BOLETIM DA CMF Nº 38 AGOSTO 2007 ISSN: 1516-1781 … · 2 Boletim 38 / agosto 2007 Editorial O...

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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF CORRESPONDÊNCIA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão Fone: : (0xx98) 3218-9924 As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF. BOLETIM DA CMF Nº 38 DIRETORIA Presidente: Maria Michol P. de Carvalho Vice-presidente: Roza Maria Santos Secretária: Nizeth Aranha Medeiros Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira CONSELHO EDITORIAL: Carlos Orlando de Lima Maria Michol Pinho de Carvalho Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Roza Maria Santos Sérgio Figueiredo Ferretti Zelinda de Castro de Lima SUMÁRIO EDIÇÃO: Maria Michol P. de Carvalho Mundicarmo M. R. Ferretti Roza Maria Santos REVISÃO DE TEXTO: Antonio Regino de Carvalho Neto VERSÃO PARA A INTERNET: www. cmfolclore.u fma.br ISSN: 1516-1781 AGOSTO 2007 CNPJ 00.140.658/0001-07 EDITORIAL .............................................................................................................................................................................. 2 Semana de cultura popular 2007 ................................................................................................................................................ 2 O cuxá ......................................................................................................................................................................................... 3 Zelinda Machado de Castro e Lima O Cuxá na cultura maranhense e seu registro como patrimônio cultural brasileiro ............................................................... 6 Mundicarmo Ferretti A cultura local através do artesanato. Cultura popular ou folclore: arte ou artesanato? ......................................................... 8 Francisca Ester de Sá Marques Turismo Cultural: ecos da memória e do patrimônio ................................................................................................................ 9 Karoliny Diniz Carvalho O Folclore arrozeiro .................................................................................................................................................................. 11 Maria de Fátima Sopas Rocha Migração religiosa do pentecostalismo para a umbanda ......................................................................................................... 15 Paulo Jeferson Pilar Araujo Vamos brincar de boneca ou dançar tambor de crioula? ......................................................................................................... 17 Maria do Socorro S. Aires JANELA DO TEMPO: Festa de São João .............................................................................................................................. 19 FulgencioPinto Culinária Maranhense: receitas tradicionais .......................................................................................................................... 21 Mundicarmo Ferretti NOTÍCIAS ............................................................................................................................................................................... 22 Roza Maria dos Santos PERFIL POPULAR Raimunda Menezes de Aguiar - Diquinha .............................................................................................................................. 24 Josimar M. Silva ENCARTE – Doçaria e culinária maranhense: receitas (reprodução)

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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF

CORRESPONDÊNCIACOMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE

Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho

Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão

Fone: : (0xx98) 3218-9924

As opiniões publicadas em artigosassinados são de inteira

responsabilidade de seus autores,não comprometendo a CMF.

BOLETIM DA CMF Nº 38

DIRETORIA

Presidente: Maria Michol P. de Carvalho

Vice-presidente: Roza Maria Santos

Secretária: Nizeth Aranha Medeiros

Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira

CONSELHO EDITORIAL:

Carlos Orlando de Lima

Maria Michol Pinho de Carvalho

Mundicarmo Maria Rocha Ferretti

Roza Maria Santos

Sérgio Figueiredo Ferretti

Zelinda de Castro de Lima

SU

RIO

EDIÇÃO:Maria Michol P. de CarvalhoMundicarmo M. R. FerrettiRoza Maria Santos

REVISÃO DE TEXTO:Antonio Regino de Carvalho Neto

VERSÃO PARA A INTERNET:www.cmfolclore.ufma.br

ISSN: 1516-1781AGOSTO 2007

CNPJ 00.140.658/0001-07

EDITORIAL .............................................................................................................................................................................. 2

Semana de cultura popular 2007 ................................................................................................................................................ 2

O cuxá ......................................................................................................................................................................................... 3Zelinda Machado de Castro e Lima

O Cuxá na cultura maranhense e seu registro como patrimônio cultural brasileiro ............................................................... 6Mundicarmo Ferretti

A cultura local através do artesanato. Cultura popular ou folclore: arte ou artesanato? ......................................................... 8Francisca Ester de Sá Marques

Turismo Cultural: ecos da memória e do patrimônio................................................................................................................ 9Karoliny Diniz Carvalho

O Folclore arrozeiro .................................................................................................................................................................. 11Maria de Fátima Sopas Rocha

Migração religiosa do pentecostalismo para a umbanda ......................................................................................................... 15Paulo Jeferson Pilar Araujo

Vamos brincar de boneca ou dançar tambor de crioula? ......................................................................................................... 17Maria do Socorro S. Aires

JANELA DO TEMPO: Festa de São João .............................................................................................................................. 19FulgencioPinto

Culinária Maranhense: receitas tradicionais .......................................................................................................................... 21Mundicarmo Ferretti

NOTÍCIAS ............................................................................................................................................................................... 22Roza Maria dos Santos

PERFIL POPULARRaimunda Menezes de Aguiar - Diquinha .............................................................................................................................. 24Josimar M. Silva

ENCARTE – Doçaria e culinária maranhense: receitas (reprodução)

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Boletim 38 / agosto 200722

EditorialO número 38 do Boletim de Folclore traz o sabor da culiná-

ria maranhense e, como não poderia deixar de ser, do cuxá.Essa ênfase foi desencadeada pela tramitação do pedido deregistro do cuxá como patrimônio cultural nacional, encami-nhado ao IPHAN pela CMF, em 2005. Mas tem muito a vercom a temática central da Semana do Folclore 2007, promovi-da pela Superintendência de Cultura Popular da Secretaria deEstado da Cultura, cuja programação foi aqui apresentada.Em decorrência disso, o trabalho de Josimar Silva sobre Diqui-nha, uma das grandes especialistas em comida típica do Mara-nhão, publicado em Perfil Cultural, e 50% dos artigos e notíci-as incluídos nesse número giram direta ou indiretamente emtorno daquele “carro chefe” da culinária maranhense que àsvezes aparece também como “arroz de cuxá”, tanto em relatose documentos de tempos que já se foram como nos atuais,sempre como um pirão de farinha de mandioca com camarão,vinagreira e gergelim, servido com arroz branco e peixe frito eque, portanto, não pode ser confundido com o “arroz de batipu-ru” ou “arroz de vinagreira” - risoto encontrado em alguns res-taurantes típicos de São Luís com a denominação “arroz decuxá”.

O artigo de Fulgencio Pinto sobre Festa de São João, publi-cado na seção “Janela do Tempo”, faz a ligação com o númeroanterior. Os trabalhos de Ester Marques, sobre artesanato, e deKaroline Carvalho, sobre turismo cultural, nos convidam a umareflexão sobre o lugar e a importância da cultura popular.

Zelinda Lima e Mundicarmo Ferretti tratam especificamen-te sobre o cuxá: o que é, quais os seus ingredientes, como seprepara, qual o seu contexto antropológico e como ele é conhe-cido por pessoas de diversas faixas etárias, níveis de renda e dediferentes regiões do estado.

Fátima Sopas discorre em seu artigo sobre um produto degrande importância na alimentação do maranhense e extrema-mente associado ao cuxá, o arroz, daí porque aquele pratotípico, feito basicamente com vinagreira, gergelim, camarão efarinha de mandioca, é também conhecido por “arroz de cuxá”,em alusão ao seu acompanhamento indispensável, o arroz bran-co.

Nesse número do Boletim foram fornecidas receitas de cuxá,de arroz de batipuru e de algumas bebidas tradicionais na culi-nária maranhense, inclusive a do mocororó, que já foi muitovendida em São Luís e que parece ter desaparecido. Essa bebi-da, no entanto, levada no passado para o Amazonas, por mães-de-santo, é hoje tomada ritualmente em terreiros de mina ama-zonenses ligados à tradição do Maranhão. Nessa edição estasendo também distribuído um encarte com receitas fornecidasna Exposição sobre Doçaria e Culinária Maranhense, organiza-da em São Luís, pela Fundação Cultural, hoje Secretaria deEstado da Cultura, com apoio de várias instituições, no períodode 20 a 30 de agosto, de 1976.

Várias notícias transmitidas por Roza dos Santos mostram aatuação de técnicos, instituições e “mestres de cultura” do Mara-nhão e de outros estados em prol do reconhecimento da culturapopular, e algumas delas atestam o apoio da comunidade mara-nhense ao pedido de registro do cuxá como patrimônio culturalnacional.

Saindo um pouco da culinária, o Boletim nº 38 da CMF trazdois artigos sobre as relações entre religiões afro-brasileiras eoutras religiões no Maranhão: o de Paulo Jéferson Araújo, queversa sobre pentecostalismo e religião afro-brasileira (“duplo per-tencimento” e mudança de uma dessas religiões para a outra); eo de Socorro Aires, que trata sobre rituais de cura/ pajelança esuas relações com o tambor de mina no Terreiro Fé em Deus, emSão Luís.

ERRAMOS

Boletim 37 – Janela do Tempo, p. 14, nota 25. Após a pala-vra original deveria ter sido acrescentado: publicado em Sema-nário Maranhense, São Luís, 05/07/1868, Ano I, nº 45, p. 7-8.

20 de agosto (segunda-feira)Dia do Visitante09:00 às 19:00 h -Abertura excepcionalpara visitação da Casa da FÉsta, Casade Nhozinho e Casa do Maranhão

Casa da FÉsta/Centro de CulturaPopular Domingos Vieira FilhoAbertura da Semana da Cultura Popu-lar 200718:00 h - Abertura da Exposição Foto-gráfica “Pra comer com os olhos: ocofo e o cuxá” (com fotografias deMargareth Figueiredo e cofos do acer-vo da Casa de Nhozinho)Demonstração do processo de confec-ção do cofo Paracafu, por Arlindo Sou-za (de Santo Amaro do Maranhão)19:00 h – Mercado do Giz (com exposi-ção e venda de comida, bebida e arte-sanato)Participação da Associação de Feiran-tes da Praia Grande19:30 h – Apresentação dos repentis-tas Antonio Joaquim dos Santos (deCaxias), Antonio Raimundo da Silva (deTimon) e Tibúrcio Bezerra (de São Luís)20:00 h – Show “Sotaque Maranhensena Arte de Cozinhar”, com WellingtonReis e José IgnacioGaleria Zelinda Lima e Pátio ValdelinoCécio

21 de agosto (terça-feira)Casa do Maranhão14:00 às 17:00 h – Oficina de Paracafu:um cofo especial com o artesão ArlindoSouza (de Santo Amaro do Maranhão)

Casa da FÉsta/Centro de CulturaPopular Domingos Vieira Filho17:00 h – Exibição de documentáriossobre o Cuxá, da CMF e do SESC/MARoda de Conversa “Folclore no prato”,com participação de Maria RaimundaAraújo (coordenadora), José Inácio Mo-raes Rego, Zelinda Lima, Fátima So-pas e Elir Jesus Gomes (expositores) eAdmée Duailibe e Nizeth Aranha (de-batedoras)19:00 h – Dança do Lili e outras danças(de Caxias)Auditório Rosa Mochel e Pátio Valdeli-no Cécio

22 de agosto (quarta-feira) – Dia In-ternacional do FolcloreCasa do Maranhão17:00 h – Roda de Conversa “A Lei dosMestres e o Projeto Tesouro Vivo”, comparticipação de Ester Marques (coor-denadora), prefeito de São Luís TadeuPalácio, Clay Lago, Joãozinho Ribeiro,Adirson Veloso, vereador Joberval Ber-toldo e deputada Helena HeluyHomenagem aos “Mestres do Ano” comentrega de placa e de prêmios a doismestres pelo Serviço Social do Comér-

SEMANA DA CULTURA POPULAR 2007 TEMA: “DO COFO AOPRATO: COMIDA MARANHENSE QUE DÁ ÁGUA NA BOCA”

PROGRAMAÇÃO20 a 24 de agosto de 2007

cio-MA e pela Fundação Municipal deCulturaLançamento de Concurso de Redaçãosobre os ofícios dos mestres homena-geados18:30 h – Comédia e Serê (de CentroGrande/Axixá)20:00 h - Show musical com o GrupoUrubu MalandroLançamento da edição nº 03, do Jornal“Na Ponta do Giz”, da Superintendên-cia de Cultura Popular / SECMA - Sa-lão de Eventos

23 de agosto (quinta-feira)Casa da FÉsta/Centro de CulturaPopular Domingos Vieira Filho17:00 h – Roda de Conversa “Palha &Cia”, com participação de Sonia Espín-dola (coordenadora), Graça Maria Oli-veira, João Carlos Pimentel Cantanhe-de, Marcelo Costa Medeiros e artesãoAntonio Carlos de CarvalhoLançamento do projeto “Nordeste Cri-ativo – I Mostra de Artesanato do Nor-deste” - Auditório Rosa Mochel

Casa de Nhozinho (entrada pela Ruade Nazaré)18:00 h – Espetáculo “Borboletando”,com Carina Nascimento19:00 h – Baião Cruzado, de DonaMaria da Paes (da Vila Ivar Saldanha)20:00 h – Dança do Coco (de RiachoSeco/Rosário) - Área de Convivência

24 de agosto (sexta-feira)Casa do Maranhão14:00 às 17:00 h – Laboratório de Culi-nária Maranhense, com a Cooperativade Serviços de Gastronomia Típica doBairro do Desterro18:00 h – Tambor de Crioula (de SantaRita do Vale/Santa Rita)20:00 h – Conjunto Pau Furado (de Pi-nheiro)Lançamento do Boletim nº 38, da Co-missão Maranhense de FolcloreSalão de Eventos

De 21 a 24 de agosto (terça a sexta-feira)Casa da FÉsta/Centro de CulturaPopular Domingos Vieira Filho10:00 e 15:00 h – Cine Popular, comdocumentários de Cultura PopularAuditório Rosa Mochel

Projeto Sabença: museu-escolaTema: Bumba-meu-boi13 a 16 de agosto: Unidade Integra-da Alberto Pinheiro – Turno Vesper-tino27, 28 e 30 de agosto: Unidade Integra-da Miguel Lins – Turno Vespertino

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3Boletim 38 / agosto 2007 3

O CUXÁ1

Dentre os muitos pratos da variadacozinha do Maranhão, avulta com me-recido relevo, o cuxá, tornado já um sím-bolo da hospitalidade maranhense.

O QUE É:Uma espécie de bobó (esparregado)3

de folhas de vinagreira, engrossado comFarinha de Mandioca, Gergelim e Ca-marão Seco.

Vinagreira: Arbusto da família dasMalváceas, originário da África Orien-tal Tropical (Hibiscus Sabdariffa L.) qua-se sempre com cerca de 2 m, folhas den-tadas, flores sésseis, axilares, róseas oupúrpuras, bastante disseminado nos pa-íses tropicais e subtropicais. Tambémconhecido como caruru-azedo, em ou-tros países seus frutos são empregadosno fabrico de geléias e doces.

Quanto à sua origem, há dúvida so-bre se a vinagreira veio da África ou separa lá foi levada pelos portugueses,“agentes distribuidores de espécies ali-mentares com surpreendente eficiência”, como os classifica Câmara Cascudo,acrescentando: “Na proporção que oportuguês familiariza-se com a flora bra-sileira, tenta aclimatar raiz ou frutonuma paragem distante onde tambémestivesse servindo a El-Rei. E conduziaos sabores estrangeiros para a ementa ha-bitual.”

A intensificação do tráfico de escra-vos naturalmente favoreceu e incentivoua troca de plantas alimentares da Áfricapara o Brasil e daqui para a África, no-tadamente as do gênero Hibiscus, a vi-nagreira (Hibiscus sabdariffa), o quiabode Angola, caruru da Guiné (Hibiscus

Zelinda Machado de Castro e Lima2

1 Texto encaminhado pela CMF ao IPHAN, em 03/06/05, com pedido de registro do cuxá como patrimônio cultural imaterial brasileiro. Fotos de Margareth Figueiredo.2 Zelinda Machado de Castro e Lima é pesquisadora e estudiosa da Cultura Popular, e autora de “Pecados da Gula, comeres e beberes da gente do Maranhão”.3 Esparregado. Esparregar: Guisar ervas, cozendo-as bem, e depois de picadas, e espremidas, se tempera com molhos etc.4 Araticum.5 Idem.

esculentos L.). Estudo do Sr. FranciscoTenreiro, citado por Cascudo, informaque da América, e principalmente viaBrasil, recebeu a ilha de São Tomé, nogolfo da Guiné, a pimenta malagueta(Capsicum frutescens), mandioca (Ma-nihot esculenta), abacate (Persea ame-ricana), ananás (Anona muricata), pa-paia (Carica papaya), anona4 (AnonaGlabra), sape-sape5 (Anona muricata),cacau (Theobroma cacao), cajueiro(Anacardium occidentalis), tomates ebatata andina. Daí ser difícil estabele-cer com certeza a origem da vinagreira.Mesmo porque a África conhecia obobó, o esparregado de folhas diversas.

Na África Oriental faz-se o esparregadocom folhas de abóbora, mandioca, feijão,batata, gimboa (uma espécie de bredo,Amaranthus Linn.,) mulembo ou kixara-nana (Curchorus olitorius Linn) e naGuiné usam folhas de cito, boabá (Adau-sionia digitata), e os fulas do Gabu utili-zam as ervas bagitx, denominando-o fole-rê. Comumente não fervem as folhas esim esmagam-nas no pilão, obtendo umamassa verde, como mingau espesso. Quan-do há sal, temperam com sal, pimenta,esta preparada e posta quando o esparre-gado está quase pronto.

O chikwangue sudanês, a essuangabanto, são herdeiros legítimos da mani-oca, com folhas tenras da mandioca. Nosdialetos ganguelas é motombo e tcha-muanga, que vale dizer “bom”, ensinaLuís Figueira, em Raças e Tribos de An-gola. Como se vê destas descrições, serátemerário dizer se a vinagreira é brasi-leira ou africana.

Nunes Pereira, sobre os costumes epráticas da Casa das Minas, o mais anti-go culto afro-brasileiro de São Luis, ex-plica:

A vinagreira, conhecida noutras áreas peladenominação popular de azedinha, é bas-tante apreciada e consumida, quer – apóscozimento – misturada ao arroz, quer iso-ladamente; sua determinação científica éHibiscus sardarifera L., pertencendo àfamília das Malváceas. Paul Lê Cointeaponta essa planta com o nome de azeda-da-Guiné. No entanto, tão apreciada comoé, não pode ser consumida em certa fasedo ano. E, note-se, ela entra no preparodo famoso prato chamado ARROZ-DE-CUXÁ, orgulho da culinária maranhense(PEREIRA, 1979, p. 153)

Gergelim: Planta anual, o gergelimou zerzelim é uma planta anual da fa-mília das Pedaliáceas, cientificamentechamada Sesamo indicum L., segundoos botânicos. Tem raízes em forma denabo, caule ereto, cilíndrico, de mais de1 m de altura.

Das suas sementes, torradas e piladas, desabor apreciadíssimo, é que o referido pra-to maranhense ganha justo renome, pro-veniente do seu já salientado sabor e ines-quecível aroma.Porções de sementes dessa planta, isola-damente ou associadas a camarões secose farinha, dita suruí, são levadas a cozi-nhar, com boa porção de folhas de vina-greira, cozidas à parte, antecipadamente.Também é justo reconhecer-se que, des-sa combinação requintadíssima, resultouo mérito do aludido prato regional, sem-pre acrescido se o consomem com a car-ne do peixe-pedra, peixe da família He-mulidae, estudado pelo ictiólogo brasilei-

Verduras à venda noMercado Central de São Luís

Verduras à venda noMercado Central de São Luís

Gergelim à venda na feira

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CONTINUAÇÃO

ro Alípio de Miranda Ribeiro.A carne do peixe-pedra é delicada e sabo-rosa como a da pescadinha.O prato “que acontece”, conforme expres-são do acadêmico Odylo Costa Filho, nãopode ser comido, entretanto, pela genteda Casa das Minas, durante o mês demaio, por motivos seguramente ligados aoculto dos voduns mina-jejes.O óleo que se extrai das sementes da plan-ta gergelim dá ao peixe frito um sabor quenão se pode obter mesmo com os melho-res azeites de Portugal e Espanha.Produto da indústria doméstica da gentemaranhense, já não é, porém, encontradofacilmente nos mercados de São Luís.A João Cariolla Tierno devo a revelaçãode que, além de quatro ou cinco nomesmais que lhe dão, o gergelim tem o de“alegria” e o de “sésamo” (PEREIRA, 1979,p. 153-154).

Do árabe jurgulan, é natural da Ín-dia, conhecido desde remota antiguida-de, bastante disseminado pelo mundo ecultivado, principalmente, nos países in-tertropicais da Ásia, África e América.Provavelmente foi trazida da África pe-los portugueses. Sesamum orientale, suassementes pequenas, ovóides e achatadas,brancas, amareladas ou escuras, segun-do as variedades, comestíveis e medici-nais, são usadas torradas, em pães, docese salgados, e é o gergelim, que os árabeschama Simsim e os africanos Beni, quedá o sabor característico ao cuxá.

Mandioca: Daniel de La Touche, fun-dador da cidade de São Luís, encontrou,provou e aprovou a mandioca e a farinhade pau dos índios Tupinambás. E Jerôni-mo de Albuquerque, que o expulsou doMaranhão, escreveu: “Somos homens queum punhado de farinha e um pedaço decobra, quando as há, nos sustentam.” D.José de Souza Coutinho, em 1797, reite-rava ao governador D. Antônio Fernandode Noronha a recomendação do Rei paraque fosse facilitada e incentivada a cul-tura da mandioca, cuja farinha era jáconhecida e apreciada em Portugal.

Planta leitosa da família das Eufor-biáceas, originária da América do Sul(Manihot utilíssima Pohl), cujas grossasraízes tuberosas, ricas em amido, têmemprego na alimentação. Há duas espé-cies de mandioca: mandioca amarga emandioca doce (macaxeira, aipim). Câ-mara Cascudo, em História da Alimen-tação no Brasil, denomina-a “A Rainhado Brasil”, tão importante seu papel naalimentação do indígena, do portuguêscolonizador e do escravo africano, “ali-mento regular, obrigatório, indispensá-vel aos nativos e europeus recém-vindos,

pão da terra em sua legitimidade funci-onal”, unanimemente louvada por cro-nistas e visitantes, de Nóbrega e Anchi-eta, de Abbeville e Devreux a Marcgra-ve a Thevet. Nem seria por outro motivoque o botânico austríaco João EmanuelPohl classificou-a como utilíssima.

Entre a farinha e o beiju desenvol-veu-se o que se poderia chamar de com-plexo da mandioca, pois se a primeirarepresenta o pão da terra, complemen-to indispensável de todas as comidas, ooutro fornece a matéria prima das bebi-das, além de garantir a sobrevivência naslongas jornadas de guerra, ou servir deoferenda generosa aos amigos de paz.Outras modalidades, porém, apresentaa mandioca, como os mingaus e pirões,que seria desnecessário expor aqui, porenfadonho. Repitamos, apenas, paraencerrar o assunto, o ditado popular:Com mulher e pirão, faz-se a função.

Camarão: Pequeno animal artrópo-de, crustáceo da ordem dos Decápodes,marinhos ou de água doce, da subordemdos Macrurus e da família dos Peneíde-os. Os camarões de água salgada brasi-leiros são de três espécies: camarão-rosa,camarão-branco e camarão-de-areia, oude sete-barbas. Os primeiros atingem ocomprimento de até 20 centímetros, sen-do os últimos bem menores, de apenas 7ou 8 cm. Um dos pescados de maiorimportância comercial, consumido emgrandes quantidades, frescos e salpresos,

secos e enlatados. São muito procuradosos camarões do Maranhão. Entre nós sãoclassificados, conforme o tamanho, emcamarão-lagosta, camarão comum e ca-marão-piticaia, o menor. O camarãoconstitui, com o peixe frito e o cuxá, otrio de ouro da culinária maranhense.

O arroz completa o prato típico – oarroz de cuxá. Do árabe Ar-ruzz, é grãoproduzido pela gramínea de igual nome,nativa da África, Índia e Indochina. NaAmérica havia o arroz vermelho, em es-tado silvestre, e no Maranhão, esse ar-roz vermelho, ou de Veneza, segundo Je-rônimo Viveiros, alimentício e saboroso,embora miúdo e quebradiço, foi de usocorrente por mais de um século. No en-tanto, não agradou ao europeu, substitu-ído, enfim, pelo arroz branco, tambémchamado arroz de Carolina. Tão apreci-ado era o arroz vermelho que foi precisoproibir seu cultivo por meio de pregãopúblico, ameaçando de cadeia, multa etrabalhos os que ousassem desobedecer.

É planta de 1 m de altura, ereta, robusta,folhas de ápice prolongado em ponta, eflores em espiguetas muito compridas; ofruto é cariopse coriáceo. Espécie de ex-traordinária importância econômica, vemsendo cultivada há cerca de 5.000 anos.No Brasil sua cultura foi iniciada em me-ados do século XVII, em Iguape, São Pau-lo, e no séc. XVIII no Maranhão, registraa Enciclopédia Mérito.

Feitas estas considerações, passemosao cuxá. Para Câmara Cascudo é acepi-pe tradicional do Maranhão e a quem oilustre folclorista Domingos Vieira Filhoforneceu uma receita para o preparo doprato. Jacques Raimundo, em O Ele-mento Afro-negro na Língua Portugue-sa, assevera ser cuxá vocábulo da GuinéSuperior. Matthias Röring Assunçãoacha que o cuxá é

um possível legado mandinga, como su-geriu Antônio Carreira. Kutxá designa,nesse idioma, o quiabo-de-Angola ou vi-nagreira (Hibiscus sabdariffa, Lin.), cujasfolhas verdes são usadas para um prato“de sabor acidulado, muito apreciado porquase todos os povos da Guiné. (Carreira,As Companhias Pombalinas).

COMO SE FAZ:A receita que, a seguir oferecemos, é

de uma emérita quituteira, D. Aniceta,de saudosa memória, tal qual nos trans-mitiu à viva voz:

6 maços de vinagreira½ kg de camarão seco (descascado)¼ kg de farinha seca¼ kg de gergelim2 dentes de alhoDetalhes do camarão seco

Venda da camarão seco

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5Boletim 38 / agosto 2007 5

CONTINUAÇÃO

cebola, cheiro verde, pimenta de cheiro,sal a gosto.Torra-se o gergelim e soca-se no pilão, jun-tamente com o camarão, a farinha (se forgrossa deve ser peneirada), a cebola, ocheiro verde, a pimenta e o alho.Cozinha-se a vinagreira (sem os talos) se-paradamente e bate-se bem, depois deescorrer a água.Com a mistura pilada faz-se um angu, nofogo, e junta-se, por último, a vinagreira.Servir com arroz branco à maranhense,peixe-frito, torta (fritada) de camarão...

Do arroz à maranhense, DomingosPerdigão dá a receita:

Estando a água a ferver, limpa-se o arrozpilado, tirando-lhe todas as impurezas;lava-se bem em água limpa e deita-se napanela a ferver, onde se conserva ferven-do por mais cinco minutos, depois do quese escoa a água; deixando uma pequenaquantidade dela, põe-se novamente aolume brando, cobrindo bem a panela edeixa-se cozer até ficar seco e próprio paraservir. Este arroz, também conhecido comoarroz branco, serve para se comer com qual-quer outro alimento, para se temperar comcaldo de legumes cozidos, ou com mantei-ga, constituindo os saborosos pratos – ar-roz de legumes e arroz de manteiga. NoMaranhão, o arroz usa-se em todas as re-feições. É o pão do maranhense.

Este cuxá, prato típico do Maranhãopara o qual pleiteamos o registro comobem cultural imaterial, porque não setrata tão somente de um acepipe comumda culinária maranhense, é nosso retra-to, nossa cara, nossa identidade, resultantedo caldeamento indígena, português eafricano nesta parte do Brasil, entre aAmazônia e o Nordeste, participante deambos e deles tão diferente, “um corposocial e etnicamente à parte”, circunstân-cia que se reflete em sua cozinha, nemnordestina, nem amazônica, o cuxá –único no Brasil - carro-chefe de sua opu-lenta culinária, e que já figurava, em 1889,no Dicionário de Vocábulos Brasileiros do

Visconde de Beaupaire Rohan, com mi-nuciosa descrição.

Alvo de pesquisas de antropólogos esociólogos, a exemplo de Câmara Cas-cudo, Nunes Pereira, Mathias RöhrigAssunção e muitos outros; o cuxá carre-ga uma tradição secular afro-brasileira,e tem sido louvado em prosa e verso, hajavista o extenso e apaixonado poema quelhe dedicou Arthur Azevedo, e no qual,do Rio de Janeiro, reivindicava, há maisde século, a naturalidade maranhensedo cuxá, e do qual transcrevemos o se-guinte trecho6 :

(...)Porque –deixa que t’o diga –Esse prato maranhenseAo Maranhão só pertenceE n’outra parte não há.Aqui fazem-no bem feito(Negá-lo não há quem ouse);Mas... falta-lhe “quelque chose”;Não é arroz de cuxá.

Pois aqui há bom quiaboE bem bom camarão seco;Há vinagreira sem peco;Bom gergelim também há!E o prato aqui preparado,Do nosso mal se aproxima!Acaso também o climaInflui no arroz de cuxá?

Ora, qual clima! qual nada!É o mesmo quitute, creio;Falta-lhe apenas o meio;Nos seus domínios não está.No Maranhão preparadoNaturalmente aconteceQue sendo o mesmo, pareceSer outro arroz de cuxá.

Eu, quando o como, revejoEntre a cheirosa fumaça,Passado que outra vez passaCom que eu não contava já;Portanto não me perguntes...Não me perguntes, amigo,Se eu quero amanhã, contigo,Comer arroz de cuxá.(...)

Portanto, o cuxá não é apenas umprato exótico da cozinha do Maranhão,mas tem um significado que extrapolasua importância culinária para tornar-se quase um estado de espírito, um bra-são de cidadania da gente do Maranhão.

E por estar, no presente, sofrendocrescente descaracterização, mesmo porparte dos restaurantes que se dizem tí-picos, urge a providência do registro queora pleiteamos. Prato trabalhoso, requer,dos que se propõem a confeccioná-lo,cuidado e paciência, amor e dedicação,para fazê-lo nos moldes tradicionais aque deve obedecer. É preciso usar os in-gredientes com maestria, pois o menordeslize pode por a perder o prato.“Quando dá certo, é de se comer de joe-lhos”, diz o Dr. Fernando Mascarenhas,médico, em seu site na Internet.

Confiantes, pois amparados em todasas razões expostas, esperamos o atendi-mento deste nosso empenho.

Refeição de peixe frito com cuxá

Detalhe do prato de cuxá

6 Arthur Azevedo apud ORICO, Osvaldo. Cozinha amazônica. Belém: Universidade do Pará, 1972, p. 163-165.

BIBLIOGRAFIA

ASSUNÇÃO, Matthias Röring. Maranhão, terra de mandinga. In: AZEVEDO, Izaurina (Org.).Olhar, memória e reflexões sobre a gente do Maranhão. São Luís: CMF, 2003.CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,1949.————. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1983.DUAILIBE, Admée. A história da arte culinária. São Luís: s/e, 2004.————. Receitas deliciosas. São Luís: s/e e s/d.INSTITUTO HOUAISS. Dicionário houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001.ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA MÉRITO. São Paulo: Rio de Janeiro: Ed.Mérito, 1958.LIMA, Zelinda Machado de Castro e. Pecados da gula: comeres e beberes das gentes doMaranhão. São Luís: SBPC, 1998.ORICO, Osvaldo. Cozinha amazônica. Belém: Universidade do Pará, 1972.PEREIRA, Manoel Nunes. A Casa das Minas: culto dos voduns jeje no Maranhão. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 1979.SOUTO MAIOR. Alimentação e folclore. Rio de Janeiro: FUNARTE/ Instituto do Folclore,1988.

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O cuxá na cultura maranhense e seuregistro como patrimônio cultural brasileiro7

Mundicarmo Ferretti8

7 Baseado em justificativa antropológica elaborada em 11/2005 para o pedido de registro co cuxá como bem cultural brasileiro, apresentado ao IPHAN, pela CMF.8 Dra. em Antropologia; membro da CMF.9 Informação da pesquisadora Zelinda Lima.

Aculinária é um dos aspectos maisresistentes da cultura de um povo.

Enraizada nas condições naturais e elabora-da por gerações e gerações num processoonde criação, tradição e adaptação andamjuntos, ela tem sido reproduzida por popu-lações diversas e em regiões onde, às vezes,os seus ingredientes básicos não são conhe-cidos ou não podem ser produzidos. Umexemplo desse processo de difusão e adapta-ção é a denominada comida baiana, de ma-triz africana (acarajé, caruru, vatapá etc), in-timamente associada ao culto a divindadesafricanas, que, há muito, entrou no cotidia-no dos brasileiros e tornou-se nacional.

Em sociedades pluriculturais ou marca-das por grandes desigualdades sócio-econô-micas uma comida típica de um segmentopopulacional pode vir a ser apropriada poroutro. Assim, iguarias de populações subal-ternas podem chegar à mesa das elites e vice-versa. No Brasil é bem conhecido o caso da“ascensão social” da feijoada que, há muito,deixou de ser “comida de pobre”, produzidacom feijão e partes da carne de porco nãoapreciada pelos ricos (rabo, orelha, pé etc.)para, após passar por um processo de enri-quecimento e sofisticação, com a introdu-ção de ingredientes caros e acompanhamen-tos novos, tornar-se um prato apreciado pe-las elites e classes sociais altas e apresentadocomo “cartão postal” do Brasil.

O cuxá, comida típica maranhense, é umangu de farinha de mandioca (produto indí-gena) com folhas de vinagreira (Hibiscus Sa-bdariffa L.) - também conhecida como aze-dinha, quiabo-de-Angola e denominada ku-txá na África, entre os mandinga (ASSUN-ÇÃO, 2003, p. 63) -, temperado com gerge-lim torrado (muito usado por negros islami-zados – mandingas, auças), camarão seco (de-nominado poti no Maranhão do séculoXVII (LISBOA, 1998, p. 24), pimenta decheiro, sal, cheiro verde, alho e cebola (essesúltimos difundidos no Brasil pelos portu-gueses).

Recebeu influência das culinárias indí-gena e portuguesa, mas surgiu com a formaque tem hoje na cozinha de populações ne-gras de baixa renda (ver NUNES PEREIRA,1979, p. 42, 153), mas há muito tempo tor-nou-se tradicional no Maranhão, entrandona mesa das famílias mais ricas, como regis-trou Astolfo Serra (1965, p. 187), e hoje fazparte do menu de restaurantes turísticos deSão Luís, como vem sendo lembrado porZelinda Lima (LIMA, 1998).

Até pelo menos meados do século XX ocuxá era vendido com tainha frita e arrozbranco, principalmente por mulheres ne-gras, nas portas de suas casas ou em tabulei-ros armados nas praças e locais onde circula-vam muitas pessoas (OLIVEIRA, 1997,p.174). Fala-se que era também vendido pormeninos (“moleques”) e por homens adul-tos, que percorriam as ruas de São Luís car-regando sobre a cabeça panelas com aquelacomida e seus acompanhamentos básicos:peixe frito (tainha e depois serra, peixe pe-dra, pescada) e arroz branco, e apregoando“arroz de cuxá”.

Preparado com produtos abundantes naregião - farinha de mandioca, socada no pi-lão com gergelim torrado, camarão seco, pi-menta de cheiro e folhas de vinagreira afer-ventadas e batidas - o cuxá era e continuasendo muito apreciado pelos maranhensese adequado ao poder aquisitivo da maioriada população de São Luís e de outros muni-cípios. Alguns cuxás, como os que tinhamfama de serem muito asseados ou prepara-dos por detentoras de segredos culináriosnunca repassados, eram mais procurados.Uns levavam também quiabo, que era bati-do junto com a vinagreira; outros eram tem-perados com alho, cebola e cheiro verde; emuitos passaram a ter mais um acompanha-mento, a torta de camarão (uma espécie defritada), hoje quase obrigatório. Quandodestinado à alimentação cotidiana de famí-lias de baixa renda, o cuxá pode ter umapreparação mais rápida e ser feito com in-gredientes. Alguns são feitos socando nopilão todos os ingredientes de uma só vez;outros, tal como também acontece em SãoLuís com o vatapá, aproveitando as cabe-ças e cascas de camarão seco utilizado emoutros pratos ou substituindo-o por umaporção de farinha (ou farelo) de camarão,vendida nos mercados, preparada com o queé desprezado, quando ele é descascado paraser vendido.

Com o crescimento urbano e a maior di-versificação da população de São Luís, o cuxádeixou de ser vendido em tabuleiros nas por-tas das casas, nas praças e nas ruas, a não serna temporada junina, mas continuou a serconsumido pelas famílias maranhenses, prin-cipalmente na Semana Santa, e a ser prepa-rado em restaurantes especializados em co-midas típicas, muito procurados por turis-tas. Tornaram-se também conhecidos emSão Luís alguns pontos de venda de “fari-nha de cuxá” (com camarão seco e gergelim),

como a casa de dona Constância e de SeuAugusto Aranha, na rua do Coqueiro, o quetornou sua preparação mais rápida e fácil, jáque a vinagreira é encontrada em muitosquintais e, em São Luís, pode ser compradaaté em supermercados. Adicionando-se àfarinha de cuxá água, folhas de vinagreiraaferventadas e batidas no liquidificador, al-guns temperos e levando-se essa mistura aofogo até engrossar, qualquer um pode prepa-rar, em pouco tempo, um bom cuxá.

Hoje o cuxá é indispensável nas barracasde comida típica da temporada junina, dasfeiras dos estados e os maranhenses que re-sidem fora, quando voltam à terra natal, sãorecepcionados por parentes e amigos comum cuxá com peixe frito, torta (fritada) decamarão e arroz branco. É curioso que forado Maranhão e das reuniões de maranhen-ses não se costuma comer cuxá, nem mesmono Piauí e no Pará - estados vizinhos, daíporque ele se transformou em símbolo dacultura maranhense e em instrumento deafirmação da identidade dos nascidos na-quele estado.

Embora existam nas culinárias africanae brasileira várias comidas que lembram ocuxá do Maranhão nos seus ingredientes ouna sua preparação, como: a matapa dos tson-ga, do Sul de Moçambique - preparada comfolha de mandioca e amendoim cru socadosno pilão com camarão seco, cozida com pou-ca água, e servida com pirão de farinha demilho, que substituiu o sorgo após a coloni-zação9 ; o efó (guisado de folhas de língua-de-vaca ou taioba com camarão seco, sal, pi-menta e dendê), típico da Bahia (PESSOADE CASTRO, 2002, p.226); o bobó (de jon-gomo, vinagreira e quiabo), e o esparregado(batido de folhas de vinagreira e jongomescom ovo) da cozinha maranhenses, o cuxátem sua especificidade.

A constatação da presença tradicional docuxá apenas no Maranhão e de sua difusãoatrelada à migração de maranhenses tem le-vado a especulações em relação à sua origeme a da população daquele estado. Conside-rando os seus ingredientes básicos, pode seafirmar que o cuxá é negro, branco e cabo-clo como o povo do maranhense. Mas, le-vando em conta sua vinculação maior à po-pulação negra, tanto no passado como naatualidade, pode se dizer que o cuxá é umaprodução cultural da população afro-brasi-leira do Maranhão, que vem sendo cada vezmais assimilada pela sociedade maranhensemais ampla e já se transformou em símbolo

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7Boletim 38 / agosto 2007 7

CONTINUAÇÃO

daquele estado. O cuxá foi e continua sen-do uma prática cultural enraizada no cotidi-ano maranhense, uma forma de sociabilida-de reiterada em festas e celebrações (Sema-na Santa, temporada junina), e uma práticacoletiva enraizada no cotidiano de grupossociais, especialmente da população negra,construída nos processos de sobrevivência,através de apropriação e transformação dosrecursos naturais e de criação e adaptaçãode tradições culturais.

Por reconhecê-lo como um saber herda-do de antepassados que marca a identidadecultural dos maranhenses, que deve ser pre-servado e que merece ser reconhecido comoelemento formador da diversidade culturalbrasileira, a Comissão Maranhense de Fol-clore considera importante o seu registropelo IPHAN como bem cultural imaterial.

REFERÊNCIAS

ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig. Mara-nhão, terra de mandinga. In: NUNES,Izaurina de A. Olhar, memória e refle-xões sobre a gente do Maranhão. SãoLuís: CMF, 2003, p. 57-63.CUXÁ – prato típico tradicional doMaranhão. Vídeo Documentário. Dire-ção Cícero Silva. São Luís: CMF, 2006.16´.O CUXÁ. Vídeo Documentário. SãoLuís: SESC-MA, 2007. Play-Video Pro-duções.LIMA, Zelinda M. de Castro e. Pecadosda gula: comeres e beberes das gentes doMaranhão. 2 v., SÃO Luís: CBPC, 1998.MEDEIROS, Augusto Aranha. Depoi-mento. In: Memória de Velhos, V. 2. De-poimentos – uma contribuição à memó-ria oral da cultura popular maranhense.São Luís: SECMA, 1997 (p. 177-178).OLIVEIRA, Maria Lúcia de. Depoi-mento. In: Memória de Velhos, V. 1. De-poimentos – uma contribuição à memó-ria oral da cultura popular maranhense.São Luís: SECMA, 1997 (p. 165).LISBOA, Frei Cristóvão de. Históriados animais e árvores do Maranhão. 3ªed., São Luís: ALUMAR, 1998. (Docu-mentos maranhenses-2).NUNES PEREIRA, Manoel. A Casa dasMinas: contribuição ao estudo das so-brevivências do culto dos voduns doPanteão daomeano no estado do Mara-nhão. 2ª ed., Petrópolis: Vozes, 1979.PESSOA DE CASTRO, Yeda. Falaresafricanos na Bahia: um vocabulárioafro-brasileiro. Rio de Janeiro: AcademiaBrasileira de Letras/ TOPBOOKS,2001.SERRA, Astolfo. Guia Histórico e Sen-timental de São Luís do Maranhão. Riode Janeiro: Civilizações Brasileiras, 1965.

Vendido na porta toda noiteNa minha casa, que me criei se vendia (...)

A velha fazia pra vender o peixe frito com,arroz de cuxá na panela de barro. Botava naporta, tinha um cofo, fazia assim como umninho, sentava a panela ali dentro (...) Cadaqual fazia seu ponto. Ainda faziam isso: agar-rava um pau, fazia um quadrado e botava umpapel encarnado e colocava na porta. Aí jásabia que ali tinha arroz de cuxá com peixefrito (...) todas as noites (...). E tinham váriamulheres que vendiam peixe (...) alí na Praiado Caju (...) quem eu encontrei aqui no Mara-nhão vendendo peixe era mulher, não era ho-mem. Os pescadores traziam e as mulheresvendiam... (Lúcia Oliveira/C. Nagô, 102 anos- São Luís; Memória de velhos, v. I, p.174)

Vendido na rua por pretas velhasTinha as velhas doceiras, eram umas pre-

tas que vendiam doces nas esquinas, a noite(...). Tinha as vendedeiras de mocororó (...) asde peixe (...). Teve também a época que ven-dia peixe frito e arroz de cuxá nas portas emuitas famílias deixavam de fazer o jantar paramandar comprar (...). O peixe frito, o que indi-cava, era uma lanterna com um papel verme-lho, era uma lanterna vermelha, aí sabiam, alitem peixe frito. Agora o arroz de cuxá, entãoera gritado. O grito era esse, eu gritei muitasvezes: "Arroz de cuxá! Chega freguês, ta quen-tinho!" Aí vinham, traziam os pratos e a gentebotava (Augusto Aranha, nasc. 1907 - SãoLuís; Memória de velhos, v. II, p.177-178).

Vinagreira também é cuxáCuxá em algumas regiões do Maranhão é

a erva (vinagreira); cuxá é também o batidodas folhas junto com quiabo ou jongome. Cuxáem São Luís é um prato, uma espécie de angue que tem (...) farinha de mandioca, camarão,gergelim torrado e socado (...). A minha avó, queera filha de escrava, já fazia. (...) Nós quandonascemos já encontramos a tradição de se co-mer cuxá na nossa família. (...). Se fazia durantea Semana Santa pra comer com peixe frito e aminha mãe (de 1920) conta que passava à noiteum senhor chamado Dijalma Grande - era umnegro alto - com taboleiro, vendendo, e ele grita-va "tem arroz de cuxá". (..) Nesse taboleiro traziaum caldeirão com arroz, um caldeirão com cuxá,e tainha frita. E ele, pra chamar os fregueses,apregoava: "tem arroz de cuxá e tainha frita".(Mundinha Araújo - São Luís - Vídeo CMF:Cuxá, prato típico tradicional do Maranhão).

Cuxá na Madre DeusDona Maria (de 1927) conta que perdeu o

pai aos 10 anos e a mãe dela, que cozinhavamuito bem e que era acostumada a comer cuxáem Guimarães, onde nasceu, como alternativade sobrevivência, passou um tempo fazendocuxá para vender na Madre Deus (1937?), eque ela (dona Maria), como já era alfabetizada,tomava conta do dinheiro. Conta também queem Codó, onde morou depois de casada, cuxáera o que ela conhecia como bobó - batido devinagreira, jongomo etc. (Jacira - São Luís).

Cuxá para criançaMinha mãe só ia pra roça levando todas as

crianças e, às vezes, quando voltava, dizia "es-

ANEXO: Cuxá - depoimentospera ai criança que eu vou fazer depressinhaum cuxázinho pra nós". Pegava no quintalumas folhas de vinagreira, torrava o gergelim,socava no pilão com farinha e camarão, tudojunto. Depois botava no fogo com água atéficar como um angú... Ficava muito gostoso.Não botava pimenta porque era para criança.(Domingas, nasc. em 1958 - Bequimão).

Arroz de cuxá - cuxá com arrozO arroz de cuxá que era vendido por ne-

gros na porta de casas e pelas ruas de SãoLuís, nas primeiras décadas do século XX,não era um risoto, como o que é servido atual-mente em alguns restaurantes, mas uma co-mida servida com arroz e comida com tainhafrita. Nos anos 70, o restaurante "Frango deOuro" fazia um arroz de vinagreira com cama-rão muito gostoso, denominado "arroz de bati-puru". Não sei se já era conhecido em algumaregião do estado. Era um acompanhamento,como o "arroz de cuxá" que é servido hoje emvários restaurantes (Mundicarmo - São Luís).

Farinha de cuxáEu e minha mãe tivemos a idéia de fazer

farinha de cuxá para vender já na década de1990, para facilitar a preparação e perpetuaresse prato da culinária maranhense, porqueno cuxá é o mais difícil e trabalhoso. Botamosuma placa na porta, copiamos a receita paradistribuir aos interessados e as pessoas come-çaram a comprar os pacotes de 250gr, 500gr...Tinha gente que comprava sempre para man-dar para maranhenses que moravam fora doestado, como Sonia Duailibe, em Brasília... NaQuaresma a procura aumentava muito. Nun-ca vendemos para restaurante. A nossa fari-nha de Cuxá é feita no pilão com: farinha secamimosa, camarão seco, gergelim torrado. De-pois é só juntar um batido de folhas de vina-greira do talo roxo com parte da água em quefoi cozida, e levar ao fogo para engrossar. Nãoprecisava botar essa farinha no freezer, eladeve durar pelo menos um mês. Nunca fiqueimuito tempo com ela porque sai muito. Umavez fizemos um panelão e saiu tudo... EmBacabal cuxá é o nome da vinagreira. As fo-lhas mais tenras são as melhores. (NizethMedeiros - São Luís, 2007).

Comida de todo diaQuando cheguei aqui em São Luís ate

estranhei. Em Codó todo quintal tem vina-greira e cuxá é comida de todo dia... (PauloJeferson - Codó, 2007).

Pedido de registro do CuxáEm São Luís não existe um maranhese

que não conheça ou que não tenha apreciadoum cuxá. Nesse sentido, a Comissão mara-nhense de Folclore fez um pedido de registro(do cuxá) como patrimônio imaterial nacionalprincipalmente objetivando dois motivos: pri-meiro para que o cuxá, que é a cara do mara-nhense, seja conhecido nacionalmente comouma identidade do nosso estado; o segundomotivo é o processo de descaracterização quealguns restaurantes típicos da cidade tem fei-to na manipulação da confecção desse alimen-to tão maranhense (Margateth Figueiredo -São Luís; Vídeo SESC-MA: O Cuxá,2007).

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A CULTURA LOCAL ATRAVÉS DO ARTESANATOCULTURA POPULAR OU FOLCLORE: ARTE OU ARTESANATO?

Francisca Ester de Sá Marques10

ARTE OU ARTESANATO?

Pensar o artesanato como uma produção ar-tística significa pensá-lo a partir de matrizes te-óricas diferentes das tradicionais que, ao longodos séculos, separaram a arte do artesanatocomo dois campos diferentes do saber: um for-mal e outro informal. Deste modo, a ultrapassa-gem teórica que proponho permite repor o diá-logo a partir de critérios mínimos que possamresponder ao questionamento principal destedebate e que interessa a todos os presentes: oartesanato é arte? Se é arte, de que ela é com-posta? Como se caracteriza? O que a diferenciadas outras artes?

Podemos inicialmente começar por dizerque o artesanato é uma arte utilitária, com umcaráter funcional ritualístico ou não, um saber-fazer que, através da elaboração meticulosa-mente repetida, pretende chegar à perfeiçãoestética manual da forma e do conteúdo. Porisso, o artesão é um criador coletivo que somaao seu processo de criação, tanto a sua inspira-ção artística, fonte de sua capacidade de per-cepção do mundo, quanto à experiência cotidi-ana adquirida através da tradição, isto é, do sa-ber passado através dos tempos e sempre (re)atualizado pela prática do fazer repetido.

Sendo assim, o artesão vale pela sua eficá-cia no trabalho, vale pela dedicação com queelabora sempre e sempre a sua obra, numa re-petição metódica cuja criação permite não so-mente o aprofundamento da técnica, mas o seuaprimoramento até chegar ao que chamamosde savoir-faire específico, distinto. Por sua vez,o artista vale pelo seu poder de renovação einvenção, já que trabalha o tempo todo sob apressão da genialidade e da criatividade, emfunção da exigência de uma estética simbólicado novo, do inédito, do autêntico, do único eindivisível capaz de ultrapassar tempos, espa-ços, escolas, tendências e modelos.

Neste caso, o artesão tem mais liberdade noseu processo de criação porque trabalha ao mes-mo tempo com a experimentação e com a expe-riência, isto é, com o mesmo e com o diferente,capaz de suportar portanto todas as possibili-dades criativas, enquanto o artista trabalha como bom senso, o racional a partir de uma linha deraciocínio que pressupõe uma leitura das con-dições de produção e do mercado. Nesta mes-ma lógica, o artesão trabalha com as regras dosenso comum, com o que é plausível, verossí-mil, ou seja, com uma espécie de virtude co-mum que junta a todos no mesmo gosto e namesma estética para além e para aquém do mer-cado. Ao contrário, o artista elabora a sua obra apartir de uma estética própria e de um gostoindividual que leva em consideração o merca-

do cultural e a leitura que o autor quer passarde sua obra.

Diferentemente da produção industrial ca-racterizada pela estandardização, serialização,desidentificação e desumanização, a produçãoartesanal é ainda hoje uma criação pessoal, ca-racterizada pela repetição elaborada do mesmoproduto que funciona como fonte de inspira-ção contínua e incessante. Deste ponto de vis-ta, enquanto a reprodução industrial desclassi-fica o produto por retirar-lhe a aura que o confi-gura como único e específico dentro de umuniverso maior de objetos tornando-o sem me-mória, a reprodução artesanal garante a auten-ticidade do objeto desde que a cópia seja umareelaboração permanente do original com vistaà sua perfeição.

Isto significa que a criação artesanal envol-ve integralmente as duas dimensões da cultura(a material e a simbólica) porque a sua estéticafuncionalista reflete de algum modo o processoartístico que a gerou e o caráter devocional quea sustentou como fonte de inspiração. Assim,por exemplo, uma imagem de São Francisco deAssis ou um pandeirão do boi de zabumba jun-tam, no mesmo olhar, o uso e a devoção, isto é,a função e a fruição. Nestes dois objetos, o sa-ber do artista se confunde com o fazer do arte-são e, deste modo, por mais que o pandeirãoseja semelhante a tantos outros modelos quecirculam na cultura, sempre há algum vestígioda criação única e específica que o gerou, sejapela curtição diferenciada do couro, seja pelaemoção do artesão no momento da produção,seja pelo processo com que esse objeto chegaao público.

O artesão vale pela sua capacidade de pro-duzir não somente o objeto, mas as técnicasque permitem a produção, num processo per-manente de superação de dificuldades. A cadavez que um objeto é reproduzido artesanalmen-te todo o processo de criação recomeça numciclo interminável de vida e de morte que exigeum permanente esquecimento/naturalizaçãodo saber-fazer, mas, ao mesmo tempo, uma aten-ção constante para que a técnica e os proble-mas que a envolvem sejam solucionados paramelhorar as condições de trabalho (produção,comercialização e circulação).

Isto quer dizer que o processo de criação étambém um processo de aperfeiçoamento, cujoplanejamento depende das circunstâncias domomento que podem ser sazonais ou não, doscustos de produção, da sua função ritualística,dos materiais utilizados, da capacidade de re-cepção dos objetos na cultura e também da ma-leabilidade com que esses objetos são refuncio-nalizados na vida cotidiana. Portanto, por maisque o processo de criação artesanal seja indivi-

dual, ele é sempre tomado pelo coletivo em fun-ção das significações e ressignificações que sãoestabelecidas pela dinâmica da cultura.

Nesta transmutação produtiva, o que eraautêntico – inspiração, duração material e tes-temunho histórico do objeto-, esforço concen-trado de um momento único e intransferível,torna-se vulgar pela funcionalização e pelo ano-nimato, torna-se mais um no consumo da expe-riência genérica da vida. É isso que torna a re-petição meticulosa do artesanato, ao mesmotempo, a sua morte momentânea e a sua vidarecomeçada pelo esforço renovado de recupe-ração da aura perdida ou mesmo do afeto des-prendido, já que segundo a artesã Marliete Ro-drigues da Silva do Alto do Mouro (PE), área deprodução do Mestre Vitalino:

“No começo, inclusive, quando eu fazia umacena, eu não conseguia vender, porque ficavacom pena. Não queria entregar para as pesso-as que compravam, porque eu tenho muitocarinho pelas coisas que faço e fico com penade ver meu trabalho indo embora. Mas istotambém tem um lado bom, que é ver nossapeça sendo levada e guardada por pessoas quetambém gostam das coisas que a gente faz.Por isto, também não tenho interesse em fa-zer as peças em grande quantidade para aslojas, porque minha produção é toda feita comamor para ser conservada”.

É nesta busca incessante entre o mesmo e odiferente que o artesanato mantém-se no mun-do criativo do folclore de onde retira a sua pere-nidade, credibilidade e sustentação e onde senutre de inspiração sagrada e, no mundo dacultura popular, por onde circula como parte deum processo mais amplo de trocas simbólicascom as outras áreas artísticas, com outros obje-tos que fazem parte do mundo da cultura. Como folclore, o artesanato sustenta uma relação decontinuidade da tradição no tempo pretérito/presente, gerando através da transmissão doconhecimento artesanal uma memória lúdica,permanente, uma espécie de fio de Ariadne quemantém viva a história dos seus produtores edos seus objetos. Com a cultura popular, o arte-sanato legitima o seu papel de produtor, a partirda lógica de consumo e de circulação de obje-tos no mundo globalizado.

Com o folclore, o artesanato pereniza-secomo fonte permanente de conhecimento e ins-piração. Com a cultura popular, amplia-se parafazer-se visível, volúvel, mutável e circunstan-cial. Sendo arte e técnica ao mesmo tempo, ul-trapassa antigas rivalidades com outros conhe-cimentos e mantêm-se vivo e cada dia mais di-nâmico como parte do patrimônio material dahumanidade.

10 Professora da UFMA: Graduada e pós-graduada em Comunicação; diretora do SESC-MA; membro da CMF.

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9Boletim 38 / agosto 2007 9

A terminologia patrimônio, derivadado latim patrimonium, esteve asso-

ciada primordialmente à herança familiar,ao colecionamento e à propriedade de bensmateriais. Decorre dessa concepção a deno-minação de patrimônio histórico que englo-bava prédios, museus, centros culturais, edemais artefatos materiais depositários daancestralidade e da essencialidade dos gru-pos sociais e, portanto, suscetíveis de salva-guarda. Conforme Camargo (2002, p. 95),patrimônio no conceito clássico designa“bens culturais ou monumentos de excepci-onal valor histórico e artístico nacional (...)traçado urbano, Centros Históricos, cida-des Históricas e monumentos isolados”.

Durante o processo de formação dos Es-tados Nacionais, essa denominação confun-diu-se com a própria noção de identidadenacional, sendo o patrimônio histórico oreferencial para a compreensão dos fatoshistóricos e sociais, e considerado portadorde uma memória e de uma identidade cole-tivas, adquirindo, por conseguinte, uma in-tensa conotação política.

Entretanto, as asseverações relativas aopatrimônio histórico edificado foram revi-sitadas em meados dos séculos XIX e XX,sendo substituídas por uma noção maisabrangente – a de Patrimônio Cultural. Estapassa a contemplar, além dos artefatos mate-riais, o meio ambiental e os elementos origi-nários da cultura intangível ou imaterial quecompunham e particularizam as diferentessociedades. Nesse contexto, torna-se interes-sante explicitar a noção contemporânea dePatrimônio Cultural, dada por Pelegrini Fi-lho (1997, p.94).

Modernamente se compreende por patrimô-nio cultural todo e qualquer artefato humanoque, tendo um forte componente simbólico,seja de algum modo representativo da coleti-vidade, da região, da época específica, permi-tindo melhor compreender-se o processo his-tórico.

Originário das construções sociais e sím-bolo da historicidade construída permanen-temente pelos diferentes grupos sociais, opatrimônio arquitetônico e urbanísticoconstitui-se testemunho ou indício das ex-periências coletivas, portanto, evocativo dasmemórias individual e coletiva; no que tan-ge a construção de elementos identitáriosentre os membros de uma determinada rea-lidade social, os artefatos materiais aludemàs reminiscências que conferem aos grupos

Karoliny Diniz Carvalho11

sociais o sentimento de pertença a uma so-ciedade, por conseguinte, de territorializa-ção.

Remata-se que o Patrimônio Cultural,evocativo das memórias coletivas, constitui-se ainda símbolo da historicidade constituí-da e reconstruída permanentemente pelosgrupos sociais - face à aceleração do tempohistórico e às vicissitudes humanas - e daidentidade coletivas, posto que memória eidentidade são esferas que se co-determiname se engendram reciprocamente. Nas pala-vras de Le Goff (1996, p. 476, grifo do au-tor).

a memória é um elemento essencial do que secostuma chamar identidade, individual oucoletiva, cuja busca é uma das atividades fun-damentais dos indivíduos e das sociedades dehoje, na febre e na angústia.

Pode-se constatar a busca pelo restabele-cimento do equilíbrio identitário, por exem-plo, nas estratégias de restauração e revitali-zação de acervos arquitetônicos - presentesnos núcleos urbanos iniciais de diversas ci-dades históricas. Seu objetivo consiste noresgate e na salvaguarda de um passado his-tórico instituído e impresso sob o signo daautenticidade. Para Baudrillard (1993), oobjeto antigo reveste-se de uma aura queremete aos indivíduos o valor da transcen-dência, nesse caso, os monumentos são apre-endidos como portadores de uma ancestra-lidade, e das origens míticas dos preceden-tes. Daí advém o apelo adjunto que o Patri-mônio Cultural exerce, enquanto esfera to-talizadora e reveladora deste passado.

As cidades cuja evolução social urbana ecultural apresentam-se materializadas em ar-tefatos possuem um grau elevado de recep-tividade para o Turismo, especificamente odestinado à esfera cultural. O Turismo Cul-tural, ou no dizer de alguns autores, Turis-mo Urbano ou Turismo Histórico, pode serdefinido como sendo a prática de turismocondicionada aos atrativos originários dacultura material - museus, conjuntos arqui-tetônicos, igrejas e demais edificações, eimaterial, resultante das singularidades co-tidianas e dos modos de vida de um povo - asdanças e folguedos populares, os rituais depassagem, as festas sagradas e profanas, a gas-tronomia, dentre outros. O objetivo funda-mental desse Turismo consiste em permitirum intercâmbio cultural e, conseqüente-mente, acrescer o nível de compreensão en-tre membros de diferentes culturas.

TURISMO E PATRIMÔNIO CULTURAL

O arrolamento evidenciado entre Turis-mo e Patrimônio Cultural é por vezes carac-terizado por sua complexidade e ambigüida-de, no que concerne aos efeitos benéficos enefastos decorrentes do processo de visita-ção. As relações decorrentes entre Patrimô-nio Cultural e Turismo podem ser elucidati-vas em termos de resgate da memória coleti-va, de contribuições para a emergência depráticas de restauração e preservação namedida em que, resgatando a memória e iden-tidade coletivas por meio da visitação, essaatividade contribui para o ingresso de par-celas significativas da população local e dosórgãos públicos e privados em iniciativas ca-pazes de garantir a salvaguarda e a integrali-dade dos bens culturais, bem como de suaintegração à vida contemporânea.

Por outro lado, a excessiva comercializa-ção da memória e do patrimônio em prol dacaptação de fluxos turísticos, pode impedirque a comunidade receptora o percebacomo parte integrante do seu convívio soci-al, atribuindo-lhe um caráter eminentemen-te econômico. Nesse caso,

os monumentos e o patrimônio histórico ad-quirem dupla função - obras que propiciamsaber e prazer, postas à disposição de todos;mas também produtos culturais, fabricados,empacotados e distribuídos para serem con-sumidos (CHOAY, 2001, p.211).

Nesse sentido, perde-se a noção de con-tinuidade sócio-cultural dos bens culturais,uma vez que estes são vistos como necessá-rios exclusivamente para a fruição turísticade uma localidade.

Torna-se compreensível que a herança so-cialmente arregimentada serve, em algunscasos, para fins de significação local, e emoutros, consubstancia-se numa estratégia dehomogeneização cultural, no intuito de ga-rantir o revide financeiro e econômico de-correntes da especulação imobiliária, e dagentrificação ou nobilitação dos sítios ur-banos através de sua inclusão no TurismoCultural.

Dessa forma, como símbolo, o patrimôniopermite várias leituras de seu significado: parao poder oficial, representa a história e a me-mória da nação [...] acrescentando-lhe o valorde capital [...] e, para os moradores, significauma memória construída para ser agenciadapara o turismo – eles reconhecem a práticapreservacionista, mas não se julgam alvo dela.(LÓPES, 2001, p.80).

11 Professora da UFMA: Graduada e pós-graduada em Comunicação; diretora do SESC-MA; membro da CMF.

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Boletim 38 / agosto 20071010

CONTINUAÇÃO

O resultado desses artifícios consiste naprópria transgressão aos bens patrimoniais,com a substituição de seu significado histó-rico e cultural, e de um crescente processode cenarização do Patrimônio Cultural. Tra-ta-se, na visão de Motta (2000), de um mode-lo globalizado de intervenção e tratamentodo patrimônio urbano, no qual os projetosurbanísticos seguem a perspectiva de mer-cado de consumo serializado, como nos exem-plificam a ressemantização empreendida nosbairros Pelourinho e Recife Antigo nos es-tados de Bahia e Pernambuco,respectivamente.(BARBOSA, 2001).

O processo de revitalização desses sítiosurbanos para o Turismo ocasionou uma per-da dos laços afetivos e dos referenciais sim-bólicos entre a comunidade local e os ambi-entes requalificados. No que concerne aoimperativo de inserir a comunidade nos me-canismos de gerenciamento dos bens patri-moniais, a desterritorialização cultural inci-de-se nas práticas de preservação impetra-das ao patrimônio edificado pelos residen-tes. O convívio com as novas paisagens ur-banas provoca um estranhamento e o nãoreconhecimento destes espaços enquantoreferenciais de memória e identidade paracomunidade local

INTERPRETANDO MEMÓRIAS NA

CONSTRUÇÃO DOS ATRATIVOS TURÍSTICOS

A partir disso, as ações direcionadas paraa viabilização técnica e financeira do Patri-mônio Cultural, notadamente o que corres-ponde aos monumentos arquitetônicos ouedificados, devem abranger uma nova con-ceptualização dos bens culturais, a qual serefere à necessidade de inseri-los dentro dadinâmica própria de uma sociedade. ParaBarreto (2000), o processo de ressemantiza-ção, atrelado à mecanismos de conservaçãoe revitalização, surge como alternativa viá-vel, pois permite que a comunidade local re-conheça a importância do Patrimônio His-tórico no qual está inserida, e ainda, possibi-lita o seu reaproveitamento para finalidadesturísticas e recreacionais.

Exemplos significativos podem ser elen-cados de regiões que por meio da revitaliza-ção, tornaram-se importantes centros cul-turais, de lazer e entretenimento, reabilita-dos tanto por parte da população local, quan-to por parte da demanda turística. Porém,para que a revitalização de áreas urbanas enaturais se traduza em benefícios para ascomunidades residentes e flutuantes, faz-semister a existência de planos e programasvoltados para a valorização da memória e daidentidade locais, situando-os dentro de umaperspectiva que promova uma nova concep-ção dos bens culturais para a sociedade, além

de propor um crescente interacionismo en-tre estes e os turistas que visitam a região.

Para as cidades preservadas, faz-se necessárioque a comunidade se (re) aproprie de seus va-lores culturais, preparando-os para conforma-rem à oferta turística. O conhecimento dahistória, o entendimento do significado doslugares e a sua correta interpretação contribu-em para a garantia da preservação do lugar (...)Se o turismo sobrepuser-se à cultura local efizer com que esta cultura se descaracterize,ele fará por extinguir a própria razão de sernaquele lugar. (SIMÃO, 2006.p.97).

Partindo-se desse princípio, Murta (1995)salienta que a emergência de um novo dire-cionamento para o uso racional do Patrimô-nio resulta de um processo de interpreta-ção, o qual consiste em “adicionar valor àexperiência de um lugar por meio da provi-são de informações e representações querealcem sua história e suas característicasculturais e ambientais”, ou seja, maximizaras potencialidades do meio-ambiente natu-ral e cultural, através de uma metodologiaque identifique os atrativos e sua importân-cia, estabeleça relações entre os fatos histó-ricos que os circunscrevem e a sociedadeatual, bem como forneça aos visitantes umaexperiência particular, agregando valor às ca-racterísticas e peculiaridades da cultura, me-diante uma proposta didático-pedagógicaque permita o estabelecimento de um vín-culo estreito entre o Patrimônio e os mora-dores, e conseqüentemente entre este e osturistas.

Isso pode se exeqüível através de técnicasdiversificadas, tais como trilhas interpretati-vas naturais e ambientais, site museus, ence-nações com guias locais, e outras tecnologias,na busca pela valorização e diferenciação dosrecursos que compõem a oferta turística lo-cal. Embora recebendo críticas de diversossetores da sociedade civil, no que se refere aocaráter de mercantilização dos fatos históri-cos em prol do Turismo, fenômeno denomi-nado de “industrialização do passado” (URRY,1996), essa iniciativas podem contribuir oresgate da identidade sócio-cultural por par-te da população. Nesse sentido, Barreto (2000,p. 47) nos assegura que:

A recuperação da memória coletiva, mesmoque seja para reproduzir a cultura local para osturistas, leva, numa etapa posterior, inexora-velmente, à recuperação da cor local, e numciclo de retroalimentação, a uma procura porrecuperar cada vez mais esse passado.

Além de proporcionar a valorização dosatrativos naturais e culturais pelos membrosde uma coletividade, a interpretação ambi-ental propicia a sustentabilidade financei-ro-econômica das populações locais, decor-rente do processo de visitação, além de inse-rir as reminiscências dos grupos sociais, pos-

sibilitando a emergência de memórias diver-sificadas, nas quais se possam arrolar varia-das leituras e interpretações dos bens cultu-rais, passíveis de serem amalgamadas à ativi-dade turística.

Entendemos que a comunidade local deveparticipar do processo de amalgamação dosrecursos culturais para o turismo, contribuirpara a disseminação de sua memória e para arevitalização dos espaços urbanos testemu-nhos de sua história. Nesse âmbito a cidadeserá vista “como construção histórico-cultu-ral, como patrimônio de seus moradores,como espaço de memória” (MENESES, 2004,p.86), e, por conseguinte, de identidade.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Yacrim. O despertar do Tu-rismo: um olhar crítico sobre os não-luga-res. São Paulo: Aleph, 2001.BARRETO, Margarita. Turismo e legadocultural: as possibilidades do planejamen-to. São Paulo: Papirus, 2000.BAUDRILLARD, Jean A sociedade deconsumo. Rio de Janeiro: ed. Elfos, 1995.

CAMARGO, Haroldo Leitão. PatrimônioHistórico e Cultural. São Paulo: Aleph,2002.CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimô-nio. São Paulo: UNESP, 2001.FREIRE, Doia; PEREIRA, Lígia Leite.História Oral, Memória e Turismo Cul-tural. In: MURTA, Stela Maris. Interpre-tação do Patrimônio para um turismo sus-tentado: um guia. Belo Horizonte: Terri-tório Brasilis, 1995.LE GOFF, Jacques. História e Memória.Campinas: Unicamp, 1996.LOPES, Tânia. Fragmentando os rotei-ros turísticos sobre Ouro Preto. In: JÚ-NIOR, Álvaro Banducci; BARRETO,Margarita (orgs). Turismo e IdentidadeLocal: uma visão antropológica. São Pau-lo: papirus, 2001.MENESES, José Newton Coelho. His-tória e Turismo Cultural. Belo Horizon-te: Autêntica, 2004.MOTTA, Lia. A apropriação do patrimô-nio urbano: do estético estilístico nacio-nal ao consumo visual global. In:ARANTES, Antônio A. (Org). O Espaçoda diferença. São Paulo: Papirus, 2000.p.256-287.PELEGRINNI FILHO, Américo (org).Ecologia Cultura e Turismo. São Paulo:Papirus, 1997.SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preser-vação do Patrimônio Cultural em cida-des. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.URRY, John. O olhar do turista: lazer eviagens nas sociedades contemporâneas.São Paulo: EDUSC, 1996.

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O arroz, alimento de ricos e pobres,esteve desde cedo presente na mesa bra-sileira, sob diversas formas. É o que re-gistra Carlos de Lima, afirmando que oque se fala de Recife, aplica-se ao Ma-ranhão e ao Brasil:

Com respeito à alimentação, podemos dizerque os ricos comiam perus, galinhas, frutas, ofamoso queijo-do-reino, passas, biscoitos, sal,manteiga, bacalhau, presunto e carnes impor-tadas, bebiam vinhos, café, chá, licores, etc.;os pobres farinha de mandioca, fubá de arroze de milho, feijão preto, toucinho, carne sal-gada; cachaça e chibé, além de largo uso debatatas-doces, goiabas, ananases, melancias,laranjas (FREYRE apud LIMA, C de, 1998,p.340).

Na culinária não há como deixar dereferir o arroz de cuxá, que mereceupoesia e é razão de manifestação de sau-dade de todo o legítimo maranhense re-sidente longe do estado natal. ZelindaLima (1998, v.1, p.22) afirma que o ar-roz de cuxá é um prato que tem mais de100 anos, pois já “figurava, em 1889, noDicionário de Vocábulos brasileiros, dovisconde de Beaurepaire Rohan, com mi-nuciosa descrição”. Artur Azevedo (apudLIMA, Z, v.2, 1998, p. 78) dedica ao ar-roz de cuxá um longo poema, enviado

O FOLCLORE ARROZEIROMaria de Fátima Sopas Rocha12

12 Especialista em Lingüística, professora do Departamento de Letras da UFMA e pesquisadora do Atlas Lingüístico do Maranhão - ALIMA.

ao seu amigo Jovino Costa, que o convi-dara a ir saboreá-lo em sua casa (verANEXO). Mais recentemente, Zeca Ba-leiro e Chico César, na música Pedra deResponsa, referem-se a ele: “Quando fuina ilha maravilha / fui tratado como umpaxá / me deram arroz de cuxá / águagelada da bilha / cozido de jurará / ala-vantu na quadrilha” (cf. NAVARRO,2004, p.41).

Mota (1991, p. 393) registra a seguin-te estrofe, que data dos primórdios daRepública, em que enunciam-se as es-pecialidades dos Estados da Federaçãobrasileira;

S.Paulo para café,

Ceará pra valentãoPiauí pra vaca brava,Pernambuco pra baião,Rio Grande pra cavalo,Paraná pra chimarrão.Em Minas carne de porco,Rio de Janeiro eleição,Alagoas povo macho,Mato Grosso pra brigão,Amazonas pra borracha,Paraíba pra algodão,Pra castanha o Pará,Para arroz o Maranhão,Bahia para mulata,Sergipe cana e feijão,

No Rio Grande do NorteJerimum e violão,Em Goiás moça bonitaE rapaz sem coração.

Não são apenas os autores de reno-me que falam do arroz. Ele está nasquadrinhas como a que segue:

Preto que vendes aí?É arroz do Maranhão,Que Sinhá mandou venderNa casa do Salomão. ( LIMA, Z, v.2, 1998, p.76)

Câmara Cascudo (2004, p. 858) re-gistra:

O sr. Assis Iglesias ouviu em Caxias, Mara-nhão, fevereiro de 1919, o cego RaimundoLeão de Sales entoando a cantiga original, epara mim única na espécie, o traje feito dealimentos, aprendida com um cearense tam-bém cego.Mandei fazê um liformeBem feito com perfeição,Mó de botá na cidade,No dia de uma enleição,E o qual admirôA toda população.O chapéu de arroz-doce,Forrado de tapioca,As fitas de alfinimE as fivelas de paçocaE a camisa de nataE os botões de pipoca.A ceroula de sôroE a calça de coalhada,O cinturão de mantêgaE o broche de carne assada,O sapato de pirãoE a biqueira de cocada.As meias de mingauE os véus de gergelim,E as aspas de pão-de-lóE o anelão de bulim,As fitas de gorduraE as luvas de toicim.O colete de banana,O fraque de carne frita,O lenço de marmêE o lecre de cambica,O colarim de bolachaE a gravata de tripa.O relógio de queijo,A chave de rapadura,A caçuleta de doceE o trancelim de gordura.Quem tem um liforme destePode julgar-se enfartura.

O sr. Iglesias explica que bulim é bolinho, toi-cim, toicinho, marmê, farinha puba, farinhafermentada, cambica é vinho da palmeira bu-riti, Mauritia vinifera. Uniforme, roupa exte-rior masculina, é o liforme. A Antigüidadedos versos denuncia-se no relógio de algibeirater ainda chave para dar corda. E o uso dotrancelim. E a caçoleta, pendente do trance-lim ornamental.

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Boletim 38 / agosto 20071212

CONTINUAÇÃO

Alguns pratos de arroz têm designa-ções curiosas, como é o caso do “maria-zabé” ou “maria-isabel”, prato de carnecozida com arroz; do “arroz –de-puta”,ou “arroz-de-puta-pobre”, uma espéciede arroz de carreteiro feito com lingüi-ça no lugar do charque tradicional (cf.FISCHER, 2000, p. 36); do “arroz –de-viúva – prato da culinária baiana, à basede arroz com sal e leite de coco. O Dici-onário Aurélio traz esta citação: ‘Após oofício, voltava a imagem em procissãopara a nossa casa, onde era servida lau-ta mesa de doces, cuscuz, arroz-doce,arroz-de-viúva, aipim com manteiga,bolos , queijos e café com leite’ Itagipe,Hermano Requião” (apud NAVARRO,2004, p.41). Em outros estados é conhe-cido como arroz-de-leite.

São freqüentes os pratos e bebidascom nomes cuja sonoridade denunciasua origem africana, como é o caso de.;

Afurá – bolo de arroz fermentado. Ser-ve-se com água açucarada, na qual se dis-solve, formando uma bebida refrescan-te, apreciada na África e, igualmente,pela população baiana de outrora.Aluá – ou aruá é uma bebida fermentadada casca do abacaxi ou do milho cozido eaçúcar. Pode ser preparado com arroz eadoçado, também, com rapadura.Maniquera – aguardente extraída damandioca chamada maniocaba, cujo cal-do, tirado da massa, é cozido com arroz.Mocororó – bebida do sumo do caju comquatro dias de fermentação ao ar livre,no Ceará. No Maranhão, é bebida feitacom mandioca ou arroz.Acaçá – prato da cozinha afro-brasileira,é um bolo de massa fina de milho ou fubáde arroz. Depois de pronto, enrola-se, emporções, em folhas de bananeira.Xiró – caldo de arroz temperado com sal.Cuscuz – prato de mouros e árabes, tam-bém preparado com outros cereais (cf.LIMA, C., 1999).Mungunzá – milho cozido com leite devaca ou de coco. Com fubá de arroz, cra-vo, canela, açúcar, sal, manteiga, engros-sado, faz-se o mungunzá de colher e tor-nando-o ainda mais denso, mungunzá decortar (cf. CÂMARA CASCUDO, 2004,p.843).A respeito do Mocororó, Câmara Cas-

cudo (2004, p.832), comentando o aluáou aruá afirma: “Jacques Raimundo citao mocororó do Maranhão como equiva-lente mas Domingos Vieira Filho diz ser‘uma espécie de mingau feito à base dearroz’”.

Outros pratos são servidos com acom-panhamento à base de arroz, como é ocaso do Amalá – comida feita com quia-bos (caruru), carne de peito de boi ourabada, com pirão de farinha de arrozou de mandioca; do Anguzô – esparre-gado de ervas, semelhante ao caruru, quese come com angu de arroz; do Badofe– prato da cozinha afro-brasileira, umaespécie de massa comestível à base detaioba que se come com arroz dehaussá;do Mindim – prato regional doPiauí, que consta de arroz com costelasde porco (cf. LIMA, C., 1999).

Muitos outros pratos regionais e tra-dicionais são compostos com a lexia ar-roz. Entre eles, destaca-se: o arroz cai-pira – prato da região sudeste, de arroze frango; o arroz com banana – prato daregião do Rio de Janeiro que consiste embanana-da-terra cozida na panela dearroz; o arroz com suã – encontrado emSão Paulo, Mato Grosso e Goiás, consis-te em arroz com uma parte específicado porco; o arroz de haussá – arroz cozi-do com água e sal, como um purê; o ar-roz de piqui – tradicional em Goiás; oarroz-de-carreteiro – típico da região sul,com carne-de-sol ou carne-seca; o arrozem panela de pedra – de Minas Geraisque, depois de cozido, como o nome in-dica, em panela de pedra, leva cubos dequeijo fresco; o baião-de-dois – tradicio-nal no Ceará e que consiste em arroz efeijão cozidos juntos.

Também são designadas como espé-cies de arroz outras plantas como o “ar-roz-bravo”, uma gramínea de folhas pla-nas e ásperas e “arroz –do-mato” tambémconhecido como capim rabo de macaco(cf. SERAINE, 1959, p. 25).

São freqüentes os registros do apeli-do de papa-arroz, designando os mara-nhenses. Os maranhenses dão esse nomea um passarinho, comum nas regiões ar-rozeiras. Em Sertão alegre, LeonardoMota (MOTA, 2002, p. 172) afirma: “Opiauiense chama o maranhense de papa-arroz. Este, em represália, chama o piau-iense de capa-garrote e, sobretudo deespiga”. Outro registro interessante, domesmo livro, pode explicar a designa-ção de arroz escoteiro, muito comum noMaranhão, para o arroz simples, comi-do sem acompanhamento. No capítuloLinguagem popular, Mota (2002, p.227)registra: “Na água e no sal – escoteiro;exclusivamente. Exs.: Os soldados sequeixam de que só comem feijão na águae no sal. Trabalhei e no fim do mês eleme deu cinco mil réis na água e no salpor todo o meu serviço.”

O uso medicinal do arroz não é mui-to corrente no Maranhão, entretanto,Zelinda Lima (1998, p.115) registra:

Dieta de criança enferma: água-de-arroz.Para hemorragia: água-de-arroz adoçada.É boa também para os intestinos.Para a pele: pó da última lavagem do arroz.Para engasgo; comer arroz ‘pegado’ (quei-mado).

Obrigatório na mesa do brasileiro,deixou marcas, também, no folclore, enão apenas no Brasil, manifestando-se,sobretudo, no uso de frases feitas e ex-pressões populares, nas crendices e su-perstições.

Muito conhecido é o hábito de lan-çar arroz sobre os noivos, na saída da igre-ja. Representa esse gesto um voto de pro-digalidade e fartura para a vida a dois,sem problemas financeiros, mas tambémpara a fertilidade do casal, a ser aben-çoado com muitos filhos. É também emrazão da associação com a riqueza e afertilidade que “ao dinheiro se chama porvezes, na gíria bem imaginosa, arroz (gri-fo da autora), arame, tinta, massa, ca-bedal, milho, painço, bago, metal, etc.”(AMARAL, 1950, p. 91)

As expressões mais freqüentes com-postas com a palavra arroz são utiliza-das em relação direta com a sua presen-ça à mesa de todos, em todos os momen-tos. Assim, levantou-se o seu registro emdiversos dicionários regionais:

- Arroz de casca – diz-se de uma pes-soa que se susceptibiliza por qualquercoisa. Abon. ‘Não compre um substi-tuto. Cá não sou arroz de casca’. Ar-thur Azevedo, ‘Carapuças’, 17. (VI-EIRA FILHO, 1958, p. 13)- Arroz doce de pagode – indivíduo quenão perde festa. (MOTA, 1991, p.349)- Acabar-se como arroz doce em pago-de (adverte-se a quem se mete em em-presas arriscadas. (MOTA, 1991, p. 431)- Arroz-de-festa – a sobremesa conhe-cida por nós como arroz-doce era cha-mada de ‘arroz-de-festa’ em Portugal,onde nas famílias ricas o doce era pre-sença obrigatória em dias de festa.Depois a expressão passou a ser usa-da para definir uma pessoa que nãofalta em nenhum evento social. (DU-ARTE, 2003, p.169)- Arroz-doce-de-pagode – pessoa in-falível nas festas. Sempre visível emqualquer solenidade, havendo dançae comidas. ‘Foi arroz-doce de quan-to pagode de truz se fez pelo sertãodo Tietê’ Valdomiro Silveira, Os Ca-

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13Boletim 38 / agosto 2007 13

CONTINUAÇÃO

boclos, 133, S.Paulo, 1920). Gulodi-ce indispensável e preferida ao pala-dar português, fidalgo e plebeu, ebrasileiro desde o séc. XVI. O Vea-dor de dona Luísa de Gusmão, Rai-nha de Portugal, esposa d´El-ReiD.João IV, na sua folha de pagamen-to tinha: ‘e de arros doce que tempor dia a rasão de duzentos reis’. OPrato de Arroz-Doce é o romancehistórico de A. A. Teixeira de Vascon-celos, referente à revolução do Por-to, 1846, publicado em 1862. Na His-tória da Alimentação no Brasil (2.ed.Itatiaia—Edusp, 1983), registei a bi-ografia do Arroz-Doce, e como se di-vulgou em Portugal, trazido para oBrasil na época do povoamento, e ain-da constituindo a sobremesa famili-ar. ‘Cheiroso como um tabuleiro dearroz-doce!’ Pagode é reunião jubilo-sa. O ‘arroz-Doce-de-Pagode’ seráuma ‘permanente’ nessas ocasiões, ca-racterizando o indivíduo de teimosafreqüência (- “Nem arroz! – Nenhu-ma resposta. Ouvir sem redargüir.Não dar importância. ‘Sô coroneleCanaro ralhô cô ieu, mas porém ieunem arroiz’, diz em Canudos, 1950,o matuto Lalau ao pintor FunchalGarcia ( Do Litoral ao Sertão, Bibli-oteca do Exército editora, Rio de Ja-neiro, 1965.) Não será arroz, que nãodá sentido, mas arriós, bolinha, pe-lourinho de pedra usado no jogo qui-nhentista do alguergue, para pontono tabuleiro marcado. ‘Nem arriós’,sem reação `a jogada do adversário,ausência de parada, sem retorquir,indiferença, abandono, pouco-caso.Calado por resposta. (CÂMARACASCUDO, 1986, p.200)- Dar o arroz – Dar o correctivo (SI-MÕES, 1993, p. 213).- Arroz – homem que anda com mui-tas mulheres mas não namora nenhu-ma. ‘Igual a arroz, só serve praacompanhar’.(GADELHA, 2000, p. 21)- Arroz doce – pessoa que está emtoda festa ou em todo lugar, que estáem todas. (LARIÚ, 1991, s/p.)- Arroz-doce – vulgar, presente emtodas as festas: prato de arroz-doce.(LIMA, Z, v.2, 1998, p.54)- Papa-arroz – o natural do Maranhão.(CÂMARA CASCUDO, 2004, p.867)- arroz com pernas - piolho- arrroz – pancada; piolho; dinheiro- arroz fingido – acção sexual não con-sumada- arroz queimado – aquilo que suce-de muitas vezes

- dar o arroz – dar o correctivo- cantigas de arroz pardo – Oraadeus!; mentiras. ( SIMÕES, 1993,p.86; 155; 213)- Prato de arroz-doce – Ostentação.Ser prato de arroz-doce – chamaratenção, querer sobressair-se. ( LIMA,1998, p. 62)- arrozais de Pendotiba – coisa ine-xistente, imaginária ou falsa. Quan-do Nilo Peçanha, que foi Presidenteda República, como sucessor deAfonso Pena, voltou a governar, apósa passagem pelo Catete, a arruinadaterra fluminense, procurou fazer umempréstimo externo, dando comogarantia a produção agrícola do Es-tado do Rio. Viriato Corrêa, num jor-nal carioca, atribuiu-lhe um expedi-ente, para enganar os representantesdos banqueiros da City, vindos da In-glaterra. Numa viagem de trem, NiloPeçanha lhes teria mostrado o capin-zal bravio de Pendotiba, dizendo:‘Vêem os senhores? Só a produçãodestes arrozais daria para garantir oempréstimo...’ A maliciosa anedotaperseguiu aquele político até o fimda vida e foi acolhida por seu recen-te biógrafo, Brígido Tinoco, em ‘ Avida de Nilo Peçanha’, onde se lê, àpágina 86: ‘Pelo bem do Brasil não tre-pidava em mentir. Diante de comissãoestrangeira, em visita à baixada flumi-nense, transformou subitamente, en-vergonhado com a pergunta indiscre-ta, os extensos campos de capim-jara-guá, de Pendotiba, em luxuriantes plan-tações de arroz [...]’ (MAGALHÃESJÚNIOR, 1974, p. 32)- ARROZ[...] de festa. Pessoa que está presen-te a todas comemorações ou eventosimportantes; pessoa que comparecea qualquer tipo de recepção seja ounão convidada.[...] doce de função. Pessoa que com-parece a todas as festas. (PUGLIE-SI, 1981, p.11)

No âmbito das crendices populares,diz-se que “arroz quente posto na nucada criança gaga, num instante solta alíngua” (Jangada Brasil, 2005, p.2)

E ainda: “Durante a gravidez mulhernão deve comer resto de arroz que ficougrudado na panela – o pegado – senão aplacenta fica presa no útero, sem sair,após o parto.

Arroz jogado no chão é sinal de far-tura!” (LIMA, Z, v.2, 1998, p.29).

Acredita-se ainda que “faz mal comerarroz com casca, cria pedra na vesícula”(LIMA, C., 1999, p.173), que “não se batecom a colher na panela de arroz ou decanjica, porque queimará inevitavelmen-te”, que “inchar as bochechas, quando oarroz estiver fervendo, fa-lo-á crescer” eque “a grávida ajuda a crescer a massade bolos, arroz, cozidos com verduras,mas não deve assar coisa nenhuma, res-seca ou incha sem tomar tempero”(LIMA, C., 1999, p.182).

Na literatura popular, registra-se apresença do arroz em duas parlendas quetêm como objetivo a memorização dosnúmeros:

Um, dois: camarão com arroz;Três, quatro: feijão no prato;Cinco, seis; olha o freguês;Sete, oito: olha o biscoito;Nove, dez; traz os pastéisou:Um, dois – feijão com arroz,Três, quatro – arroz no prato,Cinco, seis – o ovo indez,Sete, oito – café com biscoito,Nove, dez – lave seus pés. (LIMA, Z, v.2, 1998,p. 84)

Também se registra uma quadrinha,

quando se faz, à mesa, o ‘capitão’ de arroz, oupirão, isto é, a porção amassada com os dedospara ser levada à boca, recita-se:Rei, capitão,soldado, ladrão,menino, menina,macaco Simão” (LIMA, Z, v.2, 1998, p.87).

A riqueza do folclore arrozeiro estápresente também em cantigas, de quese tem notícia por terem sido referidaspor algumas das pessoas entrevistadasnos municípios maranhenses em que oAtlas Lingüístico do Maranhão – Proje-to ALiMA realiza pesquisas sobre a lín-gua falada no Maranhão, e ainda por pes-quisadores, mas das quais ainda não foipossível obter nenhum registro.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Vasco Botelho do. Mistériose maravilhas da língua portuguesa. Porto:Livraria Simões Lopes, 1950.CÂMARA CASCUDO, Luís da. Locu-ções tradicionais do Brasil: coisas que opovo diz. Belo Horizonte: Itatiaia; SãoPaulo: Edusp, 1986._________. História da alimentação noBrasil. São Paulo: Global, 2004.DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos.São Paulo: Panda, 2003.FERREIRA, Aurélio Buarque de Holan-da. Novo dicionário da língua portugue-sa. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1975.

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CONTINUAÇÃO

FISCHER, Luís Augusto. Dicionáriode porto-alegrês. Porto Alegre: Artes eOfícios, 2000.GADELHA, Marcus. Dicionário de ce-arês. Fortaleza: Multigraf, 2000.JANGADA Brasil: superstições e cren-dices. Disponível em: <http://www.jangadabrasil.com.br/revista/agosto69/pn69008c.asp.> Acesso em:5 out 2005.LARIÚ, Nivaldo. Dicionário de baianês.Salvador: Empresa Gráfica da Bahia,1991.LIMA, Carlos de. Vida, paixão e morteda cidade de Alcântara - Maranhão. SãoLuís: SECMA, 1998.LIMA, Cláudia. Tachos e panelas: his-toriografia da alimentação brasileira. Re-cife: Brasil, 500 anos, 1999.LIMA, Zelinda Machado de Castro e.Pecados da gula: comeres e beberes dasgentes do Maranhão. São Luís: CBPC,1998. 2 v.MAGALHÃES JÚNIOR, R. Dicioná-rio brasileiro de provérbios, locuções editos curiosos, bem como de curiosida-des verbais, frases feitas, ditos históri-cos e citações literárias, de curso corren-te na língua falada e escrita. Rio de Ja-neiro: Documentário, 1974.MOTA, Leonardo: Sertão alegre: poesiae linguagem do sertão nordestino. 3. ed.Rio de Janeiro; São Paulo; Fortaleza:ABC Editora, 2002._________. Adagiário brasileiro. Forta-leza: BNB, 1991.NAVARRO, Fred. Dicionário do Nor-deste: 5.000 palavras e expressões. SãoPaulo: Estação Liberdade, 2004.PUGLIESI, Márcio. Dicionário de ex-pressões idiomáticas: locuções usuais dalíngua portuguesa. São Paulo: Parma,1981.SERAINE, Florival. Dicionário de ter-mos populares: registrados no Ceará.Rio de Janeiro: Simões Editora, 1959.SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicio-nário de expressões populares portugue-sas. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1993.VIEIRA FILHO, Domingos. A lingua-gem popular do Maranhão. São Luís do

Maranhão: Tipogravura Teixeira, 1958.

Como o nosso Manoel CostaMandou pelo MacieiraUm molho de vinagreiraLá de Jacarepaguá,Num delicado bilheteMe perguntas, caro amigo,Se quero, amanhã, contigo,Comer arroz de cuxá.

Que pergunta! Pois ignorasQue sou, por este petisco,Homem de andar ao lambisco,Ora aqui, ora acolá?Pois não sabes que, apenasEu me apanhei desmamado,Me atirei como um danadoAo belo arroz de cuxá?

Gosto do peru de fornoGosto de bofes de grelha,E tenho uma paixão velhaPor torradinhas com chá;Mas nos pitéus e pitançasQue custam tanto e mais quanto,Nunca achei o mesmo encantoQue achei no arroz de cuxá.

Visitei o velho mundoE, nos restaurantes caros,Os acepipes mais rarosComi que nem um paxá;Mas, quer creias, quer não creias,Nenhum achei mais gostoso,Mais fino, mais saborosoQue o nosso arroz de cuxá!

A tua “Mulata Velha”É com razão orgulhosaDa moqueca apetitosa,Do doirado vatapá;Mas, baiano, tem paciência;Forçoso é que te executes!Nada valem tais quitutesAo pé do arroz de cuxá.

Eu tenho muitas saudadesDa minha terra querida...Onde atravessei a vidaO melhor tempo foi lá.Choro os folguedos da infânciaE os sonhos da adolescência;Mas... choro com mais freqüênciaO meu arroz de cuxá.

Porque – deixa que t´o diga –Esse prato maranhenseAo Maranhão só pertenceE n´outra parte não há.

Aqui fazem-no bem feito(Negá-lo não há quem ouse);mas... falta-lhe “quelque chose”;não é o arroz de cuxá.

Pois aqui há bom quiaboE bem bom camarão seco;Há vinagreira sem peco;Bom gergelim também há!E o prato, aqui preparado,Do nosso mal se aproxima!Acaso também o climaInflui no arroz de cuxá?

Ora, qual clima! qual nada!É o mesmo quitute, creio;Falta-lhe apenas o meio;Nos seus domínios não está.No Maranhão preparadoNaturalmente aconteceQue sendo o mesmo, pareceSer outro arroz de cuxá.

Eu, quando o como, revejoEntre a cheirosa fumaça,Passado que outra vez passa,Com que eu não contava já;Portanto, não me perguntes...Não me perguntes, amigo,Se eu quero amanhã, contigo,Comer arroz de cuxá.

Pergunta se quer o espaçoO passarinho que adeja;Pergunta se a flor desejaO sol que a vida lhe dá;Pergunta aos lábios se um beijoAceitam, quente e sincero;Mas não perguntes se eu queroComer arroz de cuxá.

Como a criança quer leite,Jóias a dona faceira,Fitas a velha gaiteira,E um maridinho a sinhá;Como o defunto quer cova,Quer o macaco pacova,Eu quero arroz de cuxá.

Febricitante, impaciente,Cá fico as horas contando!Do bolso de vez em quandoO meu relógio sairá,E amanhã, às seis em ponto,Irei, com toda a presteza,A tua pródiga mesaComer arroz de cuxá.

Poema de Artur Azevedo13

13 Artur Azevedo apud ORICO, Osvaldo. Cozinha amazônica. Belém: Universidade do Pará,1972 apud LIMA, Zelinda. Pecados da gula. V. 1. São Luís: CBPC, 1998. p. 78-82.

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INTRODUÇÃO

Neste trabalho nos ocupamos da passagemde ex-evangélicos para as religiões afro-brasilei-ras, especificamente das igrejas pentecostais eneopentecostais para a umbanda, buscando en-tender os motivos da mudança de religião e oposicionamento do indivíduo diante de sua atualsituação religiosa e da antiga. Tal fenômeno noschama a atenção por serem as igrejas evangéli-cas as grandes opositoras das manifestaçõesafro-brasileiras e por ser crença geral de queapenas praticantes de religiões afro-brasileirasse convertem ao pentecostalismo, daí uma dasexpressões muito comuns em terreiros de minae umbanda quando algum filho-de-santo deixao terreiro: “virou crente”. Procuramos entender,ainda, o fator mais comum ou justificável para ainiciação de ex-evangélicos como pais e mães efilhos-de-santo.

Achamos necessário fazer uma pequenadistinção na terminologia utilizada: transição,migração e mudança religiosas. Após algumasconsiderações, concluímos ser mais adequadousar o termo trânsito religioso quando há a par-ticipação, ou seja, a “transitação” de indivíduosentre duas ou mais denominações religiosas di-ferentes, sendo que ele se autodenomina deuma só, o que não o impede de participar deoutra também. Talvez este termo seja o maisapropriado para o caso dos evangélicos que fre-qüentam várias denominações, os transeuntesque não se fixam por muito tempo numa deter-minada denominação religiosa. Prandi16 citadopor Karla Santos (2002), afirma não ser precisosair da religião de origem para provar da mu-dança religiosa. Já o termo migração seria quan-do os indivíduos abandonam a sua última de-nominação devido a algum desconforto ou embusca de melhoras não encontradas na primei-ra, fixando-se na segunda alternativa. Mudan-ça é um termo mais ambíguo, podendo ser en-tendido como a mudança da religião em si, nasua dinâmica social ou a mudança de adeptosde uma para a outra.

Tal análise visa contemplar um fenômenodifícil de ocorrer ou detectar, mas não inexis-tente entre os praticantes de duas das princi-pais religiões populares no Brasil (FRY &HOWE, 1975), servindo de subsídio para umaanálise posterior mais detalhada.

A partir da história de vida do Sr. FranciscoSousa ou seu Francisco como é mais conheci-do, da cidade de Codó (cerca de 300km de SãoLuís), nos propomos a analisar tal fenômeno.Como apoio, utilizaremos também outras en-trevistas com pais e mães-de-santo sobre o as-sunto.

Boa parte das informações a que tivemosacesso foi adquirida em conversas informais,

MIGRAÇÃO RELIGIOSA DOPENTECOSTALISMO PARA A UMBANDA14

Paulo Sérgio Pilar Araújo15

14 Retoma trabalho apresentado no 10º Congresso Brasileiro de Folclore (São Luís-MA, 2002) e relatório de pesquisa apoiada pelo PIBIC-FAPEMA e orientada pela professoraMundicarmo Ferretti.

15 Licenciado em Letras; aluno do Mestrado em Linguística da USP.16 PRANDI, Reginaldo. Religião, Biografia e Conversão:escolhas religiosas e mudanças de religião. Rio de Janeiro:1999.

em visitas e participações de trabalhos de mesa(similares às sessões de mesa branca do karde-cismo, mas nas quais se manifestam além dosdesencarnados, entidades caboclas, índios, pre-to-velhos etc.) e com entrevistas formais do pe-ríodo de 06 a 12 de fevereiro de 2002.

Como pré-requisitos para a escolha das pes-soas entrevistadas utilizamos alguns pontos domesmo roteiro que os alunos dos cursos de Ge-ografia e História da UEMA usaram para umtrabalho de campo da disciplina de Antropolo-gia, coordenados pela então professora Mundi-carmo Ferretti: o tempo de permanência na igre-ja evangélica (se a pessoa teve tempo suficientepara se “edificar” nas doutrinas da igreja), bemcomo o papel desempenhado por ela na antigadenominação (se chegou a ser dirigente, diáco-no, líder de mocidade etc.); o período de transi-ção da igreja para o terreiro; e a permanênciapor parte do indivíduo na nova fé.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PASSAGEMDE PENTECOSTAIS PARA A UMBANDA

O caso do seu Francisco é um dos mais ob-servados na história da maioria dos pais-de-san-to que já foram evangélicos. Descobrindo-semédiuns, a primeira reação é a não aceitação,depois a tentativa de fuga, e como vimos, asigrejas pentecostais ou evangélicas surgemcomo a melhor saída para essa situação.

De início o seu Francisco nos contou quedesde os primeiros sinais de sua mediunidade,

com visões e outros fenômenos, ele e sua famí-lia buscaram de pronto a igreja. Provavelmenteele teve que se afastar da família quando saiude casa, convidado para ser cantador, tendotalvez que se afastar também da congregaçãona qual participava como membro. Seu Fran-cisco não especificou como foi a sua vivênciadurante esse período, disse-nos, entretanto, quejá aos vinte anos era dirigente de uma congre-gação da Igreja Cristã Evangélica na cidade deRosário/MA. Assim ele relata como foi a suasaída da igreja:

“Depois de ter apanhado que nem cachorro,os irmãos (os encantados) me mostraram quenão ia adiantar continuar no meio daquelebando de hipócritas, que andam com a Bíbliadebaixo do braço e não seguem nada do que taali. Eles sabiam que eu trabalhava (na magia) econtinuava indo pra igreja, até que eu vi: oueram um ou outro”. (Entrevista – 06/02/2002?).

Seu Francisco afirma que a sua saída daigreja não foi brusca, passou um tempo se con-gregando e trabalhando com os encantadosmeio às escondidas antes de decidir-se definiti-vamente.

Esse momento de transição acontece comoum reconhecimento de terreno ou uma manei-ra de não ser desprezado ou discriminado pelosantigos “irmãos” de congregação, o que aconte-ce cedo ou tarde. Sabemos que deve ser muitodifícil para um ex-pentecostal, mesmo estandomuito tempo fora da igreja, aceitar de imediatotudo aquilo que durante o seu tempo de igrejaera condenado euforicamente como coisa dodemônio. Já na conversão de umbandistas aopentecostalismo existe uma espontaneidademaior, o indivíduo diz aceitar a Jesus como seusalvador, a igreja ora por ele e com a sua confis-são pública passa a ser um novo membro da co-munidade (geralmente, na maioria das igrejasevangélicas, o batismo em água é a “oficializa-ção” da pessoa como membro, tendo um peque-no período de acompanhamento no qual é cha-mado de novo convertido). Nas religiões afro-bra-sileiras, a pessoa após identificada como médiumdeve passar por um longo período de iniciação,dependendo do grau de mediunidade.

O motivo apontado por Fry e Howe (1975,p. 75) para a conversão de uma pessoa ao pen-tecostalismo ou à umbanda seria a aflição:

Enquanto as agências seculares (médico, advo-gados etc.) tratam de sintomas específicos, asreligiosas pretendem oferecer soluções paratodas as aflições em geral. Entre as respostasreligiosas, a umbanda e o pentecostalismo seopõem às demais no seu modo de recrutamen-to, que é feito geralmente através da aflição.

Entrevista com Seu Francisco

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Boletim 38 / agosto 20071616

CONTINUAÇÃO

Para nossos entrevistados, umdos motivos para que houvesse amudança entre essas duas religiões,dentre outros, seria a insatisfaçãocom a atual religião. No caso depentecostais aderirem à umbanda,uma das respostas apontadas pelosque passaram por essa experiênciaé a mesma dada por dona Socorro,mãe-de-santo de Codó da TendaEspírita de Umbanda São Jorge:

Crente vira macumbeiro por-que o lugar dele é aqui, podeandar por onde quiser, mas sefor médium de verdade, o lugardele é trabalhando com os en-cantados dele.

Como vemos, além da insatis-fação com a religião, a mediunida-de aparece como determinante dapassagem de pentecostais para aumbanda. Isso é como se a pessoajá entrasse sabendo-se portadorade um dom, a capacidade de co-municar-se com os espíritos, e por-tadora de uma entidade que lheprotege. Diferentemente, no pen-tecostalismo, no qual o dom do Es-pírito Santo é recebido após a con-versão em um longo e difícil cami-nho de santificação.

AS RELIGIÕES ANTIGAE ATUAL

Para o seu Francisco, os seusvinte anos na igreja foram uma pro-va à qual ele teve que passar, feitapor seus guias:

Agora tô satisfeito e enquantovida Deus me der eu vou conti-nuar trabalhando com os irmãos(os encantados). (Entrevista em06/02/2002).

Quase todos os umbandistasque passaram por igrejas evangéli-cas vêem de forma semelhante oseu tempo de igreja. Porém para oslíderes pentecostais essas pessoasnão “nasceram de novo” ou não “re-sistiram ao diabo”, entre outras ex-plicações do “fracasso” dos seus ex-adeptos.

Existem outros casos difíceis dedetectar de umbandistas converti-dos, mas que continuam pratican-do suas obrigações às escondidas,como já visto no caso de seu Fran-cisco. Muitos deles tem medo demostrarem-se fracassados paraseus “irmãos” de igreja e temem serdescobertos e sofrer discrimina-ções. Num artigo ainda inédito deMundicarmo Ferretti, ela nos falacomo os encantados de filhos-de-santo que ficam entre o templo e oterreiro encaram essa situação aodizerem: “ele (o filho-de-santo) éque é crente, não sou eu”.

Geralmente os umbandistasex-pentecostais não gostam de fa-lar da igreja. Sempre falam quesofreram algum tipo de discrimina-ção por parte dos antigos irmãos.Isso é devido à organização pente-costal ser mais policiada, cadaadepto exercendo o papel de vigiado seu irmão (ROLIM, 1987), sen-do que o desviar-se da fé é quaseque uma traição. Já na umbanda,constituída principalmente por gru-pos pequenos, a repercussão nãoé tão grande ou escandalosa se umfilhos-de-santo se converte ao pen-tecostalismo, pois todos sabem quemais cedo ou mais tarde ele vai terque voltar para os seus guias.

CONCLUSÃO

A mediunidade foi o fator maiscomum indicado pelos umbandis-tas ex-pentecostais como a causade aderirem à umbanda, e háparticularidades, por exemplo,nem todos os médiuns terão quefazer cabeça (serem iniciados), de-pendendo do grau de mediunida-de da pessoa, de acordo com seuFrancisco, seguindo claramente adoutrina kardecista encontrada noLivro dos Espíritos (KARDEC,Alan, 2001). A mediunidade assimé vista como um sinal de Deus, de

REFERÊNCIAS

FRY, Peter Henry; HOWE, GaryNigel. Duas Respostas à Afli-ção: Umbanda e Pentecostalis-mo. Debate e Crítica. N. 06, jul.1975. p. 75-94.KARDEC, Allan. O livro dosEspíritos. (trad. Guillon Ribei-ro) – 6 ed. de bolso. Rio de Ja-neiro: Federação Espírita Brasi-leira, 2001.PRANDI, Reginaldo. ReligiãoPaga, Conversão e Serviço. Ver.Novos Estudos: CEBRAP. N.45, JUL. 1996, P. 65-77.ROLIM, Francisco Cartaxo. Oque é Pentecostalismo. SãoPaulo: Brasiliense, 1987.SANTOS, K. G. V. Umbanda ePentecostalismo: alternativasreligiosas populares no Mara-nhão. 2002. 100f. Monografia(Conclusão de Curso de Ciên-cias Sociais) - Universidade Fe-deral do Maranhão. São Luís.VALLE. Edênio. Conversão: danoção teórica ao instrumento depesquisa. Disponível em<http://www.pucsp.br/rever/rv2/e-valle.htm> Acesso em 12de maio de 2002.

Altar do salão de Seu Francisco

que a pessoa pertence a esta reli-gião e não àquela.

É de se esperar que à medidaque a umbanda vai se comportan-do e desenvolvendo uma posturamais cristã, fica mais fácil obser-varmos um movimento migratórioentre adeptos dela e outras religi-ões de forte caráter mítico. Entre-tanto não sabemos até onde iráparar essa guerra entre pentecos-tais e umbandistas (guerra decla-rada pelos pentecostais?). Consta-tando ainda que, mesmo assim, ograu de semelhança entre ambastem aumentado, como podemosobservar em algumas reuniões daIgreja Universal do Reino de Deus:sessões de descarrego, quebra demaldição, oração em roupa ou per-tence de pessoas para livrar do mal,etc., assim como sessões em tem-plos de umbanda nos quais o pai-de-santo canta “hinos” doutrinári-os da umbanda, faz preces e dátestemunhos, à moda de um tem-plo evangélico, como o observadona Tenda São Sebastião do pai-de-santo Sebastião do Coroado.

A migração de pentecostaispara terreiros umbandistas é umfenômeno que aos poucos deixade ser exceção e vai se tornandomais comum, mesmo indo contrao senso de que só “macumbeiro viracrente”.

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No universo das religiões afro-brasileiras emcada terreiro o culto aos orixás, voduns, cabo-clos e encantados se expressa em rituais peculi-ares. Os terreiros representam a variedade doculto de matriz africana no Brasil que por outrolado, tem em comum, práticas religiosas muitofestivas.

O estudo dos rituais religiosos, já foi objetode estudo de pesquisadores na busca de com-preender as práticas sociais humanas. Podemosobservar a clássica perspectiva de Durkheim(2003, p. 337) quando este estudioso afirma queos rituais religiosos expõem antagonismos e rom-pimentos por que: “há dois sistemas de estadosde consciência que estão orientados e orientamnossa conduta para dois pólos contrários”. Nessesentido, a afirmação de Durkheim classifica aconduta social em ações ordenadas a determina-dos espaços e ocasiões, em um mundo bipolarde coisas sagradas e coisas profanas. No entan-to, esta perspectiva não orienta a análise dos ritu-ais afro-brasileiros, nos quais observamos que asrepresentações religiosas e a linguagem ritual sãopráticas estreitamente integradas ao cotidianodos adeptos do culto e faz parte da vida de cadaum. Isso porque nessas religiões prevalece o es-pírito religioso e a visão sagrada do universo dosadeptos do culto, quando estes afirmam que “fo-ram escolhidos” pelas entidades que “recebem”e se consideram portadores de uma missão.

Assim, quem já observou os rituais afro-bra-sileiros nos terreiros de São Luis, concorda quese trata de uma manifestação religiosa extrema-mente complexa, na qual a tradição dá ênfaseaos deuses de origem, privilegiando o culto aosorixás e voduns, herança que os adeptos preser-varam através dos séculos pela via da transmis-são oral e da observação direta dos rituais quesomados as influências nativas e européias, pro-cessou-se em numerosas formas e expressões re-ligiosas. Em estudo, sobre o tema Vagner da Silva(1994, p. 82,83), observa que há diversas denomi-nações para o culto afro no Brasil porque:

VAMOS BRINCAR DE BONECA OUDANÇAR TAMBOR DE CRIOULA?

A Cura de dona Troirinha e a de Pedrinho no Terreiro Fé em Deus

Maria do Socorro Rodrigues de Souza Aires17

Fatores como o tamanho da população negraem relação à de brancos e de índios, a influên-cia de determinadas etnias, a repressão ao cul-to, as condições urbanas e outros, fizeram comque os cultos apresentassem características re-gionais próprias, sendo alguns conhecidos emuma região e desconhecidos em outras. Assim,variações regionais do rito jeje-nagô podem serencontradas em todo o Brasil, como no can-domblé na Bahia, no batuque no Rio Grandedo Sul e no Xangô de Pernambuco.

No Maranhão, esta religião é mais conheci-da como tambor de mina e os terreiros realizamrituais derivados dos desdobramentos históricose contextuais da inserção do negro escravo, quesegundo e estudo de Sérgio Ferretti (1996) e Vag-ner da Silva (1994), possuem particularidadesporque se referem ao culto do vodun na Casadas Minas, terreiro considerado o mais antigo dacidade de São Luis. Mas, segundo MundicarmoFerretti (2001, p. 59, 60), “apesar da hegemoniada mina... Os terreiros de mina de São Luis,embora influenciados pela Casa das Minas-Jejee pela Casa de Nagô, alguns apresentam muitascaracterísticas estranhas a elas... muitos delestem linha de mina e de cura ou pajelança”. Éprecisamente sobre o ritual da cura ou pajelançarealizada no Terreiro Fé em Deus, no bairro Sa-cavem, que gostaríamos de refletir sobre a reli-gião do tambor de mina no Maranhão.

A cura é um sistema de crenças, no qual, seobserva a representação simbólica de muitasentidades encantadas em diversos lugares danatureza que são recebidas, uma de cada vez,(Mundicarmo Ferretti, 2000) por uma únicapessoa em transe, durante várias horas. Em es-tudo sobre o tema, Vagner da Silva afirma quese trata: “de uma religião de caráter essencial-mente mágico-curativa, baseada no culto dosmestres, entidades sobrenaturais que se mani-festam como espíritos de índios (caboclos), deanimais ou de antigos chefes prestigiados doculto” SILVA, 1994, p. 88). No entanto, no pas-sado essa prática religiosa foi muito perseguida

pela polícia. Uma situação que os estudiososafirmam (Maria do Rosário C. dos Santos eManoel dos S. Neto, 1989) que obrigou os cura-dores a desenvolverem mecanismos que lhespermitissem continuar com os cultos às suasentidades de cura e com o passar do tempo,tornou-se uma prática comum em alguns terrei-ros de mina do Maranhão.

Segundo o estudioso e pai-de-santo JorgeItaci de Oliveira (1989, p.36), “em face à grandeinfluência de mina, no rito do Pajé. É que hojeestes mesmos caboclos dançam nos tamboresNagôs, em pé de igualdade com os Orixás africa-nos”. Na concepção da mãe-de-santo Elzita doTerreiro Fé em Deus, no ritual da cura, a dan-çante recebe muitas entidades porque: “a cura é´linha´. Ela vem do rio, ela vem do astro, ela vemdo mar também, mas ela é mais´linha´. ´Linha´porque entra um e sai outro. É uma ́ linha´ 18 ”. Eacrescentou que: “a mina não gosta da cura, eufaço aqui as duas coisas, porque eu tenho parteda cura”. Nas palavras de dona Elzita: “se o cura-dor disser: eu vou curar em tal lugar, ele vai”, notambor (de mina) não se faz isso por causa doassentamento19 ”. No entanto, ela também nosfalou que realiza esse ritual em seu terreiro emhomenagem à princesa Troirinha20 , a sua “pa-troa” porque tem a ver com o início da sua vidareligiosa e com certo número de suas filhas-de-santo que possuem mediunidade para as enti-dades da linha de cura. E também para o cabo-clo Pedrinho21 uma entidade que é recebidaem seu terreiro. (Entrevista em 21/06/06).

Quando é realizado o ritual da Cura no Ter-reiro Fé em Deus, a brincante recebe a entida-de curadora chefe da linha, do lado de fora dobarracão quando esta recebe das mãos de suaassistência, o penacho, o maracá e a purifica-ção com o incenso (Mundicarmo Ferretti, 2000).A entidade, através da brincante, vem fazer aabertura do ritual e anunciar ao público presen-te, através de cânticos, que vai trazer a sua linha.Além da entidade chefe da linha que é a “anfi-triã” da festa e a primeira a comparecer ao ritual,

17 Concludente de Ciências Sociais – UFMA; membro do GP-Mina.18 Entendemos a expressão da mãe-de-santo Elzita quando ela se referiu ao ritual da Cura como “uma linha”, depois de realizarmos uma entrevista no Terreiro Fé em Deus

com a dançante Maria Auxiliadora, conhecida como Rôxa, em transe com o caboclo Pedrinho, na qual a referida entidade explicou:“Na minha corrente é assim: primeiro vem à linha do mar, depois vem a linha do astro, depois vem a linha da mata, depois vem a linha da água doce, que é a mãe d’águae vai lá pro fundo. Ai depois vem à linha de cobra. Todo curador tem essa corrente. Ai é que eu vou fechar. Toda linha tem um chefe. Agora eu sou o chefe de tudo. Naminha linha é assim. Eu tenho uma entidade responsável por tudo. Porque eu não posso, na hora de fazer uma cura, passar todo mundo do mar, porque senão vai sersó do mar. Então eu tenho um tanto de gente do mar e tem uma pessoa responsável pelo mar. Eu abro a minha cura depois eu chamo o chefe que é o seu Banzeiro. SeuBanzeiro vem trazendo todos que ele pode trazer. Não é pra ele trazer tudo da leva dele, não. Aí quando passa pra mata, vem os caboclos. Nesses, não tem chefe, eles vemsozinhos, porque eu acho que só tem que ter chefe quando é uma corrente certa, como o mar. Mas no mato o que vier de doido esse fica. Aí tem a parte do astro, que é aparte dos passarinhos e a chefa é a dona Arara Cantadeira. Ai tem a corrente da água doce que é com mãe d’água e depois a linha de cobra, ai eu vou fechar. É 70 linhasque eu tenho. Ai tem que escolher os que não são muito doidos, os que vão, porque os que são doidos não vem, pra não ficar judiando dona Rôxa, jogando ela pra cá epra ali. Por isso só vem os que são bons. Ela é boa de mim” (Entrevista em 13/12/06).Percebemos que a palavra linha é utilizada para referir-se a categorias de entidades. Para uma melhor compreensão, ver (FERRETTI, M. 2000, p. 226).

19 Segundo dona Elzita:“o assentamento é o fundamento e isso é coisa de segredo, são coisas ocultas e o que a gente pode saber é o que está do lado de fora, mas do lado de dentro não. Então,você só pode ter um terreiro de mina quando você tem suas filhas-de-santo, porque você não pode abrir o tambor sozinha. É preciso mais ou menos umas cinco pessoas,várias dançantes pra fazer aquela roda. Mesmo que eu abra o Imbarabô, a dançante logo tem que cantar. O tambor sempre começa com o Imbarabô, mas não em todos osterreiros. Existem outros que abrem de outra forma, logo tem o Candomblé, tem a Umbanda, tem a mina Nagô que, é a daqui, então é com o Imbarabô e se cantam váriasdoutrinas, durante quase uma hora e só depois disso vira para as entidades. Na cura, não é assim. O curador, ele cura em qualquer lugar, mas no tambor (de mina), não.Ele tem que ter um lugar. É outro chefe de um terreiro que vem assentar a pessoa que vai abrir um terreiro”. (Entrevista em 12/08/06).

20 Entidade chefe da linha de cura e patroa de dona Elzita, também participa da mina como rainha Doralice.21 Mensageiro do Rei Surrupira, chefe de Maria Auxiliadora, filha-de-santo de dona Elzita.

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CONTINUAÇÃO

observa-se através dos cânticos muitas linhas deentidades que também participam, se manifes-tam e incorporam na brincante por alguns mo-mentos para cantar, dançar e depois ir embora,para que outras entidades compareçam.

A entidade, quando incorporada, conta a suahistória em forma de cântico ou doutrina e geral-mente faz referência a lugares e qualidades quesupostamente representam a sua origem. Logotodos os presentes ouvem em silêncio e em se-guida repetem o cântico ao som dos instrumen-tos utilizados para acompanhar os cânticos, en-quanto a entidade, incorporada na brincante queestá em transe, dança no meio do barracão.

No Terreiro Fé em Deus, os instrumentosque são utilizados no ritual são: três tambores,sendo, dois pequenos que são tocados, na mai-oria das vezes, por adolescentes e até por crian-ças que ficam sentadas em uma cadeira com osinstrumentos apoiados entre os joelhos e umoutro, bem maior, chamado de tambor da mata,que é suspenso por um cavalete de madeira,disposto na posição inclinada e geralmente étocado por um adulto experiente. O públicoparticipa acompanhando os cânticos, tocandomatracas, batendo palmas e pandeiros.

O barracão é preparado de acordo com aentidade chefe da linha que vem comandar oritual e geralmente é adornado com muitos ba-lões. Para a princesa Troirinha, a cor utilizada éo verde e para o caboclo Pedrinho é o amarelo.Essas cores, entre outros elementos, represen-tam a origem ou domínio da entidade, isto é, oelemento da natureza ao qual ela pertence, ge-ralmente enfatizadas também na decoração doaltar que é enfeitado com flores, santos católi-cos, velas acesas e objetos que a brincante uti-liza durante o ritual.

No decorrer do ritual, fica disponível no al-tar o azeite de dendê, os cigarros feitos artesa-nalmente pelas pessoas da casa, três copos, umcontendo água, outro álcool e o terceiro vinho,que são utilizados por algumas entidades quecomparecem ao ritual para atender as pessoascom problemas de saúde. Um pequeno punhal,colocado ao lado dos copos, que também é uti-lizado nos trabalhos das entidades. Ainda nãopresenciamos nos rituais que assistimos no Ter-reiro Fé em Deus, o uso do punhal, mas este éum dos objetos que as entidades utilizam pararesolver determinadas situações (MundicarmoFerretti, 2000) ou problemas que as pessoasbuscam resolver com as entidades da cura.

No Terreiro Fé em Deus esse ritual é reali-zado duas vezes por ano, naquela irmandade,como o grupo se autodenomina. No mês deMaio, nos dias 21 e 22, o ritual da cura é realiza-do para homenagear a entidade princesa Troiri-nha, que é chefe da linha de cura na cabeça damãe Elzita. Por sua vez, no mês de Outubro,nos dias 21 e 22, o ritual é para a linha do cabo-clo Pedrinho, que vem na cabeça de sua filha-de-santo Rôxa. Há no terreiro, algumas pessoascom mediunidade, que também participam doritual recebendo entidades da linha de cura,mas somente dona Elzita e a sua filha-de-santo,

Rôxa, é que possuem entidades chefes de “cor-rente ou linha”22 de cura e realizam esses ritu-ais no terreiro, em épocas diferentes.

Há diferenças, entre os dois rituais de curarealizados no Terreiro Fé em Deus, muito em-bora, podemos dizer que tenham o mesmo sen-tido, o de receber em um terreiro de mina, ou-tras categorias de entidades para realizar traba-lhos de curar doenças, abrir caminhos, descar-rego e também, de certa forma, divertir-se. Oritual da cura evidencia alguns aspectos peculi-ares de algumas entidades que também são ho-menageadas no tambor de mina naquele terrei-ro e consiste em duas representações de ummesmo fenômeno religioso. O estudo de Mun-dicarmo Ferretti sobre o tema mostra que:

Embora na Cura não se costume entrar emtranse com divindades africanas e, normalmen-te, não se cante ali para voduns e orixás, algu-mas entidades recebidas na Mina, como di-vindades africanas, podem ser invocadas naabertura e no encerramento do ritual, quandorealizados em terreiro de Mina, e fala-se quesão às vezes, recebidas por pajé durante a Cura.(FERRETTI, M., 2000, p. 228)

Desse modo, os dois rituais possuem algu-mas características semelhantes, porque essasentidades curadoras que também são recebi-das nos toques de mina, realizam dois dias decura, com a passagem de muitas entidades emtranse curtos, entre outros elementos, como osobjetos que a brincante utiliza, durante o ritual.O que se faz peculiar a cada ritual é o brinque-do que ocorre no segundo dia do ritual.

No brinquedo realizado na cura da entidadeprincesa Troirinha, ela reúne o maior númeropossível de meninas de aparentemente 10 anosde idade para fazer uma roda e brincar de bone-ca. Ela se põe no meio da roda e começa a passara boneca para cada menina. Segundo dona Elzi-ta: “foi aos dez anos que dona Troirinha se mani-festou na minha cabeça”. Parece-nos que o brin-quedo na cura da princesa Troirinha rememoraesse fato e de certa forma é uma homenagem àcriança que a entidade escolheu, no caso, a donaElzita, para poder vir a este mundo e romper oslimites da encantaria, que pode ser uma criança,um homem... A verdade é que, como observouDurkheim (2003, p. 21), “também os deuses temnecessidades dos homens: sem as oferendas eos sacrifícios, eles morreriam”. O brinquedo, nacura da princesa Troirinha, pode suscitar muitasreflexões. Inspira certa áurea de formalidade -mesmo brincando de boneca com as crianças, aentidade mantém uma postura contida e discre-ta, diferentemente do brinquedo na cura da en-tidade Pedrinho que é uma longa festa.

A entidade Pedrinho é o caboclo que vemna crôa ou cabeça de dona Rôxa e, apesar deledescer nos toques de mina, ele nos disse que naverdade “é mesmo um curador”. Segundo ele, oseu ritual de cura no Terreiro Fé em Deus foiuma “permissão dos donos da casa”, a princesaTroirinha e o caboclo Surupirinha, o mensagei-ro do terreiro que tem “status” de dono. No seu

ritual de cura, o momento do brinquedo é umdos mais esperados porque no segundo dia, estaentidade oferece uma festa de tambor de criou-la em homenagem a São Benedito.

A presença do tambor de crioula na cura daentidade Pedrinho acontece porque segundodona Roxa, quem o recebe no Terreiro Fé emDeus, “O tambor de crioula vem pelo santo dele,que é São Benedito, então, geralmente, todo oinvisível que pertence pra linha pra São Bene-dito, a festa, é tambor de crioula”. (Entrevistaem 19/10/06). No dia 22 de Outubro de 2006,quando os brincantes chegaram ao terreiro, nãodemorou muito para começar a festa. A parelhade tambor foi colocada ao fundo do barracão elogo se formou uma roda de dançantes e Pedri-nho em dona Rôxa começou a dançar no meioda roda enquanto segurava a imagem de SãoBenedito, que depois foi repassada para as ou-tras brincantes. Durante todo o dia o grupo doTambor de Crioula animou a festa da entidadePedrinho que falou: “Eu estou feliz”!

No Terreiro Fé em Deus, o momento “brin-quedo” da Cura da princesa Troirinha, que temna boneca a sua representação, assim como oTambor de Crioula, que o caboclo Pedrinho ofere-ce a São Benedito, são momentos em que pode-mos refletir a respeito do que Durkheim (2003, p.412), denominou de “mentalidade ritual” porque:“se propõem unicamente redespertar certas idéiase certos sentimentos, ligar o presente ao passado, oindivíduo à coletividade”. As diferenças entre a re-presentação desses dois rituais de cura realizadosno Terreiro Fé em Deus, expressam as representa-ções dos seus agentes em relação às entidades prin-cesa Troirinha e o caboclo Pedrinho. Configuramainda, as diversas formas de expressão da fé dessesagentes e refletem também as características des-sas entidades no cotidiano de dona Elzita e donaRoxa, nas suas relações com o grupo do terreiro eno cumprimento das suas obrigações religiosas, ouseja, o espírito religioso se materializa em festa detambor de crioula e na roda de boneca em umterreiro de tambor de mina.

REFERÊNCIAS

DURHKEIM. E. As Formas elementares da vidareligiosa. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.FERRETTI, Mundicarmo. Desceu na Guma.São Luis: EDUFMA, 2000.————. Terecô, a linha de Codó. In: PRAN-DI, Reginaldo (Organizador). Encantaria brasi-leira – O Livro dos Mestres, Caboclos e Encanta-dos. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p.59-73.OLI-VEIRA, Jorge Itaci. Orixás e Voduns no Terreirode Mina. São Luis: VCR Produções e Publicida-de Ltda, 1989.SILVA, Vagner G. Candomblé e Umbanda: ca-minhos da devoção brasileira. São Paulo: SeloNegro, 1994.SANTOS, Maria do Rosário C. e SANTOSNETO, Manoel dos. Boboromina: Terreiros deSão Luis uma interpretação sócio-cultural. SãoLuís: SECMA/SIOGE, 1989.

ENTREVISTAS(com dona Elzita e Maria Auxiliadora, no Terrei-ro Fé em Deus).

22 Segundo dona Elzita nos informou, quando perguntamos a ela sobre esta forma de classificar essas manifestações religiosas em linha e corrente:“A linha de cura passa de parte da linha que vem do astral para o mar. A linha da cura é porque sai um entra outro. Ai vem do mar, vem da mata, vem do rio, vemda maré. E corrente é porque tudo que vem do astro é corrente, corrente astral, mas nem todo mundo pertence, cada um é de uma maneira. Eu sou dessa maneira,mas têm outros que não, nós não somos iguais”. (Em 05/02/07).

A partir das informações de dona Elzita, podemos inferir que linha se refere a uma categoria de entidade mais gerais ou comuns, que vem de todo lugar, e corrente sereporta a uma determinada categoria de entidade. Será que pode ser considerada de nível mais alto dentro dos cultos e que, quando ela diz que “corrente é tudo que vemdo astro”, está se dizendo que vem do céu, que é sagrado, puro e está em outro plano, hierarquicamente superior?

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JANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPO

Fulgêncio Pinto24

Das festas tradicionaes que ain-da perduram nos costumes pi-

torescos do matuto maranhense, a dobumba-meu-boi é a mais interessantepelo cunho caracteristicamente regionalque ella encerra.

No interior da Ilha de São Luiz doMaranhão com a belleza dos seus pano-ramas pompeantes e a pujança verde desuas arvores millenares, ella exerce umpoderoso fascinio na alma do ilheu inte-llingente, alegre e sapateador.

Nas ante-vesperas desse folguedocampesino, tão popular entre nós, vaese notando que a ilha passa por umatransformação radical.

As casas mudam de aspecto. Os cer-cados de pau-a-pique soffrem reformas.Todo mundo trabalha cantando, na re-modelação dos casebres, á espera do mezde junho que se approxima. Não chovemais. A invernada escaceia com os ulti-mos aguaceiros de maio.

Surgem as manhãs luminosas de umencanto indescriptivel.

Os ventos geraes infiltrando-se pelasramalheiras floridas, annunciam a mu-dança da estação. A temperatura é agra-davel e tem qualquer coisa communica-tiva que nos dá vontade de voltar ao tem-po de criança, ás doces quadras de umpassado feliz.

Nas encruzilhadas dos caminhos,amontoam-se toros de Aricurana, de ve-lhos Cajueiros, roidos pela lepra do cu-pim-assú, aguardando o lume, de ondeirão se levantar grossas labaredas chame-jantes para alegrar a noite decantada deS. João, o santo mais querido dos cabôclosde minha terra formosa.

O povo começa a trançar sem descan-ço pelo pizo das estradas. O formigueirohumano espalha-se em todas as direcções.E a ilha heraldicamente remoçada, naimponencia de sua vegetação brasilica,numa festa de arte decorativa que seduz,offerece á vista deslumbrada os forastei-ros que passam, o esplendor de seus con-tornos, o quadro maravilhoso de seus po-mares ramalhantes.

Ha contrastes de luz e epopéas decorês.

Arvoredos altissimos, como por en-canto trocam as roupagens. Symbolizamum templo druidico, para receber a vi-sita do sol americano que se arroja nocoração da matta com o seu cortejo lu-minoso, para officiar os mysterios deuma religião agreste, e glorificar Pan nosantuario de ensinamentos divinos. Enessa invasão triumphal e gloriosa, ellevae despertando forças sagradas que alise occultam, forças que hão de geraruma arte verdadeiramente nacional, paraguiar o Brasil, atravez do sentimento dabelleza dos seus esthétas, á finalidadede uma literatura propria, curiosa, deimaginação e realidade, que assombra-rá pela sua originalidade as élites intel-lectuaes do velho mundo. E em torren-tes impetuosa de imagens phantasticas,a luz se lança em projecçoes magneti-cas sobre o rendilhado das ramagens,para ascultar a alma dos deuses selva-gens que celebram o ritual de sua litur-gia tellurica no seio uberrimo daquellaselva povoada de divindades pagãs.

Carro de boi grunindo saudades, láse vão atulhados de môças e rapazescheios de vida, cortando os areiaes dosatalhos ensombrados de folhas de pin-dobeira. E’ gente da capital que fogedo calor da cidade, para respirar o ar purodo campo, em demanda de logares dis-tantes, de vivendas apraziveis, a fim degosar dias de delicioso veraneio, em con-tacto directo com esse reinado prodigio-so de folhagens, do meu berço abençoa-do que recebeu os mais enthusiasticoslouvores de Daniel de La Touche, o en-viado especial de S. Magestade Henri-que IV, el-rei de França e Senhor deNavarra.

Nas fontes estouram as mopongas desons cavos.

Aqui serpeia um arrojo murmurante,despejando as suas aguas christalinaspara o bôjo de uma cacimba encanta-da. Ali se nos depara risonha, prasentei-ra, uma casa de fôrno encaixilhada numterreiro tapetado de relva macia.

Todos se alegram. Ha sorrisos de sa-tisfação emoldurando os labios das ca-bôclas bonitas.

***JunhoOs ensaios das batucadas estão se ani-

mando pelos sitios de além.A matraca retine. Os pandeiros afi-

nados a fogo, repimpam rufos assanha-dos. A lufa-lufa cresce. Informações cu-riosas correm de bôcca em bôcca. Devem em quando chega um matuto fala-dor para contar as noticias mais frescasda época joanina: - um baile em pers-pectiva na casa de fulano; um baptisa-do turuna do filho de cicrano, na cape-lla, de siô Augusto Almeida, puxado acavaquinho, violão e tiquira bôa doMunim, com mesa de dôce e duas noi-tes de arrasta-pé; o levantamento de ummastro no tereiro de Dona ChiquinhaMajor, no Tapiracó. E relata risonho ecompenetrado, transbordante de con-tentamento, a combinação feita em se-gredo, entre as morenas do Timbúba edo Primirim, que estão no firme propo-sito de dar uma tunda mestra de dançaspuladinhas e valsas corridas, nos pilin-tras impalamados do Mocajutúba, noforrobodó de André Cavallo de Sorte, atédeixarem os cabras moles de cansaço,sujos de poeira, derreados de somno.

- Cabôco de Cajitúba, só tem que amuli-cê na chuva cumo bêjúÊrre diacho, bamo vê quem tem roupa nafonte !

***Chapéus ornamentados de fitas se

derramando em flabelos multicores, aolado dos gibões de belbutina azul e es-carlate, estendem-se ostensivamente nospeitoris das janellas e nos paus dos cer-cados.

A’ sombra dos piquizeiros, raparigastravessas, impando de mocidade, fuxi-cam, discutem por qualquer tuta-e-meia.E de dedal e agulha, ali ao ar livre, vãodesenhando signos de Salomão, meias-luas, estrellas mal ageitadas, crivando delantejoulas douradas, fios de aljofares econtas de malacacheta, os mantos ver-melhos de pelucia dos namorados pai-xólas, amos, primeiro rapaz e vaqueirosdo bumba-meu-boi de João Citóla, do

FESTA DE SÃO JOÃO23

23 Revista ATHENAS, Junho de 1940, p. 10-15. Foi respeitada a grafia original.24 Folclorista maranhense destacado nas décadas de 1930 e 1940, influenciado pelo modernismo (informação de Antonio Evaldo A. Barros).

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Boletim 38 / agosto 20072020

CONTINUAÇÃO

Jusaral. E ellas exhibem tudoaquillo por pabulagem, so-mente para azer propagandados nomes seus preferidos edeixar com agua na bocca, agentalha invejosa da visinhan-ça, cujos parentes faltos derecurso, não poderam prepa-rar-se para figurar ao lado doscompanheiros, no folguêdodesse anno.

***Noite de S. João.Ardem as fogueiras aver-

melhadas nos arraiaes.Foguetões estouram prô

lado das baixadas e dos ala-gadiços. E’ o signal de come-ço da fuzarca de dona Chi-quinha Major. O mastro jáestá plantado em frente deuma palhoça enfeitada deariry, rebocada de tabatinga,cheia de luz e atopetada demulheres barafundeiras.

No altar illuminado, re-pousa o santo da devoção.

Dá-se inicio á ladainhacantada com musica do com-positor popular maranhense,Pedro do Rosario.

Santa,Santa Maria,Santa Dei Genitrix,Santa Virgo Virginum,Mater,Mater Christe...

E o côro:

Ora pró nóóó... bis...

Mais e mais cresce o rumonas estradas. Gritos e vivas es-poucam no ar.

Festeiros barulhentos an-dam em busca de batuca-gés, esgoelando-se ao somdos instrumentos de corda epercussão:

Pára p’ra beber,Paroára !Ora pára p’ra beber,Paroára !

Valei-me Nossa Senhora,S. José de Arribamá,Quem me dé tomem apanha,Qui outro reméido não á.

Arriba siriba arriba,Cajueiro, cajuá

Arriba siriba arriba,Quero vê minha Yayá.

***La vem um boi de cambu-

lhada com os seus figurantes.Os enfeites prateados desta-cam-se á luz dos faróes. Bri-lham as lantejoilas, as franjasdouradas. Cabôclos reaes ves-tidos de pennas, tomam a di-anteira do desfile pitoresco,estrondando o pé rachado deareia quente, no chão plaina-do a soquête. O amo, o pri-meiro rapaz, pai Francisco,mãe Catharina, ou doutores,os vaqueiros e o resto do cor-dão, carnavalescamente ves-tidos, cantam toádas, interes-santes e saudosas de seu ri-mance campeiro. E’ “NãoIntica”, o boi mais afamadodo lugarejo:

Não Intica já chegou,Não Intica qué brincá,Morena chega á jinélla,Vem vê boi balanciá.

Este anno se ajuntemo,P’ra fazê bella união,Não Intica, é resorvido,Todos dois já são ermão.Dona Mundica mandou mepedi,Não Intica,Pr’eu levá boi, móde ella oiá,Passa bahia, não tenho ca-nôa,Ai meu Deus !Quem me déra eu sabê nadá.

***A patuleia anda sem direc-

ção, vinda dos recantos lon-ginquos da ilha: do Turú, daInhaúma, do Cumbique e detantos outros lugares distan-tes. E se tresmalha pelos ca-minhos e enviézos em que aalgidez do luar desdobra aalchimia maravilhosa do seumanto de luz.

Para essas festas desenter-ram-se dos bahús de lata, pa-letós curtos, sapatos janambú-ras de elastico e bico arrebi-tado, ressequidos, besuntadosá ultima hora, com azeite depeixe-boi. De cima dos giráose do alto das tacaniças, sãoretirados das copas de jornalpoeirento, guarda-chuvas an-

tigos, descorados, com chape-letas de metal azinhavrado,um arsenal emfim de de ve-lharias, para fazer alarde nes-sa noite de musicatas en-cantadoras, em que se sente aalma da patria vibrar atravezdas nossas cantigas folk-loricas.

Emquanto o boi dança noterreiro a criançada no alpen-dre tóca bichinhas de estra-los e brinca descuidada o Pa-dre Cura, o Peixinho de Mu-quem. Moças e rapazes sal-tam a fogueira, dizendo comvolupia no olhar:

S. Pedro, S. Paulo,S. Felippe, S. ThiagoTodos os santos da côrte docéu,Servirão de testemunhas,Como seu Fulano é minhasympathia.

Nas casas grandes, onde seaboletam pessôas que foramda capital, na maior intimi-dade da familia maranhenseainda apegada os usos e cos-tumes de outr’ora, faz-se asorte de S. João. E’ ôvo que-brado no copo d’agua. A facavirgem que passada na fo-gueira de palha benta de Do-mingo de Ramos e cravada notronco da bananeira, ao serretirada deste, trará na lami-na, segundo a crendice inge-nua do brasileiro nortista, asiniciaes ou o nome por intei-ro, do futuro espôso daquellaque praticou a operação. Apimenteira do quintal, em quea menina casadoira, de olhosvendados vae tirar o sortilegio,sob o commentario maliciosodas velhas e zumbaias dascompanheiras: se apanharuma pimenta madura, casar-se-á com um ancião narigudo,feio e ranzinza; si uma verde,terá por marido, um rapaz for-te, bonito e endinheirado.

Ao terminar a demorada re-presentação, o boi se retira paradar lugar a um outro que jávem perto, matraqueando,afim de evitar as brigas perigo-sas tão usuaes nesses encontros.

O amo canta a despedidasaudosa:

Oh! Lua cheia qui alumeia omá,A noite é bella pra quemsabe amá,Adeus morena que eu já vou-me embora,Adeus, adeus, minha na-morada,“Terrô da Ilha” vae se arritirá.

E longe, perdida nas bre-nhas, escuta-se a cantoria deum outro bumba que seguerumo differente:

Cabôco cummerciá,Vae dipressa no Ariá,P’ra chegá e vortá,Levá esta carta,Para aquelle cantadô,Mais que elle mande a repós-ta,Pelo memo portadô.

A festa de S. João, é umadas mais lindas reliquias dosincretismo religioso afro-lu-sitano, transplantada para oBrasil pelos primeiros povoa-dores vindos de alem-mar.

Nessas noites concorridasde junho, de minha terra na-tal, noites cheias de musica,cantares e poesia, sob o ple-nilunio dos tropicos, é que aalma simples do matuto vibrade emoção.

No dia seguinte ao raiar dosol, a ilha de S. Luiz, mostra-se mais formosa ainda no rei-nado das suas clorophilas,com a pompa atica e estesi-ante dos seus pindoramas so-berbos.

E nesse dealbar de ma-nhãs pantheistas, ella se en-feita de gemas de luz colorin-do os arvoredos. E expõe aoforasteiro, habitos invetera-dos, typos do meio ambien-te, os mais interessantes; sce-narios bucolicos, dentro deum mundo botanico, supera-bundante de bellezas sump-tuarias, sempre e sempre re-novadas aos olhos dos filhosqueridos que amam o regio-nalismo e cultuam as tradi-ções populares maranhenses,onde repousam as revivescen-cias totemicas do negro Ban-tú, e as energias ingenitas daraça Tupinambá.

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21Boletim 38 / agosto 2007 21

CUXÁ DE DONA CONSTÂNCIA

(Porção para 12 pessoas)25

Ingredientes250 gramas de gergelim250 gramas de farinha secamimosa (fina)250 gramas de camarão seco2 maços de vinagreiratemperos: cebola, tomate,óleo e sal a gosto

Preparo da farinhaLave bem o gergelim e tor-

re. Soque no pilão juntamen-te com a metade do camarãoseco. Misture com a farinhaseca mimosa e o resto do ca-marão.

Preparo do cuxáTire as folhas da vinagrei-

ra do talo e cozinhe-as comágua pura. Retire do fogo,escorra a água, que não deveser jogada fora. Use uma facapara bater a vinagreira sobreuma tábua. Refogue a vina-greira com a cebola, tomate,um pouco de óleo e sal a gos-to. Junte água pura e um pou-co da água que cozinhou a vi-nagreira. Vá juntando aospoucos a farinha até formaruma papa rala (ao esfriar en-grossa). Molhe um pouco afarinha antes de misturar,para não embolar. Deixe paracolocar o sal no final devidoao camarão seco.

O CUXÁ DO RESTAURANTE

TÍPICO “A DIQUINHA”26

Ingredientes50 maços de vinagreira150 gr de farinha seca (bemfina)250 gr de gergelim½ kg de camarão seco já des-cascado250 gr de camarão seco comcasca3 maços de jongome (só paraajudar a ligar)

CULINÁRIA MARANHENSE:RECEITAS TRADICIONAIS

10 a 20 maços de cheiro ver-de½ kg de cebola½ kg de tomate250 gr de pimentãopimenta de cheiro1 pimenta murici

PreparaçãoCozinhar o jongome com

a vinagreira, escorrer, baternuma tábua com a faca ou noliquidificador com parte daágua do cozimento, reservan-do a água restante. Torrar ogergelim com cuidado paranão ficar muito escuro, socarno pilão ou passar no liquidi-ficador com a farinha e o ca-marão comprado á descasca-do. Cortar os temperos bemmiudinho, bater ligeiramen-te no liquidificador com umpouco da água da vinagreira,a pimenta de cheiro e umapitada de sal. Botar na pane-la, juntar o batido de vinagrai-ra e jongome, a farinha como camarão e o gergelim, par-te da água da vinagreira, do-sando a primeira para o cuxánão ficar muito azedo, outraágua. Experimentar o sal, jun-tar a pimenta murici machu-cada sem semente e o cama-rão inteiro descascado, umpouco de massa de tomate ede óleo. Não deixar cozinharmuito para não amargar enem parar de mexer para nãoficar preto.

“Arroz de Cuxá” (batipuru)da Diquinha

Ingredientes15 a 20 maços de vinagreira1/2kg de arrozcamarão seco descascadotoucinho cortado bem miudi-nhotemperos (cebola, tomate,alho, pimentão, cheiro verdepicados)

PreparaçãoCozinhar a vinagreira, es-

correr, reservando a água docozimento para fazer o arroz,e bater numa tábua com afaca ou no liquidificador.Refogar o toucinho com ostemperos, misturar o arroz eo camarão, acrescentar parteda água do cozimento da vi-nagreira completando comoutra a água do arroz, paranão ficar muito azedo, com-pletar o sal, caso necessário,pois o camarão é salgado, jun-tar o batido de vinagreira eabafar.

“Arroz de cuxá” ou batipu-ru (Admée Duailibe)27

Ingredientes1 Kg de arroz branco10 maços de vinagreira500 gr de camarão seco (des-cascado)250 gr de gergelim1 cebola grande picadinha1 tomate picado1 pimentão picado2 maços de cheiro verde4 dentes de alho socadoscom sal

Modo de fazerTirar os talos da vinagrei-

ra e colocar em uma panelacom água para cozinhar. Tor-rar o gergelim e socar em umpilão ou passar no liquidifica-dor. Reservar

Lavar o camarão em vári-as águas, temperar com cebo-la, tomate, pimentão, cheiroverde e alho socado com sal.Refogar bem e reservar.

Escorrer a vinagreira, quedeve estar cozida, aproveitan-do a água para fazer o arroz,passar no liquidificador comum pouco de água em que foicozida e reservar.

Fazer o arroz branco apro-veitando a água que cozinhoua vinagreira. Quando come-çar a secar, juntar o camarãocom o gergelim, misturar eadicionar a vinagreira batida.Abafar e servir quente.

Gengibirra (NizethMedeiros)28

1 kg de gengibre; 2 litrosde água; açúcar a gosto.

Coloque o gengibre demolho por um período de trêsdias, para facilitar a remoçãoda pele, que deve ser feitaraspando-se com uma faca.Cortar em pedaços para ba-ter no liquidificador com umpouco de água. Depois debatida, esprema para separaro suco do bagaço com o auxí-lio de uma peneira. Junte orestante de água e o açúcar.Caso fique forte (ardor) colo-que mais água. Sirva bem ge-lada.

Mocororó ou Macururu(Zelinda Lima)29

Semear, com antecedên-cia, 1 ou 2 punhados de arrozem casca e aguardar a germi-nação. Quando germinado,preparar, à parte, um mingaubem grosso de fubá de arroze deixar esfriar. Tomar entãoas sementes germinadas, la-var, cuidadosamente, os bro-tos, pisá-los em um pilãozinhode madeira, coando o sumoresultante, que é vertido noboião no qual já se encontrao mingau. Por ao abrigo da luze do calor e aguardar a fer-mentação que, em geral, dura48 horas. Está pronta a bebi-da, já adoçada pelo açúcarnascente da fermentação doamido e ligeiramente alcoó-lica.

25 Colaboração de Nizeth Medeiros – professora da UFMA; membro da CMF.26 As duas receitas de Diquinha foram fornecidas a Josimar Silva, em entrevista realizada em 8/6/2007.27 Baseado em receita fornecida em www.admee.hpg.ig.com.br28 Transcrita do Boletim de Folclore nº 22 – julho de 2002 - encarte, p.2.29 Transcrita do livro Pecados da gula: receitas (LIMA, 1998, v.2, p. 100) como bebida de origem indígena. A receita foi obtida por Zelinda Lima de Ana Amélia Lima. Augusto

Aranha faz referencia ao mocorroró em Memória de Velhos, v. II (p. 177), como bebida gelada, adorável, vendida por mulheres pretas que passavam nas ruas gritando:“mocororó, mocororó!”.

Mundicarmo Ferretti

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Boletim 38 / agosto 20072222

Criado oficialmente através da Lei nº 4.652, de 21 de agosto de2006, o programa “Registro dos Mestres da Cultura TradicionalPopular da Cidade de São Luís” (PRMCTP-SL) é fruto de umainiciativa do vereador Joberval Bertoldo e se propõe a valorizar acultura popular de São Luís, preservando as tradições locais, atravésdo registro de pessoas que tenham técnica necessária para a produ-ção e a preservação dos saberes culturais, que fazem parte da memó-ria oral da sociedade.

Para participar do programa, os mestres, também conhecidoscomo “Tesouros Vivos da Cidade de São Luís”, precisam ser brasi-leiros, residentes em São Luís há mais de 20 anos; comprovar aparticipação em atividades culturais há mais de 20 anos; serem ca-pazes de transmitir seus saberes para as gerações futuras (esta exi-gência poderá ser dispensável em caso de doença comprovada porperícia médica) e terem vida e obra relevante para a cultura local, jáque o reconhecimento público é importante.

Os mestres reconhecidos como “Tesouros Vivos da Cidade deSão Luís” terão seus nomes registrados no livro “Registros dos Mes-tres da Cultura Popular da Cidade de São Luís” e um auxílio finan-ceiro de um salário mínimo mensal a ser pago pelo Executivo Muni-cipal, para garantir a estes cidadãos uma qualidade de vida digna dasua sabedoria.

No intuito de preservar os saberes, para que não se percam pelafalta de registro ou qualquer outro problema, os mestres deverão secomprometer a repassar seus conhecimentos e técnicas para apren-dizes participantes de programas de ensino organizados pelos ór-gãos específicos de difusão da cultura local, a serem fiscalizados pelomunicípio.

NOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIAS

TTTTTesouro Vivo da Cultura Pesouro Vivo da Cultura Pesouro Vivo da Cultura Pesouro Vivo da Cultura Pesouro Vivo da Cultura Popularopularopularopularopular

O reconhecimento e a valorização dos mestres da cul-tura popular do Maranhão estão presentes no “Tesouro

Vivo”, um projeto do Serviço Social do Comércio-SESC, compro-metido com o fortalecimento das raízes culturais da população ma-ranhense, em parceria com a Comissão Maranhense do Folclore,Secretaria Municipal de Cultura e a Câmara dos Vereadores de SãoLuís, que será realizado no período de setembro a outubro de 2007.O projeto visa homenagear àqueles que durante grande parte desuas vidas desempenharam e desempenham importante papel nastradições populares maranhenses.

O reconhecimento e a relevância dos mestres da cultura popularpara a sociedade maranhense já estão presentes em algumas inicia-tivas, como é o caso da Lei 4.652, sancionada pela Prefeitura Muni-cipal de São Luís, que criou o Programa “Registro dos Mestres daCultura Tradicional Popular da Cidade de São Luís”. A lei tem entreoutros objetivos, assegurar aos mestres e mestras um auxílio finan-ceiro e atribuir deveres de repasse de seus conhecimentos para gera-ções futuras.

O projeto “Tesouro Vivo” é, portanto, uma decorrência da lei e,mais um importante esforço de valorização dos guardiões dos sabe-res populares, funcionando como um benefício social e pedagógicona medida em que divulga e cria fundamentos de estímulo à produ-ção intelectual sobre os mestres e suas obras culturais.

O projeto inclui uma ampla programação com homenagens, di-vulgação e transmissão do trabalho desses mestres para as geraçõesfuturas, além de pesquisas, organização de um banco de dados sobrea produção cultural popular do Maranhão, seminários, palestras,exposições, apresentações culturais e artísticas, concursos de reda-ção, registros áudio-visuais e sonoros, entre outras atividades. Estu-dantes, professores, associações culturais, comerciários e pessoasinteressadas podem participar do projeto.

Roza Maria dos Santos30

30 Bacharel em Comunicação; membro da Comissão Maranhense de Folclore.

Eleita a nova diretoria daCMF para o biênio 2007/2008:Presidente - Maria Michol Pinhode Carvalho; Vice-Presidente -Roza Maria dos Santos; Secretá-ria - Nizeth Aranha Medeiros;

NOVA DIRETORIA CMFTesoureira - Lenir Pereira dos San-tos Oliveira. A eleição e posse dadiretoria foi realizada dia 11 dejulho, às 9:30 horas, na Sala deReunião da CMF, Casa de Nhozi-nho, Rua Portugal, 185 - Centro.

Morreu aos 67 anos de idade, por insuficiência respirató-ria, José de Ribamar Pinheiro, dia 02 de julho. Zé Pinheiro,que nasceu em 16 de agosto de 1939, foi o quarto chefe doSalão Pedra de Mirá - situado à Rua Nossa Senhora da Vitó-ria, 16B – Miritiua/Ribamar - terreiro de culto afro-maranhensecentenário (faz 100 anos em 2008). Ele acumulava a atividade depai-de-santo com a função de Diretor para assuntos de culto-afro,junto à Federação de Umbanda, Espírita e Cultos Afro-Brasilei-ros do Estado do Maranhão, da qual foi oito anos presidente. Navida civil era reformado da Polícia Militar do Maranhão e foi De-legado de Polícia em vários municípios como: Miranda, Alto Ale-gre, Pindaré, São Luís Gonzaga, entre outros.

MORRE O PAI-DE-SANTOZÉ PINHEIRO

Lei incentiva o reconhecimentoLei incentiva o reconhecimentoLei incentiva o reconhecimentoLei incentiva o reconhecimentoLei incentiva o reconhecimentodo Tdo Tdo Tdo Tdo Tesouro Vivoesouro Vivoesouro Vivoesouro Vivoesouro Vivo

O livro Mulheres Negras do Brasil, de Schuman Schumaher eÉrico Vital Brazil, publicado pelo SENAC Nacional, em parceriacom a REDEH-Rede de Desenvolvimento Humano, foi lançado emSão Paulo, no dia 23 de abril de 2007. A obra, que tem 496 páginas,agrupa imagens e informações que estavam dispersas em arquivos,instituições, coleções particulares, livros, teses, periódicos e na lem-brança das pessoas. Disponibiliza para as próximas gerações, dadosfundamentais ao entendimento e à justa valorização das múltiplasfunções exercidas pelas mulheres negras na edificação do Brasil.Imagens e informações sobre mulheres negras do Maranhão podemser encontradas nos seguintes capítulos: As mulheres sagradas: mãesde santo, mães de tantos - fotos da casa de Maximiniana; Casa dasMinas; Casa de Nagô; Mundica Estrela - Terreiro do Justino; Terrei-ro da Turquia; Mundica Tainha; Casa Fanti-Ashanti; Denira; Elzi-ta; Margarida Mota; Terreiro de Iemanjá; Mariinha – Tenda SantaTerezinha; Antoninha – Codó; Izabel Mineira – Cururupu; Nomundo da política: do sufrágio à tribuna - foto de Maria Aragão; LiaVarela; Mulheres negras em movimento: um breve panorama dasúltimas três décadas - grupo Mãe Andresa; Maria de Lourdes Si-queira; Mundinha Araújo; Cultura: as que tecem valores - grupo deTambor de Crioula (1938); Caixeiras de Alcântara; Pelos palcos davida - Alcione; capa de livro de Maria Firmina, com o pseudônimo“Uma Maranhense”.

LANÇAMENTO DE MULHERESNEGRAS DO BRASIL

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23Boletim 38 / agosto 2007 23

IMAGEM DE SÃOBONIFÁCIO DO MARACU

O Comitê de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Pai-sagístico e do Meio Ambiente de Viana solicitou tombamentoda imagem de São Bonifácio do Maracu junto ao IPHAN, comorelíquia de inestimável valor histórico-cultural a ser defendido epreservado. A imagem foi presente do Papa Urbano VIII aos pa-dres das Companhia de Jesus, trazida de Roma pelo Padre Mano-el de |Lima, desembarcou em São Luís em 1652. Segundo a me-mória oral vianense a imagem de madeira policromada chegou àBaixada Maranhense pelas mãos dos próprios jesuítas no finaldo século XVII.

MOSTRA CULTURALDO PIQUI DA RAMPA

A Associação Comunitária do Povoado de Piqui da Rampa/Vargem Grande-MA, realizou Mostra Cultural do Piqui da Ram-pa, em São Luís (dia 28 de junho) e nos municípios de Itapecuru-Mirim (29) e Vargem Grande (30). O objetivo é possibilitar a cir-culação do produto cultural regional, romper o isolamento dacomunidade e criar condições de visibilidade e articulação comoutros grupos de tambor, outras associações e representações domovimento negro em São Luís. Durante a mostra foram realiza-das palestras, exposição de artesanato, lançamento o livro Tam-bores de Piqui, Cartas de liberdade: memória de trajetória dacomunidade de Piqui da Rampa e apresentação do tambor decrioula de Piqui. Em São Luís o evento aconteceu no MuseuHistórico e Artístico do Maranhão.

GRANDES RELIGIÕES NASGRANDES RELIGIÕES NASGRANDES RELIGIÕES NASGRANDES RELIGIÕES NASGRANDES RELIGIÕES NASBANCAS DE JORNAISBANCAS DE JORNAISBANCAS DE JORNAISBANCAS DE JORNAISBANCAS DE JORNAIS

A Revista História Viva, da Duetto, lançou a série GrandesReligiões – uma visão histórica das principais tradições religiosasdo mundo. Em seu sexto número - GRANDES RELIGÕES -CULTOS AFROS: A Sagração do Sincretismo - tem como con-sultor Vagner Gonçalves da Silva e textos assinados por SérgioFerretti, Mundicarmo Ferretti e Norton F. Corrêa (professoresda UFMA), Luiz Assunção, Roberto Motta, Rita Amaral, AriPedro Oro, Alejandro Frigerio, Padre Clóvis Cabral e vários pelopróprio Vagner.

CONTINUAÇÃO

Para comemorar 34 anos decriação do Museu Histórico e Ar-tístico do Maranhão, a equipedo MHAM abriu debate sobre opapel dos museus na atualidade.Pesquisadores, representantesdo poder público e estudantesdebateram sobre museus comoespaços de comunicação, comonão só os acervos dos museus,mas também, os programas, pro-jetos e ações podem ser utiliza-dos como recurso educacional e

JORNADA COMEMORTIVA DOS 34 ANOS DO MHAMde inclusão social. Para cumprira Jornada, de 24 a 28 de julho,foram realizados conferências,mesas-redondas, comunicaçõesorais, exposição de painéis, ofi-cinas, exibição de documentári-os, programação cultural e cir-cuito de visitas. A abertura daJornada, dia 24, foi feita pela Co-ordenadora de Conservação doMuseu Nacional de Belas Artes/IPHAN/MinC, Nancy de Cas-tro Nunes. Dia 25 – mesa-redon-

da – Patrimônio Cultural, coor-denada pela Mestre Grete Pflue-ger (UEMA), teve como debate-dores: Historiador Ananias Mar-tins; Profa. Mestre ClaudecyCosta (MHAM); Prof. MestreKlantenis Guedes (UFMA). Nodia 26 - mesa-redonda - NegrasMemórias, coordenada por Ci-bele Bittencourt (MHAM), ten-do como debatedores: Prof. Dr.Josenil Pereira (UFMA), MagnoCruz (membro/CCN) e Prof. Dr.

Sérgio Ferretti. Dia 27 - Museuse Educação em pauta na mesa-redonda coordenada pelo Prof.Dr. Paulo Rios (CEMOC-TRT/MA), com os debatedores:prof. Dr. João de Deus (UFMA);Davi Rego (pesquisador); Arte-educadora Elisene Matos(MHAM). A conferência de en-cerramento - Museu como lu-gar de Memória - dia 28, foi pro-ferida pelo arqueólogo, Deusdé-dit Carneiro Filho.

30º GUARNICÊ PREMIADVD SOBRE CUXÁ

Cuxá: prato típico tradicional do Maranhão – vídeo docu-mentário realizado pela Comissão Maranhense de Folclore

para o registro do Cuxá como patrimônio imaterial do Maranhãoganhou prêmio na 10ª Mostra Refestança do 30º Guarnicê de Cine-ma, pelo juri popular. Direção: Cícero Silva; Roteiro: Cícero Silva eZelinda Lima; Argumento: Zelinda Lima e Mundicarmo Ferretti;Edição e Finalização: Roberta Azzolini. O DVD pode ser adquiridono Bazar do Giz (no Centro de Cultura popular Domingos VieiraFilho).

SESC-MA APÓIA REGISTRO DO CUXÁ

O SESC-Regional do Maranhão produziu em DVD um documentário reforçando seu apoio ao pedido de registro do

cuxá como patrimônio imaterial do Maranhão. O DVD Cuxá temRoteiro e Direção Geral de Cláudio Farias; Produção Executiva eEdição de Joan Santos; Assistente de Produção: Dida Magalhães;Imagens de César Santos; Assistentes: Domingos Mendes e Cha-guinha Costa; Fotografia: Caio Márcio; Direção de Imagens e Mu-sical: Cláudio Farias.

CULINÁRIA NO ARMAZÉM

O Espaço Armazém, na Praia Grande, está apresentando atéo dia 26 de agosto, a exposição fotográfica Culinária de

Wilson Marques, Nael Reis e Edgard Rocha. A exposição está abertaao público de Segunda a Sexta, das 10h às 21h e no Sábado, das 16hàs 22h. Culinária faz parte da série de exposições inspiradas no pro-jeto Perfil Cultural e Artístico do Maranhão, realizado pela AMAR-TE – Associação de Apoio à Música e à Arte do Maranhão, com opatrocínio da Companhia Vale do Rio Doce.

HOMENAGEM AAUGUSTO ARANHA MEDEIROS

O centenário do nascimento de Augusto Aranha foi comemorado com uma celebração eucarística realizada no dia

11/08, na Capela da Irmandade de Bom Jesus dos Navegantes, insti-tuição a que se dedicou por 70 anos. A comemoração, que foi orga-nizada por sua filha e sucessora, Nizeth Medeiros - professora daUFMA e membro da Comissão Maranhense de Folclore -, reuniugrande numero de amigos que conviveram com ele em diversos mo-mentos dos seus quase 93 anos de vida.

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Perfil Popular

Raimunda Menezes de Aguiar, mais co-nhecida como Diquinha, nasceu no

município de Codó, no dia 10 de agosto de 1933.Morou com a avó até os 13 anos, quando a mes-ma morreu e ela ficou só, pois todos os seus fami-liares já eram falecidos. Começou então a traba-lhar em casa “de família” como empregada do-méstica. Mais tarde foi tecelã na fábrica de teci-dos daquela cidade, de propriedade dos Archer.

Casou com o comerciante José Domingos deAguiar enfrentando preconceitos de alguns pa-rentes dele, pois alegavam que ela não tinha fa-mília. Depois de casada, com o apoio do marido,aprendeu a costurar e bordar, tornando-se profis-sional do ramo. Costurava para a família de Se-bastião Archer, que foi governador do Maranhãoe para as mulheres “da vida” (meretrizes), quemuito a ajudaram em uma fase difícil de suavida, quando o marido foi enganado pelo sócio,perdeu tudo o que tinha, e foi para São Luís,onde esperava ter melhor condição de vida.

Depois que o marido arranjou emprego, veiopara São Luís com o filho de 9 meses e umamenina que deveria ficar em casa com ele paraela poder trabalhar. O marido entrou para o Cor-po de Bombeiros e depois foi para a Policia.Foram tempos difíceis, lembra que quando elefalava em ir embora, para procurar trabalho emoutra cidade, ela dizia: “estamos atravessando anossa ‘baía’, nós vamos atravessar juntos; te-mos que criar nosso filho juntos”... Mas, reme-morando essa passagem, exclamou: “os doismorreram, mas enquanto estavam vivos eu nãome separei deles”.

Chegando à cidade, dona Diquinha, comoseu marido não aceitava que ela colocasse naporta a tradicional placa “costura-se para fora”(que na gíria, significa “trair o marido”), passou acosturar para as camisarias da Rua Grande epara as “mulheres da Rua Vinte e Oito” - “mu-lheres da vida” (prostitutas) no linguajar mara-nhense - que lhe pagavam um preço melhor.Esse dinheiro ajudava a pagar o colégio do fi-lho, que estudava no Zuleide Bogéa. Como era“bem relacionada”, conseguiu comprar tecidose fazer roupas para vender, tendo o senhor Maia,dono do Hotel Central, como avalista. Contaque só deixou de costurar quando foi operada,com hemorragia interna, por causa de “filho natrompa”. Passou também a vender comida: tor-resmo, tripinha, café, leite. Depois comprouuma barraca na Praia Grande passando a fazercomida para o pessoal da Alfândega e para osestivadores.

Josimar M. Silva31

Raimunda Menezes de Aguiar – Diquinha30

30 Baseado em entrevista realizada em 8 de junho de 2007 e em informações fornecidas pela pesquisadora Roza Maria dos Santos - CMF. Fotos de Margareth Figueiredo.31 Licenciada em História; pesquisadora de cultura popular; membro da CMF.

Com a ajuda de amigos da Caixa Econômi-ca, que lhes deram tábuas e outros materiais,melhorou a barraca, mas, como na compra dabarraca não foi passado recibo, a antiga donavoltou a ficar com ela, apesar dela ter reagidofortemente e de ter passado quase seis mesesindo à Policia, tentando continuar com a barra-ca. Em 1967 alugou um ponto comercial na Ruado Poço, no bairro da Floresta, onde ampliousua venda de refeições fazendo: peixe frito, di-versos tira-gostos, pato, sarrabulho, mocotó, tri-pinha e torresmo. Comentando agora o seu su-cesso declarou: “eu não sabia trabalhar comcomida, aprendi a cozinhar fazendo e experi-mentando, mas o cuxá eu aprendi em Codó”.

Em São Luís, morou em vários bairros atéque se mudou para a casa onde reside atual-mente e funciona o Restaurante Típico “A Di-quinha” (Rua João Luís, nº 62 – Diamante). Em1972, no período junino, conheceu Dona Zelin-da, que trabalhava na MARATUR, quando foiconvidada por ela a participar com uma barra-ca de comidas típicas no arraial do Parque doBom Menino. Nessa época começou a fazercuxá para vender. Já estava com o restaurantena rua João Luís, bairro do Diamante, chamadode “Base da Diquinha”, onde cozinhava e ven-dia cerveja. Na barraca as comidas principaisdo seu cardápio eram: sarrabulho, mocotó, cari-ru, bobó, cuxá e baião-de-dois. Afirma que emCodó, na sua época, quase toda casa tinha péde cuxá (vinagreira) e que a comida denomina-da cuxá era feita para consumo caseiro, não eravendida. Falando a respeito de comida típicadona Diquinha explica que existe o cuxá (comoo que serve em seu restaurante) e o “arroz decuxá” (arroz de vinagreira), que faz por enco-menda, e acrescenta: “uma moça me disse quecomeu ́ arroz de cuxá´ com gergelim e, como eu

disse que nunca vi, ela comprou uma porção etrouxe pra eu olhar; fica uma coisa feia, mascada um tem seu jeito de cozinhar”...

O Restaurante Típico A Diquinha é famo-so pela gostosa carne-de-sol, produzida pelaprópria dona Diquinha e servida com cuxá. Elaconta que começou a servir esses dois pratosjuntos a partir da década de 1980, quando seusclientes começaram a pedir carne de sol comcuxá. Aliás, ela afirma que eles comem tudocom cuxá: torresmo, tripinha frita, carne de por-co assada, isca de peixe etc. e que às vezespedem cuxá como entrada. O cuxá é o “carrochefe” do restaurante da Diquinha, e ela escla-rece: “quando não tem cuxá eu não vendo nada”.

Dona Diquinha conta que o senador Sarney,sempre que está em São Luís, manda comprarcuxá no seu restaurante para o banquete fami-liar e que em junho passado, Dona Marly Sarneyencomendou a ela uma quantidade substanci-osa de cuxá para ser vendido em barraca bene-ficente. E acrescenta que Pergentino Holanda,Alcione, Fred e Alfredinho Duailibe, Dr. Fran-co, Dr. Fonseca, entre outros, são pessoas quesempre prestigiam a sua comida, às vezes co-mendo no restaurante A Diquinha e outras ve-zes levando para casa.

Para os freqüentadores do restaurante daDiquinha ou que costumam encomendar a elapratos da culinária maranhense, a comida dedona Diquinha é inigualável. E ela, apesar dasua simplicidade, tem orgulho de exibir na pare-de um quadro com um certificado de qualidadedo seu restaurante, avaliado como “quatro estre-las”, que informa ter recebido de Sarney, quandoele era Presidente da República. E esclarece: “oespaço já não é quatro estrelas, mas a comida,principalmente o cuxá, continua sendo”.

Diquinha é uma mulher otimista, batalha-dora, que gosta de trabalhar e que lutou muito,mas conseguiu viver com a sua família e serreconhecida como uma das maiores especialis-tas em comida típica do Maranhão.

www.culturapopular.ma.gov.br