frequentemente através de uma projeção forçada resultando em fragmentação de partículas chamadas “ninharias”.[4]

3. esse objeto de fronteira, danoso e persecutório, é um exemplo especial do tipo de objeto obstrutivo descrito por Bion (1958b). ele aparecerá nos momentos mais cruciais do romance. Clinicamente, eu tenho encontrado fantasias desses objetos mais frequentemente associadas com comportamento perverso e da doença psicossomática. depois de ter escrito isso, eu descobri que James Grotstein (1977) refere-se a um objeto de fronteira, que junto com os outros objetos internos, pode ser transfor-mado no que ele chama de objeto de impedimento.

4. palph Martlaw (1957) reviu um grupo de imagens fortemente relacionadas, os insetos e besouros que aparecem ao longo dos escritos de dostoievski, que representam da mesma forma tentativas de desumanizar ou reduzir a insignificância vários atributos inaceitáveis. eu estou chamando aten-ção para a dinâmica envolvida em tal processo, a fragmentação e projeção e os resultantes senti-mentos de vazio, de se sentir incapaz de se defender, ou ser facilmente pressionado. “ninharias” é talvez a melhor tradução para pustjaiaki, que leva a insignificância, “nada com nada.” a palavra russa deriva de pustoy, que significa “vazio”. essa associação está infelizmente perdida na tradução.

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a importância do espaço na estrutura narrativa de dostoievski foi notada por Bakhtin, que apontou como ele concentra todas as ações de seus romances em dois pontos: 1) nas entradas (portas, escadas, corredores) onde crises e momentos-chave acontecem; ou 2) em regiões, lugares abertos onde catástrofes e escândalos acontecem (Bakhtin, 1929). o que não foi apontado ainda é o jeito que dostoievski usa lugares físicos para representar espaços mentais, mas para fazer isso precisaríamos de algum entendimento de iden-tificação projetiva (Klein, 1946, Rosenfeld, 1969).

o uso da projeção por Raskolnikov é dramatizado para nós através de seus esforços por sair do prédio para a segurança que ele imagina encontrar na rua. o mecanismo recebe representação concreta como o movimento en-tre dentro e fora, ou através da barreira entre o si-mesmo (self) e o fora-de-si--mesmo (non-self). essa colocação dos aspectos do si-mesmo onde eles não pertencem, a intrusão resultante nos outros, é uma transgressão, tanto mais significativa quando há alguma alusão de que ocorre à custa de outra pessoa. esse é o terceiro e o mais básico significado da transgressão simbolizado pela fuga de Raskolnikov através da soleira da porta de sua locatária[5].

a porta aberta, que irá reaparecer em um dos momentos mais significa-tivos do romance, representa a falha de Raskolnikov em separar dentro e fora, realidade interna de realidade externa. a utilização excessiva de mecanismos de projeção resulta em confusão entre si-mesmo e os outros e entre fantasia e realidade. a identificação projetiva, em sua ênfase na obliteração da separa-ção psicológica envolvida na projeção, traz mais luz à imagem do parasita que igualmente invade as fronteiras do corpo, e não pode tolerar ou sobreviver à separação do hospedeiro.

o sentimento de depleção psicológica de Raskolnikov é acompanhado por uma ansiedade persecutória aumentada, um estado mental que é dramati-zado neste episódio e repetido ao longo do romance. uma vez na rua, Raskolni-kov entra em “uma completa escuridão mental; ele andou sem observar o que

5. Ver Roheim (1922) e Federn (1929), para entender algumas descrições psicanalíticas anteriores do simbolismo da soleira da porta complementar ao que foi usada aqui. Freud (1900) refere-se à descrição de silberer sobre o simbolismo da soleira em sonhos que concretamente representam a transição do sono para a vigília.

está ao seu redor e sem se importar com isso” (p. 2). a multidão ao seu redor contrasta com o vazio de dentro da “sua mente”. a sensação predominante é o olfato e ele reage com nojo aos odores a sua volta. seu coração está cheio de amargura e desconsideração acumulada e ele evita encontrar qualquer conhe-cido. de repente um homem bêbado em “uma carroça puxada por um cavalo pesado e seco” grita bem alto: “Hei você, chapeleiro alemão!” e aponta para ele. Raskolnikov reage com terror e confusão. ele está tentando ser imperceptível e seu chapéu é muito notável: um detalhe trivial que pode arruinar todo o plano. “ninharias, ninharias são o que importa! porque, são tais ninharias que sempre arruínam tudo.” (p.3) ele evitou a sua proprietária alemã, reduziu-a a uma ni-nharia, para depois ser ridicularizado por seu chapéu alemão, outra ninharia.

a cena seguinte contrasta com esta, Raskolnikov visita a velha agiota, um “ensaio” de seu projeto. ela abre a porta com um estrondo e num primeiro relance ele vê apenas seus olhos, examinando-o. ele trouxe algo para penho-rar, o relógio de seu pai, o qual ela dispensa como uma ninharia, não vale nada. ele a estuda e o seu entorno; eles completam a rápida transação e ele sai. Mas um confronto surgiu. ele olhou no rosto dela e para sua intenção, e por causa disso, ele percebe o quão detestável e imunda é a sua ideia. ele sente o horror, a realidade disso. nesse momento a realidade psíquica é restaurada e ele recu-pera seu estado mais saudável. ele reconhece as suas necessidades, sente sede, lembra que não comeu, experimenta um desejo de estar com outras pessoas, e se sente amigável com aqueles à sua volta. o Capitulo um começou com um evitamento seguido pela sua consequência e terminou com uma confrontação seguida pela sua consequência. Vendo as pessoas e as coisas como elas são, co-nhecendo suas necessidades e seus sentimentos, Raskolnikov se torna humano.

nesse estado de espírito, ele entra numa taverna, onde encontra Mar-meladov. a confissão do ex-atendente bêbado é uma repetição do primeiro tema: dividas com uma mulher, esforços para evitá-la, consequências perse-cutórias. Marmeladov começa com uma idealização de sua mulher. para essa visão permanecer, necessita de uma defesa frequente. “eu sou um porco, mas ela é uma dama!” ele proclama. nós vemos como ela o compara ao seu pri-meiro marido e reprova-o pelo que ele não é. Mesmo tendo trabalhado duro e se esforçado ao máximo, ele não consegue agradá-la. um objeto idealizado não

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é um objeto amado; é um objeto de demanda! Marmeladov não tem esperança de aproveitar a vida distante das expectativas de sua esposa, no lugar disso se sente perseguido pela mesma. a sua resposta é roubar dinheiro dela para se embebedar. as suas altas proclamações de culpa vêm com muita facilidade e não levam as atitudes construtivas. tais maneiras inconvenientes são falsi-dades. ele aparenta ter evitado qualquer sentimento de responsabilidade pelo seu comportamento e talvez pela sua culpa também.

Marmeladov tem uma necessidade de idealizar sua mulher, no entanto, isso não o impede de apresentar, mesmo que indiretamente, suas acusações contra ela. embora alguns críticos “culpem” tanto Marmeladov quanto sua mu-lher pela catástrofe doméstica, outros tentaram descartar as dificuldades para somente concluir que eles se merecem. tanto marido como mulher impõem um ao outro uma camisa-de-força feita de expectativas; os dois idealizam e culpam. o que nós testemunhamos é uma mútua identificação projetiva onde as duas partes se atacam pelos seus próprios defeitos, um casal que se destrói mutuamente: o que Bion representaria através do signo - (♀ ♂).

Há, no entanto, outro nível do sofrimento de Marmeladov. em um dado momento, em meio as suas reclamações, ele se torna real; e se você presta atenção no seu discurso, os sentimentos afloram. ele tem evitado ir para casa, prolongando a sua bebedeira para não confrontar-se com sua mulher. não o importa se ela arrancasse seus cabelos; seria até melhor, ele nos diz, se ela o fi-zesse. “não é disso que eu tenho medo... é dos seus olhos que eu tenho medo... sim, seus olhos... a vermelhidão de suas bochechas também me assusta... e sua respiração também... Você percebeu como as pessoas nesse estado respiram... quando elas estão excitadas?”[6]

6. snodgrass (1960) comentou sobre este parágrafo: “este é o retrato literal da primeira esposa de dostoievski, que morreu de tuberculose em 1864 após um longo período de doença envolvendo omissões pelas quais ele se sentiria culpado.” esta pode ser também uma referência à mãe do au-tor, que morreu de maneira semelhante. parece que o suposto assassinato do pai de dostoievski ocorrera enquanto a sua esposa estava grávida dele, ou mesmo durante o parto, ou logo a seguir. Foi a partir desse episódio que sua tuberculose agravou-se. ela pode criar Mikhail, nascido um ano antes, mas não ele ou nenhum outro dos filhos subsequentes. Ver dave Magarshack (1961, p. 19) e Frank (1976, p. 23). sabemos que indivíduos nascidos em tais circunstâncias frequentemente acreditam que seu crescimento e desenvolvimento, e até a sua própria existência, é à custa de al-guma outra pessoa e que eles são pessoas enormemente destrutivas.

Marmeladov não aguenta olhá-la no rosto e ver o sofrimento que tem lhe causado; é melhor punir-se externamente do que a experiência da respon-sabilidade. É para evitar esse reconhecimento da culpa que ele ataca tanto a ela quanto a si mesmo. uma das coisas que ele parece evitar é a consciência que sua mulher está morrendo e isso o torna completamente desamparado. ele é incapaz de tolerar o sentimento de culpa por tê-la machucado, no entanto, seus esforços para fugir da culpa o levam para ações futuras que irão machucá--la ainda mais e eventualmente levarão à destruição tanto dela quanto dele.

no próximo capítulo, Raskolnikov lê a carta de sua mãe e, em uma co-municação que traça um paralelo com a confissão de Marmeladov, surge mais uma variação do tema dívidas. a mãe de Raskolnikov aponta o fracasso dele em ajudá-la e a sua irmã e revê toda a dificuldade e humilhação que tiveram que passar. esses sacrifícios foram feitos por causa dele, e agora sua irmã dou-nia está planejando casar com Luzhin, um ato de escravidão desesperançada que se assemelha à prostituição de sonia. a carta não deixa dúvidas quanto ao sacrifício que tem sido feito por amor a Raskolnikov e por causa de sua “ina-bilidade de prover qualquer coisa mais substancial”.

podemos agora rever a sequência narrativa desde a proprietária pas-sando pela agiota, pela esposa de Marmeladov, até a mãe de Raskolnikov. Cada uma dessas mulheres é alguém a quem um homem tem dívidas; cada uma delas é vivenciada como uma perseguidora, pois é por culpa de cada uma delas que o homem persegue a si mesmo. um movimento progressivo aconteceu: a proprietária era desconhecida por nós; a agiota é confrontada brevemente; a esposa de Marmeladov é vivamente descrita mesmo que em terceira pes-soa; a mãe de Raskolnikov representa a si mesma através da carta. o efeito no leitor, como também em Raskolnikov, é da mulher chegando cada vez mais perto. a experiência de aproximação é ainda mais forte pela progressiva in-tromissão feminina.

snodgrass apresenta um excelente delimitador do método com o qual a mãe provoca a culpa: “ela aprendeu a doce arte materna de introduzir cada item de acusação como se fosse um cuidado para com seu filho ou uma recla-mação sobre si mesma. dessa forma ela é capaz de insultar o quanto quiser sem perder nunca o tom convincente de um santo altruísmo e uma preocupação

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para com os outros” (1950, p. 215). ela sempre lembra Raskolnikov que todos seus pensamentos e ações são motivados por amor, a mensagem apresentada é de que o amor escraviza.[7]

Raskolnikov se sente ameaçado pela dívida com sua mãe e percebendo que ela irá viajar para são petersburgo e que precisará encarar as suas obriga-ções, sente-se sufocado e precisa fugir para a rua.

Wasiolek (1974), ao discutir o artigo de snodgrass, discorda dessa visão de Raskolnikov como “vítima”, em vez disso aponta o papel do protagonista de armar tal situação. os dois pontos de vista dos críticos são bem fundados. Com relação à Marmeladov, não é uma questão de quem culpar, mas da natu-reza de destruição mútua da relação. a carta da mãe une uma realidade parti-cular externa e interna (psíquica) até que elas coincidam. aumentando, assim, o sufoco de Raskolnikov, as duas realidades têm se aproximado na sequência narrativa, começando pela grande disparidade na descrição da proprietária no episódio inicial. depois de ler a carta de sua mãe, Raskolnikov se sente interna e externamente perseguido. ele esta encurralado, expressa isso quando relem-bra a pergunta de Marmeladov: “Você compreende, senhor, você compreende o que significa não ter para onde fugir?” (p. 40)

Como Raskolnikov responde ao seu apuro? sua culpa e desamparo se transformam em ódio pela sua mãe e irmã, ele sente que elas o estão perse-guindo e controlando através de seu amor “sacrificado”. acima de tudo, ele sente a necessidade de agir. “está claro que ele não deveria sofrer passivamente, se preocupando com questões não resolvidas, mas que ele precisa fazer algo, de uma vez, e rápido.” (p.40) essa é uma ideia crucial em todos os escritos de dos-toievski: a solução onipotente. Fazer algo, qualquer coisa, traz a sensação de poder em vez de desamparo. a ação pode ser totalmente ineficiente e ser mera-mente um gesto para mostrar que se pode fazer algo. Geralmente, é destrutiva e provoca o efeito inverso. É neste momento que o pensamento de Raskolnikov retorna ao seu objetivo assassino.

7. snodgrass também nos lembra que os personagens do romance frequentemente emprestam di-nheiro ou ajudam outros para se sentirem mais poderosos à custa dessas pessoas. Quem recebe a ajuda ou o empréstimo não se sente agradecido, antes disso sente que foi usado ou roubado.

Mas primeiro ele revê as alternativas. por um momento, considera ir ver Razumihin, um amigo dos tempos de estudante. o que segue é uma com-paração entre a onipotência e a forma legítima de fazer as coisas. Razumihin, cujo nome significa “razão, bom senso”, demonstra o tipo de força real que falta em Raskolnikov. Mesmo estando com as mesmas dificuldades financeiras, ele tem feito pequenos trabalhos: traduções e aulas. Consegue aceitar as coisas como elas são, faz o melhor delas e, por conta disso, supera as adversidades, é bem-humorado e todos gostam dele. Raskolnikov, por outro lado, não quer os frutos do trabalho duro, mas sim “ficar rico rapidamente”. Como ele confessa para a servente, se ele não pudesse ficar rico de uma vez, ele logo passaria fome. além do mais ele é arrogante e reservado, ninguém gosta dele. “para alguns de seus colegas, ele parecia vê-los de cima como se fossem crianças, como se tivesse um desenvolvimento superior, conhecimento e convicções, como se os credos e interesses dos colegas estivessem abaixo dele.” (p. 46) pensa que Ra-zumihin o ajuda? Raskolnikov percebe então que teria que se endividar com ele, essa é a ultima coisa que ele pode tolerar. ele desiste de vê-lo, até que não precise dele – depois do assassinato.

Raskolnikov vê uma garota de dezesseis anos, bêbada e desarrumada. aparentemente foi seduzida e agora um almofadinha, que se chama svidrigai-lov, está prestes a se aproveitar dela, esse é o homem que quis tirar vantagem da sua irmã. Raskolnikov vai ao socorro dela, chama um policial, oferece di-nheiro. de repente, para abruptamente e é picado pela dúvida: “será que devo ajudar? será que tenho o direito de ajudar? deixe que eles se devorem vivos.” (p. 45) É crucial que ele não diga deixe que ele a tenha, ou deixe que ele a devore, mas sim deixe eles se devorarem. desta forma reconhece a perseguição pela vítima, talvez orientado pela sua própria projeção da voracidade oral. ele lem-bra a sua fúria, não somente contra si mesmo, mas contra sua mãe e sua irmã.

seus esforços para ajudar a garota de dezesseis anos não consistiram somente em chamar um policial e espantar o almofadinha, ou demonstrar simpatia, mas lhe dar dinheiro. ele então pode se perguntar se seria o seu pró-prio dinheiro e conclui que seus esforços para ajudá-la são à custa da mãe e da irmã. ajudar outra pessoa é novamente visto como detrimento para uma das partes – um roubo! Já que ele não tem direito de fazer boas ações, a única

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saída é fazer más ações.os vários elementos do caráter de Raskolnikov são agora resumidos

em seu famoso sonho. no sonho, Raskolnikov tem sete anos e está andando com seu pai, indo para o cemitério onde sua avó e seu irmão menor estão en-terrados. Quando eles passam por uma taverna, um tipo de festividade está acontecendo, moradores da vila, alegremente vestidos, cantam e bebem. Há uma carroça puxada não por um cavalo forte, mas por uma velha égua magra de algum camponês. o dono da carroça, Mikolka, diz para todos seus amigos bêbados entrarem na carroça e açoita a égua para fazê-la andar. os campone-ses riem dos débeis esforços do pobre animal e instigam Mikolka a açoitá-la mais. Mikolka entra numa onda de fúria, ele e os outros batem na égua até a sua morte. o garotinho, aterrorizado, corre para detê-los e coloca seu braço ao redor do pescoço da égua morta, beijando seus olhos e lábios. Raskolnikov acorda com horror da ideia de matar a velha agiota, mas com a imagem vívida de acertar sua cabeça com um machado, partindo seu crânio, o sangue. seu corpo sente como se tivesse sido ele o animal açoitado.

se a égua representa a velha agiota, também representa Raskolnikov. sua mãe e irmã farão parte da viagem em uma carroça de camponês e ele, sendo a cabeça da família desde que seu pai morreu, é incapaz de puxar sua carga. no primeiro capítulo, um homem passando numa carroça, ridicularizou--o pelo seu chapéu. Marmeladov também foi ridicularizado de forma similar na taverna por seus débeis esforços para com sua família. a égua parece ainda mais ridícula quando comparada com seus predecessores. similarmente, Mar-meladov não consegue competir com o primeiro marido de sua mulher; nem Raskolnikov consegue se equiparar aos sentimentos de como ele deveria agir. Claramente essa égua não consegue puxar a carroça por si só, ela precisa de ajuda. podemos observar, no entanto, como Raskolnikov vê sua própria ina-dequação. a égua, que representa sua fraqueza, é feita para ser ridicularizada, açoitada, aniquilada pelos outros aspectos de sua personalidade, representa-dos por Mikolka e seus bêbados camponeses. Fraqueza e passividade são igua-ladas à inutilidade e desprezadas. Raskolnikov irá lidar com esses aspectos do si-mesmo projetados na velha agiota e em uma extensão variável, a todos os personagens femininos do romance.

até agora, identificamos Mikolka com Raskolnikov e a velha égua com um aspecto inaceitável de Raskolnikov com a velha agiota. além de represen-tar algumas qualidades do superego, Mikolka personifica um pouco da ganân-cia e do egoísmo de Raskolnikov. ele insiste em lotar a carroça, ele levará todo mundo, ele diz, e irá obrigar o velho animal a galopar. ele continua insistindo que ela é sua propriedade e que pode tratá-la como quiser. “Minha propriedade! Minha!” ele repete. em um dado momento, no entanto, Mikolka admite que o sofrimento da égua esteja “partindo seu coração,” e é justamente por isso que ele quer matá-la. no entanto, ele logo se desfaz da sua responsabilidade, des-merecendo a égua: “ela não vale as rações que come.” Mais tarde, durante o açoite, os esforços do animal fazem até os observadores mais simpáticos sorri-rem. “pensar nesta bestinha pobre coitada tentando chutar.” (p.51) essas des-crições sugerem um bebê, voraz e com demandas, incapaz de tomar conta de si ou dos outros e, por isso, inútil. Há mais evidências disso. depois que a égua é morta, o garotinho a segura e beija seus lábios, da mesma forma que beijou o túmulo de seu irmão menor na primeira metade do sonho.

Muitos críticos ignoraram essa primeira parte do sonho: ela está enco-berta pelo horror e excitação da imagem dramática da égua sendo açoitada até a morte. além disso, a segunda metade do sonho aproxima os assassinos. eu acredito que a questão espacial do sonho ajuda a entender o seu significado: a taverna está localizada no caminho para o cemitério e representa uma defesa maníaca (uma estrutura psíquica ou um tipo de barreira) contra ansiedades depressivas mais profundas. Há um sentimento de ter perdido alguém que é valorizado, duas pessoas, as quais ele relembra periodicamente. Mas diz para si mesmo, no sonho, que ele nunca viu sua avó e que não tem nenhuma lem-brança de seu irmão, enfatizando isso, nunca tendo os visto, ele não poderia ser responsável pelo que ocorreu a eles. nós já percebemos como Raskolnikov, e também Marmeladov, não aguentam ver suas vítimas e quão aterrorizantes e culposos são os olhos do sofrimento. a égua é açoitada principalmente en-tre os olhos, para que ela ficasse cega e não pudesse encarar seus agressores.

Raskolnikov pretende se livrar de aspectos inaceitáveis de sua perso-nalidade os projetando na agiota e matando-a a seguir. Isso é feito para se de-fender da culpa e do temor de que seus impulsos vorazes e destrutivos tenham

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destruído ou destruam a “imago” maternal que ele ama e da qual ele depende. depois do sonho, há um flashback onde dois personagens secundários falam através dos pensamentos de Raskolnikov. o estudante desconhecido, esse ou-tro estudante, descreve a velha agiota como uma pessoa sem valor, um objeto desprezível. Já que sua vida não tem valor, matá-la e roubá-la seria um ato hu-manitário, do qual muitos outros se beneficiariam. “uma morte e cem vidas em troca, é pura aritmética!” (p. 59) novamente temos a ideia de que para alguém se beneficiar, outra pessoa precisa ser sacrificada, neste caso, a velha agiota.

além disso, esse outro estudante enfatiza que é a agiota que ganancio-samente se aproveita dos outros. ela é uma sanguessuga, um piolho parasita que usa as vidas dos outros (de novo uma projeção do bebê necessitado e vo-raz). ela é maliciosa, outro dia mordeu o dedo de sua irmã só por maldade. essa meio-irmã, Lizaveta, é descrita aqui e ao longo do romance como um bebê ou estando sempre grávida. “ela era mantida completamente isolada como uma criança.” (p. 57) ela é “como um bebezinho” (p. 55), e no momento que Raskol-nikov a mata, “sua boca treme penosamente, como a boca de um bebê” (p. 71).

Há uma ambiguidade peculiar no romance, que está em quantas pes-soas Raskolnikov matou. Há uma sugestão que se repete de que Lizaveta estava grávida, então são três as vítimas. no entanto, Raskolnikov, geralmente se re-fere apenas a sua primeira vítima, a velha mulher, como se tivesse cometido apenas um assassinato. nos Cadernos, dostoievski dá ainda mais atenção ao fato de Lizaveta estar grávida. em um dado momento ele escreve: “eles fize-ram uma cesariana nela, ela estava grávida de seis meses. um menino, nascido morto!” (p. 96) em um caderno posterior, ele escreve, “e ela foi morta grávida”. Isso é seguido por uma nota que está rasurada: “a velha mulher bateu nela quando ela estava grávida. eu vi isso com meus próprios olhos. Grávida, grá-vida no sexto mês.” (p. 165) em outros escritos, no entanto, Lizaveta já havia dado à luz e a criança era agora de Raskolnikov e amada por ele.

no sonho, há uma imagem adicional que eu acredito ainda não ter sido comentada: ao lado da carroça, uma grande mulher gorda com um vestido ver-melho está quebrando nozes. essa figura caricatural é uma futura evidência da hostilidade contra a mãe grávida. na conversa entre o estudante e o oficial, há uma transição peculiar que dá suporte a essa ideia. o estudante, falando de

Lizaveta, diz, “ela é uma criatura tão doce e gentil, pronta para suportar qual-quer coisa”. Quando o oficial ressalta que ele parece estar atraído por ela, ele responde: “não. Vou te dizer uma coisa. eu poderia matar esse diabo de mulher e me divertir com seu dinheiro.” (p. 58) eu acredito que o que está sendo ex-presso são os sentimentos hostis contra a bela mãe doadora de vida, o desejo de vorazmente atacá-la e roubá-la, dilapidar seu interior e esvaziar seus tesouros.

um pouco antes da sua jornada assassina, Raskolnikov deita no seu sofá e tem uma série de estranhos devaneios. em um deles, aparece um oásis egípcio, a caravana está descansando; as palmeiras formam um círculo com-pleto. todos estão fazendo sua refeição, mas ele está bebendo água fria de um riacho: uma maravilhosa água azul e fria. a areia brilha como ouro. Muitos críticos interpretaram esse devaneio como um começo de uma benigna re-generação moral, mas eu penso que eles o fizeram por causa de uma falta de entendimento das vicissitudes da onipotência. Certamente o sonho é ilusório, fala sobre água e o saciar da sede. Como George Gibian (1967) aponta, a água re-presenta criatividade, uma vida melhor, forças positivas na mitologia de dos-toievski. É irônico pensar que Raskolnikov teria pensamentos criativos numa época em que está prestes a cometer um ato tão destrutivo. Mas isso é típico de seu estado mental particular. no caminho para a casa da agiota, ele estará pensando em construir fontes e aumentar o jardim. Mais adiante no romance, quando svidrigailov comete suicídio, ele irá se destruir cercado de imagens de água, flores, nascimento e criatividade. parece que dostoievski compreende, mesmo que intuitivamente, como a mania e a perversão podem confundir bem e mal e mascarar a destrutividade à guisa de seu oposto.

a fantasia de oásis de Raskolnikov é tipicamente uma fantasia maní-aca de onipotência, uma reunião oceânica com a boa mãe, com gratificação oral e sono como resultado. na fantasia, ele não está sentado comendo com os outros, mas tem sua própria fonte de nutrientes idealizada. a base para isso está na pista de que as coisas não são do jeito que aparentam ser; que a areia é considerada ouro. a fantasia é um jeito de negar a dependência de uma mãe exterior. ele pode cuidar de suas próprias necessidades; seu círculo está com-pleto. Já que ele contém a fonte de todos os suprimentos, a mãe exterior, ou sua substituta, a velha agiota, não tem valor, ou é mesmo uma mãe ruim e,

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como tal, pode ser destruída. tais fantasias também negam a mortalidade e a passagem do tempo [8]

sua preocupação com a fantasia o mantém na cama enquanto deveria estar executando seus planos. ele está quase totalmente despreparado para o que está prestes a fazer, e fica chocado quando o relógio bate às sete e meia e percebe que já é tarde. sua reação é negar a realidade externa decidindo que o relógio andou rápido demais. nós relembramos que na visita anterior à giota, ele deu a ela o relógio de seu pai. porque a fantasia o mantém na cama quando deveria já ter saído, ele ainda está na casa da velha mulher quando Lizaveta volta. o aspecto autodestrutivo da fantasia resulta em um segundo assassinato, a morte da boa Lizaveta, e no risco de quase ser pego.

Raskolnikov passa pelo assassinato de uma forma quase sonâmbula. projetar tanto dele na velha mulher e em Lizaveta o deixou desgastado e inca-pacitado. ao longo do romance ele desmaia, está fisicamente fraco, febril, deli-rante, incapaz de pensar. É também óbvio que ele se identifica com suas vítimas e se sente contaminado, prestes a ser paralisado, separado da vida, morto.[9]

depois de ter cometido o segundo assassinato e roubado o que podia, Raskolnikov está prestes a sair, quando ele experimenta um choque de ter-ror: a porta do apartamento foi deixada destrancada e aberta. o momento mais aterrorizante da cena do assassinato está contido nessa imagem da porta aberta. durante o assassinato, muitos leitores se identificam não com a vítima, mas com Raskolnikov. neste momento de maior vulnerabilidade, ele pode ser espionado ou considerado um intruso (mais tarde, em outro mo-mento muito privado, quando ele está confessando o assassinato para sonia, svidrigailov estará ouvindo escondido detrás da porta). a porta aberta, como eu disse anteriormente, está fortemente relacionada ao mecanismo de iden-tificação projetiva e simbolicamente representa a ruptura da separação en-tre si-mesmo (self) e a representação do objeto, assim como a confusão entre

8. dostoievski reconhece a importância das tentativas de transgredir os limites do tempo. nos Ca-dernos ele escreveu: “o que é o tempo? o tempo não existe. o tempo são números é número???; o tempo é a relação da existência com a não-existência.” (p. 195)

9. a identificação de Raskolnikov com suas vítimas, que fica evidente ao longo do romance, é tam-bém uma das maneiras que ele encontra para evitar o reconhecimento de sua culpa.

realidade interna e realidade externa.tendo projetado aspectos do si-mesmo na velha agiota e depois a ma-

tado, Raskolnikov introjeta e sente-se identificado com a introjeção morta e presa dentro dele. a próxima parte da narrativa é como um pesadelo. Raskol-nikov está preso dentro do apartamento, alguém desconhecido sobe as escadas. “de repente se transforma numa pedra, é como um sonho no qual alguém está sendo perseguido, quase pego e será morto e é procurado até o encontrarem e não pode mexer os braços.” o visitante desconhecido para em frente à porta. “eles agora estavam parados um em frente ao outro, da mesma forma que ele esteve com a velha mulher, quando a porta os separava e ele estava ouvindo” (p.73) Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.

agora, parado do lado de fora da porta, com dois cavalheiros desconhe-cidos batendo na porta para conseguir entrar, Raskolnikov se sente comple-tamente desamparado. “enquanto eles estavam batendo e falando ao mesmo tempo, pensou várias vezes na ideia de acabar com tudo de uma vez e atirar neles através da porta. por vezes ele era tentado a xingá-los, rir deles, enquanto eles não podiam abrir a porta!” (p. 78) essa seria a solução onipotente, auto-destrutiva ao extremo, mas dirigido para a ilusão momentânea de poder de-fensivo contra o reconhecimento de seu desamparo. deste ponto em diante do romance, Raskolnikov irá sentir esse poder destrutivo apenas nos momentos em que está desamparado e longe de tudo.

o leitor tem que concordar que não é através de nenhuma habilidade pessoal que Raskolnikov consegue escapar da casa da agiota, mas através de algo completamente fora de seu controle, uma continuação do mesmo acidente do destino que o ajudou a cometer o crime. Quando ele volta para seu quarto, deita em sua cama e cai não tanto num sono, mas numa espécie de “amnésia” (p.78). esse é o fim da parte I do romance e é um bom momento para parar, resumir o que aconteceu e prever o que está por vir.

ii

a partir da cena inicial até o assassinato: eu foquei a progressão de eventos psicológicos que culminaram na tentativa de Raskolnikov aniquilar a agiota e o que ela representa. o que Raskolnikov apresenta para si mesmo como o ato

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criativo de um super-homem, operando racionalmente na base de “pura arit-mética,” eu tentei descrever como termos básicos não racionais que parecem estar lhe guiando. sua “transgressão,” como eu apontei, não é simplesmente o assassinato de outro ser humano, um passo além dos limites da lei e da or-dem; é mais uma transgressão psicológica, relacionada com três manobras defensivas. Como na cena de abertura onde Raskolnikov tenta evitar o reco-nhecimento de sua dívida e culpa relacionada a uma outra mãe substituta, sua locatária, ele tenta fugir progressivamente dessa experiência. em certo nível, ele transgride a fronteira entre o si-mesmo e o outro pelo uso massivo do mecanismo de projeção primitiva. ele lida com sentimentos desconfortá-veis projetando-os. então se sente perseguido quando percebe restos desses sentimentos no mundo exterior.

Quando as dívidas de Raskolnikov começam a sufocá-lo – particular-mente com a chegada da sua mãe e sua irmã –, ele é levado a uma ação ex-terna de natureza cada vez mais onipotente. o ato onipotente significa negar o desamparo, dependência, ou culpa, torna-se o segundo nível de sua tenta-tiva de encontrar uma solução. através desse “novo passo”, Raskolnikov não tenta reparar o dano ou encontrar uma solução interna, mas sim ultrapassar sua culpa em direção a um mundo imoral. ao invés de prezar a capacidade de culpa e compaixão como uma qualidade humana madura e necessária, esta é vivida como uma fraqueza feminina e infantil, a ser abolida ou desapropriada.

a relação mãe-criança torna-se o protótipo da destruição mútua: uma dupla peçonhenta, uma visão que, no romance, atinge a relação entre homens e mulheres. Raskolnikov não somente odeia a si mesmo por se importar, mas idealiza aqueles que ele pensa estarem livres de tais preocupações; aqueles que estão acima de tais sentimentos e por isso no controle: os super-homens onipotentes.

na sua necessidade de negar o desamparo e a dependência, qualquer comparação entre o que foi dado a ele e o pouco que foi capaz de dar de volta torna-se uma dolorosa humilhação. estes sentimentos se focalizam particu-larmente no próprio ato de dar à luz. não somente ele nunca poderá retribuir sua mãe, mas também nunca poderá imitar seu feito. em um momento ele idealiza a criatividade, em outro a reduz de um processo lento e longo a um

“novo passo” magicamente simples que irá resolver todas as suas dificulda-des. Isso serve para a dupla função de desvalorizar a criatividade, enquanto se coloca como o criador.

essa terceira estratégia de defesa, então, envolve não somente uma confusão randômica entre criatividade e destrutividade, mas o reverso das duas: eventualmente uma defesa maníaca na qual a culpa para com a mãe é negada através da visão de si mesmo como contendo a boa mãe; enquanto a mãe real, ou sua substituta, a agiota, é má e merece ser destruída. assim a si-tuação que dostoievski retratou no apartamento da agiota também ocorreu internamente: Raskolnikov e sua vítima trocaram de lugar.

a agiota contém uma projeção dupla: ela não é somente a mãe em quem Raskolnikov projetou sua hostilidade, para que ela se torne uma cari-catura da mãe má; mas por um mecanismo similar, ela também representa o bebê mau, o piolho parasita. Como resultado do seu crime, Raskolnikov mata Lizaveta, a mãe generosa e doadora. na tentativa de destruir seu perseguidor ele também mata a fonte de vida e esperança dentro dele, o objeto bom inter-nalizado. o restante desse texto está centrado nas consequências de tal ato.

Quando a segunda parte começa, Raskolnikov encara uma situação que reproduz a fantasia infantil universal de ter vorazmente ou sadicamente atacado ou destruído o objeto amado. Hanna segal (1952) descreve essa fanta-sia, na qual o objeto amado “é destruído, despedaçado e fragmentado”; e não somente o objeto externo é atacado, mas também o interno; então o mundo interno sente-se destruído e desolado. “pedaços desse objeto destruído podem se tornar persecutórios e há também um temor da perseguição interna na forma de um lamento pelo objeto perdido e culpa por tê-lo atacado.”

na falta de acreditar suficientemente na capacidade de restauração, o objeto perdido é sentido como uma perda irreversível, a situação sem es-peranças. em tais condições o ego se torna um sistema de defesas maníacas, com intuito de defender-se do desespero total: a negação da realidade psíquica, controle onipotente, e a regressão para o mais primitivo uso do spliting e da identificação projetiva. Forma-se um círculo vicioso no qual a regressão leva a medos persecutórios maiores, que levam a um maior uso de mecanismos onipotentes. Isso poderia facilmente servir à descrição de Raskolnikov depois

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do assassinato. Quando dostoievski viu o romance emergir nessa direção, ini-cialmente planejou que Raskolnikov pensasse ou realmente cometesse outros crimes (1931, p. 56).

na discussão sobre o resto do romance vou tentar ilustrar como Raskol-nikov continua usando as defesas já citadas, com objetivo de evitar confrontar--se com sua culpa. Vou retratá-lo não como buscando para encontrar o castigo, mas sim usando o mundo exterior – através de uma provocação onipotente, de atos de reparação maníaca, de atos de “confissão”, que não contém contrição nem reparação, mas são tentativas de expressar seus sentimentos de desam-paro e desespero aos outros – continuar evitando reconhecer qualquer tipo de culpa ou responsabilidade em relação à sua mãe. em outras palavras, eu acre-dito que ele continua usando as mesmas manobras defensivas que o levaram a cometer os assassinatos e, conforme vou tentar mostrar, com consequências que não são diferentes.

iii

“Fragmentos e retalhos de pensamentos estavam simplesmente aglomerando--se em seu cérebro...” (p.78). no momento seguinte, a preocupação de Raskolni-kov se volta para os fragmentos exteriores, as coisas nas quais esses pensamentos se transformaram: sua roupa em trapos manchados pelo sangue das vítimas, as bijuterias roubadas da velha. ele tenta esconder esses objetos, querendo que ninguém, exceto ele, os veja. ele ataca seu aparato perceptivo, de tal forma que “suas percepções estavam falhando, estavam desmoronando” (p. 81). ele se torna obsessivo ao querer se livrar das coisas inanimadas (objetos) nas quais peda-ços do self e do objeto foram projetados (Bion 1956, 1957, 1958a, 1962a, 1962b).

esses fragmentos persecutórios são versões mais recentes das “ninha-rias” que apareceram ao longo da primeira parte e irão continuar aparecendo ao longo do livro. nós agora os reconhecemos como o produto de ataque vio-lento ao aparato mental e ao mundo interno. Raskolnikov agarra com força os fragmentos e as bijuterias, sem saber como se livrar delas. “por um bom tempo, durante horas, ele foi perseguido pelo impulso de sair para algum lu-gar, arremessar as coisas para que elas fiquem fora de alcance, de uma vez por todas! de uma vez!” (p. 82) ele sai, esconde os objetos debaixo de uma pedra e

se sente momentaneamente aliviado.pensando que ao conseguir se livrar dessas lembranças externas, ele

se livraria da causa de sua ansiedade, ele sente “uma alegria intensa e quase insustentável”. “está tudo acabado! não há pistas! e ele ri.” (p. 97) seus bons sentimentos cessam quando se aproxima do boulevard onde ele havia encon-trado a garota bêbada, o almofadinha e o policial. a memória aparece com uma forma característica. ele os culpa por existir e por lembrá-lo de seus sentimen-tos desconfortáveis em relação a eles.

Quando, no momento seguinte, ele tem o primeiro insight dos assas-sinatos – que ele não os fez por razões financeiras – sua repulsa pelo que fez e como se sente em relação a si mesmo, é tão intolerável que ele sente que pre-cisa fazer algo para se livrar do sentimento, precisa encontrar outra pessoa para contê-lo nisso. “e estava buscando alguma distração, mas ele não sabia o que fazer... o que tentar. uma nova sensação arrebatadora estava lhe domi-nando cada vez mais, esse era um impulso imensurável, quase físico por tudo o que o rodeava, um sentimento de ódio obstinado e maligno.” “se qualquer um se dirigisse a ele, sentia que poderia brigar ou bater nessa pessoa...” (p. 98)

ele procura Razumihin para se distrair, mas se sente chocado pela sua ira e tenta partir o mais rápido possível. não há forma de aceitar ajuda de al-guém. antes de conseguir sair, no entanto, acontece um momento engraçado! Razumihin lhe oferece um texto para traduzir do alemão, um artigo que “dis-cute a questão de se a mulher é um ser humano e, é claro, prova triunfalmente que ela é” (p. 100). Raskolnikov não aceita o artigo e não há discussão sobre isso, no entanto, a ideia foi introduzida e podia ser quase um subtítulo do ro-mance. Raskolnikov matou uma mulher e tenta se convencer de que ela não era um ser humano. ele pensa que ela era uma coisa sem valor, um verme, um obstáculo, um princípio ou uma abstração. sonia, como veremos adiante, também será desvalorizada ou entendida como uma idealização abstrata. as mulheres são excelentes continentes para despejar aspectos inaceitáveis das nossas personalidades.[10]

10. nos Cadernos dostoievsky escreveu: “n.B. uma mulher é sempre apenas aquilo que nós mesmos queremos fazer dela.” (p. 218)

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ser mulher significa sofrer, ser mal tratada, depreciada, fraca, passiva – tudo aquilo que Raskolnikov está tentando evitar e acha desprezível em si mesmo. da próxima ida de Raskolnikov à casa de Razumihin, ele dirá, “estou tão triste, tão triste... como uma mulher” (p. 169), esse é um dos poucos mo-mentos do romance que ele percebe sentimentos depressivos, no entanto, o romance inteiro é sobre seus esforços para evitá-los.

a próxima série de incidentes confronta Raskolnikov com a perda de seu bom objeto. uma senhora e sua filha se apiedam dele e lhe dão dinheiro. uma oferta de ajuda, vinda de uma mãe, o faz lembrar-se de seu crime. ele olha para as águas azuis e brilhantes do neva, e a sua mirada descansa no domo ar-redondado da catedral, uma vista particular que sempre o encheu de prazer, a fonte de emoções maravilhosas e “misteriosas”, agora aparece fria, negra e sem vida. ele havia matado algo dentro de si, a boa imago maternal representado pela cúpula em forma de seio. ele olha para a moeda que a mulher lhe dera e a joga na água. “parecia-lhe que havia cortado a si mesmo de tudo e todos na-quele momento.” (p. 102)

de volta a sua casa, ele entra em um estado de confusão e experimenta o desamparo e o terror que sentiu no apartamento da agiota. no seu delírio, ele está tentando lembrar-se de alguém e de algo. ele vê alguém ao lado de sua cama. “alguém que ele parecia conhecer muito bem, no entanto, não conse-gue lembrar quem ele (sic) era, isso o assustou, até o fez chorar.” (p. 104) ele não tinha nenhuma lembrança dos assassinatos, mas “a cada minuto ele sen-tia que havia esquecido algo que teria que ser lembrado. ele se preocupou e se atormentou tentando lembrar, se lamentando. entra numa onda de fúria, ou afunda em um terror horrendo e intolerável” (p.105).

Com um pouco de sono, bons cuidados e a ajuda dos outros, o delí-rio de Raskolnikov vai se limpando; mas depois de estar deitado na sua cama ouvindo-os discutir os assassinatos, depois de conhecer o noivo de sua irmã, Luzhin, e depois de saber que sua mãe e irmã chegarão a qualquer minuto, sente novamente vontade de agir. seu estado mental é característico: “Calmo, seguro de si, forte.” “esse foi o primeiro momento de uma calma estranha e repentina.” “um tipo de energia selvagem brilha de repente em seus olhos fer-vorosos.” “ele não sabia e não pensava para onde estava indo e tinha apenas

um pensamento: ‘Que tudo isso precisa terminar hoje, de uma vez por todas, imediatamente.’ porque ele não iria continuar vivendo assim.” Como, de que forma ele daria um fim? ele não fazia ideia, ele não queria nem pensar nisso. ele afastou seus pensamentos; os pensamentos o torturavam. tudo o que ele sabia que sentia é que tudo deveria mudar “de uma forma ou de outra, ele re-petia com desespero, determinação e uma imutável confiança em si mesmo” (p. 136). Logo será óbvio que, tendo “afastado os pensamentos,” ele agora está louco. seus sentimentos de poder disfarçam seu desamparo; sua necessidade de fazer algo, se livrar do doloroso, “aquilo” estabelece um ciclo vicioso tornando--o cada vez mais desamparado.

Raskolnikov gasta dinheiro com um músico de rua, com prostitutas. seu discurso é tão peculiar que um transeunte assustado atravessa a rua para evitá-lo. acompanhado do policial Zametov, paskolnikov o provoca. primeiro Raskolnikov caçoa dele por causa de sua ganância e por ele estar usando seu trabalho para ter lucro à custa dos outros. “Você deve ter uma vida muito boa, sr. Zametov; entrada franca para os lugares mais agradáveis. Quem está pa-gando o seu champagne atualmente?... as propinas que recebe?! Você tem lu-cro com qualquer coisa!” (p. 141) por debaixo das provocações hostís podemos sentir certa inveja.

Raskolnikov conta que esteve lendo sobre o assassinato, lembra-se de seu desmaio no posto policial e apresenta isso de maneira que pareça o mais suspeito possível “agora você entende?”, ele pergunta e ri na cara do confuso Zametov. essa provocação onipotente é um flerte deliberado com o perigo, com o objetivo de testar seu poder e provar que está tudo sob controle.

da mesma forma que Raskolnikov sentiu vontade de gritar para os dois homens que estavam tentando entrar no apartamento da agiota, bater neles e xingá-los, ele agora experimenta um impulso similar. “novamente um de-sejo intenso de extravasar.” esse gesto revela, por detrás da falsa aparência de um homem poderoso, uma criança. Quando Zametov menciona outro crime, Raskolnikov humilha os outros criminosos como sendo crianças tolas. ele diz que teria cometido o crime calmamente, deliberadamente, confiante de si, sem um traço de ansiedade. Claramente, o que é mais importante é estar no con-trole total. no que Raskolnikov nos traz, e em particular no contraste entre a

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maneira diferente que ele se comportou durante os assassinatos e a forma na qual continua pressionado, e não sob controle de seus sentimentos, nós come-çamos a entender a importância ligada ao controle onipotente.

Continuamos seguindo Raskolnikov depois de seu encontro com Zame-tov, ele ainda está determinado a “dar um fim em tudo isso” (p. 150). depois de rejeitar o suicídio, ele está a caminho do posto policial para confessar, quando algo o faz mudar de ideia. ele se aproxima de Marmeladov que está morrendo, pois havia sido atropelado por uma carruagem. Raskolnikov reage “tão seria-mente como se fosse seu pai” (p.155). Marmeladov representa o pai ineficiente e tolo. Mas nessa reversão do sonho, o cavalo matou o pai. novamente como no sonho e nos assassinatos da velha agiota, a cabeça é partida. e da mesma forma que o garotinho agiu no sonho, Raskolnikov cuidadosamente abraça a cabeça da vítima. eles vão em direção da casa de Katerina Ivanovna onde Raskolni-kov toma conta, tranquiliza a sra. Marmeladov, dá dinheiro e suporte. na crise, assume a responsabilidade da família que Marmeladov não foi capaz de ter e que ele não foi capaz de ter com sua própria mãe e irmã. ele sai sentindo-se rejuvenescido, e é esse, para alguns críticos, o principio de um renascimento.

Minha impressão é que essa atitude serve primeiramente a uma repa-ração maníaca. por um momento, Raskolnikov consegue esquecer seu desam-paro, fraqueza e sua incapacidade de ajudar sua família. na verdade, depois de conseguir uma nova família, se esquece completamente da sua própria. os as-sassinatos também estão momentaneamente apagados, talvez cancelados pela “aritmética”. Há um sentimento temporário de poder e controle. “nós usaremos toda nossa força! ele coloca de forma provocante, como se desafiasse algum tipo de poder das trevas... ‘eu acredito que minha enfermidade está curada, eu sabia que ela se acabaria quando saí... Força, força, é o que nós queremos, sem ela não se pode fazer nada, e força precisa ser ganha com a própria força – é isso que eles não sabem’.” (p. 166) parece que ele está desafiando seus inimigos e experimenta um sentimento de triunfo sobre eles. ele soa como um louco.

o objeto do seu desafio, o inimigo invisível, são seus perseguidores. Quando ele não reconhece conscientemente seus sentimentos de culpa, ele sente que alguém é responsável por eles. seus esforços foram direcionados para se livrar desses sentimentos desconfortáveis, “dar um fim nisso,” e para

expressar raiva contra aqueles que são tidos como os responsáveis. Como conse-quência de seu ato na casa dos Marmeladov, ele de repente sente-se “orgulhoso, confiante de si, esses sentimentos cresceram cada vez mais fortes dentro dele, estava se tornando um homem diferente a cada momento” (p. 166).

uma reparação normal seria baseada no reconhecimento da realidade psíquica, a experimentação da dor que essa realidade causa, e a tomada de ati-tudes que aliviam essa dor na fantasia e na realidade. o objetivo da reparação maníaca repara o objeto de tal forma que a culpa e a perda nunca existam. a reparação maníaca, como Hanna segal (1964, p. 82-83) explica, tem três ca-racterísticas: 1) nunca é feita em relação a objetos primários ou internos, mas sempre em relação a objetos mais remotos; 2) o objeto relacionado à repara-ção nunca deverá ser experimentado como danificado pelo próprio individuo; e 3) o objeto deve ser sentido como inferior, dependente, e mais profunda-mente, desprezível. não há amor verdadeiro nem estima pelos objetos repa-rados; em vez disso, eles estão sendo controlados de forma onipotente. para mim, parece que a família Marmeladov, embora não tenha o mesmo signifi-cado que a própria família de Raskolnikov ou da agiota e Lizaveta, se encaixa nessas características.

Raskolnikov vangloria-se por coisas que mais parecem um triunfo maníaco do que rejuvenescimento moral. ele não aparenta estar conectado com a realidade, já que nenhuma afirmação é verdadeira. sua enfermidade não acabou. ele certamente não acreditou que ela acabaria quando saiu. essa é uma ilusão da onisciência. ele usa a retrospecção para se convencer de que tem mais controle de si do que realmente tem.[11]

seu sentimento de força é a maior das ilusões. um pouco mais tarde, quando ele encara sua família na realidade, ver sua mãe e irmã o levara a um colapso e a um desmaio.

se Raskolnikov tivesse, realmente, ajudado os Marmeladov por

11. Há muitos exemplos desse tipo de autodecepção, o mais significante seria o seu ultimo feito: “eu sou provavelmente mais asqueroso que o piolho que matei, e eu senti de antemão que deveria ter dito isso para mim mesmo depois de matá-la.” (p. 239) alguns críticos erram em ter isso como evidência de que ele sabia que iria falhar antes dos assassinatos, e os cometeu com o objetivo de falhar. seu estado mental é uma pista para a decepção.

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sentimentos reais de compaixão, essa ação o teria feito se sentir mais forte, no entanto, ele se sentiu mais poderoso. se ele tivesse se sentido mais forte, poderia reconhecer sua fragilidade. se a ajuda dada aos Marmeladov fosse mo-vida pela compaixão, ele teria também entrado em contato com sentimentos depressivos – preocupações com a futura tristeza, sentimentos relacionados à morte de Marmeladov, em relação a sua própria família, as suas próprias víti-mas, culpa. Com certeza não seria triunfo. Como ocorre em outros lugares do romance, o tom de triunfo é uma indicação de o que está sendo comemorado é uma vitória sobre a realidade e geralmente uma vitória à custa de outra pessoa.

até agora, eu tenho ressaltado os aspectos maníacos de sua relação com Marmeladov, pois penso que essas características são muito significa-tivas e que não foi levada em conta por outros escritores. Certamente, pode haver aspectos maníacos e saudáveis no comportamento e os analistas estão acostumados com pacientes que confundem esses dois aspectos, como por exemplo, quando eles progridem realmente, ou terminam algo depois de tra-balhar duro, atribuem isso a sua onipotência, e então se tornam maníacos. as ações de Raskolnikov para com Marmeladov contêm tanto aspectos maníacos quanto saudáveis, e agora, no topo de sua mania, seus sentimentos mudam. a defesa maníaca raramente é completa, geralmente um pouco de depressão se expressa. Quando Raskolnikov chega a sua casa, ele já não está mais se van-gloriando de seu triunfo. ele está subjugado, reflexivo, depressivo. ele quer contar para Razumihin sua experiência na casa dos Marmeladov, o impacto disso nele, e de repente admite se sentir fraco. “estou tão triste.” ele diz “tão triste... como uma mulher”.

Há outra relação que me parece representar reparação maníaca: a es-colha do objeto amado por Raskolnikov antes dos assassinatos. nós primeiro ficamos sabendo da noiva de Raskolnikov através de seu amigo, Razumihin. “a garota não era bonita mesmo, na verdade posso dizer positivamente que ela era feia... e tão inválida... e estranha... é inexplicável... ela também não tinha dinheiro.” (p. 189) Raskolnikov confirma a descrição e dá uma pista sobre a razão de sua atração. “ela era uma garota tão doentia... inválida. ela se orgu-lhava de ajudar aos pobres e sempre sonhava em cuidar de crianças... ela era uma coisinha feia. eu realmente não sei o que me levou a ela – acho então que

é porque estava sempre doente. se ela fosse chata ou corcunda eu acredito en-tão que teria gostado ainda mais dela.” (p. 201)

a namorada de Raskolnikov era considerada inferior, estragada tanto física quanto mentalmente, e isso parece ser precisamente o que ele gostava nela. se ela fosse mais deformada ele gostaria ainda mais dela. o seu problema não era nada que ele tivesse causado e por isso não era algo que ele precisasse sentir culpa. ele poderia se ver como seu benfeitor, resgatando-a e restituindo--a; enquanto ao mesmo tempo, ela poderia funcionar para ele como uma re-presentação de vários de seus aspectos feios e inaceitáveis.

a relação, que teria terminado em casamento se a garota não tivesse morrido, precedeu o objetivo de Raskolnikov de matar a velha agiota. no en-tanto, as duas estão claramente relacionadas. Quando discutia seus planos de casar com a filha inválida da proprietária, a mãe de Raskolnikov disse que o choque de ouvir isso quase a matou. “ ‘Você acha’, ela disse, ‘que minhas lágri-mas, minhas súplicas, minha doença, minha morte talvez pelo sofrimento, nossa pobreza, teriam o impedido de fazer isso? Ele passaria por cima de todos esses obstáculos, calmamente’.”[12]

Isso liga o “romance” com a garota inválida aos assassinatos da velha agiota e de Lizaveta. as duas ações, uma supostamente amorosa e a outra des-trutiva, são para evitar a culpa; no entanto, as duas ações levam à coisa mais importante que elas pretendiam evitar: a morte da mãe de Raskolnikov.

a garota inválida está também ligada à sonia, que alguns críticos co-locam como sua reencarnação. a discussão sobre a noiva é quase que imedia-tamente seguida da tímida aparição de sonia na porta. sonia é descrita como sendo uma criança, pressionada pela timidez, humilhada na companhia de sua família, e desperta sentimentos de pena e compaixão em Raskolnikov, fa-zendo com que ele se sinta rejuvenescido novamente. ele e os leitores são re-lembrados da cena previamente descrita na casa dos Marmeladov.

12. aqui eu difiro de forma substancial da tradução de Garnet, que diz: “não, ele teria calmamente desconsiderado todos os obstáculos.” o verbo usado é perestupit, passar por cima, transgredir. o substantivo deveria ser perestupanie, que significa transgressão, uma variante de prestuplenie. Ver Molchuski (1947, p. 305). Jessie Coulson (1953) traduz a frase: “não, ele pisaria friamente sobre cada obstáculo.”

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no episódio seguinte, Raskolnikov e Razumihin visitam o inspetor da polícia, porfiry petrovich, e a conversa gira em torno do artigo que Raskolnikov escreveu sobre o crime. no artigo, ele introduz a sua teoria do super-homem: a humanidade se divide em poucos e extraordinários seres e a maioria que é composta de pessoas ordinárias, as quais os extraordinários têm o direito e até a obrigação de, mesmo transcendendo a lei, oferecer algum tipo de bem maior. o homem comum é limitado pelo seu sentimento de culpa que Raskolnikov descreve sarcasticamente como “eles castigam a si próprios, pois são muito conscientes; alguns castigam os outros e têm certos casos em que usam as pró-prias mãos para isso... eles impõem atos públicos de autopenitência com um belo e edificante efeito” (p.228). seu tom é de desprezo, como se a consciência fosse uma limitação, uma fraqueza, uma humilhação. podemos lembrar que quando Raskolnikov toma consciência de seus sentimentos de culpa, ele ime-diatamente experimenta um ódio por si mesmo e uma ira contra qualquer um que seja identificado como responsável por fazer com que perceba seus senti-mentos, geralmente sua vítima.

ninguém pode se sentir culpado por maltratar pessoas comuns, logo, de acordo com essa teoria, elas existem para serem usadas. elas “amam ser controladas. para mim seu dever é ser controladas, isto porque é a sua voca-ção, e não há nada de humilhante nisso para elas” (p. 227). esse é exatamente o argumento que svidrigailov apresentará como veremos a seguir, apesar dele dar um passo adiante comparando e identificando as pessoas comuns com as mulheres.

agora, quem são as pessoas extraordinárias? elas são “pessoas com ideias novas, pessoas com a fantástica capacidade de dizer algo novo” (p. 229). “Homens que possuem o dom ou o talento de pronunciar uma nova palavra.” (p. 227) e como essas pessoas fazem seu trabalho? elas destróem; suas ações são destrutivas! Já que estamos falando da inveja da criatividade, naturalmente aqueles que são destruídos são nada mais, nada menos, que os representantes inconscientes daqueles que se consideram os mais criativos - a mulher com seu fruto, a mulher grávida.

ao chegar a casa, Raskolnikov continua essa discussão consigo mesmo. “o verdadeiro mestre a quem tudo é permitido joga uma tempestade sobre toulon,

faz um massacre em paris, esquece um exército no egito, gasta meio milhão de homens na expedição a Moscou” (p. 236), e não tem problemas com isso, até existem altares feitos para ele. por que ele teria que pagar; por que ele deveria se sentir culpado por um pequeno crime? Continuando sua comparação de si mesmo com napoleão, é forçado a reconhecer sua limitação, ele não consegue transpor a culpa e se sente humilhado por isso.

ele continua negando a culpa desvalorizando suas vítimas e negando qualquer significação para o crime,[13]e reconhecendo a culpa, uma limitação que o faz imediatamente atacar-se e atacar sua vítima. “a velha mulher era insignificante! ele pensa de forma inconsciente e exacerbada... a velha mu-lher era somente uma doença... eu estava com pressa de ultrapassar... eu não matei um ser humano, mas um princípio! eu matei o princípio, mas eu não ultrapassei, eu fiquei deste lado... eu fui só capaz de matar.” (p. 238-239) aqui ele está claramente nos dizendo que o ato de matar não era a barreira - não era a lei dos homens, mas o sentimento de culpa por ferir outro ser humano.

ele então lembra que não foi somente a velha mulher que matou, mas também Lizaveta. “pobre Lizaveta! por que ela teve que entrar... é um pensa-mento estranho, por que eu penso nela tão raramente, como se não a tivesse matado? Lizaveta! sonia, pobres coisas gentis com olhos gentis... Mulheres queridas! por que elas não choram? por que elas não murmuram? elas desis-tem de tudo... seus olhos são macios e gentis... sonia! sonia! doce sonia.” (p. 240) Lizaveta, sonia, que são gentis e boas, mas que inspiram culpa. por que elas nem mesmo reclamam? elas se deixam esgotar, serem usadas, “elas de-sistem de tudo”.

essa passagem nos faz lembrar da confissão de Marmeladov, quando depois de sua pseudoculpa, ele descreve a dor de olhar nos olhos de sua esposa e reconhecer o que fez com ela. aqui Raskolnikov, assim como Marmeladov, está cara a cara com sua culpa. a resposta de Marmeladov foi se sentir des-confortável e beber mais ainda, ficar mais tempo longe, machucar mais a sua

13. Como segal aponta: “um objeto de desprezo não é um objeto merecedor de culpa, e o desprezo, que é experimentado relacionado a tal objeto, se torna a justificativa para mais ataques a este.” (1965, p. 71)

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mulher, com o objetivo de evitar essa culpa.o estudante, cuja conversa Raskolnikov ouviu por alto, e Mikolka, no

sonho, expressam a mesma ideia. É como se cada um dissesse: parti meu co-ração ao ver o que fiz a ela, então eu a matei.

Raskolnikov tem dificuldade de entender que essas mulheres aceitam as coisas sem questionar, sem reclamar. as mulheres, pela sua passividade e aceitação, fazem com que ele se sinta desconfortável, porque elas não podem ser vistas, então, como perseguidoras externas com quem poderia ficar irritado. tal irritação seria uma indignação genuína, na verdade, experimentada como libertadora. no lugar disso, os sentimentos ruins atacam-no internamente; ele não pode nem fugir deles nem aniquilá-los dentro de si.

esses sentimentos são vividos como ataques a ele, e quando perde a consciência, seus pesadelos representam sua vitimização por esses persegui-dores internos e os seus sentimentos de não ter para onde escapar. Raskolni-kov se vê numa batalha de vida ou morte que provoca a necessidade de uma ação mais efetiva. no sonho, ele está batendo na cabeça da velha com um ma-chado e a cada machadada a velha treme e gargalha parecendo zombar da sua impotente tentativa de silenciá-la, de aniquilá-la. Como no sonho de bater no cavalo, a fragilidade está sendo ridicularizada. neste caso, no entanto, é a sua suposta vítima que está rindo da sua fraqueza e que é vista como um tormento. ele percebe que a porta do quarto está aberta e ouve risadas e sussurros. ele começa a bater nela com toda a força, e as risadas simplesmente ficam mais altas. ele tenta fugir, mas percebe que todas as portas estão abertas. o corre-dor está cheio de gente, pessoas por toda parte – no térreo, nas escadas – todos em silêncio, olhando-o com expectativa. ele congela num ponto, incapaz de se mexer; essa paralisia só termina quando grita e acorda.

dostoievski apresenta esse sonho de tal forma que nós primeiramente acreditamos que ele é real. no sonho, a porta aberta representa uma ruptura na capacidade de distinguir a realidade interna da externa. Quando Raskolnikov acorda pensa ainda estar dormindo, e demora um tempo para perceber que está acordado. a primeira coisa que vê quando abre os olhos é que a porta de seu quarto está aberta; svidrigailov está de pé na entrada, observando-o. uma mosca está zumbindo dentro do quarto, outro elemento trazido do sonho. duas

vezes Raskolnikov se pergunta se ainda está dormindo. essa divisão, a reversão da realidade para o mundo dos sonhos, é usada para nos apresentar svidrigai-lov e este a Raskolnikov. esse personagem demoníaco pretende representar a forma mais bem sucedida da onipotência de Raskolnikov, i.e., destrutiva. não por acaso, ele aparece no momento que Raskolnikov se sente mais fraco e de-samparado. Medidas extraordinárias, na forma de um super-homem onipo-tente, são usadas para negar a realidade psíquica.

a primeira ação de svidrigailov no romance é de ultrapassar a soleira da porta para dentro do quarto, e dostoievski usa o mesmo verbo, perestupit, um momento antes havia usado esse verbo para descrever a falha de Raskolnikov. o símbolo da soleira da porta converge novamente para os três significados descritos anteriormente. svidrigailov despertou a curiosidade de Raskolnikov dizendo que os seres humanos, especificamente as mulheres, amam ser insul-tadas. as mulheres gostam de ser espancadas; na verdade, “podemos dizer que é a única diversão delas” (p. 245). Que svidrigailov acredita nisso e ao mesmo tempo não acredita, isso é evidenciado pela sua paixão por jovens garotas ino-centes. sua perversão é violentá-las, por maldade e inveja. o prazer da perver-são é que ele sabe que elas não gostam de sofrer. a atração pelas inocentes é para negar isso, ou seja, fazê-las sofrer.

svidrigailov pretende representar um dos aspectos da personalidade de Raskolnikov, a idealização da destrutividade, levada ao extremo. sua perversão é baseada em uma reversão do bem e do mal. Criatividade e destrutividade, com uma escolha deliberada da última. svidrigailov fascina Raskolnikov, não por causa de uma latente atração homossexual, nem por que ele materializa os desejos incestuosos deste para com sua irmã, como muitas interpretações sugerem, mas porque personaliza o super-homem onipotente, que tem con-trole sobre seus sentimentos, ultrapassa suas limitações e, mais importante, é livre de culpa. svidrigailov diz a Raskolnikov precisamente o que ele mais queria ouvir: Que ele não precisa se sentir culpado por ferir sua mãe e irmã. ele descreve dounia como uma mártir. “ela está sedenta por ser torturada por alguém, e se não conseguir, irá se jogar da janela.” (p. 409) as mulheres querem sofrer; elas amam isso; então em vez de sentir culpa, podemos pensar nisso como o dever de se aproveitar delas.

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um momento depois, no entanto, nós temos uma imagem de svidrigai-lov relacionada à dounia bem diferente. ele está dizendo que a ama. “deixe-me beijar a bainha de seu vestido, deixe-me, deixe-me... a sua seda seria demais para mim. diga-me ‘faça isso’ e eu farei. eu farei tudo. eu farei o impossível. o que você acredita, eu também acreditarei. eu farei qualquer coisa - qualquer coisa mesmo!” (p. 425) ele está se declarando para ela, mas seu tom é muito penoso. ele a idealiza enquanto nega a si mesmo. ele está se rebaixando, im-plorando para ser seu escravo, completamente fora de controle. novamente somos relembrados que, no mundo desse romance, amar significa ser domi-nado tanto pela sua própria paixão quanto pelo outro.

Mas então uma mudança recai sobre ele, e “ele retorna a si mesmo”. ele está novamente no controle, isento de emoções espontâneas - e agora dou-nia está assustada e desamparada. Mesmo quando ela aponta uma arma car-regada para ele – na verdade, particularmente nessa hora – está sob controle. svidrigailov está afirmando sua bravura, apagando sua humilhação previa. ele controla suas emoções, sobretudo quando vê a morte cara a cara. sua do-minação e controle aparecem completamente. Quando ela larga a arma, ele sente como se tivesse sido salvo de seu isolamento sombrio, mas no momento seguinte os olhos dela dizem outra coisa. “então você não me ama?”, ele per-guntou suavemente. dounia abanou a cabeça. “e... você não poderá? nunca?” ele sussurrou com desespero. “nunca!” (p. 428). seu destino está selado após o reconhecimento da realidade psíquica e da realidade exterior, todas as tenta-tivas para se aproveitar da sua sexualidade, dominá-la ou usá-la, são descar-tadas. o confronto ilustrou dramaticamente a diferença entre controlar outra pessoa como um objeto a parte e ter uma relação real baseada no reconhe-cimento da separação e da independência. É tal reconhecimento que torna svidrigailov mais heróico, realmente mais saudável, do que Raskolnikov, no entanto, curiosamente, é nesse ponto que aquele personagem está “conde-nado” e este está “salvo”.

o próximo capítulo contém a preparação e os detalhes do suicídio de svidrigailov. ele primeiro visita sonia com o objetivo de assegurar seu futuro, como também de sua pequena irmã e irmão. ele então visita sua noiva de dezes-seis anos para explicar-lhe sua falta e também para provê-la. sua generosidade,

seus bons atos, leva os críticos a apontar sua indiferença com a moralidade, que ele não distingue entre bem e mal e é perfeitamente capaz dos dois. nós lembramos Raskolnikov, pensando em fontes e flores embelezando a cidade, enquanto estava a caminho para cometer o assassinato. a ação de svidrigailov, no entanto, beneficia os outros, e como é o primeiro a reconhecê-lo, serviria para manter as crianças das duas famílias fora do alcance de alguém como ele.

ele pensa em dounia. “Quem sabe? – talvez de algum modo ela tivesse feito de mim um novo homem...” (p. 435) ela teria sido a sua salvação. a rela-ção com uma mulher é vista como uma forma de conectar-se com a vida. a impossibilidade disso só aumenta a sua inveja, então seus pensamentos foca-lizam no ódio do nascimento, das crianças e da criatividade. “Como eu detesto o som das árvores... eu nunca gostei de água.” (p. 435) ele cochila e no seu sono continua sendo perturbado por múltiplas pequenas coisas e variadas imagens de fecundidade que o perseguem. um rato corre por seu corpo. ele pensa em flores, muitas flores em abundância. ele ouve o som da chuva caindo e, numa perversão maravilhosa do símbolo do nascimento, pensa em como o rio irá transbordar e os ratos do celeiro serão arrastados para fora pelas águas. ele imagina que se mata debaixo de um grande arbusto, encharcado pela chuva, com milhões de pingos caindo em sua cabeça. Há moscas em sua carne. a re-volta da paixão representada por ninharias.

ele sonha com uma garota de catorze anos vestida de branco, deitada em um caixão forrado com seda branca e circundada por uma profusão de flo-res. Lembra-se da garota que tirou sua própria vida depois que ele a seduziu. nesta hora sentimos o mesmo que ele: o fim da sua inocência e esperança, a aniquilação da sua capacidade de sentir. então ele tem um segundo sonho, este com uma criança negligenciada, uma menina de cinco anos que se trans-forma em uma desavergonhada meretriz, o rosto dela sendo a face que ri da depravação dele.

o par de sonhos se assemelha de diversas formas aos dois primeiros sonhos de Raskolnikov. nós relembramos que svidrigailov apareceu pela pri-meira vez quando Raskolnikov estava acordando de seu segundo sonho, como se fosse a resposta ao reconhecimento por parte de Raskolnikov do seu pró-prio desamparo. agora svidrigailov reconhece o seu próprio desamparo. nessa

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última ação antes do suicídio, ele não consegue pegar nem uma mosca.o suicídio se dá do lado de fora de uma grande casa. seus grandes por-

tões estão fechados como uma confirmação de que o corpo da mãe é inválido e que a separação do bom objeto é permanente.[14]

na entrada da casa há um pequeno homem, um judeu usando um casaco de soldado e um capacete de aquiles. a imagem deste homem fraco e ineficiente, disfarçado de soldado, é a imagem da onipotência, um menininho que pretende ser poderoso. ao ser descrito como aquiles, ele se identifica com o herói invencível, o super-homem todo-poderoso que não pode ser tocado pelos outros, não pode ser derrotado, exceto pelo seu próprio erro fatal. svi-drigailov venceu as barreiras. seu erro? tomando conhecimento da futilidade do controle onipotente, ele reconhece seu vazio e seu isolamento. percebe que suas forças destrutivas destruíram o objeto que ele amava e do qual ele depen-dia, não só como um objeto externo, mas interno também. sua agressão des-truiu a própria capacidade de dar e receber amor. a fragmentação resultante e a reorganização paranóica do seu mundo não o impedem de reconhecer o que fez. É por essa razão, penso eu, que svidrigailov nos toca. ele é simpático e bem diferente da encarnação do mal que foi o intento inicial de dostoievski.

uma ideia central, que percorre todo o romance e se incorpora respec-tivamente aos destinos de svidrigailov e Raskolnikov, é que não importa se no fim há salvação ou morte, isso depende do relacionamento com uma mu-lher. a mulher é vista como absolutamente essencial para a sobrevivência; o homem é dependente dela já que ela dá a ele algo que ele não consegue dar a si mesmo. a vulnerabilidade envolvida no reconhecimento é vencida atra-vés da negação da independência da mulher ou separação de si mesmo; ela é desvalorizada, tratada como um objeto separado, controlada. não há grati-dão pelo que foi recebido. e há uma absoluta necessidade de evitar qualquer

14. o local é cuidadosamente escolhido por svidrigailov, depois de considerar algumas outras pos-sibilidades. num dado momento, ele percebe a importância de tal escolha: “eu me tornei mais particular, como um animal que escolhe um lugar especial... para tal ocasião.” (p. 435) as últimas palavras que ele então ouve são do pequeno judeu repetindo: “Você não pode fazer isso aqui, este não é o lugar.” (p. 440) Há uma ironia particular. svidrigailov tem um censo de locação, contrastando com a intromissão de Raskolnikov; é este último censo de seu local psicológico que determina o suicídio.

sentimento de culpa relacionado à forma como a trata. Juntamente com svi-drigailov e Raskolnikov, variações do mesmo tema são encontradas em Mar-meladov, Luzhin e Razumihin.

Luzhin é claramente o personagem mais negativo e antipático do ro-mance, e Razumihin é o mais saudável. Luzhin nos diz “dounia era simples-mente essencial para ele; estar sem ela seria impensável”, ele se regozija com seu plano de reverter a disputa no relacionamento deles, de forma que seja ele quem estará no pedestal, venerado e admirado por ela, colocado como seu salvador. a posição desamparada dela o excita, já que isso o impele a trocar de papel com ela, a virar a mesa em cima dessa mulher que tinha tanto mais do que ele. “aqui está uma garota de caráter, virtude e educação superiores aos seus (ele sentia isso), e essa criatura estaria eternamente grata pela heróica condescendência dele, se atiraria na poeira do chão antes dele, e ele teria ab-soluto poder sobre ela.” (p. 267) em todas as relações entre homem e mulher ou se domina ou se é escravo.

o papel de escravo pertence à Razumihin, que se apaixonou por dou-nia à primeira vista, e no seu primeiro encontro murmura: “estou falando bobagens, eu não mereço você... eu não mereço você absolutamente!” (p. 175) “... Você é uma fonte de bondade, pureza e sentido... e perfeição... eu gostaria de beijar suas mãos agora, aqui de joelhos...” (p. 176), e nesse momento ele cai de joelhos na calçada e tenta beijar as mãos dela, enquanto dounia e sua mãe protestam e se perguntam sobre sua sanidade. tentativas são feitas para atri-buir seu comportamento e sua fala ao fato dele estar bêbado. Razumihin ide-alizou dounia desde a primeira vez que pôs seus olhos nela, ele a tem em um pedestal onde está marcado “bondade, pureza, sentido e perfeição”, e ele se põe de joelhos para adorá-la e servi-la. naturalmente, ele sente que não me-rece tal perfeição. Há diversas razões para idealização, incluindo a proteção do objeto idealizado para que ele não sofra dano, ou seja ferido, o que iria mexer em sentimentos como perda, tristeza e culpa. uma mulher em um pedestal é mantida a uma distância segura. nós vemos que não importa o quão ridículo e fora de controle o comportamento de Razumihin tenha sido, ele se sente mais seguro com sua idealização. será que dounia deveria “estar vestida de rainha, ele percebeu que não teria medo dela, mas talvez pelo fato de estar pobremente

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vestida, e assim ele perceber toda a miséria do entorno, seu coração estava cheio de horror e ele começou a ter medo de qualquer palavra que pronun-ciasse, qualquer gesto que fizesse” (p. 188).

diferente de Raskolnikov, entretanto, Razumihin não culpa a mulher por provocar tais sentimentos nele, nem pretende controlá-los. não há ne-nhuma tentativa de manipular dounia e nem de reverter a relação deles; em resumo não há associação com o controle onipotente e nem com os mecanis-mos projetivos de Raskolnikov. Razumihin aceita a responsabilidade, não só por si mesmo, mas para ajudar dounia, seu irmão e mãe. ele é o único dos cinco homens capaz de fazer reparação.

nos três encontros que Raskolnikov tem com sonia, ele faz uso exten-sivo da projeção, e há uma recapitulação de muito que já descrevi. no começo ele está frio, tenta quebrar todas as defesas dela e mostrar o pior da realidade de sua situação, a futilidade de todos seus esforços. ele a atormenta com aquilo que o atormentava: seu fracasso em sustentar sua família. “Você precisa en-carar as coisas de frente” (p. 286), ele diz para ela, isso é precisamente aquilo que não consegue fazer.

ele não se relaciona com ela como um indivíduo, mas como um tipo de privada psíquica onde ele pode evacuar. essa é frequentemente a função da prostituta. ele tenta fazê-la sentir-se desamparada, inútil, culpada e humi-lhada por se revelar. Manipulando esses sentimentos nela, ele pode manter-se distante e em controle, mas então percebe que todas suas cruéis desaprova-ções, sua previsão de um futuro terrível, suas sugestões para que se mate – to-das essas coisas que ela havia pensado antes, talvez repetidas vezes: ela nem percebe a crueldade dele, sonia aparece incorrupta por suas experiências; ela permanece pura entre toda sujeira. ele fica intrigado pela sua habilidade em resistir a todos os ataques.

Raskolnikov descobre a solução dela: “deus! ela é uma maníaca reli-giosa.” ele a força a ler a história de Lázaro, do novo testamento. sua motivação é perversa, destrutiva. ela costuma ler para Lizaveta e agora está revelando seu “tesouro secreto” para ele. “Via em parte por que sonia não conseguia ler para ele, e quanto mais via isso, mais insistia de forma grosseira e irritada para que ela lesse. ele entendia bem o quão doloroso era para ela trair e revelar algo que

era seu.” (p. 283) no fim, ele acaba revelando seu doloroso segredo a ela. Que conseguiu se aliviar à custa dela e ao reverter seus papéis, se sente momenta-neamente triunfante, mas também confuso em relação à separação de suas identidades. “nós somos o mesmo” (p. 288), ele lhe diz.

em um dado momento, Raskolnikov se relaciona com o sofrimento de sonia com desprezo e ódio, enquanto no outro o idealiza. a responsabilidade também não é diretamente ligada à sonia. no meio de seu cruel abuso, de re-pente se agacha no chão e beija os pés dela. “não é pessoal”, diz ele; “eu não me curvei a você, eu me curvei a todo sofrimento da humanidade” (p. 279). de-pois explica que ela está perto de ouvir o que tinha a dizer antes de encontrá--la, antes dos assassinatos, quando seu pai falou pela primeira vez sobre ela.

depois de confundi-la e assustá-la, ele sai no mesmo espírito de triunfo maníaco com o qual saiu da casa dos Marmeladov. “Quebre o que deve ser que-brado, de uma vez por todas... Liberdade e poder e. sobretudo, poder! sobre todo tremor da criação, sobre todo formigueiro!... esse é o objetivo, lembre disso! essa é minha mensagem de despedida.” (p. 287) percebemos que, particularmente nesse estado de espírito, sua metáfora final é destrutiva. Raskolnikov nunca fala em reparação, a necessidade de arrumar as coisas, colocá-las em ordem.

na segunda vez que Raskolnikov visita sonia, ele vai lhe dizer quem matou Lizaveta. as respostas que Raskolnikov dá à sonia alternam, dependendo das respostas dela, aumentam ou diminuem a ansiedade e culpa. Quando ela lhe mostra que não se fere com seus ataques, e que consegue aceitá-lo, seu des-conforto se torna mais tolerável e ele pode enxergar melhor suas dificuldades. Mas primeiro ele percebe que ela está esperando algo dele, que sente ser inade-quado entregar, se sente desconfortável, e a culpa. “de repente, uma estranha e surpreendente sensação de ódio por sonia passou por seu coração.” (p. 351) ele levanta a cabeça e olha diretamente nos olhos dela, e para sua surpresa não vê nem uma vítima, nem uma perseguidora. “Havia amor em seus olhos, seu ódio se desfez como um fantasma.” Como uma boa mãe, ela é capaz de conter seus sentimentos de ódio e transformá-los através do amor.

ele reconhece seu erro; sentiu-se desamparado e imediatamente teve a urgência de se livrar desse sentimento, projetou-o de forma violenta, atra-vés do ódio. “não era o sentimento real, ele trocou um sentimento por outro.

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boletim formação em psicanálise – ano xix – vol. 19, № 1 – jan/dez 2011tradução – a transgressão de raskolnikov e a confusão entre destrutividade e criatividade150 151

Isso significa que o minuto chegou.” esse “minuto” significa que está na hora de confessar; mas com um intento ambíguo, pois se refere ao que foi para ele uma experiência similar. “sua sensação naquele momento era terrivelmente parecida com o momento em que ele estava na frente da velha com o machado na mão e sentiu que ‘não poderia perder nem mais um minuto’.”

significativamente, ele foi contar a ela sobre Lizaveta. Lizaveta e sonia são similares, e pedir perdão à sonia de certa forma cancela os assassinatos. É importante, também, que Raskolnikov não fale realmente para sonia, mas co-munique como o fez com uma série de sentimentos importantes e estados de espírito - nós chamaríamos de projeções - através dos olhos, olhando no rosto do outro e experimentando o que está sendo comunicado. “pode adivinhar?” ele pergunta. “de uma boa olhada.” então, “ele olha para ela e de repente pa-rece ver no rosto dela o rosto de Lizaveta.” ela o olha como fez Lizaveta, como uma criança assustada. “seu terror o infectou. o mesmo medo se mostrou em seu rosto.” (p. 353) Quando ela percebe o que ele fez, não diz nada. novamente ela intencionalmente o olha nos olhos. ele não aguenta seu olhar e implora que pare de torturá-lo.

esse não foi o jeito que ele imaginou que aconteceria. Mas, então, ela se atira de joelhos na frente dele. “não há ninguém, ninguém nesse mundo mais infeliz do que você!” o coração dele amolece e lágrimas enchem seus olhos. “então você não vai me deixar, sonia?” (p. 354) até agora, ela aceitou tudo, não o fez se sentir culpado, até mesmo o fez sentir que precisava dele. da mesma forma que ele sempre tentou se livrar de qualquer fraqueza, de qualquer sen-timento desconfortável, chegou à conclusão de que ela, sua família, qualquer um, assim que soubessem, não iriam querer nada com ele. ela o aceitou.

Mas agora ela diz que ele está se entregando. ele recua e se torna hostil. além disso, ela espera uma explicação. ela tenta tornar os assassinatos com-preensíveis, percebe que ele mesmo não entende, e que não tem uma explica-ção para lhe dar. Quando ela faz um comentário, que novamente demonstra sua aceitação, sua ansiedade diminui, e ele é capaz de refletir e momentanea-mente ter um insight. “eu vim até você para uma coisa – não para me deixar... porque eu não aguento meu fardo e vim despejá-lo em outro; você também sofre, e eu devo me sentir melhor!” ele esteve buscando alivio sem reparação,

sem nenhum arrependimento. a resposta dela, que é apontar que ele também sofre, de novo faz com que se sinta mais tolerável. “nós somos tão diferentes”, ele percebe finalmente. “nós não somos parecidos.” (p. 356)

ainda tentando encontrar uma explicação, ele conta a ela sobre sua te-oria do napoleão. sonia repele a falha dele de não enxergar o que fez. “eu ape-nas matei um piolho, sonia, uma criatura danosa, inútil e asquerosa.” (p. 358) ela não o aceita, e salienta que ele é responsável por matar outro ser humano. Isso ele não quer ouvir – e responde à dolorosa realidade da intervenção dela como se esta fosse um ataque. sua resposta é atacar a si mesmo, do mesmo jeito que percebemos primeiramente com Marmeladov. tudo que Raskolnikov diz aqui está correto; mas é, em certo sentido, irrelevante. primeiramente, ele evita falar qualquer coisa sobre o ponto crucial que ela apontou: Que ele tirou uma vida humana. segundo, seu ataque verbal contra si mesmo é uma carica-tura da consciência e não o coloca em contato com qualquer responsabilidade pelo que fez, ou leva a uma atitude positiva, qualquer desejo de mudança. eu sou pior do que isso, ele disse a ela “eu sou fútil, invejoso, malicioso, baixo, vin-gativo e... bem... talvez com uma tendência para a insanidade”. ele poderia ter ficado na universidade, poderia trabalhar como Razumihin, “me tornei mal--humorado e não fiz nada (sim, mal-humor, essa é a palavra certa para isso!). Fiquei sentado no meu quarto como uma aranha” (p. 359).

Como isso não é uma aceitação da culpa ou da responsabilidade, não nos surpreendemos quando abruptamente se transforma em um ataque con-tra os outros. ele acredita que os outros são idiotas, que eles nunca vão mu-dar, e que “não vale a pena gastar esforços para isso... e eu sei sonia que aquele que é forte tanto na mente quanto no espírito terá poder sobre eles. Qualquer um que seja muito audaz estará na frente deles. Aquele que despreza a maioria das coisas será um legislador entre eles e aquele que for mais audacioso de to-dos estará mais certo!” (p. 359. Itálico do autor). Qual é a expressão mais clara que poderíamos receber do “super” ego que afirma sua superioridade encon-trando erros em tudo?!

Quando sonia o interrompe e acalma seu desvario, ele se tranquiliza e, penso eu, momentaneamente retorna ao profundo estímulo criminoso. ele in-siste que não era relacionado à culpa por sua mãe e sua irmã, mas “por matar

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seguindo meus próprios motivos, para mim mesmo... não foi para ajudar a mi-nha mãe que eu cometi os assassinatos – isso não faz sentido... cometi o crime para mim mesmo, só para mim”. se não estivéssemos pensando que ele está protestando demais, sua próxima negação é ainda mais sugestiva. “ou eu me transformei em um bem-feitor para os outros, ou passei minha vida inteira como uma aranha pegando os homens na minha teia e sugando a vida dos homens (sic), eu não teria aguentado até esse momento.” (p. 360) de novo, o símbolo da sua voracidade oral e culpa a aranha e o piolho, que vivem dos ou-tros e sugam até secarem.[15]

ele decide, no fim desse encontro, que esteve com muita pressa para se condenar, que deveria ter lutado por isso. ele também sente algo diferente por sonia. antes ele sentiu que poderia usá-la para se livrar de seu sofrimento, agora sente que adicionou mais um fardo e que agora tem que se preocupar em se sentir culpado por ela. “ele sentiu mais uma vez que talvez pudesse odiar so-nia, agora que a fez ainda mais miserável. por que ele foi até ela implorar pelas suas lágrimas? por que ele precisava envenenar sua vida?” (p. 365)

a confissão de Raskolnikov para sonia não só o fez lembrar de seus sen-timentos na hora dos assassinatos, mas repetiu a mesma dinâmica que o levou a cometê-lo. tendo ido ao encontro de sonia em uma necessidade desesperada, ele agora percebe que a sua relação está arruinada. seus sentimentos mistu-ram culpa e ira; ele não sabe a quem culpar. ele se sente fraco e inadequado na frente de uma mulher que percebeu estar esperando mais do que poderia dar. de forma característica, ele responde a isso com raiva. Quase, simultane-amente, suspeita que fosse ele quem estava demandando, que estava pedindo demais para ela. Já que o uso de mecanismos projetivos resulta em confusão entre si mesmo e os outros, ele não sabe qual desses dois foi longe demais.

os esforços de Raskolnikov em escapar de qualquer compreensão da sua posição requerem outras pessoas que ele pode usar como continentes das suas

15. a aranha que está no pensamento de Raskolnikov sobre si-mesmo é também usada para repre-sentar svidrigailov, é talvez o símbolo mais conhecido de destrutividade oral e medo de ser amado. a aranha está associada à ameaça da teia materna baseada na projeção dos impulsos agressivos orais da criança. Ver abraham (1922), esterba (1950) e Little (1966). no parágrafo Raskolnikov evita saber que as mulheres, representantes das mães, são os alvos de suas agressões.

projeções, e culpá-las por suas dificuldades. Identificação com esses aspectos projetados do si- mesmo resultam em sentimentos de sufocação e claustrofo-bia. É significante que svidrigailov e porfiry petrovich, as únicas duas pessoas que entendem alguma coisa de sua estrutura psicológica, repetidamente lhe dizem que o que ele precisa é de ar fresco.

sua necessidade de adversários, outras pessoas com as quais ele possa ficar com raiva, é plenamente afirmado: “não, melhor a luta novamente! Me-lhor porfiry de novo... ou svidrigailov... melhor ter algum novo desafio... al-gum ataque.” (p. 380) pensar em sua mãe e irmã, e agora em sonia, o reduz ao pânico; desta forma, ele precisa de alguém como porfiry ou svidrigailov para insultar. eles são perseguidores externos, e o seu contra-ataque é diretamente exterior. ele se sente certo, vingado, e forte.

Quando, depois de uma conversa com Razumihin, ele acredita que por-firy suspeita dele e que armou um plano para pegá-lo. ele sente “renovada de novo à luta, uma forma de escapar apareceu”. perceba as palavras que ele usa para descrever a mudança entre tormento interior e luta exteriorizada. “sim, uma forma de escapar apareceu! Foi duro e fiquei paralisado, o fardo foi muito agonizante... desde o momento da cena com nikolay na casa de porfiry ele es-teve sufocado, cercado sem esperanças de escapar.” (p. 384. Itálico do autor) porfiry diz a ele: “se você fugisse você voltaria por si mesmo. Você não fica sem nós.” (p. 397) É por causa disso, e particularmente porque ele não pode arriscar perder ou ferir sonia, que confessa.

Logo antes de ir confessar, ele é visitado por sua irmã. Quando dounia fala sobre pagar pelo seu crime encarando seu sofrimento, Raskolnikov explode. “ele grita furioso: Crime? Qual crime? se eu matei um inseto vil e nocivo, uma velha agiota, sem utilidade para ninguém... que não serve para nada, matá-la foi um pagamento para quarenta pecados. ela estava sugando a vida de pes-soas pobres... só agora eu vejo claramente a imbecilidade da minha covardia, agora que eu decidi encarar essa desgraça supérflua. - e só porque eu sou des-prezível.” (p. 466) de acordo com Raskolnikov ele é desgraçado porque é fraco e covarde. o crime é estúpido e mal feito porque falhou. “eu estou mais longe do que nunca de pensar que o que eu fiz foi um crime”, ele argumenta (p. 447).

depois que dounia vai embora, ele pensa consigo mesmo, “mas por

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que eles se preocupam comigo se eu não mereço? oh, se ao menos eu estivesse sozinho e ninguém me amasse e eu nunca tivesse amado ninguém! Nada disso teria acontecido” (p.448). até agora, podemos apreciar a verdade do ponto de vista de Raskolnikov, e saber qual fardo de culpa está classificado como amor. nós também percebemos que ele ainda está culpando os outros. a agiota por ser tão gananciosa, sua família por amá-lo; e ele ainda fala da necessidade de quebrar coisas ao invés de repará-las.

Quando Raskolnikov vai ao posto policial, sua covardia se apodera dele e vai embora sem confessar. a fuga é momentânea, no entanto, para o que o espera lá fora é mais do que ele poderia suportar. “Lá, não muito longe da en-trada, estava sonia, pálida e horrorizada. ela olha ferozmente para ele. ele fi-cou parado na sua frente. Havia um olhar em sua face de agonia pujante, de desespero.” (p. 457) esse momento é o clímax do romance, pois justapõe o olhar amedrontado de Marmeladov para sua esposa, e as reclamações de svidrigai-lov sobre o olhar mortífero de dounia. o movimento espacial da cena de aber-tura também é reprisado, a mulher esperando na soleira da porta, obstruindo seu caminho. Raskolnikov não aguenta encarar sonia e, por meio disso, expe-rimenta o que está fazendo com ela; ele perde a coragem. “seus lábios cons-truíram um sorriso feio e vazio. ele fica parado por um instante, arreganha os dentes e volta para o posto policial.” (p. 457)

iv

o epílogo, como mostra Wasiolek (1959), é uma “fonte de perpétuo embaraço para os apologistas de dostoeviski”. pode ser artisticamente fraco, porém é psicologicamente consistente com os capítulos anteriores do romance. pode-mos apreciar a sabedoria de não acabar com a confissão, já que a obrigação de confessar nas circunstâncias descritas dão para Raskolnikov a oportunidade de sentir-se novamente irritado. além disso, agora que ele parou de correr fi-sicamente, os aspectos narcisistas de sua personalidade se tornam mais dis-cerníveis (Rosenfeld, 1964).

a mãe de Raskolnikov ficou seriamente enferma. seus pensamentos estão completamente voltados para seu filho, e ela enlouquece nos seus esfor-ços de se certificar que ele irá voltar. ela não sabe sobre seu julgamento ou sua

prisão, e não lhe foi dada nenhuma explicação sobre seu desaparecimento. É--nos dito que Raskolnikov se preocupa muito com ela, mas mesmo assim ele prevê que sua depressão progressiva logo acabará, fatalmente; nem ele nem os outros pensam em lhe contar nem mesmo a verdade parcial. o conhecimento do que aconteceu é-lhe negado, e o que ela não sabe a mata.

da mesma forma que Raskolnikov lidou com aspectos inaceitáveis de sua personalidade através da tentativa de se livrar deles ou aniquilá-los, ele acredita que sua família iria tratá-lo da mesma forma, e iria querer se livrar dele se for culpado, ou fraco, ou mesmo se estiver errado. ao antecipar a rejei-ção de sua mãe, ele a deixa primeiro. ela acaba sentindo que seu filho a aban-donou, fica louco e sucumbe por causa disso. Há quase um sentido de revanche neste ponto, uma virada de mesa. aquilo parece tão desnecessário adicionado à crueldade. poderia seu destino ter sido pior se ela soubesse a verdade? Isso geralmente passa sem ser notado, mesmo por aqueles leitores que reconhe-cem a morte da agiota como um símbolo ou um assassinato deslocado da mãe.

Há mais uma razão para essa morte aparentemente sem sentido. a ne-cessidade de Raskolnikov de destruir a fonte original de amor e gratificação para eliminar a fonte de inveja. essa ideia se apoia na forma com que as coisas são trazidas. a mãe de Raskolnikov espera que ele volte em nove meses e ela começa a preparar a sua chegada, arruma seu quarto, etc.. ela morre de desa-pontamento; seu desejo é negado. o nascimento, ou renascimento, não acon-tece, pelo menos não para ela. o nascimento, ou renascimento subsequente contrasta com a esterilidade dela, suas esperanças e expectativas frustradas.

a ressurreição de Raskolnikov reproduz os assassinatos em vários as-pectos. os dois eventos são imediatos, precedidos de fantasias de uma reunião oceânica, desta forma a fusão com uma mãe interna, idealizada, torna a mãe externa desnecessária. É como se Raskolnikov estivesse dizendo que não pre-cisa mais dela; ele pode ficar melhor sozinho. esse seria o último roubo. pri-meiro uma hostil substituta da mãe foi morta, e agora a própria mãe.

na segunda metade do epílogo, Raskolnikov já não está mais lutando contra sentimentos de culpa; tão pouco demonstra uma capacidade de se preocupar com os outros. Como ele próprio declara, “minha consciência está descansando” (p. 467). Raskolnikov está isolado de todos os outros homens.

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ele pode ficar confortável em seu isolamento precisamente porque todas suas necessidades são satisfeitas por sonia, que controla e trata como uma parte de si-mesmo. afora do crime de Raskolnikov e seu estado de prisioneiro, ela se considera abaixo dele em todos os aspectos. ela está sempre disponível, não espera nada dele, está satisfeita em ser sua escrava. os outros prisioneiros referem-se a ela como a “boa mãezinha”, uma pista adicional ao que Raskol-nikov conseguiu com sua dominação e controle sobre ela. ela está disposta a aguentar tudo (“Lizaveta, sonia... elas aguentam tudo”), e esta não pede ab-solutamente nada em troca. se ele olhar para ela, ou notar sua existência, ela é grata. enquanto isso, ele a trata com desprezo e não percebe nenhum reco-nhecimento da necessidade por ela de fato, ela é experimentada como quem precisa dele. uma relação narcísica perfeita, onde tanto a dependência quanto a necessidade são ou negadas ou projetadas nela.

o sonho com micróbios é difícil de interpretar como uma evidência de redenção moral. shaw (1973) aponta que Razumihin havia anteriormente perguntado para Raskolnikov: “pegou a peste ou o quê?” uma expressão folcló-rica que pode ser mais ou menos traduzida por “está louco?”. diferentemente dos sonhos anteriores de Raskolnikov o sonho dos micróbios não é um sonho, é uma fábula ou um mito.[16]

ele recapitula os argumentos apresentados no seu artigo e na discus-são com porfiry petrovich, e é talvez a mais explícita afirmação do que eu me referi na introdução quando discuti o conceito – K de Bion. os micróbios de Raskolnikov “eram dotados de inteligência e vontade. Homens atacados por eles ficam rapidamente loucos e furiosos. Mas nunca os homens considera-ram-se tão inteligentes e tão completamente donos da verdade como esses so-fredores, nunca consideraram suas decisões, suas conclusões científicas, sua convicção moral tão infalível... Cada pensamento que ele tinha sozinho con-tinha a verdade” (p. 469).

esses micróbios são a ultima versão da perseguição. partículas

16. se nós considerarmos que a capacidade de sonhar preserva a personalidade da psicose (Bion, 1962 b, p. 16), então a pergunta de Razumihim seria respondida afirmativamente, e Raskolnikov está provavelmente longe da verdade nesta fábula sobre a obtenção do autoconhecimento. oportuna-mente, ele tem essa experiência dentro do hospital.

mínimas estilhaçadas que resultaram de uma projeção primitiva forçada e atacaram tanto Raskolnikov quanto svidrigailov nos seu momento mais desesperado. Holquist (1974), na sua discussão sobre o sonho, aponta que as partículas infecciosas, traduzidas na maioria das edições inglesas como mi-cróbios, são mais especificamente os vermes trichinae, para os Russos trixiny. esse é não só um parasita conhecido, mas também é associado a porcos ou suínos, o que restabelece o tema da voracidade oral e espoliação, os fatores emocionais de – K. não nos surpreendemos quando ouvimos como esse co-nhecimento é usado, “que todos os homens e todas as coisas estavam envol-vidas na destruição”.

o resto do mito de dostoevski descreve a relação entre o individuo que possui esse conhecimento e seu grupo. Bion escreveu sobre três histórias como esta, os mitos do Éden, Édipo e Babel, cada um destes lida com a busca do homem pelo conhecimento e sua punição subsequente por um deus irado (Bion, 1963). eu gostaria de comparar o mito de dostoevski com aquele que, eu penso se assemelha mais:

“todos estavam excitados e não se entendiam... as trocas mais comuns foram abandonadas, por que cada um propunha suas próprias ideias, suas pró-prias melhoras, eles não conseguiam concordar... Homens se encontram em grupos, concordavam em algumas coisas, juravam manterem-se juntos, mas de repente começam algo completamente diferente do que haviam proposto. eles se acusam, brigam e se matam.”

“... Imediatamente os construtores se envolveram em incompreensão. se o mestre-de-obras dissesse para o pedreiro ’me dê argamassa‘!” o pedreiro iria lhe dar no lugar um martelo, com o qual o mestre-de-obras iria matá-lo enfurecido. “Muitos eram os assassinatos cometidos na torre; e também no chão, por causa dessa confusão; até que finalmente o trabalho diminuiu seu ritmo e parou.”

enquanto cada um dos três mitos tradicionais lida com um tipo especí-fico de conhecimento, eu sugiro que o mito de Babel, citado por último (Graves, 1963, p.126), fala sobre criatividade artística. sob a supervisão do arquiteto Mi-rod, os homens tentam construir uma torre que alcance aonde ninguém jamais

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chegou, cruzando o linear do próprio paraíso para o domínio dos deuses.[17]

a punição deles para essa transgressão é a fragmentação da linguagem. se considerarmos que, a punição se adapta ao crime, qual a maior punição para um poeta ou artista do que ser desprovido da oportunidade de se comunicar através da linguagem, ser reduzido a balbucios?

onde esses três mitos tradicionais começam com a premissa de que buscar o conhecimento é um pecado, dostoevski nos apresenta as consequ-ências da busca do conhecimento a serviço da inveja e da voracidade. não é desejável que a noção de intrusividade seja tão persistente, e o saber sempre é sentido como alcançado a custa de outra pessoa. o sonho dos micróbios é uma reafirmação da teoria de Raskolnikov sobre a criatividade, que também é uma teoria do super-homem. não é surpreendente, que esse sonho de des-truição do mundo tenha uma fenda, os poucos escolhidos que são salvos da praga, homens excepcionais, “destinados a achar uma nova raça e uma nova vida, a renovar e purificar a terra”. estes super-homens são invisíveis; em uma colocação que eu penso prenuncia o fim do epílogo nos é dito que “ninguém viu esses homens, ninguém ouviu suas palavras e suas vozes”.

depois do sonho, sonia não está lá, e pela primeira vez desde sua con-fissão Raskolnikov está preocupado com ela. ele percebe que ela está doente, com gripe. será que ela foi infectada pelos micróbios do seu sonho? É forçado a reconhecer sua necessidade por ela, particularmente quando teme que aquele mal chegou até ela como um resultado da forma com que foi tratada por ele. Isso é ainda mais explicitado pelo jeito que ele fica sabendo da doença dela. a carta dela para ele faz um paralelo com a carta prévia de sua mãe; nos dois casos, uma mulher sofreu por conta dele, e não lhe contou nada sobre isso até que fosse tarde.

Quando Raskolnikov olha para fora da janela do hospital, a visão de

17. no seu artigo “A Orestéia” 1963, Klein discutiu Hubris, a qual ela sentiu primariamente pecaminosa devido à voracidade e espoliação da mãe. “a voracidade se liga ao conceito da moira, que repre-senta a porção repartida para cada homem pelos deuses. Quando a moira é exacerbada, os deuses punem. o medo de tal punição volta ao fato de que a voracidade e inveja são experimentados con-tra a mãe, que é sentida como sendo injuriada por essas emoções e que por projeção se torna na mente da criança uma figura voraz e ressentida. ela é, portanto, temida como uma fonte de puni-ção, o protótipo de deus.”

sonia, parada na entrada, esperando por ele “apunhalou seu coração”. o ro-mance começou e acabou com tal configuração espacial e mental; no episódio de abertura em relação à proprietária, e no fechamento do romance quando so-nia o espera na saída do posto policial. em cada caso, a mulher é um objeto que está na fronteira, e lembrar de como ele a tratou é mais do que pode aguentar. na primeira instância, ele foi levado ao assassinato, na segunda à confissão. agora novamente Raskolnikov sente que precisa fazer algo!

o que segue é sua ressurreição e repentina consciência do amor. ele é conduzido pelo seu segundo devaneio místico. o imaginário é bem parecido com aquele que precedeu ao assassinato. a caravana no deserto, com seus ca-melos descansando, é agora uma tribo de nômades, como abraão e seu reba-nho. Há raios de sol, cânticos, e de novo um sentimento de atemporalidade. os nômades, esses andarilhos, que devem fidelidade a ninguém mais além deles próprios, dão a Raskolnikov um sentimento de liberdade. É esse senti-mento de liberdade que Raskolnikov esteve buscando ao longo do romance; libertar-se da responsabilidade para com os outros, libertar-se da dependên-cia, libertar-se da culpa.

a fantasia é seguida por um inesperado sentimento de alegria, o senti-mento de desistir como parte da experiência mística. de forma característica, também o amor de Raskolnikov por sonia não é dito, é comunicado visual-mente através do olhar de um para o outro. É uma experiência de tudo ou nada imediata e total. Leva Raskolnikov para longe da redenção moral, pois ele não lida com seu crime, os assassinatos, e nem com sua maneira prévia de tratar os outros; ele esquece tudo isso. Quando começa a pensar sobre seu prévio tor-mento com sonia, ele imediatamente se detém. “Mas essas lembranças mal o perturbam agora; ele sabia que com amor infinito iria agora apagar todos os so-frimentos dela.” (p. 471) seus feitos futuros irão cancelar suas desfeitas passadas. no fim, ele tinha razão, era tudo aritmética! “tudo, até mesmo seu crime, sua sentença e prisão, pareciam para ele agora no primeiro ímpeto de sentimento como um fato estranho e externo com qual ele não tinha relação.” (p. 471-472)

essa falta de relação ecoa a cena do romance quando Raskolnikov ex-perimentou sentimentos similares (ou falta deles) em relação à proprietária e sua dívida com ela. Repetindo o nascimento imaginário, nós também somos

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Norm

as

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trazidos de volta à cena de abertura, talvez tendo percorrido um círculo com-pleto. sonia e Raskolnikov passam mais sete anos na sibéria; mas sobre a re-generação do caráter de Raskolnikov, dostoievski nos diz que seria uma outra história.

Marly T. M. GoulartRua pará, 65, cj. 82

Higienópolis(11) 3129-5415

[email protected]

Julia [email protected]

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1. linHa eDitorial

o Boletim Formação em Psicanálise, revista do departamento Formação em psi-canálise do Instituto sedes sapientiae, tem por proposta editorial a divulgação de trabalhos relacionados à psicanálise e campos afins, numa tendência con-temporânea de integração e complementaridade. nesse sentido, valorizamos a diversidade na busca de articulações com outras áreas de conhecimentos, tendo como finalidade maior a busca da compreensão do sofrimento humano e a constante (re)construção metapsicológica.

2. normaS geraiS

os originais devem ser enviados para a Comissão editorial da Revista Boletim Formação em Psicanálise (endereço logo abaixo). se o material estiver de acordo com as normas estabelecidas pela revista, ele será submetido à avaliação do Conselho editorial. o artigo será lido por dois membros do Conselho, que po-derão rejeitar ou recomendar a publicação de forma direta ou com sugestões para reformulações. Caso não haja consenso, haverá uma terceira avaliação. se dois conselheiros recusarem o material, este será rejeitado para publicação. os originais não serão devolvidos, mesmo quando não aprovados. sendo o ar-tigo aprovado, sua publicação dependerá do programa editorial estabelecido.

1. Baseadas no estilo de normalizar de acordo com as normas da aBnt (associação Brasileira de nor-mas técnicas – nBR 10.520, 2002).

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Folha de resumo deverá constar o título do trabalho em português; resumo em português (no máximo 10 linhas) com palavras-chave (no mínimo 3 e no máximo 5); título do trabalho em inglês; abstract com keywords (no mínimo 3 e no máximo 5). os resumos e as palavras-chave devem ser digitados em itálico.

5. CitaçõeS

as citações são feitas pelo sobrenome do autor ou pela instituição responsável ou ainda, caso a autoria não seja declarada, pelo título de entrada, seguido da data de publicação do documento, separado por vírgulas e entre parênteses.

Citação textual ▪ até 3 linhas – deve ser inserida no corpo do texto, entre aspas e com

indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de refe-rência. Exemplo: Ferraz (2000, p. 20) considera “como tipicamente perversos certos atos ou rituais praticados com o consentimento formal do parceiro”.

▪ Com mais de 3 linhas – deve aparecer em destaque e com recuo de margem esquerda de 4 cm, sem aspas, espaço simples, corpo 11 e com indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de referência. Exemplo:

Freud (1905/1980, p.86) ensina:

esse último exemplo chama atenção para o fato de que é essencialmente a

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unificação que jaz ao fundo dos chistes que podem ser descritos como “res-

postas prontas”. pois a réplica consiste em que a defesa, ao se encontrar com

a agressão, “vira a mesa sobre alguém” ou “paga a alguém com a mesma mo-

eda” – ou seja, consiste em estabelecer uma inesperada unidade entre ataque

e contra-ataque.

Citação indiretao sobrenome do autor é apresentado dentro dos parênteses em letras maiúscu-las seguidas, seguido do ano da publicação. Exemplo: em o mal-estar na civili-zação Freud faz um esforço para circunscrever o mal-estar na modernidade ao tecer seus comentários sobre as relações entre sujeito e cultura (BIRMan, 1997).

Citação de autor ▪ no caso de autores cuja obra é antiga e foi reeditada, citar o sobre-

nome do autor com a data publicação original, seguida da data da edição consultada. Exemplo: Freud (1915/1980) ou (FReud, 1915/1980).

▪ no corpo do texto deverá constar o sobrenome do autor acrescido do ano da obra. Exemplo: Reik (1948).

▪ Fora do corpo do texto (citação indireta) o sobrenome do autor deve vir em letras maiúsculas, seguido do ano da publicação entre pa-rênteses. Exemplo: (ReIK, 1948).

▪ no caso de dois ou três autores os sobrenomes devem ser ligados por “&” no corpo do texto e por “;” fora do corpo do texto. Exemplo: ades & Botelho (1993) ou (ades; BoteLHo, 1993).

▪ Caso tenha mais de três autores, deverá aparecer somente o sobre-nome do primeiro, seguido da expressão “et al.”. Laing et al. (1974) ou (LaInG et al., 1997). obs.: na lista final de referências todos os nomes dos autores deverão ser citados.

▪ em caso de autores com o mesmo sobrenome, indicar as iniciais dos prenomes. Exemplo: oliveira, L. C. (1983) e oliveira V. M. (1984) ou (oLIVeIRa, L. C., 1983; oLIVeIRa V. M., 1984).

▪ se houver coincidência de datas de um texto ou obra do mesmo autor, distinguir com letra minúscula, respeitando a ordem alfa-bética do artigo. Exemplo: Freud (1915a, 1915b, 1915c) ou (FReud, 1915a, 1915b, 1915c).

▪ Caso o autor seja uma entidade coletiva, deve ser citado o nome da entidade por extenso. Exemplo: american psychological asso-ciation (2000).

Citação de citaçãoutilizar a expressão “citado por”. Exemplo: para Rank (1923) citado por Costa (1992)...

Citação de depoimento ou entrevistaas falas são apresentadas no texto seguindo-se as orientações para “citações textuais” e devem vir em itálico. Exemplo: o relato a seguir ilustra bem esse as-

pecto: “O fim da gestação é uma morte”.

Citações de informações obtidas por meio de canais informais (aulas, conferências, comunicação pessoal, endereço eletrônicoacrescentar a expressão “informação verbal” entre parênteses após a citação direta ou indireta, mencionando os dados disponíveis em nota de rodapé. Exem-plo: Freud foi influenciado pelas idéias de darwin. (Informação verbal).

obs.: não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

Citação de trabalhos em vias de publicaçãoCita-se o sobrenome do(s) autor(es) seguido da expressão “em fase de elabo-ração”. Exemplo: Besset (em fase de elaboração) ou (Besset, em fase de elaboração)

obs.: É necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

Citação de eventos científicos (Seminários, Congressos, Simpósios, etc) que não foram publicadosproceder da mesma maneira que para canais informais.

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Citação de Homepage ou WebsiteCita-se o endereço eletrônico de preferência após a informação e entre parên-teses. Exemplo: (www.bvs-psi.org.br)

obs.: não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

6. notaS De roDaPÉ

Caso sejam indispensáveis, as notas devem vir na mesma página em que fo-rem indicadas, usando o programa automático do Word. as referências dos autores citados no texto devem ser apresentadas no final do texto, nÃo em notas de rodapé.

7. reFerênCiaS

devem vir no final do texto, com o título ‘Referências’, relacionadas em or-dem alfabética pelos sobrenomes dos autores em letras maiúsculas, seguido das iniciais do prenome e cronologicamente por autor. Quando há várias obras do mesmo autor, substitui-se o nome do autor pelo equivalente a seis espaços, seguido de ponto. Exemplo:

ReferênciasBIRMan, J. … 1992. (com apenas um autor)______ . … 1997a.______ . … 1997b.JeRusaLInsKY, a.; taVaRes, e. e.; souZa, e. L. a. … (com dois ou três autores)LaInG, p. et al … (com três ou mais autores)Rouanet, s.p. …

Quando houver indicação explícita de responsabilidade pelo conjunto da obra em coletâneas de vários autores, a entrada deve ser feita pelo nome do responsável seguida pela abreviatura singular do mesmo (organizador, coor-denador, editor, etc.) entre parênteses. Exemplo:BaRtuCCI, G. (org.) Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Ja-

neiro: Imago, 2001, 408p.

livrosobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s), título do livro em itálico, ponto, edição (a partir da segunda: “2.ed”), cidade, dois pontos, editora, ano de publicação e número de páginas. se for uma reedição, colocar o ano em que foi escrito logo depois do nome do autor. Exemplo:

CeCaReLLI, p. R. (org.) Diferenças sexuais. são paulo: escuta, 2000, 295 p.FIGueIRedo, L.C.M. & CoeLHo JunIoR, n. Ética e técnica em psicanálise. são

paulo: escuta, 2000, 237 p.LaCan, J. (1959-1960) O seminário livro 7, A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro:

Zahar, 1988, 358 p.

Capítulo de livro e ou coletâneassobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s), título do capítulo, ponto, In:, título do livro em itálico, ponto, cidade, editora, ano de publicação e página. Quando for coletânea logo após o “In:” colocar so-brenome e iniciais do organizador e “(org)” logo após. Exemplo:

duaRte, L.F.d. sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental moderna. In: ÁRan, M. (org.) Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003, p.179-93.

artigos de periódicossobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s), título do artigo, ponto, título do periódico em itálico, vírgula, cidade, volume, número, página e ano de publicação. Exemplo:Rosa, M.d. o discurso e o laço social nos meninos de rua. Psicologia USP, são

paulo, v.1, n.1, p.205-17, 1990.

Dissertações e tesessobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s), título da dissertação ou tese em itálico, ponto, ano, ponto, número de folhas,

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identificação se é tese de doutorado ou dissertação de Mestrado, o nome da Instituição onde foi defendida e cidade. Exemplo:

LoFFRedo, a. M. Angústia e repressão: um estudo crítico do ensaio “Inibição, sin-toma e angústia”. 1975. 100 f. dissertação (Mestrado em psicologia) – Faculdade de psicologia, puC, Rio de Janeiro.

trabalhos publicados em eventos científicos (Congressos, Seminários, Simpósios, etc.) publicados em anais ou como artigo autor(es), título do trabalho, In:, título do evento, numeração do evento, ano e local de realização, tipo de documento (anais, atas, resumo) editora, ano de publicação e página. Exemplo:

MaRaZIna, I. a clínica em Instituições. In: CONPSIC – II Congresso de Psico-logia,. 1991, são paulo. anais. são paulo: oboré, 1992, p.25-43.

trabalhos que não foram publicadosdependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da mesma maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “texto não publicado”.

trabalhos que estão em vias de publicação dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da mesma maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “no prelo”.

resenhassobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do pre-nome, título do livro, ponto, cidade, dois pontos, editora e ano de publi-cação. Resenha de sobrenome em letras maiúsculas, seguido das iniciais do prenome do autor da resenha, título da resenha (se houver), ponto, nome do periódico em itálico, volume, número, páginas e data de publi-cação da revista.

referências de Freudsobrenome do autor em caixa alta, seguido da inicial do prenome, título da edição utilizada em itálico, cidade, editora e ano de publicação da edi-ção consultada. abaixo, ano em que o artigo foi escrito, título e volume. Exemplo:

FReud, s. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

(1895). uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia, v. 3.(1896). novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, v. 3.(1897). sinopses dos escritos científicos do dr. sigmund Freud, v. 3.________. Gesammelte Werke Chronologisch Geordnet. Frankfurt, s.Fischer

Verlag, 1987.(1917). die Verdrängung, v. 10.(1917). das unbewusste, v. 10.

Documentos extraídos de fontes eletrônicasproceder da mesma maneira seja para livro, capítulo de livro e artigos de pe-riódicos, entretanto, adicionar no final “recuperado em (data)”, seguido do en-dereço eletrônico. Exemplo:

paIVa, G.J. (2000) dante Moreira Leite: um pioneiro da psicologia social no Brasil. Psicologia USP, n. 11, v. 2. recuperado em 5 de fevereiro de 2006, da scielo (scientific eletronic Library online): http://www.scielo.br.

8. imagenS e iluStraçõeS

tabelas, gráficos, fotografias, figuras e desenhos devem ser referidos no texto em algarismos arábicos e vir anexos, em preto e branco, constando o respec-tivo título e número. se alguma imagem enviada já tiver sido publicada, men-cionar a fonte e a permissão para reprodução, quando necessário.

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9. DireitoS autoraiS

os direitos autorais de todos os trabalhos publicados pertencem à revista Bole-tim Formação em Psicanálise. a reprodução dos trabalhos em outras publicações requer autorização por escrito da Comissão editorial da Revista.