BOLETIM CONTEÚDO Boletim JURÍDICO N. 616 · Graduada em Direito pela UFRN, graduada em Comércio...

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 616

(Ano VIII)

(18/05/2016)

 

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BRASÍLIA ‐ 2016 

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ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

18/05/2016 Daniel Moreira 

» Multas tributárias de ICMS: Abusivas e inconstitucionais

ARTIGOS 

18/05/2016 Beatriz Figueiredo Campos da Nóbrega » Instrumentos Jurídicos de Compatibilização do Sistema Internacional de Comércio ao 

Direito do Desenvolvimento 

18/05/2016 Manuela dos Santos Domingos 

» Efetivação da razoável duração do processo através da racionalização das demandas 

remetidas às instâncias extraordinárias 

18/05/2016 André Luís dos Santos Mottin 

» Pressupostos limitadores do princípio da autonomia dos títulos de crédito 

18/05/2016 Otavio Machado de Alencar 

» Princípio do promotor natural: o HC 67.759/RJ e o criticável não reconhecimento do 

princípio pelo STF 

18/05/2016 Lara Caxico Martins Miranda 

» O valor da jornada de trabalho e do trabalhador 

18/05/2016 Roberto Monteiro Pinho 

» Porque resistem em repensar a especializada? 

 

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MULTAS TRIBUTÁRIAS DE ICMS: ABUSIVAS E INCONSTITUCIONAIS

DANIEL  MOREIRA:  Nagel  &  Ryzeweski Advogados.

As multas tributárias aplicadas nas dívidas de ICMS têm excedido os patamares legais, configurando em confisco, e devem ser vedadas e combatidas pelos contribuintes devedores de ICMS no Estado do Rio Grande do Sul. Tanto para as multas aplicadas por falta de pagamento do tributo quanto pelas infrações ou obrigações acessórias, a penalidade não pode ter caráter confiscatório.

Em relação às multas, quando estas superarem o valor do tributo eventualmente devido, torna-se inquestionável que a punição é excessiva e com esta postura o Estado prefere acumular dívidas impagáveis, se obrigando a lançar programas especiais de parcelamentos e descontos, de tempo em tempo, do que estabelecer um critério de correção de débitos tributários de forma mais justa.

Se considerarmos que no RS o ICMS é de 18 %, e a aplicação de multas em percentuais superiores a este sobre o valor da operação, por óbvio que o índice da multa excederá em muito o valor devido do próprio tributo. E tal conduta já tem jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, inclusive no STF, declarando a inconstitucionalidade de multas excessivas.

Em uma decisão, ressaltou o Ministro Celso de Mello que o poder de tributar não pode ser empregado como poder de destruir, o que ocorre na previsão de multas em valores excessivos.

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Mais uma vez, o STF ressaltou que o fisco não pode utilizar sua prerrogativa funcional em matéria tributária para exigir prestações pecuniárias confiscatórias e desproporcionais que coloquem em risco ou prejudiquem a atividade empresarial.

Para que a exigência tributária não seja confiscatória, esta deve guardar adequação à capacidade contributiva, bem como observar os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade. Não se pode legitimar os tributos e as multas que, por sua excessividade, reflitam de forma negativa sobre a liberdade econômica e social e a propriedade privada dos contribuintes.

Neste contexto, é possível questionar a validade das multas na esfera do ICMS quando a penalidade superar a razoabilidade e a proporcionalidade entre o tributo devido e as correções sobre o valor principal ou da operação. Sendo assim, são inconstitucionais e passíveis de discussão por meio de ação judicial.

O questionamento perante o Judiciário pode ser feito independentemente se estão sendo objetos de execução fiscal, autos de infração fiscal, cobrados administrativamente ou incluídos em parcelamento. A discussão judicial das multas e correções ilegais de ICMS pode ser realizada tanto para afastar uma cobrança atual como para recuperar valores já recolhidos, suspender execuções fiscais, anular penhora de bens, além de toda sansão que esteja trazendo prejuízo à empresa por uma cobrança ilegal e abusiva.

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INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE COMPATIBILIZAÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL DE COMÉRCIO AO DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

BEATRIZ FIGUEIREDO CAMPOS DA NÓBREGA: Graduada em Direito pela UFRN, graduada em Comércio Exterior pelo IFRN, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera/ UNIDERP e mestre em Direito Constitucional pela UFRN.

RESUMO: O Sistema Internacional de Comércio (SIC) possui imbricada correlação com o Direito do desenvolvimento. O sustentável desempenho do SIC depende da garantia do Direito do desenvolvimento a cada nação. Este, por sua vez, só será adequada e efetivamente concretizado se conjugado a uma dinâmica comercial internacional favorável, norteada conforme a igualdade real entre as nações. Deste modo, deve-se buscar adequar a lógica das relações comerciais hodiernas ao necessário desenvolvimento justo e democrático das nações. Mas como concretizar tal anseio no âmbito prático, não o restringindo ao campo meramente teorético? Ou, ainda, como conciliar a realidade atual das relações internacionais comerciais com a efetivação do Direito do desenvolvimento? Neste sentido, o presente escrito se propõe a investigar os instrumentos jurídicos, notadamente no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), destinados a impedir que o comércio internacional represente um óbice à concretização do Desenvolvimento, enquanto direito consagrado em documentos internacionais e internamente, em nossa Constituição Federal.

Palavras-chave: Sistema Internacional de Comércio. Direito do desenvolvimento. Instrumentos jurídicos. OMC.

1. INTRODUÇÃO

Nenhuma nação é absolutamente autossuficiente. Para suprir as necessidades inerentes a cada organização nacional, recorre-se ao sistema internacional de comércio por meio do qual bens e serviços são trocados através das fronteiras internacionais.

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O comércio internacional apresenta, em sua dinâmica, adjacentes efeitos que incidem não somente sobre o setor econômico, mas também sobre o social, cultural e político, de modo que envolve uma gama de interesses públicos, difusos e coletivos, a ponto de não se poder negar sua decisiva influência sobre o fator desenvolvimento. Seu crescimento[1], potencializado pelo processo de globalização e o conseqüente aumento do fluxo de capitais entre as economias, vem fomentando o aumento da interdependência entre as nações. De fato, vem se verificando uma crescente vinculação dos países “em desenvolvimento” frente às determinações e políticas adotadas pelos nominados “desenvolvidos”.

Surge, assim, verdadeira afronta à soberania política interna a cada Estado, na qual reflete-se, efetivamente, a incidência mais concreta dos efeitos da globalização por sobre a governança dos Estados. Sob esta égide, a soberania mostra-se como prerrogativa de independência de fato que um Estado apresenta perante as demais nações – o que variará conforme o grau de integração econômica ou militar, o sistema de blocos regionais que integre e mesmo a força de decisão própria que o Estado possua. Decorre, deste cenário, uma real subordinação, no âmbito das relações internacionais, de determinados países perante outros, de forma que o capital atua, então, determinando os rumos da política dos países submissos - dinâmica esta que tende, por conseguinte, a uma crescente sujeição política de certos Estados a outros no sistema capitalista mundial, dada a supramencionada interdependência entre as nações.

Reflexamente, o maior grau de influência e de poder decisório das grandes potências conduzirá o Estado dependente a proceder tendencialmente à reprodução das formas de dominação-subordinação imperialista - uma vez que, dada sua hipossuficiência, quando comparativamente considerado em relação àquelas, deverá conformar-se às diretrizes econômicas, políticas, e por vezes até jurídicas, determinadas pelas mesmas, sob pena de falência do Estado dissidente que venha a sofrer prováveis embargos[2], retaliações, sanções e mesmo reprimendas que se manifestem indiretamente, porém de forma determinante.

Isto posto, a conjuntura internacional instiga à perquirição da forma de realização do direito do desenvolvimento no âmbito nacional, além da maneira como se dá sua regulamentação no ordenamento jurídico pátrio - de modo a buscar-se a compreensão

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das duas conjunturas enquanto realidades coexistentes, harmônicas ou não.

À luz da Constituição Federal, que prevê o direito do desenvolvimento enquanto objetivo fundamental da República, surge a necessidade de se avaliar o modelo atual de comércio internacional, instrumento que se revela ora como incentivo ora como entrave à efetivação deste direito do desenvolvimento nacional.

Dada a relevância e efeitos tanto reais quanto nefastos ao tema pertinentes, procurar-se-á analisar, no presente trabalho, a realidade hodierna do Sistema Internacional de Comércio e sua relação com o Direito do desenvolvimento, conjugando-a à situação brasileira e buscando-se, ao mesmo tempo, soluções para suas deficiências e sua compatibilização aos anseios desenvolvimentistas locais.

2. DA INTERRELAÇÃO ENTRE O SISTEMA INTERNACIONAL DE COMÉRCIO E O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

O Direito do desenvolvimento: “É um conjunto de princípios e regras no fundamento dos quais o homem, enquanto indivíduo e membro do corpo social (Estado, nação, povo...) poderá obter, na medida do possível, a satisfação das necessidades econômicas, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. Z. Haquani.

2.1. DO DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

a) O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO EM DOCUMENTOS INTERNACIONAIS

A mais remota previsão do Desenvolvimento enquanto direito consagrado no âmbito internacional encontra sede na Declaração da Filadélfia da OIT, que data de 1944 e que já expressava que todos os homens: “tienen el derecho tanto al bienestar material como al desarrollo espiritual, en condiciones de libertad y dignidad, de seguridad económica y de igualdad de oportunidades”.

Em seguida, foi consagrado na Carta da ONU de 1945, senão vejamos:

Artigo 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da

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igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão:

a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social

Artigo 76. Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os Propósitos das Nações Unidas enumerados no Artigo 1 da presente Carta serão:

a) favorecer a paz e a segurança internacionais;

b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou independência, como mais convenha às circunstâncias particulares de cada território e de seus habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados e como for previsto nos termos de cada acordo de tutela;

No entanto, é só no ano de 1986 que esse direito foi formal e mundialmente conclamado em uma Declaração específica para tratar do tema[3] - momento a partir do qual ele passa a ser exigível, simultaneamente, como direito individual do ser humano e como direito coletivo inerente a todo e qualquer povo, cabendo aos Estados elaborar e implementar políticas públicas capazes de garantir a real concretização de tal direito, tanto no plano interno como no internacional, bem como assegurando sua efetividade presente e futura.

Erigia-se a Declaração Sobre o Direito do desenvolvimento (DDD) de 1986, que define, já em seu preâmbulo:

[...] o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios daí resultantes[4].

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Com efeito, o desenvolvimento consiste em um processo de caráter dinâmico que foi tendo seu conceito modificado conforme a evolução histórica das relações internacionais. Inicialmente restrito ao campo econômico, o desenvolvimento incorporou, aos poucos, matizes das demais disciplinas, tornando-se, portanto, produto de um processo cumulativo que se irradia por áreas diversas da mutante vida em sociedade.

b) O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO CONSAGRADO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

A Constituição Federal de 1988 prevê o direito do desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, sendo tal norma constitucional dotada de imperatividade e eficácia imediata perante todos os Poderes do Estado.

Não obstante, o artigo 3º da Carta Magna, ao prever tal direito como escopo estatal, não nomeia expressamente as formas pelas quais sua consecução pode ser efetivada.

Desta feita, necessária se torna a análise sistemática do ordenamento pátrio, a fim de se perquirir garantias, fundamentos e mecanismos previstos em prol do alcance do sobredito desenvolvimento.

Ab initio, deve-se avaliar a ordem econômica constitucional. Prevista no Título VII, da Lei Suprema, prevê a respectiva base principiológica e as diretrizes das políticas urbana, agrária e fundiária.

O direito econômico é norteado segundo a lógica do capitalismo humanista, vez que pautado pela busca da existência digna de todos, conforme ditames da justiça social. Além das relações econômicas, este ramo do direito busca, como do viés da atividade econômica estatal -interveniente direta na economia e como sua regente - a tutela da população, que, em última ratio é direito fundamental do povo do Brasil.

O direito do desenvolvimento sobressai, assim, como pressuposto de dita tutela, dadas suas mencionadas vertentes interdisciplinares. A opção juridicamente mais adequada para fins de sua consecução indica no sentido da condensação dos direitos

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humanos agrupados em cadeia de adensamento para outorgar à população sua satisfatividade, proporcionando a justiça social.

Caberá avaliar, então, no estudo que ora se erige, a conjugação dos princípios previstos nesta seara, vez que atuam como diretrizes norteadoras da economia nacional. Nesta senda, ressalta-se o art. 174 enquanto marco da transição de um Estado ausente para um Estado presente no setor econômico. Determina que o Estado atuará como agente normativo e regulador da atividade econômica, com funções fiscalizatórias, de incentivo e planejamento.

Vê-se, pois, que o direito do desenvolvimento econômico vincula os três Poderes do Estado, que deve pautar sua ação interventiva segundo o princípio fundamental do desenvolvimento nacional.

Nos campos político e social, por sua vez, preponderam a democracia representativa guiada pela soberania popular e sob a governança de um Estado Democrático de Direito. A participação popular está teoricamente assegurada, embora faltem níveis adequados de instrução para que a população faça prevalecer sua cidadania no exercício de direitos políticos.

O primado da ordem social consiste no trabalho e apresenta, como objetivos precípuos, o bem-estar e justiça sociais. Enquanto instrumentos destinados à efetivação dos direitos sociais são previstos programas educacionais, de assistência à família, à criança e ao adolescente, bem como previdência, saúde e assistência sociais. No entanto, falta efetividade a normas tais que não alcançam a plenitude dos fins que colimam, e findam, assim, por obstar o logro do processo de desenvolvimento.

A realização deste direito de 3ª geração, direito este denominado “de solidariedade” pressupõe a capacidade estatal de livrar-se dos condicionamentos externos resultantes das relações de poder advindas do Sistema Internacional e fazer prevalecer a vontade soberana de sua própria população – sob o fundamento maior da democracia representativa -, garantindo seu poder de autodeterminação e independência em face das demais sociedades.

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De fato, o ilustre professor Franco Montoro nos ensina que o desenvolvimento “depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer, o que exige a superação da condição de dependência ou subordinação de tipo colonial, no plano político, econômico ou cultural”[5].

É inequívoco, portanto, que o direito do desenvolvimento enquanto direito fundamental, encontra sua efetivação condicionada às limitações e ingerências propiciadas pelo Sistema Internacional de Comércio. E, sendo o Brasil membro da comunidade internacional, necessário se torna avaliar os instrumentos jurídicos dos quais se pode valer para garantir a conciliação de seus propósitos comerciais sem se olvidar do compromisso constitucionalmente assumido de promoção do desenvolvimento nacional.

2.2. DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO E O COMÉRCIO INTERNACIONAL

Alcançar um efetivo e perene Direito do Desenvolvimento às nações[6]: nisto reside um dos maiores desafios do século XXI, notadamente pois o comércio internacional tem figurado como um dos principais motivadores da manutenção da disparidade entre países desenvolvidos e os subdesenvolvidos[7].

A necessidade de regulamentação do Sistema Internacional de Comércio é, portanto, inequívoca. A fim de se fazer prevalecer o consagrado Direito do Desenvolvimento, urge uma autêntica multilateralização de privilégios no âmbito das transações comerciais verificadas no plano internacional.

As desigualdades socioeconômicas persistentemente vigentes no mundo hodierno entre nações mais e menos abastadas, refletem que o Direito do desenvolvimento depende diretamente do modo de condução do comércio internacional e, pois, da regulamentação deste de modo a serem preservados os princípios de autodeterminação dos povos, não-discriminação, igualdade entre os povos e cooperação entre estes – conforme entabulado nos mencionados princípios constitucionais que pautam a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais.

A vinculação entre o Direito do Desenvolvimento e o comércio internacional fundamenta-se, basilarmente, na dependência daquele quanto a relações comerciais empreendidas no âmbito internacional que sejam, efetivamente, realizadas em

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patamares justos e equânimes, livres das amarras imperialistas de outrora – tendo-se em vista que as transações comerciais importam em verdadeiro bojo de manutenção da sobrevivência econômica das nações.

De fato, nenhuma nação é absolutamente autossuficiente. Para suprir as necessidades inerentes a cada organização nacional, recorre-se ao sistema internacional de comércio por meio do qual bens e serviços são trocados através das fronteiras internacionais. Assim considerado, o comércio internacional mostra-se um processo aparentemente simples. Contudo, oculta um sem-número de implicações e consequências que afetam desde o setor econômico ao social, cultural e político - não se podendo negar, então, sua decisiva influência sobre o fator desenvolvimento das nações e de seus povos.

Com seu crescimento potencializado pelo processo de globalização e o conseqüente aumento do fluxo de capitais entre as economias, o comércio intencional vem sendo responsável pelo aumento da interdependência entre as nações. No entanto, contrariamente ao teoricamente esperado, não se obteve, com isso, a almejada redução das disparidades entre os membros de tal comércio[8], de modo que a miséria não foi diminuída.

Com efeito, o comércio internacional vem, na prática, sendo utilizado como instrumento de subjugação e dependência pelas nações mais desenvolvidas em detrimento de

países em desenvolvimento – remetendo-nos a semelhante lógica perpetrada na Divisão Internacional do Trabalho (DIT) do período colonial. Isto porque o modelo atual de comércio internacional vem produzido efeitos não uniformes entre os países, sendo que condutas e obrigações internacionais têm moldado as escolhas de políticas desenvolvimentistas dos países em desenvolvimento.

Os efeitos econômicos e sociais de medidas comerciais anti-isonomicas são nefastos, pois atravancam não apenas a independência e soberania, mas também o desenvolvimento de países que passam a atuar guiados por práticas determinadas por nações desenvolvidas[9]. A intensificação do comércio mundial revela-se, então, como meio hábil à restrição do poder de ação dos governos na elaboração de suas políticas econômicas e na adequação destas às suas necessidades de desenvolvimento, impondo, então, novas barreiras ao direito do desenvolvimento,

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Deve-se, ao revés, buscar garantir a autonomia aos países em desenvolvimento para que possam empreender objetivos de desenvolvimento nacional baseados nas suas próprias necessidades de desenvolvimento, financeiras e de comércio, o que depende da regulamentação do comércio internacional em atenção a princípios de isonomia e não discriminação.

2.3. Do GATT à OMC

O GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) foi firmado em 1947, com a finalidade precípua de promover a diminuição de barreiras ao comércio de bens, sendo interpretado ora como um acordo destinado à regulamentação do comércio internacional; ora enquanto organização internacional “de fato”, responsável por velar pela aplicação das normas que previa em seu texto constitutivo – “de fato” pois, isento de personalidade jurídica, detinha mera natureza jurídica contratual.

Seu principal intento consistiu em estimular as relações comerciais internacionais por meio da liberalização, com a retirada de barreiras alfandegárias e não alfandegárias entre as nações e, portanto, a supressão de dinâmicas comerciais que, ainda que reflexamente, interferissem no desenvolvimento das nações. As questões comerciais eram tratadas por meio de negociações multilaterais denominadas rodadas de negociações, sendo que, à medida que novas necessidades regulatórias foram aparecendo, o GATT ia sendo aprimorado por uma série de entendimentos e novos acordos. Dentre tais rodadas, destaca-se a Rodada do Uruguai, empreendida entre os anos 1986 e 1994, a qual culminou na Ata de Marraqueche, pela qual o GATT foi substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

A OMC, propriamente uma organização internacional dotada de personalidade jurídica internacional, representou um aprimoramento com relação ao sistema do GATT pondo fim a este enquanto organismo regulador do comércio internacional, e se firmando como a fonte normativa e base institucional do sistema multilateral de comércio.

Com a OMC, uma nova fase na dinâmica do comércio internacional é inaugurada, ao propor a reestruturação de políticas comerciais internacionais a partir da multilateralização das condições de comércio entre as nações.

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2.2.1. O Principio da não-discriminação e a CNMF: mandamentos de otimização do Comércio Internacional em face do Direito do desenvolvimento

A não-discriminação consiste no basilar princípio de todo o sistema multilateral de comércio inaugurado com as regras estabelecidas pelo sistema GATT/OMC. Encontra-se expressamente previsto em acordos GATT/OMC, ganhando densidade normativa através da regra do tratamento nacional[10], bem como mediante a Cláusula da Nação Mais Favorecida (CNMF).

No bojo da regulamentação das relações econômicas internacionais, a níveis globais, a CNMF sobressalta de importância enquanto elemento tendente à concretização do mencionado princípio da não-discriminação.

Inscrita no artigo I do GATT[11], a CNMF determina que as partes contratantes, desde que membros da OMC, são obrigadas a se conceder, mutuamente, tratamento tão favorável quanto aquele dado a qualquer outra Parte-Contratante, na aplicação e administração dos direitos e impostos de importação e exportação de bens e serviços.

Basicamente, consiste, portanto, em uma multilateralização obrigatória de privilégios - de forma a garantir a extensão de qualquer concessão comercial a todas as partes-contratantes.

Atuando como verdadeiro alicerce do sistema inaugurado com a GATT, por promover, ao menos teoricamente, a liberalização, em bases igualitárias, do comércio internacional, a CNMF atua de forma a potencializar o caráter multilateral da OMC.

Como uma das principais bases do Direito Internacional Público, a CNMF contribui, também, à afirmação da igualdade soberana dos Estados em face da política de comércio internacional – do que se pode inferir o evidente alcance que a efetiva aplicação de tal cláusula pode ter, dado seu caráter anti-discriminatório, sobre o desenvolvimento de uma nação. De fato, antes de sua implementação no âmbito da OMC, o Sistema Internacional de Comércio vinha caminhando contínua e progressivamente rumo a uma verdadeira fragmentação mundial das nações em blocos econômicos: com o aprofundamento de uma segmentação entre países do Norte e países do Sul, tendia-se cada vez mais a uma

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subordinação nefasta destes em relação aos interesses de dominação daqueles – visto que os países desenvolvidos, detentores dos mais avançados meios de produção e tecnologia, buscavam subjugar comercial, financeira e tecnologicamente os países tidos como pobres, subdesenvolvidos.

Essa tentativa de subordinação inelutavelmente ainda permanece, contudo, atentou-se para o fato de não haver uma relação unilateral de dependência do Terceiro Mundo em relação ao Primeiro; a relação inversa também é verdadeira.[12] Há, efetivamente, uma interdependência entre eles, dado que, conforme já afirmado, nenhuma nação, considerando-se o conjunto de suas necessidades, faz-se completamente autossuficiente.

A OMC, regulando os acordos sobre o comércio e estabelecendo a extensão do tratamento conferido a uma nação mais favorecida, procurou reverter essa nefasta conjuntura de subordinação não apenas procurando eliminar a discriminação comercial formal, mas também aquela de cunho material – desde que esta não esteja devidamente excetuada por um dos casos previstos nos textos legais, notadamente as situações do artigo XX, da DDD. Neste conduto, vem, portanto, a figurar a CNMF, dado que, uma vez constatada a existência de uma medida discriminatória, gerar-se-ia, a partir de então, a presunção de não alinhamento para com o sistema OMC, justamente por atentar contra um de seus pilares – o princípio da não-discriminação e, conseqüentemente, contra tal cláusula.

Contudo, a prática vem nos demonstrando que suplantar, concomitantemente, discriminações formais e materiais não tem sido tarefa de fácil realização. A base teórica da CNMF, segundo a qual todos os Estados gozarão da liberalização do comércio internacional em bases igualitárias, vem encontrando dificuldades em se adequar integral e eficazmente à realidade da economia global - marcada pelas diferenças, em termos de desenvolvimento, entre os Estados. Persistem, de fato, no seio da OMC, profundas deficiências no combate aos tratamentos discriminatórios verificados no âmbito fático[13] - que, muitas vezes, encontram-se mascarados através das exceções que acompanham a CNMF. Urge, então, uma premente revisão dos desdobramentos práticos que ora vêm sendo alcançados pela atual noção de desenvolvimento, a fim de que o verdadeiro significado deste - atingido com a consagração do direito do desenvolvimento

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enquanto componente dos direitos humanos – reflita-se adequadamente no sistema multilateral de comércio.

O sustentável desempenho deste sistema depende da garantia de direito do desenvolvimento às nações. Este, por sua vez, só será adequada e efetivamente garantido caso se encontre conjugado a uma política de não-discriminação. Deste modo, deve-se buscar transformar a CNMF em autêntico instrumento de concretização do principio da não-discriminação. Mas o principal desafio persistente reside em concretizar tal anseio no âmbito prático, não restringindo-o ao campo meramente teorético.

2.3. Tratamento Especial e Diferenciado (TED)

Em se tratando da correlação entre o Direito do Desenvolvimento e o Sistema Internacional de Comércio, o Tratamento Especial e Diferenciado (TED) emerge como mecanismo de viabilização de acesso ao mercado internacional e instrumento de cooperação internacional destinado a garantir meios e facilidadesde inserção das nações menos desenvolvidas ao Sistema Internacional de Comércio.

De fato, exsurge como concretização do compromisso assumido na DDD, em seu parágrafo 2º. do artigo 4º., segundo o qual os Estados são incumbidos da

[...] ação permanente para promover um desenvolvimento mais rápido dos países em desenvolvimento. Como complemento dos esforços dos países em desenvolvimento, uma cooperação internacional efetiva é essencial para prover esses países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo desenvolvimento.

A viabilização do acesso aos mercados é medida indispensável ao processo desenvolvimentista de qualquer nação, devendo, necessariamente, ser estendido a todos os países desejosos de participar do sistema internacional de trocas.

Aceder ao mercado internacional é alargar o mercado consumidor, potencializando as oportunidades de investimentos, aumentando a produtividade e a especialização e, também, o progresso tecnológico da nação comerciante – confirmando-se,

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então o potencial e influência da faculdade de acesso ao mercado quanto à promoção do desenvolvimento de um país.

Assim, garantir tal faculdade às nações, notadamente às mais pobres, faz-se função dos Estados-membros da OMC, em cumprimento não apenas aos acordos assumidos no bojo deste Sistema, mas também às premissas entabuladas na DDD, permitindo-se que, em caráter excepcional, o acesso ao mercado pelos Países em Desenvolvimento (PED’s) e dos Países Menos Desenvolvidos (PMD’s) seja facilitado.

Neste sentido, o TED foi criado na Rodada Tóquio, pela decisão “Cláusula de Habilitação”[14]. Seu texto data de 1979 e surge permitindo que a relação igualitária entre os países participantes da OMC seja relativizada de acordo com os diferentes graus de desenvolvimento dos mesmos, devendo ser dada atenção especial aos problemas e condições particulares dos Países Em Desenvolvimento (PEDs) e Países de Menor Desenvolvimento (PMDs). Sua importância reside, principalmente, no fato de estes países encontrarem grandes dificuldades em fazer prevalecer seus interesses e exigências no âmbito das decisões tomadas na OMC já que esta, apesar de ser considerada uma das mais democráticas organizações internacionais, nem sempre permite que a opinião de tais países seja considerada, conferindo, em geral, exclusivamente aos países com representação em Genebra, o direito de voto e de participação em seu Conselho Geral[15].

Além disso, esse déficit democrático é ainda reforçado pelo sistema de entendimento único (“single undertaking”) adotado pela OMC. Segundo este, os acordos multilaterais firmados no seio desta não podem ser adotados separadamente, mas apenas quando integralmente assumidos por todos os países-Membros – restando aos PED’s e PMD’S, então, a mera possibilidade de escolha quanto aos acordos dos quais queiram tomar parte, e não quanto a sua elaboração, o que de fato compromete a viabilidade de políticas nacionais de desenvolvimento que estejam em dissonância com tais acordos uniformemente adotados.

O crescimento das desigualdades internacionais deve-se, em grande parte, a um sistema econômico mundial injusto e à manutenção de certo imperialismo, dada a dominação econômica estrangeira. A colonização direta praticamente desapareceu nos anos 60, mas foi substituída por uma colonização ainda mais perniciosa: a colonização econômica. Hoje, os instrumentos e

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estruturas que reforçam este processo são, principalmente, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, mais recentemente, os acordos da Organização Mundial do Comércio. Indícios dessa corrente realidade - marcada por uma verdadeira transferência de recursos do Sul em direção ao Norte, o que impede o pleno desenvolvimento daquele – refletem-se na necessidade de tomada de decisões justas a ambos os hemisférios do globo.

A eqüidade nas relações econômicas internacionais, de fato, exige regras do jogo favoráveis ao parceiro mais fraco. Assim, a fim de se construir uma estrutura de comércio internacional equânime capaz de beneficiar tanto aos países ricos como aos pobres e, de tal forma, contornar a díspare realidade ora vigente, imprescindível se torna o fomento à realização das medidas retratadas – o acesso ao mercado e a TED: medidas primordialmente voltadas a um dever de cooperação para com o hipossuficiente desenvolvimento típico das nações em desenvolvimento.

Assim, tais se tornam instrumentos indispensáveis ao alcance da efetivação do direito do desenvolvimento porque, a fim de que esteja conciliado com a promoção deste, o desempenho do Sistema Internacional de Comércio deve ser pautado por um modelo eqüitativo de governança.

5. CONCLUSÃO

O presente estudo voltou-se à compreensão do Sistema Internacional de Comércio em coexistência com a necessidade de efetivação do Direito do desenvolvimento, buscando avaliar as nuances e implicações inerentes à justa e democrática concretização de uma tal correlação.

As trocas comerciais existem, de fato, desde a Antiguidade, vigendo como forma de vinculação entre as nações, de modo a reforçar os laços amistosos entre estas e, ao mesmo tempo, a conduzir a um ambiente internacional pacífico tendente à superação da belicosidade entre os Estados. Através do comércio internacional, a cooperação internacional pode ser assegurada, e as deficiências inerentes a cada organização nacional, supridas.

Não obstante, percebe-se, hodiernamente, que a conciliação entre comércio e desenvolvimento tem sido obstaculizada ante a dinâmica capitalista de busca incessante por lucros e reforçada pelas deficiências estruturais da OMC - que corroboram e

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aprofundam o distanciamento entre países desenvolvidos e aqueles carentes de um nível de desenvolvimento suficientemente elevado para beneficiarem-se das relações comerciais internacionais de forma igualitária.

O desenrolar fático dos acontecimentos históricos tem comprovado, pois, que os instrumentos reguladores do sistema multilateral de comércio utilizam o desenvolvimento como legitimação de seu discurso; enquanto, na prática, sua efetivação não se concretiza.

Medidas tipificadas como ilegais no âmbito do comércio internacional seguem continuamente praticadas, notadamente quanto aos subsídios governamentais e à proteção à indústria nacional – o que é utilizado, preponderantemente, pelos países que hoje detêm elevado grau de industrialização.

Como tais deficiências, pode-se mencionar a medida do “single undertaking”, segundo o qual os países devem aderir aos acordos multilaterais de maneira integral, ou seja, adotando todas as cláusulas neles dispostas – o que reduz a possibilidade de os países membros da OMC escolherem quais os acordos dos quais participarem, inibindo, pois, sua capacidade de adoção de políticas desenvolvimentistas próprias a suas dificuldades e condições particulares.

Ademais, Os PEDs e PMDs também encontram dificuldades no fato de serem preteridos nos processos de tomada de decisão, os quais, na prática, privilegiam, desmesuradamente, os Estados com representação em Genebra – únicos com voto e participação no Conselho Geral, órgão executivo da OMC.

Igualmente, a categorização dos países em PEDs e PMDs não apresenta definição concreta e segura, não sendo realizada pela OMC, mas sim submetendo-se ao crivo arbitrário e eivado de interesses políticos dos Estados-Membros.

A estrutura atual de regulamentação comercial revela, na prática, uma invasividade no campo normativo e decisório das autoridades nacionais e dos ordenamentos jurídicos internos, pelas políticas e normas votadas em um foro internacional e externo aos Estados, no que se reverte em uma limitação à possibilidade de condução de políticas públicas pelos Estados dependentes, vez que

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devem conformar-se, direta ou indiretamente, aos interesses das potências econômicas.

Constata-se, pois, um déficit democrático na condução prática das políticas econômicas internacionais. Não basta a formulação teórica de pretensões idílicas de conformação do comércio internacional à promoção do desenvolvimento, urge a instauração efetiva de um sistema de governança eqüitativo, pelo qual o fim desenvolvimentista possa ser assegurado através da participação igualitária, da realização de processos justos e da concretização da igualdade material, pelo que se considere as condições peculiares e deficitárias de cada Estado-Membro, preservando-lhes, assim, espaço para a adoção de políticas públicas próprias de desenvolvimento nacional.

Conforme observa o ex-secretário de Estado dos EUA, Colin Powell[16], “entre nossas outras prioridades [as do governo americano], nada é mais importante do que a promoção do comércio internacional” e continua, justificando, “o comércio internacional cria riquezas”. Contudo, tais riquezas não podem ficar nefasta e discriminatoriamente restritas aos países desenvolvidos. A própria DDD reforça a premente necessidade de revisão das práticas comerciais internacionais, em seu preâmbulo, ao mostrar-se ciente de que os esforços a nível internacional para promover e proteger os direitos humanos devem ser acompanhados de esforços para estabelecer uma nova ordem econômica internacional.

Para tanto, torna-se indispensável a consecução de uma substancial mudança na vigente estrutura do comércio internacional, notadamente quanto aos tratamentos discriminatórios que suas repercussões persistem em provocar. Empregando e, então, validando cláusulas de não-discriminação e medidas de aplicação práticas e eficazes de distribuição igualitária de riquezas, os atores do sistema de comércio internacional poderão, enfim, tornar viável o alcance do objetivo teórico inicialmente perquirido pelos idealizadores desse comércio: uma expansão do fluxo de capitais entre as nações que seja capaz de promover o bem-estar dos povos mediante um efetivo e democrático aumento de sua renda real – e, destarte, tornar, enfim, possível a coexistência entre o Sistema Internacional de Comércio e o Direito do desenvolvimento.

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O desenvolvimento não é interesse apenas dos PEDs e PMDs, mas sim de todas as pessoas e nações individualmente consideradas, considerando-se a crescente interdependência mundial - indissociável à conjuntura globalizada da época contemporânea.

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NOTAS:

[1] O comércio internacional cresceu nos últimos cinqüenta anos em níveis sem precedentes. As trocas comerciais internacionais representavam 14% do PIB mundial em finais do século XX (2000). Em 1950, o percentual do PIB mundial representado pelo comércio internacional chegava a 6%. A explosão do capital móvel, a revolução da informação e as pressões demográficas, que demandam um nível de consumo maior são alguns dos fatores responsáveis por esse incremento na atividade comercial internacional. (Marc-Johnson, 2001, p. 288).

[2] Ilustrando esta realidade, tem-se o caso dos embargos econômico, comercial e financeiro aplicado pelos Estados Unidos a Cuba, a partir de 1962. Se exclusivamente guiado pelas diretivas da soberania jurídica, tal não seria permitido, como de fato pronunciou-se a Assembléia Geral das Nações Unidas em 2007, "determinada a encorajar o estrito cumprimento dos objetivos e princípios consagrados pela Carta das Nações Unidas" (...) e "reafirmando, dentre outros princípios, a igual soberania das nações, a não-intervenção e a não interferência em seus assuntos internos”(...).tendo condenado, pela 16º vez consecutiva, tal embargo por 184 votos a quatro. Contudo, a medida vigora até os dias atuais refletindo uma realidade que, de fato, comprova a vigência de uma soberania política – que, não raramente, contrapõe-se à soberania jurídica no que atine a suas conseqüências práticas. Vide: http://www.eyeontheun.org/assets/attachments/documents/5704.doc

[3] A primeira menção à existência de um direito do desenvolvimento, em um documento internacional de ampla

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aceitação entre os Estados, dá-se com a Declaração Sobre o Direito do desenvolvimento (DDD), de 1986.

[4] Vide a íntegra da Declaração em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm

[5] MONTORO, André Franco. Estudos de Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1995, p.44.

[6] Não se deve confundir o Direito do Desenvolvimento com o Direito do desenvolvimento. Aquele se enquadra enquanto política de estado, operando-se no plano interno deste, como por meio de acordos com outros estas (sejam reginanis, bilaterais ou multilaterais); este, por sua vez, se situa no rol de direitos fundamentais, cuja realização incumbe aos estados, separadamente considerados, como ao conjunto destes, por meio de ação internacional correlativa. Aí cabe falar em “internacionalismo necessário” na linha de H. GROS ESPIELL, como aspecto dos “direitos da solidadariedade”, V. Hector GROS SPIELL, Introduction (in: Droit International, Paris, UNESCO/ Pedone v. II, “Les Droits à vocations communautaire).

[7] Vide: SENDAGUE, Ahmed Belhadj. Le Droit de L’Homme ao Développement, 1995, p. 144-145; e BEDJAOUI, Mohammed. The Right to Development. In: BEDJAOUI, Mohammed. International Law: Achievements and Prospects. 1991, p. 1199-1200.

[8] Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “14.O processo de globalização e liberalização tem produzido efeitos não uniformes entre os países. As disciplinas e obrigações internacionais estão também crescentemente adotando regras que moldam as escolhas de políticas de desenvolvimento dos países em desenvolvimento. Estes progressos, que têm tido efeitos econômicos e sociais negativos, ressaltam a importância de se garantir o âmbito para políticas para países em desenvolvimento apresentarem objetivos de desenvolvimento nacional baseados nas suas necessidades de desenvolvimento, financeiras e de comércio”.

[9]Cientes de tal realidade, as Nações Unidas vêm, assim, em inúmeras resoluções, buscando identificar e suprimir as razões ensejadoras de tal obstáculo. Efetivamente, um de seus grupos de

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trabalho admitiu, em 1994 o comércio internacional enquanto óbico ao direito do desenvolvimento. Vide: Doc. NU: E/CN.4/1995/11, 5 September 1994, Question of the realization of the right to development on its second session.

[10] Da mesma forma que a CNMF, a obrigação de tratamento nacional também decorre do princípio da não-discriminação, norteador das relações comerciais no âmbito da OMC. Contudo, tais regramentos divergem, basicamente, quanto ao objeto ao qual se referem. Enquanto a CNMF estabelece que não deve haver discriminação entre países, o princípio do tratamento nacional remete-se a produtos - estipulando que, uma vez no mercado do país importador, o produto importado não esteja sujeito a condições que o coloquem numa posição de desvantagem competitiva, melhor dizendo, o tratamento dispensado ao produto importado deverá ser equiparado àquele conferido ao produto nacional. O presente trabalho não se ocupará mais detidamente quanto a este regramento, uma vez que seu foco tende à avaliação dos efeitos do comércio internacional sobre os países comerciantes em si mesmo considerados, ao que se presta mais propriamente a CNMF.

[11] Cláusula da Nação Mais Favorecida - Artigo I, GATT: - no comércio mundial não deve haver discriminação. Todas as partes contratantes têm que conceder a todas as demais partes o tratamento que concedem a um país em especial. Portanto, nenhum país pode conceder a outro vantagens comerciais especiais, nem discriminar um país em especial.

[12]Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, de 12 de junho de 2004, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “28. O diálogo e as negociações do Norte-Sul exigem uma cooperação genuína para o desenvolvimento através da associação global.”

[13] Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, de 12 de junho de 2004, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “12. As expectativas de uma maior segurança global e de uma ordem econômica social internacional justa não foram realizadas. O mundo atual está tomado por problemas sociais

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e econômicos agudos, muitos dos quais de natureza estrutural”. Disponível em: http://www.unctad.org/pt/docs/td405_pt.pdf

[14] No inglês Enabling Clause.Vide a íntegra da decisão em: “Differential and More Favourable Treatment Reciprocity and Fuller Participation of Developing Countries, decisão de 28 de novembro de 1979 (L/4903)” Disponível em: http://www.worldtradelaw.net/tokyoround/enablingclause.pdf.

[15] “A falta de representação ou a representação precária dos países em desenvolvimento em Genebra, prejudica seriamente a sua capacidade de participar dos progressos da OMC” (SIKHAKHANE, 2007, documento de internet). Vide:< http://usinfo.state.gov/journals/ites/0200/ijep/ij020011.htm>.

[16] Vide a íntegra do texto em: “Opinião: Secretário de Estado Powell Fala sobre Projeto de Negociações Comerciais”. Disponível em: <http://livrecomercio.embaixadaamericana.org.br/?action=artigo&idartigo=21>.

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INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE COMPATIBILIZAÇÃO DO SISTEMA INTERNACIONAL DE COMÉRCIO AO DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

BEATRIZ FIGUEIREDO CAMPOS DA NÓBREGA: Graduada em Direito pela UFRN, graduada em Comércio Exterior pelo IFRN, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera/ UNIDERP e mestre em Direito Constitucional pela UFRN.

RESUMO: O Sistema Internacional de Comércio (SIC) possui imbricada correlação com o Direito do desenvolvimento. O sustentável desempenho do SIC depende da garantia do Direito do desenvolvimento a cada nação. Este, por sua vez, só será adequada e efetivamente concretizado se conjugado a uma dinâmica comercial internacional favorável, norteada conforme a igualdade real entre as nações. Deste modo, deve-se buscar adequar a lógica das relações comerciais hodiernas ao necessário desenvolvimento justo e democrático das nações. Mas como concretizar tal anseio no âmbito prático, não o restringindo ao campo meramente teorético? Ou, ainda, como conciliar a realidade atual das relações internacionais comerciais com a efetivação do Direito do desenvolvimento? Neste sentido, o presente escrito se propõe a investigar os instrumentos jurídicos, notadamente no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), destinados a impedir que o comércio internacional represente um óbice à concretização do Desenvolvimento, enquanto direito consagrado em documentos internacionais e internamente, em nossa Constituição Federal.

Palavras-chave: Sistema Internacional de Comércio. Direito do desenvolvimento. Instrumentos jurídicos. OMC.

1. INTRODUÇÃO

Nenhuma nação é absolutamente autossuficiente. Para suprir as necessidades inerentes a cada organização nacional,

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recorre-se ao sistema internacional de comércio por meio do qual bens e serviços são trocados através das fronteiras internacionais.

O comércio internacional apresenta, em sua dinâmica, adjacentes efeitos que incidem não somente sobre o setor econômico, mas também sobre o social, cultural e político, de modo que envolve uma gama de interesses públicos, difusos e coletivos, a ponto de não se poder negar sua decisiva influência sobre o fator desenvolvimento. Seu crescimento[1], potencializado pelo processo de globalização e o conseqüente aumento do fluxo de capitais entre as economias, vem fomentando o aumento da interdependência entre as nações. De fato, vem se verificando uma crescente vinculação dos países “em desenvolvimento” frente às determinações e políticas adotadas pelos nominados “desenvolvidos”.

Surge, assim, verdadeira afronta à soberania política interna a cada Estado, na qual reflete-se, efetivamente, a incidência mais concreta dos efeitos da globalização por sobre a governança dos Estados. Sob esta égide, a soberania mostra-se como prerrogativa de independência de fato que um Estado apresenta perante as demais nações – o que variará conforme o grau de integração econômica ou militar, o sistema de blocos regionais que integre e mesmo a força de decisão própria que o Estado possua. Decorre, deste cenário, uma real subordinação, no âmbito das relações internacionais, de determinados países perante outros, de forma que o capital atua, então, determinando os rumos da política dos países submissos - dinâmica esta que tende, por conseguinte, a uma crescente sujeição política de certos Estados a outros no sistema capitalista mundial, dada a supramencionada interdependência entre as nações.

Reflexamente, o maior grau de influência e de poder decisório das grandes potências conduzirá o Estado dependente a proceder tendencialmente à reprodução das formas de dominação-subordinação imperialista - uma vez que, dada sua hipossuficiência, quando comparativamente considerado em relação àquelas, deverá conformar-se às diretrizes econômicas, políticas, e por vezes até jurídicas, determinadas pelas mesmas, sob pena de falência do Estado dissidente que venha a sofrer prováveis embargos[2], retaliações, sanções e mesmo reprimendas que se manifestem indiretamente, porém de forma determinante.

Isto posto, a conjuntura internacional instiga à perquirição da forma de realização do direito do desenvolvimento no âmbito

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nacional, além da maneira como se dá sua regulamentação no ordenamento jurídico pátrio - de modo a buscar-se a compreensão das duas conjunturas enquanto realidades coexistentes, harmônicas ou não.

À luz da Constituição Federal, que prevê o direito do desenvolvimento enquanto objetivo fundamental da República, surge a necessidade de se avaliar o modelo atual de comércio internacional, instrumento que se revela ora como incentivo ora como entrave à efetivação deste direito do desenvolvimento nacional.

Dada a relevância e efeitos tanto reais quanto nefastos ao tema pertinentes, procurar-se-á analisar, no presente trabalho, a realidade hodierna do Sistema Internacional de Comércio e sua relação com o Direito do desenvolvimento, conjugando-a à situação brasileira e buscando-se, ao mesmo tempo, soluções para suas deficiências e sua compatibilização aos anseios desenvolvimentistas locais.

2. DA INTERRELAÇÃO ENTRE O SISTEMA INTERNACIONAL DE COMÉRCIO E O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

O Direito do desenvolvimento: “É um conjunto de princípios e regras no fundamento dos quais o homem, enquanto indivíduo e membro do corpo social (Estado, nação, povo...) poderá obter, na medida do possível, a satisfação das necessidades econômicas, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”. Z. Haquani.

2.1. DO DIREITO DO DESENVOLVIMENTO

a) O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO EM DOCUMENTOS INTERNACIONAIS

A mais remota previsão do Desenvolvimento enquanto direito consagrado no âmbito internacional encontra sede na Declaração da Filadélfia da OIT, que data de 1944 e que já expressava que todos os homens: “tienen el derecho tanto al bienestar material como al desarrollo espiritual, en condiciones de libertad y dignidad, de seguridad económica y de igualdad de oportunidades”.

Em seguida, foi consagrado na Carta da ONU de 1945, senão vejamos:

Artigo 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas

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entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão:

a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social

Artigo 76. Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os Propósitos das Nações Unidas enumerados no Artigo 1 da presente Carta serão:

a) favorecer a paz e a segurança internacionais;

b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou independência, como mais convenha às circunstâncias particulares de cada território e de seus habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados e como for previsto nos termos de cada acordo de tutela;

No entanto, é só no ano de 1986 que esse direito foi formal e mundialmente conclamado em uma Declaração específica para tratar do tema[3] - momento a partir do qual ele passa a ser exigível, simultaneamente, como direito individual do ser humano e como direito coletivo inerente a todo e qualquer povo, cabendo aos Estados elaborar e implementar políticas públicas capazes de garantir a real concretização de tal direito, tanto no plano interno como no internacional, bem como assegurando sua efetividade presente e futura.

Erigia-se a Declaração Sobre o Direito do desenvolvimento (DDD) de 1986, que define, já em seu preâmbulo:

[...] o desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e na

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distribuição justa dos benefícios daí resultantes[4].

Com efeito, o desenvolvimento consiste em um processo de caráter dinâmico que foi tendo seu conceito modificado conforme a evolução histórica das relações internacionais. Inicialmente restrito ao campo econômico, o desenvolvimento incorporou, aos poucos, matizes das demais disciplinas, tornando-se, portanto, produto de um processo cumulativo que se irradia por áreas diversas da mutante vida em sociedade.

b) O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO CONSAGRADO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

A Constituição Federal de 1988 prevê o direito do desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, sendo tal norma constitucional dotada de imperatividade e eficácia imediata perante todos os Poderes do Estado.

Não obstante, o artigo 3º da Carta Magna, ao prever tal direito como escopo estatal, não nomeia expressamente as formas pelas quais sua consecução pode ser efetivada.

Desta feita, necessária se torna a análise sistemática do ordenamento pátrio, a fim de se perquirir garantias, fundamentos e mecanismos previstos em prol do alcance do sobredito desenvolvimento.

Ab initio, deve-se avaliar a ordem econômica constitucional. Prevista no Título VII, da Lei Suprema, prevê a respectiva base principiológica e as diretrizes das políticas urbana, agrária e fundiária.

O direito econômico é norteado segundo a lógica do capitalismo humanista, vez que pautado pela busca da existência digna de todos, conforme ditames da justiça social. Além das relações econômicas, este ramo do direito busca, como do viés da atividade econômica estatal -interveniente direta na economia e como sua regente - a tutela da população, que, em última ratio é direito fundamental do povo do Brasil.

O direito do desenvolvimento sobressai, assim, como pressuposto de dita tutela, dadas suas mencionadas vertentes

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interdisciplinares. A opção juridicamente mais adequada para fins de sua consecução indica no sentido da condensação dos direitos humanos agrupados em cadeia de adensamento para outorgar à população sua satisfatividade, proporcionando a justiça social.

Caberá avaliar, então, no estudo que ora se erige, a conjugação dos princípios previstos nesta seara, vez que atuam como diretrizes norteadoras da economia nacional. Nesta senda, ressalta-se o art. 174 enquanto marco da transição de um Estado ausente para um Estado presente no setor econômico. Determina que o Estado atuará como agente normativo e regulador da atividade econômica, com funções fiscalizatórias, de incentivo e planejamento.

Vê-se, pois, que o direito do desenvolvimento econômico vincula os três Poderes do Estado, que deve pautar sua ação interventiva segundo o princípio fundamental do desenvolvimento nacional.

Nos campos político e social, por sua vez, preponderam a democracia representativa guiada pela soberania popular e sob a governança de um Estado Democrático de Direito. A participação popular está teoricamente assegurada, embora faltem níveis adequados de instrução para que a população faça prevalecer sua cidadania no exercício de direitos políticos.

O primado da ordem social consiste no trabalho e apresenta, como objetivos precípuos, o bem-estar e justiça sociais. Enquanto instrumentos destinados à efetivação dos direitos sociais são previstos programas educacionais, de assistência à família, à criança e ao adolescente, bem como previdência, saúde e assistência sociais. No entanto, falta efetividade a normas tais que não alcançam a plenitude dos fins que colimam, e findam, assim, por obstar o logro do processo de desenvolvimento.

A realização deste direito de 3ª geração, direito este denominado “de solidariedade” pressupõe a capacidade estatal de livrar-se dos condicionamentos externos resultantes das relações de poder advindas do Sistema Internacional e fazer prevalecer a vontade soberana de sua própria população – sob o fundamento maior da democracia representativa -, garantindo seu poder de autodeterminação e independência em face das demais sociedades.

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De fato, o ilustre professor Franco Montoro nos ensina que o desenvolvimento “depende da capacidade de cada país para tomar decisões que sua situação requer, o que exige a superação da condição de dependência ou subordinação de tipo colonial, no plano político, econômico ou cultural”[5].

É inequívoco, portanto, que o direito do desenvolvimento enquanto direito fundamental, encontra sua efetivação condicionada às limitações e ingerências propiciadas pelo Sistema Internacional de Comércio. E, sendo o Brasil membro da comunidade internacional, necessário se torna avaliar os instrumentos jurídicos dos quais se pode valer para garantir a conciliação de seus propósitos comerciais sem se olvidar do compromisso constitucionalmente assumido de promoção do desenvolvimento nacional.

2.2. DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO DO DESENVOLVIMENTO E O COMÉRCIO INTERNACIONAL

Alcançar um efetivo e perene Direito do Desenvolvimento às nações[6]: nisto reside um dos maiores desafios do século XXI, notadamente pois o comércio internacional tem figurado como um dos principais motivadores da manutenção da disparidade entre países desenvolvidos e os subdesenvolvidos[7].

A necessidade de regulamentação do Sistema Internacional de Comércio é, portanto, inequívoca. A fim de se fazer prevalecer o consagrado Direito do Desenvolvimento, urge uma autêntica multilateralização de privilégios no âmbito das transações comerciais verificadas no plano internacional.

As desigualdades socioeconômicas persistentemente vigentes no mundo hodierno entre nações mais e menos abastadas, refletem que o Direito do desenvolvimento depende diretamente do modo de condução do comércio internacional e, pois, da regulamentação deste de modo a serem preservados os princípios de autodeterminação dos povos, não-discriminação, igualdade entre os povos e cooperação entre estes – conforme entabulado nos mencionados princípios constitucionais que pautam a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais.

A vinculação entre o Direito do Desenvolvimento e o comércio internacional fundamenta-se, basilarmente, na dependência daquele quanto a relações comerciais empreendidas no âmbito internacional que sejam, efetivamente, realizadas em

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patamares justos e equânimes, livres das amarras imperialistas de outrora – tendo-se em vista que as transações comerciais importam em verdadeiro bojo de manutenção da sobrevivência econômica das nações.

De fato, nenhuma nação é absolutamente autossuficiente. Para suprir as necessidades inerentes a cada organização nacional, recorre-se ao sistema internacional de comércio por meio do qual bens e serviços são trocados através das fronteiras internacionais. Assim considerado, o comércio internacional mostra-se um processo aparentemente simples. Contudo, oculta um sem-número de implicações e consequências que afetam desde o setor econômico ao social, cultural e político - não se podendo negar, então, sua decisiva influência sobre o fator desenvolvimento das nações e de seus povos.

Com seu crescimento potencializado pelo processo de globalização e o conseqüente aumento do fluxo de capitais entre as economias, o comércio intencional vem sendo responsável pelo aumento da interdependência entre as nações. No entanto, contrariamente ao teoricamente esperado, não se obteve, com isso, a almejada redução das disparidades entre os membros de tal comércio[8], de modo que a miséria não foi diminuída.

Com efeito, o comércio internacional vem, na prática, sendo utilizado como instrumento de subjugação e dependência pelas nações mais desenvolvidas em detrimento de

países em desenvolvimento – remetendo-nos a semelhante lógica perpetrada na Divisão Internacional do Trabalho (DIT) do período colonial. Isto porque o modelo atual de comércio internacional vem produzido efeitos não uniformes entre os países, sendo que condutas e obrigações internacionais têm moldado as escolhas de políticas desenvolvimentistas dos países em desenvolvimento.

Os efeitos econômicos e sociais de medidas comerciais anti-isonomicas são nefastos, pois atravancam não apenas a independência e soberania, mas também o desenvolvimento de países que passam a atuar guiados por práticas determinadas por nações desenvolvidas[9]. A intensificação do comércio mundial revela-se, então, como meio hábil à restrição do poder de ação dos governos na elaboração de suas políticas econômicas e na adequação destas às suas necessidades de desenvolvimento, impondo, então, novas barreiras ao direito do desenvolvimento,

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Deve-se, ao revés, buscar garantir a autonomia aos países em desenvolvimento para que possam empreender objetivos de desenvolvimento nacional baseados nas suas próprias necessidades de desenvolvimento, financeiras e de comércio, o que depende da regulamentação do comércio internacional em atenção a princípios de isonomia e não discriminação.

2.3. Do GATT à OMC

O GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) foi firmado em 1947, com a finalidade precípua de promover a diminuição de barreiras ao comércio de bens, sendo interpretado ora como um acordo destinado à regulamentação do comércio internacional; ora enquanto organização internacional “de fato”, responsável por velar pela aplicação das normas que previa em seu texto constitutivo – “de fato” pois, isento de personalidade jurídica, detinha mera natureza jurídica contratual.

Seu principal intento consistiu em estimular as relações comerciais internacionais por meio da liberalização, com a retirada de barreiras alfandegárias e não alfandegárias entre as nações e, portanto, a supressão de dinâmicas comerciais que, ainda que reflexamente, interferissem no desenvolvimento das nações. As questões comerciais eram tratadas por meio de negociações multilaterais denominadas rodadas de negociações, sendo que, à medida que novas necessidades regulatórias foram aparecendo, o GATT ia sendo aprimorado por uma série de entendimentos e novos acordos. Dentre tais rodadas, destaca-se a Rodada do Uruguai, empreendida entre os anos 1986 e 1994, a qual culminou na Ata de Marraqueche, pela qual o GATT foi substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

A OMC, propriamente uma organização internacional dotada de personalidade jurídica internacional, representou um aprimoramento com relação ao sistema do GATT pondo fim a este enquanto organismo regulador do comércio internacional, e se firmando como a fonte normativa e base institucional do sistema multilateral de comércio.

Com a OMC, uma nova fase na dinâmica do comércio internacional é inaugurada, ao propor a reestruturação de políticas comerciais internacionais a partir da multilateralização das condições de comércio entre as nações.

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2.2.1. O Principio da não-discriminação e a CNMF: mandamentos de otimização do Comércio Internacional em face do Direito do desenvolvimento

A não-discriminação consiste no basilar princípio de todo o sistema multilateral de comércio inaugurado com as regras estabelecidas pelo sistema GATT/OMC. Encontra-se expressamente previsto em acordos GATT/OMC, ganhando densidade normativa através da regra do tratamento nacional[10], bem como mediante a Cláusula da Nação Mais Favorecida (CNMF).

No bojo da regulamentação das relações econômicas internacionais, a níveis globais, a CNMF sobressalta de importância enquanto elemento tendente à concretização do mencionado princípio da não-discriminação.

Inscrita no artigo I do GATT[11], a CNMF determina que as partes contratantes, desde que membros da OMC, são obrigadas a se conceder, mutuamente, tratamento tão favorável quanto aquele dado a qualquer outra Parte-Contratante, na aplicação e administração dos direitos e impostos de importação e exportação de bens e serviços.

Basicamente, consiste, portanto, em uma multilateralização obrigatória de privilégios - de forma a garantir a extensão de qualquer concessão comercial a todas as partes-contratantes.

Atuando como verdadeiro alicerce do sistema inaugurado com a GATT, por promover, ao menos teoricamente, a liberalização, em bases igualitárias, do comércio internacional, a CNMF atua de forma a potencializar o caráter multilateral da OMC.

Como uma das principais bases do Direito Internacional Público, a CNMF contribui, também, à afirmação da igualdade soberana dos Estados em face da política de comércio internacional – do que se pode inferir o evidente alcance que a efetiva aplicação de tal cláusula pode ter, dado seu caráter anti-discriminatório, sobre o desenvolvimento de uma nação. De fato, antes de sua implementação no âmbito da OMC, o Sistema Internacional de Comércio vinha caminhando contínua e progressivamente rumo a uma verdadeira fragmentação mundial das nações em blocos econômicos: com o aprofundamento de uma segmentação entre países do Norte e países do Sul, tendia-se cada vez mais a uma

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subordinação nefasta destes em relação aos interesses de dominação daqueles – visto que os países desenvolvidos, detentores dos mais avançados meios de produção e tecnologia, buscavam subjugar comercial, financeira e tecnologicamente os países tidos como pobres, subdesenvolvidos.

Essa tentativa de subordinação inelutavelmente ainda permanece, contudo, atentou-se para o fato de não haver uma relação unilateral de dependência do Terceiro Mundo em relação ao Primeiro; a relação inversa também é verdadeira.[12] Há, efetivamente, uma interdependência entre eles, dado que, conforme já afirmado, nenhuma nação, considerando-se o conjunto de suas necessidades, faz-se completamente autossuficiente.

A OMC, regulando os acordos sobre o comércio e estabelecendo a extensão do tratamento conferido a uma nação mais favorecida, procurou reverter essa nefasta conjuntura de subordinação não apenas procurando eliminar a discriminação comercial formal, mas também aquela de cunho material – desde que esta não esteja devidamente excetuada por um dos casos previstos nos textos legais, notadamente as situações do artigo XX, da DDD. Neste conduto, vem, portanto, a figurar a CNMF, dado que, uma vez constatada a existência de uma medida discriminatória, gerar-se-ia, a partir de então, a presunção de não alinhamento para com o sistema OMC, justamente por atentar contra um de seus pilares – o princípio da não-discriminação e, conseqüentemente, contra tal cláusula.

Contudo, a prática vem nos demonstrando que suplantar, concomitantemente, discriminações formais e materiais não tem sido tarefa de fácil realização. A base teórica da CNMF, segundo a qual todos os Estados gozarão da liberalização do comércio internacional em bases igualitárias, vem encontrando dificuldades em se adequar integral e eficazmente à realidade da economia global - marcada pelas diferenças, em termos de desenvolvimento, entre os Estados. Persistem, de fato, no seio da OMC, profundas deficiências no combate aos tratamentos discriminatórios verificados no âmbito fático[13] - que, muitas vezes, encontram-se mascarados através das exceções que acompanham a CNMF. Urge, então, uma premente revisão dos desdobramentos práticos que ora vêm sendo alcançados pela atual noção de desenvolvimento, a fim de que o verdadeiro significado deste - atingido com a consagração do direito do desenvolvimento

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enquanto componente dos direitos humanos – reflita-se adequadamente no sistema multilateral de comércio.

O sustentável desempenho deste sistema depende da garantia de direito do desenvolvimento às nações. Este, por sua vez, só será adequada e efetivamente garantido caso se encontre conjugado a uma política de não-discriminação. Deste modo, deve-se buscar transformar a CNMF em autêntico instrumento de concretização do principio da não-discriminação. Mas o principal desafio persistente reside em concretizar tal anseio no âmbito prático, não restringindo-o ao campo meramente teorético.

2.3. Tratamento Especial e Diferenciado (TED)

Em se tratando da correlação entre o Direito do Desenvolvimento e o Sistema Internacional de Comércio, o Tratamento Especial e Diferenciado (TED) emerge como mecanismo de viabilização de acesso ao mercado internacional e instrumento de cooperação internacional destinado a garantir meios e facilidades de inserção das nações menos desenvolvidas ao Sistema Internacional de Comércio.

De fato, exsurge como concretização do compromisso assumido na DDD, em seu parágrafo 2º. do artigo 4º., segundo o qual os Estados são incumbidos da

[...] ação permanente para promover um desenvolvimento mais rápido dos países em desenvolvimento. Como complemento dos esforços dos países em desenvolvimento, uma cooperação internacional efetiva é essencial para prover esses países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo desenvolvimento.

A viabilização do acesso aos mercados é medida indispensável ao processo desenvolvimentista de qualquer nação, devendo, necessariamente, ser estendido a todos os países desejosos de participar do sistema internacional de trocas.

Aceder ao mercado internacional é alargar o mercado consumidor, potencializando as oportunidades de investimentos, aumentando a produtividade e a especialização e, também, o progresso tecnológico da nação comerciante – confirmando-se,

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então o potencial e influência da faculdade de acesso ao mercado quanto à promoção do desenvolvimento de um país.

Assim, garantir tal faculdade às nações, notadamente às mais pobres, faz-se função dos Estados-membros da OMC, em cumprimento não apenas aos acordos assumidos no bojo deste Sistema, mas também às premissas entabuladas na DDD, permitindo-se que, em caráter excepcional, o acesso ao mercado pelos Países em Desenvolvimento (PED’s) e dos Países Menos Desenvolvidos (PMD’s) seja facilitado.

Neste sentido, o TED foi criado na Rodada Tóquio, pela decisão “Cláusula de Habilitação”[14]. Seu texto data de 1979 e surge permitindo que a relação igualitária entre os países participantes da OMC seja relativizada de acordo com os diferentes graus de desenvolvimento dos mesmos, devendo ser dada atenção especial aos problemas e condições particulares dos Países Em Desenvolvimento (PEDs) e Países de Menor Desenvolvimento (PMDs). Sua importância reside, principalmente, no fato de estes países encontrarem grandes dificuldades em fazer prevalecer seus interesses e exigências no âmbito das decisões tomadas na OMC já que esta, apesar de ser considerada uma das mais democráticas organizações internacionais, nem sempre permite que a opinião de tais países seja considerada, conferindo, em geral, exclusivamente aos países com representação em Genebra, o direito de voto e de participação em seu Conselho Geral[15].

Além disso, esse déficit democrático é ainda reforçado pelo sistema de entendimento único (“single undertaking”) adotado pela OMC. Segundo este, os acordos multilaterais firmados no seio desta não podem ser adotados separadamente, mas apenas quando integralmente assumidos por todos os países-Membros – restando aos PED’s e PMD’S, então, a mera possibilidade de escolha quanto aos acordos dos quais queiram tomar parte, e não quanto a sua elaboração, o que de fato compromete a viabilidade de políticas nacionais de desenvolvimento que estejam em dissonância com tais acordos uniformemente adotados.

O crescimento das desigualdades internacionais deve-se, em grande parte, a um sistema econômico mundial injusto e à manutenção de certo imperialismo, dada a dominação econômica estrangeira. A colonização direta praticamente desapareceu nos anos 60, mas foi substituída por uma colonização ainda mais perniciosa: a colonização econômica. Hoje, os instrumentos e

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estruturas que reforçam este processo são, principalmente, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, mais recentemente, os acordos da Organização Mundial do Comércio. Indícios dessa corrente realidade - marcada por uma verdadeira transferência de recursos do Sul em direção ao Norte, o que impede o pleno desenvolvimento daquele – refletem-se na necessidade de tomada de decisões justas a ambos os hemisférios do globo.

A eqüidade nas relações econômicas internacionais, de fato, exige regras do jogo favoráveis ao parceiro mais fraco. Assim, a fim de se construir uma estrutura de comércio internacional equânime capaz de beneficiar tanto aos países ricos como aos pobres e, de tal forma, contornar a díspare realidade ora vigente, imprescindível se torna o fomento à realização das medidas retratadas – o acesso ao mercado e a TED: medidas primordialmente voltadas a um dever de cooperação para com o hipossuficiente desenvolvimento típico das nações em desenvolvimento.

Assim, tais se tornam instrumentos indispensáveis ao alcance da efetivação do direito do desenvolvimento porque, a fim de que esteja conciliado com a promoção deste, o desempenho do Sistema Internacional de Comércio deve ser pautado por um modelo eqüitativo de governança.

5. CONCLUSÃO

O presente estudo voltou-se à compreensão do Sistema Internacional de Comércio em coexistência com a necessidade de efetivação do Direito do desenvolvimento, buscando avaliar as nuances e implicações inerentes à justa e democrática concretização de uma tal correlação.

As trocas comerciais existem, de fato, desde a Antiguidade, vigendo como forma de vinculação entre as nações, de modo a reforçar os laços amistosos entre estas e, ao mesmo tempo, a conduzir a um ambiente internacional pacífico tendente à superação da belicosidade entre os Estados. Através do comércio internacional, a cooperação internacional pode ser assegurada, e as deficiências inerentes a cada organização nacional, supridas.

Não obstante, percebe-se, hodiernamente, que a conciliação entre comércio e desenvolvimento tem sido obstaculizada ante a dinâmica capitalista de busca incessante por lucros e reforçada pelas deficiências estruturais da OMC - que corroboram e

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aprofundam o distanciamento entre países desenvolvidos e aqueles carentes de um nível de desenvolvimento suficientemente elevado para beneficiarem-se das relações comerciais internacionais de forma igualitária.

O desenrolar fático dos acontecimentos históricos tem comprovado, pois, que os instrumentos reguladores do sistema multilateral de comércio utilizam o desenvolvimento como legitimação de seu discurso; enquanto, na prática, sua efetivação não se concretiza.

Medidas tipificadas como ilegais no âmbito do comércio internacional seguem continuamente praticadas, notadamente quanto aos subsídios governamentais e à proteção à indústria nacional – o que é utilizado, preponderantemente, pelos países que hoje detêm elevado grau de industrialização.

Como tais deficiências, pode-se mencionar a medida do “single undertaking”, segundo o qual os países devem aderir aos acordos multilaterais de maneira integral, ou seja, adotando todas as cláusulas neles dispostas – o que reduz a possibilidade de os países membros da OMC escolherem quais os acordos dos quais participarem, inibindo, pois, sua capacidade de adoção de políticas desenvolvimentistas próprias a suas dificuldades e condições particulares.

Ademais, Os PEDs e PMDs também encontram dificuldades no fato de serem preteridos nos processos de tomada de decisão, os quais, na prática, privilegiam, desmesuradamente, os Estados com representação em Genebra – únicos com voto e participação no Conselho Geral, órgão executivo da OMC.

Igualmente, a categorização dos países em PEDs e PMDs não apresenta definição concreta e segura, não sendo realizada pela OMC, mas sim submetendo-se ao crivo arbitrário e eivado de interesses políticos dos Estados-Membros.

A estrutura atual de regulamentação comercial revela, na prática, uma invasividade no campo normativo e decisório das autoridades nacionais e dos ordenamentos jurídicos internos, pelas políticas e normas votadas em um foro internacional e externo aos Estados, no que se reverte em uma limitação à possibilidade de condução de políticas públicas pelos Estados dependentes, vez que

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devem conformar-se, direta ou indiretamente, aos interesses das potências econômicas.

Constata-se, pois, um déficit democrático na condução prática das políticas econômicas internacionais. Não basta a formulação teórica de pretensões idílicas de conformação do comércio internacional à promoção do desenvolvimento, urge a instauração efetiva de um sistema de governança eqüitativo, pelo qual o fim desenvolvimentista possa ser assegurado através da participação igualitária, da realização de processos justos e da concretização da igualdade material, pelo que se considere as condições peculiares e deficitárias de cada Estado-Membro, preservando-lhes, assim, espaço para a adoção de políticas públicas próprias de desenvolvimento nacional.

Conforme observa o ex-secretário de Estado dos EUA, Colin Powell[16], “entre nossas outras prioridades [as do governo americano], nada é mais importante do que a promoção do comércio internacional” e continua, justificando, “o comércio internacional cria riquezas”. Contudo, tais riquezas não podem ficar nefasta e discriminatoriamente restritas aos países desenvolvidos. A própria DDD reforça a premente necessidade de revisão das práticas comerciais internacionais, em seu preâmbulo, ao mostrar-se ciente de que os esforços a nível internacional para promover e proteger os direitos humanos devem ser acompanhados de esforços para estabelecer uma nova ordem econômica internacional.

Para tanto, torna-se indispensável a consecução de uma substancial mudança na vigente estrutura do comércio internacional, notadamente quanto aos tratamentos discriminatórios que suas repercussões persistem em provocar. Empregando e, então, validando cláusulas de não-discriminação e medidas de aplicação práticas e eficazes de distribuição igualitária de riquezas, os atores do sistema de comércio internacional poderão, enfim, tornar viável o alcance do objetivo teórico inicialmente perquirido pelos idealizadores desse comércio: uma expansão do fluxo de capitais entre as nações que seja capaz de promover o bem-estar dos povos mediante um efetivo e democrático aumento de sua renda real – e, destarte, tornar, enfim, possível a coexistência entre o Sistema Internacional de Comércio e o Direito do desenvolvimento.

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O desenvolvimento não é interesse apenas dos PEDs e PMDs, mas sim de todas as pessoas e nações individualmente consideradas, considerando-se a crescente interdependência mundial - indissociável à conjuntura globalizada da época contemporânea.

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NOTAS:

[1] O comércio internacional cresceu nos últimos cinqüenta anos em níveis sem precedentes. As trocas comerciais internacionais representavam 14% do PIB mundial em finais do século XX (2000). Em 1950, o percentual do PIB mundial representado pelo comércio internacional chegava a 6%. A explosão do capital móvel, a revolução da informação e as pressões demográficas, que demandam um nível de consumo maior são alguns dos fatores responsáveis por esse incremento na atividade comercial internacional. (Marc-Johnson, 2001, p. 288).

[2] Ilustrando esta realidade, tem-se o caso dos embargos econômico, comercial e financeiro aplicado pelos Estados Unidos a Cuba, a partir de 1962. Se exclusivamente guiado pelas diretivas da soberania jurídica, tal não seria permitido, como de fato pronunciou-se a Assembléia Geral das Nações Unidas em 2007, "determinada a encorajar o estrito cumprimento dos objetivos e princípios consagrados pela Carta das Nações Unidas" (...) e "reafirmando, dentre outros princípios, a igual soberania das nações, a não-intervenção e a não interferência em seus assuntos internos”(...).tendo condenado, pela 16º vez consecutiva, tal embargo por 184 votos a quatro. Contudo, a medida vigora até os dias atuais refletindo uma realidade que, de fato, comprova a vigência de uma soberania política – que, não raramente, contrapõe-se à soberania jurídica no que atine a suas conseqüências práticas. Vide: http://www.eyeontheun.org/assets/attachments/documents/5704.doc

[3] A primeira menção à existência de um direito do desenvolvimento, em um documento internacional de ampla

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aceitação entre os Estados, dá-se com a Declaração Sobre o Direito do desenvolvimento (DDD), de 1986.

[4] Vide a íntegra da Declaração em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/lex170a.htm

[5] MONTORO, André Franco. Estudos de Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1995, p.44.

[6] Não se deve confundir o Direito do Desenvolvimento com o Direito do desenvolvimento. Aquele se enquadra enquanto política de estado, operando-se no plano interno deste, como por meio de acordos com outros estas (sejam reginanis, bilaterais ou multilaterais); este, por sua vez, se situa no rol de direitos fundamentais, cuja realização incumbe aos estados, separadamente considerados, como ao conjunto destes, por meio de ação internacional correlativa. Aí cabe falar em “internacionalismo necessário” na linha de H. GROS ESPIELL, como aspecto dos “direitos da solidadariedade”, V. Hector GROS SPIELL, Introduction (in: Droit International, Paris, UNESCO/ Pedone v. II, “Les Droits à vocations communautaire).

[7] Vide: SENDAGUE, Ahmed Belhadj. Le Droit de L’Homme ao Développement, 1995, p. 144-145; e BEDJAOUI, Mohammed. The Right to Development. In: BEDJAOUI, Mohammed. International Law: Achievements and Prospects. 1991, p. 1199-1200.

[8] Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “14.O processo de globalização e liberalização tem produzido efeitos não uniformes entre os países. As disciplinas e obrigações internacionais estão também crescentemente adotando regras que moldam as escolhas de políticas de desenvolvimento dos países em desenvolvimento.Estes progressos, que têm tido efeitos econômicos e sociais negativos, ressaltam a importância de se garantir o âmbito para políticas para países em desenvolvimento apresentarem objetivos de desenvolvimento nacional baseados nas suas necessidades de desenvolvimento, financeiras e de comércio”.

[9]Cientes de tal realidade, as Nações Unidas vêm, assim, em inúmeras resoluções, buscando identificar e suprimir as razões ensejadoras de tal obstáculo. Efetivamente, um de seus grupos de

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trabalho admitiu, em 1994 o comércio internacional enquanto óbico ao direito do desenvolvimento. Vide: Doc. NU: E/CN.4/1995/11, 5 September 1994, Question of the realization of the right to development on its second session.

[10] Da mesma forma que a CNMF, a obrigação de tratamento nacional também decorre do princípio da não-discriminação, norteador das relações comerciais no âmbito da OMC. Contudo, tais regramentos divergem, basicamente, quanto ao objeto ao qual se referem. Enquanto a CNMF estabelece que não deve haver discriminação entre países, o princípio do tratamento nacional remete-se a produtos - estipulando que, uma vez no mercado do país importador, o produto importado não esteja sujeito a condições que o coloquem numa posição de desvantagem competitiva, melhor dizendo, o tratamento dispensado ao produto importado deverá ser equiparado àquele conferido ao produto nacional. O presente trabalho não se ocupará mais detidamente quanto a este regramento, uma vez que seu foco tende à avaliação dos efeitos do comércio internacional sobre os países comerciantes em si mesmo considerados, ao que se presta mais propriamente a CNMF.

[11] Cláusula da Nação Mais Favorecida - Artigo I, GATT: - no comércio mundial não deve haver discriminação. Todas as partes contratantes têm que conceder a todas as demais partes o tratamento que concedem a um país em especial. Portanto, nenhum país pode conceder a outro vantagens comerciais especiais, nem discriminar um país em especial.

[12]Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, de 12 de junho de 2004, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “28. O diálogo e as negociações do Norte-Sul exigem uma cooperação genuína para o desenvolvimento através da associação global.”

[13] Segundo a Declaração Ministerial na Ocasião do 40º aniversário do Grupo dos 77, de 12 de junho de 2004, da Conferência das Nações Unidas Para o Comércio e o Desenvolvimento: “12. As expectativas de uma maior segurança global e de uma ordem econômica social internacional justa não foram realizadas. O mundo atual está tomado por problemas sociais

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e econômicos agudos, muitos dos quais de natureza estrutural”. Disponível em: http://www.unctad.org/pt/docs/td405_pt.pdf

[14] No inglês Enabling Clause.Vide a íntegra da decisão em: “Differential and More Favourable Treatment Reciprocity and Fuller Participation of Developing Countries, decisão de 28 de novembro de 1979 (L/4903)” Disponível em: http://www.worldtradelaw.net/tokyoround/enablingclause.pdf.

[15] “A falta de representação ou a representação precária dos países em desenvolvimento em Genebra, prejudica seriamente a sua capacidade de participar dos progressos da OMC” (SIKHAKHANE, 2007, documento de internet). Vide:< http://usinfo.state.gov/journals/ites/0200/ijep/ij020011.htm>.

[16] Vide a íntegra do texto em: “Opinião: Secretário de Estado Powell Fala sobre Projeto de Negociações Comerciais”. Disponível em: <http://livrecomercio.embaixadaamericana.org.br/?action=artigo&idartigo=21>.

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PRESSUPOSTOS LIMITADORES DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO

ANDRÉ LUÍS DOS SANTOS MOTTIN: Advogado da União. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil.

RESUMO: O regime jurídico dos títulos de crédito tem como mais importante referencial normativo o princípio da autonomia, preceito que congloba diversos outros elementos normativos, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das obrigações cambiais. A adequada aplicação do princípio, porém, perpassa pelo estudo dos seus pressupostos, os quais consubstanciam limitações à referida autonomia. Condicionantes estes cuja compreensão conduzirá a consequências práticas relevantes, impondo uma nova visão para a solução de casos usualmente levados ao Poder Judiciário, à luz de novos paradigmas e em atenção ao eixo teleológico que legitima a disciplina diferenciada dos títulos de crédito.

Palavras-chave: Títulos de crédito. Princípio da autonomia. Pressupostos limitadores. ABSTRACT: The most important reference of the legal regime of credit titles is the principle of autonomy, precept it brings together several other regulatory elements, such as abstraction, independence and unenforceability of credit obligations. Proper application of the principle, however, passes through the study of his conditions, which consist of limitations on this autonomy. Understanding these conditions will lead to important practical consequences, imposing a new vision for solving cases usually brought to the courts, based on new paradigms and taking into account the teleological axis that legitimizes differentiated discipline of credit titles.

Keywords: Credit titles. Principle of autonomy. Limiting conditions.

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INTRODUÇÃO

Diante da dinamicidade da economia moderna, revela-se fundamental para o sistema não apenas a ágil circulação de moeda, mas, também, ao seu lado, a consistente circulação do crédito – compreendido, sob o viés jurídico, como “o direito que o credor tem de receber do devedor a prestação objeto da obrigação”[1]– estimulando a realização de negócios e a movimentação de riquezas. Nesse contexto, ganha ainda maior relevo o estudo dos títulos de créditos, “documento que instrumentaliza o crédito e permite a sua mobilização com rapidez e segurança” [2].

O regime jurídico especial a que se submetem os títulos de crédito, denominado regime cambiário, apresenta inúmeras regras e princípios particularizados que o distanciam em muito do regime geral das obrigações. Entretanto, nem por isso a disciplina dos títulos de crédito deve ficar alheia à busca de justiça nas relações prestacionais, sendo a incumbência da doutrina promover a conciliação dos fins a que se presta o direito cambiário, voltados à circulação de riquezas na economia, com vetores principiológicos voltados ao equilíbrio e à equidade das obrigações.

O presente estudo busca realizar uma análise propositiva do regime jurídico dos títulos de crédito, objetivando reafirmar suas premissas tradicionais, com especial enfoque ao princípio da autonomia das obrigações cambiais. Porém, de outro lado, também objetiva realizar ponderações críticas e indagativas acerca dos limites à aplicação desse princípio, a partir do estudo de seus pressupostos e à luz de novos paradigmas de fundo constitucional, com o estudo interdisciplinar e o diálogo de fontes.

O trabalho extrairá da doutrina e da legislação o cerne de sua fundamentação, em uma análise precipuamente dedutiva. Contudo, não se esquivará do exame casuístico de interessantes questões abordadas pela jurisprudência, intentando construir indutivamente as bases para a conclusão do estudo.

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1. OS TÍTULOS DE CRÉDITO: UMA VISÃO GERAL.

O título de crédito, em essência, nada mais é do que um documento, um documento que “prova a existência de uma relação jurídica, especificamente duma relação de crédito; ele constitui a prova de que certa pessoa é credora de outra”[3]. O título consubstancia uma declaração unilateral de vontade, com eventual origem em obrigações contratuais ou civis, mas que, a partir da sua assinatura, passa a representar obrigações cambiárias autônomas, submetidas a um regime especial.

Como documento que é, porém, distingue-se de outros instrumentos representativos de direitos e obrigações reconhecidos pelo direito, como o contrato, a escritura pública e a sentença judicial. A começar tal diferenciação pela finalidade última do título de crédito: permitir a ágil e segura circulação do crédito, por meio de sua fácil negociabilidade e executividade, promovendo a circulação de riquezas e capital, em prol da dinamicidade da economia. Conforme lição de Rosa Junior: “A principal função do título de crédito consiste na sua circulabilidade, permitindo a realização do seu valor mesmo antes de seu vencimento através de operação de desconto, e, por isso, o título de crédito nasce para circular e não para ficar imóvel entre as partes primitivas”.

À luz de tal escopo, há uma disciplina jurídica especial e distintiva aplicável aos títulos de crédito, a qual confere ao titular do crédito maiores garantias do que as do regime de Direito Civil. Essa disciplina fundamenta-se em três princípios fundamentais: a cartularidade, a literalidade e a autonomia. E, embora autores diversos denominem essa tríade como características, atributos, ou requisitos essenciais, prevalece a sua configuração como princípios, em razão de sua natureza normativa e cogência[4].

O princípio da cartularidade – também nominado de princípio da incorporação – vem a significar que o titular do crédito, para exercê-lo, necessita estar na posse do documento, “não existindo direito sem o título”[5]. O crédito deve estar materializado na cártula

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(documento) e esta deve estar na posse do titular, a fim de permitir facilmente a identificação da obrigação e de sua titularidade, favorecendo, consequentemente, a sua circulação. Ainda que a aplicação de tal princípio venha sendo mitigada em alguns casos em razão do fenômeno da “desmaterialização dos títulos” – v.g., possibilidade de protesto por indicação, utilização de documentos eletrônicos, etc. – trata-se de atributo ainda estruturante da disciplina dos títulos de crédito.

Já o princípio da literalidade representa a noção de que somente produzem efeitos jurídicos os atos lançados no próprio título de crédito. O crédito existente é aquele literalmente registrado na cártula, nada mais, nada menos. Outros atos, se forem formalizados em documentos apartados – tal como a quitação, ou o aval – não terão eficácia cambiária. Promove-se, assim, o “balizamento” e o “rigor formal” do direito[6], garantindo-se a segurança na circulação do título, com a certeza sobre os direitos e as obrigações nele representados, que correspondem exatamente ao registro literal na cártula.

Por fim, o princípio da autonomia, que será abordado com mais vagar no tópico subsequente, é considerado o mais relevante do sistema, “a pedra fundamental de todo o regime jurídico cambial”[7], determinando a existência de autonomia em relação a cada uma das obrigações cambiais incorporadas ao título, assegurando ao terceiro portador do título um direito autônomo de crédito. Segundo Rosa Junior, tal princípio “surgiu a partir do século XIX, quando o título de crédito deixou de ser considerado mero documento probatório da relação causal, para ser entendido como documento constitutivo de direito novo, autônomo, originário e inteiramente desvinculado da relação causal”.[8]

Esses são os vetores principiológicos fundamentais do regime jurídico dos títulos de crédito, que os torna diferenciados, impondo um tratamento particularizado, com vistas à promoção de seu fim precípuo, de circulação do crédito como direito autônomo em si. Em razão de tais premissas, permite-se que, a partir de um

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único direito de crédito representado literalmente em uma cártula, sejam satisfeito inúmeros interesses, com a transmissão de riquezas e a movimentação da economia.

Por comporem a essência do regime dos títulos de crédito, esses três pilares principiológicos conformam o próprio conceito de título de crédito, na formulação amplamente aceita de Cesare Vivante: “Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado”[9]. Este conceito também foi encampado pela legislação brasileira, conforme artigo 887 do Código Civil de 2002: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”. Trata-se de definição autoexplicativa, que se reporta à correspondência entre as expressões “documento necessário” e o princípio da cartularidade, “direito literal” e o princípio da literalidade, e “direito autônomo” ao princípio da autonomia.

2. DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DOS TÍTULOS DE CRÉDITO:

O princípio da autonomia dos títulos de crédito vem sendo tratado pela doutrina de forma bastante variada, sem uma unificação conceitual. Em certa medida, isso se deve à existência de outros atributos dos títulos de crédito que possuem estreita relação com esse princípio, como a abstração, a independência e a inoponibilidade das obrigações cambiais. Por essa razão, tais conceitos ora são fundidos pela doutrina, ora são adotados como princípios autônomos ou como subprincípios, ora como meros corolários.

No presente estudo, primando pela organicidade, propõe-se a adoção do princípio da autonomia como princípio geral, com conteúdo conglobante, intentando incorporar todos os outros atributos dele decorrentes. Após essa definição geral, então, propõe-se tratar separadamente cada um de seus elementos normativos (a abstração, a independência e a inoponibilidade), que compõe o princípio maior, e que, por esse motivo, também podem

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ser compreendidos como subprincípios, como faz grande parte da doutrina. O mais importante, porém, é compreender, de um lado, que estes elementos possuem natureza normativa cogente, e, de outro, que estão inter-relacionados, guardando certas particularidades, mas fazendo parte de um todo normativo. A propósito dessa íntima relação, Fábio Ulhoa Coelho disserta: “A abstração e a inoponibilidade correspondem a modos diferentes de se reproduzir o preceito da independência entre as obrigações documentadas no mesmo título de crédito”[10].

Na busca de um conteúdo geral ao princípio da autonomia, sugere-se sua conceituação como a norma principiológica que atribui autonomia a cada uma das obrigações cambiais incorporadas ao título, seja em relação ao negócio jurídico que lhe deu origem (do qual são abstraídas), seja em relação às demais obrigações cartulares porventura integradas ao título (das quais são independentes), possibilitando ao terceiro portador de boa-fé o exercício de um direito de crédito autônomo, ao qual são inoponíveis eventuais vícios existentes nas obrigações precedentes.

Como primeiro elemento normativo a compor a autonomia apresenta-se a “abstração” da obrigação cambial – primeiro, diga-se, em razão da cronologia da emissão e circulação da cártula. Tratada por grande parte da doutrina como “subprincípio da abstração”[11], significa que o título de crédito, quando posto em circulação, desvincula-se da relação que lhe deu origem. Ocorre o desprendimento (abstração) da obrigação cambiária em relação ao negócio que a originou (causa debendi), exsurgindo nova obrigação autônoma, inconfundível com a que lhe deu base. A consequência é que, após tal libertação de sua causa originária, esta “não poderá ser alegada futuramente para invalidar as obrigações decorrentes do título”[12].

O segundo elemento normativo do princípio da autonomia vem sendo tratado por inúmeros doutrinadores como a “independência” das obrigações cambiais. Aqui, a autonomia não diz respeito ao negócio jurídico originário (do qual a cártula já se

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abstraiu), mas à autonomia entre as obrigações cambiais incorporadas ao título, que podem ser inúmeras – v.g., um mesmo título pode incorporar as obrigações do emitente, do avalista e de diversos endossantes. Nesse sentido, fala-se que cada uma das assinaturas apostas no título de crédito (do emitente, do avalista, dos endossantes) cria uma obrigação cambial que é independente das demais[13]. O corolário disso é que “eventual vício existente em uma das obrigações não se irradia pelas demais, e, por isso, os demais devedores não ficam exonerados de suas obrigações cambiárias pelo fato da obrigação anterior encontrar-se viciada”[14]. A outra decorrência é que, em sendo cada uma das obrigações independentes e eficazes para os fins cambiais, o portador do título poderia acionar qualquer dos devedores, sem observar a ordem pela qual se obrigaram (ausência de benefício de ordem), conforme positivado no art. 47 da Lei Uniforme de Genebra - LUG[15].

Por fim, o terceiro elemento normativo integrante do princípio da autonomia diz respeito à “inoponibilidade de exceções pessoais aos terceiros de boa-fé”. É para ele que convergem todos os elementos anteriores, pois possui caráter essencialmente prático, revelando-se como a “manifestação processual do princípio da autonomia”[16]. Consiste, por assim dizer, no “fecho da abóbada” da autonomia dos títulos de crédito. E, norma que é, propugna que, em execução movida por portador de boa-fé do título de crédito, o devedor não pode alegar defesas (exceções) decorrentes de sua relação pessoal com outros intervenientes. Ora, o terceiro portador possui um direito autônomo de crédito em face do devedor (emitente, avalista ou endossante), sendo a obrigação deste autônoma em relação à obrigação causal originária e às demais obrigações cambiais registradas. Logo, não pode o devedor se opor ao adimplemento em razão de eventuais vícios presentes nessas outras autônomas obrigações. É dizer, a sua defesa está restrita a problemas na sua relação direta com o portador do título ou a vícios no próprio conteúdo e forma da cártula, não alcançando defesas pessoais relativas a outras relações jurídicas. Saliente-se, porém, que essa prerrogativa processual da inoponibilidade aplica-se apenas ao terceiro de boa-fé. Em havendo má-fé do portador, está-

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se diante de exceção à regra, permitindo-se que o devedor apresente defesa baseada em vícios de relações pretéritas, conforme regra positivada no artigo 17 da Lei Uniforme, no artigo 45 da Lei nº 7.357/85 e no artigo 916 do Código Civil.

Não há dúvida que esses três elementos normativos, que compõe o conteúdo do princípio da autonomia, revelam-se essenciais à estruturação da disciplina dos títulos de crédito, conferindo confiança aos negociantes do título acerca da higidez do crédito nele representado. Garante-se, pois, segurança e eficácia à circularidade do crédito, em estímulo à movimentação de riquezas e à dinamicidade da economia.

Nada obstante, existem pressupostos para a aplicação desses referenciais normativos, extraídos da própria estrutura do princípio da autonomia, e que condicionam a incidência dos efeitos jurídicos supra analisados. Nesse tom, somente poderá ser aplicado o princípio da autonomia e verificados seus efeitos jurídicos estando presentes estes pressupostos, aos quais, diferentemente do ordinário, será dado especial enfoque no presente estudo.

3. A CIRCULAÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO COMO PRESSUPOSTO PARA A AUTONOMIA DAS OBRIGAÇÕES CAMBIAIS:

Como pressuposto fundamental para o reconhecimento da autonomia das obrigações cambiais, destaca-se, em primeiro lugar, a imprescindibilidade da circulação do título de crédito. Como bem pontuado por Fábio Ulhoa Coelho[17]:

A abstração, então, somente se verifica se o título circula. Em outros termos, só quando é transferido para terceiros de boa-fé, opera-se o desligamento entre o documento cambial e a relação em que teve origem. A consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades,

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nulidades ou vícios de qualquer ordem que contaminem a relação fundamental. E ele não se exonera exatamente porque o título perdeu seus vínculos com tal relação. Ora, se assim é, confirma-se que a abstração não acrescenta nenhuma consequência de relevo às decorrentes do princípio da autonomia. Daí seu estatuto de subprincípio.

Com efeito, se não há circulação do título, permanecendo o documento na posse do beneficiário do documento, participante da contratação inicial, não há desprendimento da obrigação cambiária em relação a esse negócio. As partes permanecem obrigadas em razão do contrato: “entre os sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se considera desvinculado deste”[18]. A consequência é que, nesta hipótese, seria possível ao emitente sacador discutir o negócio originário (causa debendi) e alegar eventuais vícios no contrato. Debater-se-ia, entre tais sujeitos, a própria relação contratual estabelecida, aplicando-se-lhes as regras comuns do Direito Civil.

Rubens Requião desenvolve esse raciocínio[19]:

Assim, em relação ao seu credor, o devedor do título se obriga por uma relação contratual, motivo por que contra ele mantém intatas as defesas pessoais que o direito comum lhe assegura; em relação a terceiros, o fundamento da obrigação está na sua firma (do emissor), que expressa sua vontade unilateral de obrigar-se e essa manifestação não deve defraudar as esperanças que desperta em sua circulação.

Nesses termos, a fim de que seja aplicado o princípio da autonomia, assim como seus três elementos normativos componentes, faz-se necessária a circulação do título de crédito, mediante endosso. É tal medida que desvinculará a obrigação

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cambial do negócio originário, estabelecendo uma relação com um terceiro, fundada exclusivamente na declaração unilateral de vontade da cártula. Da mesma forma, são os posteriores endossos que estabelecerão novas obrigações cambiais independentes das anteriores, permitindo-se, ao fim, que um terceiro de boa-fé exerça o direito de crédito de forma autônoma, independentemente de vícios nas demais relações firmadas.

Corroborando o exposto, posiciona-se de forma pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A título elucidativo, traz-se à colação os seguintes excertos de julgados:

(...) 3. A autonomia própria dos títulos de crédito consiste em reflexo da respectiva negociabilidade, é dizer, a abstração somente se verifica à vista da circulação da cambial; a não comercialização do título lastreado em negócio jurídico presume sua emissão em garantia da avença (acessoriedade), destituído de seus caracteres cambiários e maculado pelos vícios atinentes à relação negocial originária. (...) (STJ, REsp 812.004/RS, Quarta Turma, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 20/06/2006, DJ 01/08/2006, p. 452)

(...) 3. A autonomia e abstração dos títulos de crédito manifestam-se nas relações cambiais com terceiros de boa-fé, portadores dos títulos. 4. Perante o credor originário da nota promissória, o devedor se obriga por meio de uma relação estritamente contratual, a qual se aplica à integralidade o Código Civil. (...) (STJ, REsp 1361937/SP, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 15/10/2013, DJe 18/10/2013)

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Interessante debate derivado dessa abordagem refere-se à situação do avalista que garante um título de crédito, o qual não vem a circular, permanecendo na posse do beneficiário original da cártula. O questionamento que se coloca é se seria possível ao avalista alegar vícios no contrato originário diante da ausência de circulação da cártula.

Inicialmente, cumpre conceituar o aval como “o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete a pagar título de crédito, nas mesmas condições que um devedor desse título (avalizado)”[20]. Trata-se de uma garantia suplementar para o pagamento da cártula, firmada no próprio documento, à luz do princípio da literalidade.

A partir de uma leitura prefacial da legislação, verifica-se que a autonomia do instituto do aval vem a ser um tanto exacerbada. E isso porquanto é prevista uma autonomia específica entre a obrigação do avalista e a obrigação do avalizado, fazendo com que aquela subsista mesmo na hipótese de nulidade desta (artigo 32 da Lei Uniforme de Genebra - LUG). A partir dessa compreensão, a doutrina e a jurisprudência majoritárias posicionam-se no sentido de que essa autonomia independe da circulação do título, de forma que o avalista não pode alegar vícios do contrato de origem mesmo em face do original beneficiário da cártula.

Nada obstante, observado o escopo propositivo e indagativo do presente estudo, não se pode deixar de aventar uma posição doutrinária e jurisprudencial em sentido oposto, minoritária, é verdade, mas nem por isso irrelevante. Tal posição fundamenta-se, essencialmente, nas premissas de natureza axiológica do regime cambiário.

Com efeito, a disciplina especial dos títulos de crédito, que determina sua abstração, independência e inoponibilidade como garantias excepcionais ao crédito, tem como objetivo justamente garantir a sua negociação ágil e segura, com a circulação de riquezas pela economia. Protege-se, com isso, terceiros com

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legítimos interesses, que negociaram o título na expectativa do recebimento do crédito, confiando na segurança da relação jurídica cambiária. Essa é a teleologia da normatização especial, e é em razão dela que se legitima.

Assim, inexistindo tal circulação, parece não subsistir fundamento suficiente para ensejar a aplicação dessas excepcionais regras, derruindo a justificativa legitimadora de tal compreensão rigorosa da autonomia da obrigação do avalista. Em não havendo circulação, não há interesses legítimos de terceiros a serem salvaguardados à luz da boa-fé e da confiança. Ao revés, subsiste apenas o interesse do participante do negócio jurídico originário, o mesmo que realizou a contratação eventualmente eivada de vícios, nulidades ou anulabilidades. Diante disso, questiona-se se a proteção exclusiva deste interesse individualizado – sobretudo quando não se revela legítimo sob o ponto de vista material/substancial – deve prevalecer sobre a justiça negocial e mesmo sobre princípios ou cláusulas gerais do Direito Civil, tais como o enriquecimento sem causa, a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio material.

Para ilustrar a indagação, imagine-se uma negociação fraudulenta envolvendo um imóvel que não pertence ao suposto vendedor, em razão da qual é emitida uma nota promissória, que é avalizada. Nesta hipótese, segundo a posição clássica, em execução movida pelo beneficiário da nota em face do avalista, este não poderia alegar a nulidade ou descumprimento da obrigação originária. Deveria satisfazer o crédito em questão, buscando apenas o ressarcimento pela via regressiva.

A apresentação desse exemplo extremo tem por escopo demonstrar que a interpretação inflexível da autonomia do aval pode levar a situações de evidente iniquidade material. Além disso, essa interpretação restritiva pode depor frontalmente contra a economicidade processual, pois, no caso exposto, revelar-se-ia tanto mais razoável permitir-se a oposição de embargos à execução visando à solução definitiva da questão, evitando pagamentos

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indevidos e ações regressivas em sequência, todas de improvável êxito.

Nesse contexto, mesmo a especialidade do Direito Cambiário e a previsão do artigo 32 da LUG não constituiriam óbices absolutos a uma nova compreensão, pois é sabido que o texto legislativo não encerra a norma, a qual deve ser extraída pelo julgador a partir de interpretação sistemática e teleológica do Direito. Assim, a interpretação do aludido artigo 32 deve ser integrada à luz do princípio geral da autonomia, assim como à luz dos princípios gerais do Direito Civil, como o da boa-fé objetiva e da função social do contrato, e mesmo à luz de postulados de relevância constitucional, como o princípio da igualdade, economicidade, razoabilidade e proporcionalidade.

Nesse sentido, a partir de tais vetores, é possível sustentar que a autonomia da obrigação do avalista não é absoluta, podendo ser relativizada quando não há circulação do título de crédito. Encampando tal compreensão, ainda de forma minoritária, cumpre citar alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

Comercial. Título de crédito. Avalista. Discussão sobre a origem do débito. Ausência de circulação do título. Possibilidade. Precedentes. - Na esteira de precedentes da 3.ª Turma do STJ, se o título de crédito não circulou, pode o avalista argüir exceções baseadas na extinção, ilicitude ou inexistência da dívida da qual originou o título, visando evitar o enriquecimento sem causa do credor. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 678.881/PR, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Adrighi, julgado em 20/06/2006, DJ 30/06/2006, p. 216)

Aval. Autonomia. Oponibilidade de exceções. Não pode o avalista opor exceções fundadas em

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fato que só ao avalizado diga respeito, como o de ter-lhe sido deferida concordata. Entretanto, se o título não circulou, ser-lhe-á dado fazê-lo quanto ao que se refira à própria existência do débito. Se a dívida, pertinente à relação que deu causa à criação do título, desapareceu ou não chegou a existir, poderá o avalizado fundar-se nisso para recusar o pagamento. (STJ, REsp 162.332/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, julgado em 29/06/2000, DJ 21/08/2000, p. 117)

Advirta-se, porém, que não se pretende atribuir ao avalista a prerrogativa de suscitar exceções pessoais que competiriam exclusivamente ao avalizado. O que se entende possível permitir ao avalista é opor defesas que digam respeito à “extinção, ilicitude ou inexistência da dívida da qual originou o título, visando evitar o enriquecimento sem causa do credor”, consoante referido pela Ministra Nancy Andrighi no citado REsp 678.881/PR.

Ademais, a relativização em questão, exceção que é, não pode tornar-se a regra. Não se revela adequado que qualquer vício acessório do negócio base venha a permitir que o avalista se exonere da obrigação assumida. A autonomia do aval deve persistir como base do sistema, mitigada apenas em hipóteses excepcionais efetivamente justificadoras, a fim de evitar o enriquecimento sem causa, ou o manifesto desequilíbrio material no negócio jurídico base, em detrimento da justiça negocial.

4. A REGULARIDADE DO TÍTULO COMO PRESSUPOSTO PARA A AUTONOMIA DAS OBRIGAÇÕES CAMBIAIS:

Uma das características fundamentais do regime cambial refere-se ao seu rigorismo formal, submetendo os títulos de crédito a uma série de exigências formais previstas em lei, essenciais para a existência, a validade e a eficácia das obrigações cartulárias. O denominando “rigor cambiário” é fundamental para que os títulos de

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crédito “inspiremconfiança, atendendo com facilidade aos interesses da coletividade”[21]. Ademais, tem especial razão de ser em virtude da excepcionalidade das regras disciplinadoras dos títulos de crédito: se, de um lado, o direito cambial confere maiores direitos e garantias ao portador do título em detrimento do devedor, de outro, é de se impor maior rigor formal no exercício dessas prerrogativas.

De salientar que as exigências de regularidade do título podem ser de duas ordens. Os requisitos extrínsecos são aqueles relativos exclusivamente à forma, “que se revelam materialmente na redação do título. São visíveis aos olhos, ao primeiro exame”[22]. Já os requisitos intrínsecos “são os que afetam a obrigação cambial, em sua origem. São dessa ordem a incapacidade, a falsidade e a falta ou defeito do mandato ou representação legal, do obrigado.[23]”

A mais relevante consequência desse rigorismo formal é que, sem o cumprimento dos requisitos, o documento deixa de possuir eficácia cambial, desnaturando-se como título de crédito e, por conseguinte, não se lhe aplicando a disciplina especial decorrente do princípio da autonomia. Nesse sentido, Fran Martins leciona[24]:

Tanto a autonomia das obrigações como a literalidade e a abstração só poderão ser invocadas se o título estiver legalmente formalizado, donde dizerem as leis que não terão o valor de título de crédito os documentos que não se revestirem das formalidades exigidas por ditas leis

Essa é a razão pela qual se coloca, no presente estudo, a regularidade do título como pressuposto para a autonomia das cambiais, porquanto, em verdade, constitui pressuposto para a própria caracterização do documento como título de crédito.

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Como corolário, a um título irregular não são aplicáveis a abstração, a independência e a inoponibilidade. Assim, em sendo acionado o devedor em razão de título que descumpra seus requisitos legais, ser-lhe-á possível opor a respectiva exceção de irregularidade ao portador, independentemente da autonomia e independência de sua obrigação. Nesse sentido, “havendo defeito de forma do título (faltando, por exemplo, um requisito essencial), pode o obrigado escusar-se do pagamento ao portador porque não foi observado o rigor cambiário”[25].

Nesse contexto, exsurge a discussão prática acerca da consequência de endossos realizados em títulos irregulares, sobretudo na hipótese em que tais documentos são levados a protesto. Tal debate se insere tanto em relação aos endossos translativos – aqueles que transferem a titularidade do crédito ao endossatário – quanto em relação aos endossos-caução – espécie de endosso impróprio em que não há transferência do crédito, mas apenas outorga de poderes pelo endossante ao endossatário “para agir como seu legítimo representante, exercendo em nome daquele os direitos constantes do título, podendo cobrá-lo, protestá-lo, executá-lo, etc.”[26].

A respeito da temática, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça editou dois enunciados de Súmula. O primeiro deles, o de nº 475, estabelece que “Responde pelos danos decorrentes de protesto indevido o endossatário que recebe por endosso translativo título de crédito contendo vício formal extrínseco ou intrínseco, ficando ressalvado seu direito de regresso contra os endossantes e avalistas”. A toda evidência, a jurisprudência está em consonância com os referenciais teóricos abordados acima, reconhecendo que a irregularidade da cártula contamina sua higidez como título de crédito e as prerrogativas daí decorrentes. Como concluído pelo Tribunal no exame do Recurso Especial Repetitivo que deu base à Súmula, “cuidando-se de vício formal no título, como a inexistência de causa apta a conferir lastro à emissão, eventual protesto levado a efeito pelo endossatário, ainda que de boa fé, deve ser considerado indevido” [27].

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Outra situação bastante comum é a de instituições de crédito que recebem um título de crédito irregular, por meio de endosso-mandato, apenas para o fim de cobrança, realizando, em caso de não pagamento, o protesto do título. A respeito da casuística, o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado nº 476: “O endossatário de título de crédito por endosso-mandato só responde por danos decorrentes de protesto indevido se extrapolar os poderes de mandatário.” Ao que se extrai preliminarmente da redação, teria se adotado posição diversa da referida acima, pois a única hipótese de responsabilização referir-se-ia à conduta do endossatário que excede aos poderes de cobrança a ele conferidos, não abrangendo protestos indevidos em razão da irregularidade do título de crédito.

Nada obstante, o que ocorreu foi que o enunciado editado não correspondeu integralmente ao entendimento jurisprudencial consolidado na Corte. Em verdade, a compreensão integral do tema é dada pelo acórdão proferido no julgamento do Recurso Repetitivo que deu base à Súmula, in verbis:

(...) Só responde por danos materiais e morais o endossatário que recebe título de crédito por endosso-mandato e o leva a protesto se extrapola os poderes de mandatário ou em razão de ato culposo próprio, como no caso de apontamento depois da ciência acerca do pagamento anterior ou da falta de higidez da cártula. (STJ, REsp 1063474/RS, Segunda Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 28/09/2011, DJe 17/11/2011).

A parte final da ementa revela a correção da jurisprudência, já que imputa a responsabilidade ao endossatário em razão de culpa, quando protesta documento sabidamente com vício formal. Essa mesma compreensão é confirmada por julgados do STJ proferidos posteriormente à edição da referida Súmula (. A conclusão é que houve equívoco na redação do enunciado nº 476

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da Súmula do STJ, em razão da omissão de posição jurisprudencial relevante, induzindo em erro eventuais operadores do Direito acerca da extensão da responsabilidade do endossatário.

O certo é que quem recebe um título de crédito irregular, conhecendo tal circunstância – ou devendo conhecê-la pela sua expertise no trato com a matéria cambial, como é o caso das instituições financeiras – não pode exonerar-se da culpa, ainda que se trate de mero endosso-mandato. Conforme lições de Rubens Requião, um título com vício de forma perde seu caráter cambiário e se torna mera prova de uma obrigação comum escrita (quirógrafo), sendo tutelado não pelo direito cambiário, mas pelo direito comum. Nesse sentido, afirma, a seguir, que “não poderia, como já disse, servir de fundamento a uma ação cambiária nem ser transmissível por endosso, ou garantido por aval, fazendo-se sua circulação pela cessão de crédito”.

Portanto, cuidando-se de título irregular e, portanto, documento que perde sua natureza cambial e as prerrogativas daí decorrentes, mesmo o endosso-mandato revela-se indevido, respondendo o endossatário pelo protesto indevido do título, por culpa, à luz da disciplina civilista da responsabilidade civil.

5. A BOA-FÉ DO TERCEIRO PORTADOR COMO PRESSUPOSTO PARA A INOPONIBILIDADE DE EXCEÇÕES PESSOAIS:

Conforme já examinado anteriormente, com a circulação de um título de crédito que possua regularidade formal, reconhece-se a autonomia do direito de crédito do terceiro portador do título, sendo a ele inoponíveis exceções pessoais do devedor concernentes ao negócio originário ou a outras obrigações cambiais precedentes. Ressalte-se, porém, que o pressuposto para que esse terceiro possa se valer dessa inoponibilidade é que seja um portador de boa-fé, nos termos expressos artigo 17 da Lei Uniforme, no artigo 45 da Lei nº 7.357/85 e no artigo 916 do Código Civil, in verbis:

Lei Uniforme de Genebra

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Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.

Lei nº 7.357/85

Art . 25 Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.

Código Civil

Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé.

A primeira dificuldade está na definição do que seja portador de boa-fé. A esse propósito, a partir da redação da Lei Uniforme de Genebra, que se refere ao portador de má-fé como aquele que “tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”, Fran Martins entende que o terceiro de má-fé é somente aquele que age deliberadamente com a finalidade de prejudicar o devedor. Nesse sentido:

Assim, se o portador sabia que ao seu antecessor seriam oponíveis exceções pessoais pelo devedor, e com a finalidade de prejudicar a este recebeu o título, o devedor pode opor as exceções que teria contra o portador anterior,

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demonstrado que seja que a aquisição do título teve por finalidade prejudicar o devedor[28].

Evidentemente, para a configuração da má-fé, o animus do agente não se limita à intenção única de causar prejuízo a terceiro, mas, em verdade, refere-se ao intento de obter um benefício econômico para si (objetivo principal), o qual será obtido em detrimento de interesse do devedor (reflexo secundário). Nesse cenário, é prescindível o conluio entre o terceiro e os portadores precedentes da cártula, sendo necessário, apenas, que, ao buscar o proveito creditório advindo da cambial, o portador tenha consciência de que o fará em detrimento do devedor. Nesse sentido leciona Fábio Ulhoa Coelho:

O simples conhecimento, pelo terceiro, da existência de fato oponível ao credor anterior do título já é suficiente para caracterizar a má-fé. Não se exige, para o afastamento da presunção de boa-fé, a prova da ocorrência de conluio entre o exequente e o credor originário da cambial. Basta a ciência do fato oponível, previamente à circulação do título.

A correção do raciocínio do doutrinador é atestada a partir da interpretação sistemática do Direito, extraindo definição similar de possuidor de boa-fé no Código Civil, a teor do artigo 1.201, in verbis: “É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.” Logo, a contrario sensu, é de má-fé o possuidor do título de crédito que é conhecedor dos vícios ou obstáculos da coisa.

Nada obstante, apesar dessa compreensão, certo é que a boa-fé subjetiva se presume, e a má-fé se prova, consoante princípio geral de direito universalmente aceito. Assim, em linha de princípio, presume-se que o agente desconhece os vícios que comprometem o negócio jurídico base, incumbindo ao devedor o ônus da prova de fato contrário.

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Essa noção revela-se importante, a fim de conferir segurança jurídica às negociações. Contudo, em determinados casos, pode problematizar ou mesmo inviabilizar a identificação do portador de má-fé, em razão da extrema dificuldade na produção da correspondente prova, como se passa a analisar.

Essa segunda dificuldade, relativa à produção da prova da má-fé, sobreleva-se porquanto se refere à subjetividade do agente. Não se discute aqui de normas de conduta decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, mas, ao revés, perquire-se acerca do animus do agente. Ademais, perceba-se que o devedor, após aportar sua assinatura na cártula, em regra desconhece o destino do título, ignorando os supervenientes endossos realizados, os portadores subsequentes, assim como as relações privadas que lhe deram base. Assim, se desconhece o terceiro portador, e as suas relações negociais, torna-se difícil comprovar sua eventual má-fé. Levada ao extremo o rigorismo dessa prova, termina-se por esvaziar o direito de opor exceções ao terceiro de má-fé, incorrendo-se em contradição pela outorga de direito sem eficácia jurídica.

A solução para essa problemática parece estar no estudo da disciplina legal interdisciplinar que regula o direito material de prova e as regras processuais de sua produção em Juízo. Nesse campo, uma constatação inicial irrefutável é o de que a prova dos fatos é contextual e, portanto, submete-se a preceitos de conhecimento geral e a regras de experiência, que compõem o saber privado do juiz. Nesse sentido, existem situações fáticas que, em razão de seu contexto e dos indícios que o envolvem, submetidos a regras de experiência, oferecem uma presunção judicial de ocorrência de determinado fato. Acerca da importância do tema das presunções para a matéria em exame:

A presunção judicial resulta do raciocínio do juiz, que a estabelece. Forma-se na consciência do juiz: conhecido o indício, desenvolve o raciocínio, a partir da regra de experiência, e estabelece a presunção. (...)

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Amaral Santos pontua que a importância das presunções simples se apresenta quando se pretende provar estados de espírito – a ciência ou ignorância de certo fato, a boa-fé, a má-fé, etc. – e especialmente as intenções, nem sempre claras e não raramente suspeitas. [29]

Assim, diante de determinados fatos indiciários, o juiz pode formular raciocínio de presunção de má-fé do portador do título, derruindo a pressuposição realizada a priori acerca da sua boa-fé, a qual não é absoluta. Daí decorre a conclusão de que nem sempre a comprovação da má-fé do portador do título deverá corresponder a uma robusta prova testemunhal, pericial ou documental, de improvável existência no caso. Por vezes, poderá ser extraída de elementos indiciários e do contexto peculiar que envolve o terceiro portador do título.

A ilustrar o pensamento, pontue-se recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível nº 70045445996[30]. No caso, tratava-se de cheque sustado em razão da comprovada não entrega de mercadorias, o qual havia sido endossado a um terceiro. Ocorre que esse terceiro portador alegou em Juízo que havia recebido a cambial como pagamento de locativos atrasados, não conseguindo, contudo, comprovar a existência do contrato de locação. A partir dessa circunstância, a Corte dessumiu a má-fé do portador, admitindo a defesa baseada nos vícios do negócio originário. No mesmo sentido, a Apelação Cível nº 70040820805[31], em que aquele Tribunal permitiu ao devedor arguir a fraude que existia no negócio originário, considerando que o terceiro portador não havia demonstrado a razão de possuir a cártula.

Nos casos citados, além de ter ficado demonstrado o vício substancial no negócio jurídico originário, verificou-se que o terceiro havia recebido o título sem causa aparente. Sendo que, nessas hipóteses, não seria dificultoso a ele demonstrar o negócio que havia ensejado o recebimento da cártula. Ademais, não se tratava

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de instituição financeira que comumente negocia títulos, mas particular sem relação negocial aparente com o endossatário. Assim, aliados esses elementos indiciários e/ou probatórios, a Corte realizou raciocínio jurídico presuntivo que irreparavelmente elidiu a boa-fé do portador do título.

Dada sua correção, esses critérios devem ser adotados para a solução dos casos levados ao Judiciário, mitigando a dificuldade na produção da prova da má-fé dos agentes. Porém, tenciona-se ir além, propugnando-se verdadeira mudança de paradigma relativamente à produção de provas nessas hipóteses.

Com efeito, insere-se aqui a discussão acerca da distribuição dos ônus da prova. A esse respeito, a partir do advento do Novo Código de Processo Civil de 2015, com vigência prevista para março de 2016, restará positivada a moderna teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, que permitirá ao juiz, de ofício ou a requerimento, antes da instrução processual, casuisticamente, distribuir de forma diversa o ônus da prova entre as partes. Eis o teor do vindouro artigo 373, § 1º, in verbis:

Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte

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a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

A propósito da regra, a lição de Fredie Didier Jr.[32]:

O legislador brasileiro autoriza o juiz a, preenchidos certos pressupostos, redistribuir o ônus da prova, diante de peculiaridades do caso concreto. A redistribuição é feita caso a caso. É chamada, por isso, de distribuição dinâmica do ônus da prova – embora, como já se viu, também ser dinâmica a distribuição feita por convenção das partes. (...)

A técnica é consagração do princípio da igualdade e do princípio da adequação. Visa-se ao equilíbrio das partes (art. 7º, CPC): o ônus da prova deve ficar com aquele que, no caso concreto, tem condições de suportá-lo. O processo deve, ainda, ser adequado às peculiaridades do caso, sempre que a regra geral revelar-se com elas incompatível.

Transpondo tais ponderações à matéria dos títulos de crédito em exame, entende-se que, em havendo indícios relevantes de vício substancial no negócio jurídico originário, e, concomitantemente, dificuldade na demonstração da má-fé do terceiro portador da cártula – em razão do desconhecimento do suposto negócio que ensejou o endosso, por exemplo – exsurgiria motivação suficiente para que o juiz promovesse a redistribuição pontual do ônus probatório à luz do artigo 373 do Novo Código de Processo Civil. Assim, nesta hipótese, o juiz deveria imputar ao terceiro portador o ônus de comprovar a existência e a legitimidade do negócio que ensejou a circulação do título, a fim de que a sua boa-fé, presumida a priori e em geral, seja reafirmada no caso concreto.

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Trata-se de proposição que, antes de contrariar o princípio da inoponibilidade de exceções pessoais a terceiros de boa-fé, concretiza-o, operacionalizando-o e permitindo que a regra de exceção nele contida, relativamente à demonstração da má-fé do portador, seja efetivamente exercida, não sendo relegada a mera garantia formal despida de eficácia jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na teoria geral dos títulos de crédito, o princípio da autonomia conforma um dos principais preceitos do regime jurídico cambiário, consubstanciando norma geral que congloba diversos elementos normativos de igual relevo. A sua correta compreensão e aplicação, contudo, perpassa necessariamente pelo conhecimento e pelo atendimento de seus pressupostos fundamentais, que impõem a circulação da cártula, a regularidade do título e a boa-fé do terceiro portador como fatores condicionantes da autonomia cambial, visando à conciliação do regime especial cambiário com vetores axiológicos que buscam promover a justiça e o equilíbrio nas relações obrigacionais.

Essa forma de abordagem, que privilegia a análise dos pressupostos para a aplicação da disciplina excepcional dos títulos de crédito, possui uma proposta conciliativa: reafirmar seus princípios, cuja normatividade e cogência decorre da força da lei, mas, ao mesmo tempo, refutar o absolutismo e a inflexibilidade com que por vezes vem sendo tratado o aludido regime. E foi à luz desse escopo que foram examinados casuisticamente algumas situações particulares no presente trabalho – o aval prestado em título que não circula, o endossatário que protesta título irregular, e a prova da má-fé do portador do título. Pois que as novas soluções propostas quanto aos temas possuem natureza meramente exemplificativa e sugestiva, incitando sejam visualizados novos possíveis reflexos sob essa nova perspectiva.

Afinal, a disciplina dos títulos de crédito, ao mesmo tempo em que é especial, não é hermeticamente fechada, compondo ramo

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de um Direito uno, e sujeitando-se, consequentemente, ao diálogo de fontes e à interdisciplinaridade ínsita à ciência jurídica. Destarte, a matéria pode e deve sofrer influência parcimoniosa de princípios civilistas modernos como o da boa-fé objetiva, o da função social do contrato e o do equilíbrio e justiça contratuais, assim como, e sobretudo, de postulados de ordem constitucional, como a igualdade, a economicidade, a razoabilidade e a proporcionalidade. Assim é que as consequências da mudança de enfoque para a análise da matéria, agora centrado em pressupostos limitadores à autonomia dos títulos, são inúmeras, devendo ser exploradas pela doutrina e pela jurisprudência.

Há uma necessidade premente de evolução da disciplina, não por meio do abandono de seus princípios estruturantes, mas pela integração de outros vetores axiológicos, fundados especialmente na justiça das relações obrigacionais. A promoção da finalidade última do regime dos títulos de crédito – proporcionar a circulação ágil e segura de riquezas em prol da dinamicidade da economia – deve permanecer sendo a linha mestra da interpretação disciplina; contudo, não pode servir de dogma absoluto para legitimar relações negociais de manifesta iniquidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., 2. tir. São Paulo: Malheiros, 2004.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015.

MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, volume 1, Parte Geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 2º volume. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 427.

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013.

NOTAS:

[1] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 3.

[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 427.

[3] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 373.

[4] TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.

[5] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 65.

[6] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 62.

[7] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 434.

[8] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 67.

[9] Apud TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito, volume 2. 4 ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 15.

[10] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 380.

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[11] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.

[12] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 10.

[13] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 2º volume. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 473.

[14] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 70.

[15] ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 7 ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 72.

[16] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 436.

[17] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.

[18] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 381.

[19] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 445.

[20] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 1. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 414.

[21] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 12.

[22] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 546.

[23] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 2º volume. 28 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva: 2011, p. 546.

[24] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 11.

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[25] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.

[26] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012, p. 482.

[27] STJ, REsp 1213256/RS, Segunda Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 28/09/2011, DJe 14/11/2011.

[28] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 13.

[29] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015, p. 17.

[30] TJRS, Apelação Cível Nº 70045445996, Décima Nona Câmara Cível, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 10/12/2015.

[31] TJRS, Apelação Cível Nº 70040820805, Décima Segunda Câmara Cível, Relatora Desembargadora Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado em 15/12/2015.

[32] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. 10. ed., Salvador: Juspodvim, 2015, pp. 122-123.

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PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL: O HC 67.759/RJ E O CRITICÁVEL NÃO RECONHECIMENTO DO PRINCÍPIO PELO STF

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OTAVIO MACHADO DE ALENCAR: Advogado.

RESUMO: O princípio do Promotor Natural tem como paradigma o HC 67.759/RJ do Supremo Tribunal Federal datado de 06 de agosto de 1992. Contudo, o voto vencedor, não reconheceu a referido princípio, apenas fomentou a discussão doutrinária e jurisprudencial. Atualmente, o STF tem votos divergentes sobre o tema. Contudo, doutrina majoritária, na mesma linha do STJ, reconhece o Promotor Natural como princípio constitucional respaldado no Art. 5º, LIII e Art. 128, §5, I, b da CR de 1988.

INTRODUÇÃO

O princípio do Promotor Natural liga-se a ideia de objetividade, justiça e clareza das regras sobre àquele que será o acusador, mas não só. Pode-se dizer que o princípio protege a própria coletividade ao demarcar os limites normativos de atuação daquele encarregado de sua tutela constitucional.

Consiste, segundo Brasileiro (LIMA, p. 1205), “no direito que cada pessoa (física ou jurídica) tem de ser processada somente pelo órgão de execução do Ministério Público cujas atribuições estejam previamente fixadas por lei, sendo vedadas designações casuísticas e arbitrárias de Promotores de Justiça (ou Procuradores da República) de encomenda após a prática do fato delituoso (post factum)”. Na mesma linha, Hugo Nigro Mazilli (MAZILLI, p. 33) afirma ser a “existência de um órgão do Ministério Público investido nas suas atribuições por critérios legais prévios. É o oposto do promotor de encomenda”.

O Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma, HC 57.506/PA) entende pacificamente a existência do princípio, assim como, por exemplo, os doutrinadores Paulo Rangel e Eugênio Pacelli de Oliveira.

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De forma diversa, entendendo pela inexistência do princípio, o Supremo Tribunal Federal – à luz do HC 67.759/RJ de 1992 -, tem decisões conflitantes, mas prevalecendo sua inexistência. A exemplo do HC 90.277/DF da 2ª Turma do STF.

Ocorre que o julgado paradigmático, que supostamente reconhecia a existência do princípio –habeas corpus 67.759/RJ – e alardeado pela doutrina como marco jurisprudencial, sequer foi voto vencedor. Ao contrário, dos 9 Ministros votantes, apenas 3 reconheceram plenamente sua existência.

Para os Ministros Paulo Brossard, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves, em posição vencedora no julgado daquele HC, negaram a existência do princípio do Promotor Natural.

Em posição intermediária, afirmando ser necessária intervenção legislativa – mediante lei - para que haja o reconhecimento do princípio, se posicionaram os Min. Celso de Mello e Sidney Sanches.

Também vencidos, os Ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso, reconheceram o princípio do Promotor Natural sem necessidade de atuação legislativa.

Da composição votante do STF somente os Min. Celso de Mello e Marco Aurélio permanecem na corte em 2016. De outra, cumpre salientar que o julgamento se deu em 1992, ou seja, anterior a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público de 1995, assim qualquer ausência de previsão legislativa estaria suprida frente a inovação legislativa.

Assim, diante da nova composição do STF, da evolução jurisprudencial e principalmente doutrinária, vislumbra-se uma clara mudança, e, esperada consolidação quanto à existência e imprescindibilidade do Promotor Natural como corolário da justiça.

FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS

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A garantia prevista no art. 5ª, inciso LIII da Constituição da República de 1988 prevê que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” tradicionalmente atribuída ao Princípio do Juiz Natural, deve ser estendida ao Promotor Natural, sob pena de criar-se um acusador de exceção.

Alocando-se essa garantia, dentro do regime jurídico do Ministério Público, no âmbito da jurisdição, evita-se designações casuísticas e malversação das atribuições.

Nestor Távora (p. 57), colacionando importante decisão do Superior Tribunal de Justiça, clarifica que:

“A garantia constitucional acerca da isenção na escolha dos Promotores para atuarem na persecução penal visa assegurar o exercício pleno e independente das atribuições do Ministério Público, rechaçando a figura do acusador de exceção, escolhido ao arbítrio do Procurador-Geral” (STJ – Quinta Turma – RHC 28.473/ES – Dje 20.08.12)

Na mesma esteira, o art. 128, §5º, I, “b” da Carta Magna, ao elencar a garantia da inamovibilidade, não garante somente a permanência física e geográfica ao Promotor, mas também reforça a impossibilidade de subtração das funções de um membro do Parquet.

Explicando a inamovibilidade como reforço ao Promotor Natural, LIMA:

“A inamovibilidade não diz respeito apenas à impossibilidade de remoção física (ou geográfica) do Promotor de Justiça do órgão de execução perante o qual oficia, mas também à impossibilidade de afastamento de suas atribuições constitucionais e legais, o que seria de todo equivalente a uma remoção, porquanto

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as funções do seu ofício seriam compulsoriamente removidas”. (LIMA, p. 1205)

A independência funcional (127, §1º da CR88) também resguarda a garantia em comento e garante ao Promotor a possibilidade inclusive de recurso, ao Conselho Superior do Ministério Público ou ao Conselho Nacional do Ministério Público, em face de designações ou remoções de oficio sem respaldo legais. (art. 10, IX, “g”, da Lei 8625 de 1993).

Nestor Távora (p. 57), citando Nelson Nery Junior, exige a presença dos seguintes requisitos para que se reconheça a existência do princípio do Promotor Natural:

a) a investidura no cargo de Promotor de Justiça;

b) a existência de órgão de execução;

c) a lotação por titularidade e inamovibilidade do Promotor de Justiça no órgão de execução, exceto as hipóteses legais de substituição e remoção;

d) a definição em lei das atribuições do órgão

Diante do exposto, preenchidos os requisitos e garantias constitucionais, negar esse princípio e sua previsão jurídica é subtrair da própria Constituição sua força normativa e retirar da sociedade uma garantia imprescindível à justiça social, ética e jurídica.

O PROMOTOR NATURAL E A INDIVISIBILIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Segundo MENDES (p. 1242) “a indivisibilidade admite que os integrantes da carreira possam ser substituídos uns pelos outros, desde que da mesma carreira, segundo as prescrições legais”. (grifo nosso)

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É sob o manto da indivisibilidade do Ministério Público que doutrinadores e aplicadores do direito fundamentam o repúdio à existência dessa garantia constitucional e institucional da figura do Promotor Natural. Nessa linha a 2ª Turma do STF afirmou a incompatibilidade entre o princípio e a indivisibilidade.

Com a devida vênia, discordamos.

Não há qualquer incompatibilidade entre os institutos vez que não é vedada em a atuação e designação de outro membro do Parquet para atuar de forma específica. Contudo, tal ingerência, submete-se a critérios objetivos e administrativos subscritos em lei.

Com maestria, LIMA (p. 1209) leciona que:

“por força do princípio do promotor natural, jamais se sustentou que apenas um único promotor pudesse atuar em determinado feito, impossibilitando sua substituição por outro (indivisibilidade), o que, aliás, poderia colocar em risco o princípio da não solução de continuidade dos atos da Administração Pública. Na verdade, o que este princípio preconiza é apenas que essas substituições devem ser feitas mediante critérios previamente estabelecidos em lei, que atendam a critérios fundados em motivações estritamente impessoais”

PRECEDENTES DAS CORTES SUPERIORES – STF E STJ

Deve-se ter cautela com o Habeas Corpus67.759/RJ do STF, pois, apesar de parte da doutrina alegar que houve reconhecimento do princípio, em verdade, o voto vencedor não reconhece a figura do Promotor Natural, veja-se:

"HABEAS CORPUS" - MINISTÉRIO PÚBLICO - SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTÃO DO

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PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 - ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRENCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO

. - O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARÇO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do

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postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARÇO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO)

. - Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY SANCHES)

. - Posição de expressa rejeição a existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES.

Nesse mesmo sentido, a Min. Ellen Grace, julgando o RE 387974/DF – 2003, negou a existência do princípio, mas dessa vez, de forma diversa, sem as ressalvas feitas no HC supracitado.

“Welzel cita Karl Bergbohm, para quem, "se o juiz não adota o ponto de vista de que Direito é só o Direito Positivo, seja qual for o seu conteúdo, se verá envolvido nos conflitos os mais insolúveis". E prossegue o sobredito autor: "como direito, todo outro Direito que não seja o positivo, é um contra-senso" (Jurisprudenz und Rechtsphilosophie, pg. 539).

"In casu", nem há regra jurídica estabelecendo a fixação do Promotor Natural, nem há, no sistema de nulidades processuais, preceito que estabeleça contaminação processual a partir do exercício de Membro diferente. Ao contrário, negou-se ao Procurador da República designado para a ação a investidura constitucional em seu ofício, como Membro do Ministério Público. E a partir da inconstitucionalidade desse entendimento cria-se uma eiva derivativa de nulidade que se estende sobre a ação jurídico-penal.

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A predeterminação fixista do Promotor Natural não só investe contra o postulado constitucional da indivisibilidade, como se conflita com o princípio da devolução, também regente do Ministério Público e inscrito na norma emergente do art. 28 do Código de Processo Penal.

O estatuário constitucional, segundo o qual, "ninguém é obrigado a fazer ou não fazer, senão o que a Lei determina" é regra de todo o espaço relacional, tanto alcança as relações privadas, como o ato de julgamento dos Juízes, que não podem decidir além do que é estabelecido por Lei. A inobservância do postulado universal da regência normativa, da previsão anterior da Lei, para todos os atos, cria um infinito conflitual, pela instabilidade jurídica que ocasiona." (fls. 1.119/1130)”

Diametralmente oposta é a posição do Superior Tribunal de Justiça. Através do HC 57.506/PA, o tribunal afastou a inobservância do princípio (ou seja, reconheceu-o) ao dizer que devem ser observados os critérios legais e estritos na escolha do membro do Parquet evitando-se o acusador de exceção. Assim é o teor do HC 57.505/PA, veja-se:

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. PROCESSUAL PENAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. NÃO DEMONSTRAÇÃO. ARGUIÇÃO OPPORTUNO TEMPORE. PRECLUSÃO. ORDEM DENEGADA.

1. A competência para o julgamento de habeas corpus impetrado contra ato coator de Procurador-Geral de Justiça, não se encontra prevista no rol taxativo do art.105 da Constituição Federal, nem no art. 11 do Regimento Interno desta Corte, com bem

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ressaltou o Ministério Público Federal em seu parecer.

2. Entretanto, compulsando os autos, observa-se que a autoridade coatora, na realidade, é o Tribunal de Justiça do Pará, que negou provimento ao recurso de apelação interposto pela defesa, e não o Procurador-Geral de Justiça daquele Estado, como, equivocadamente, aponta o impetrante na petição inicial.

3. De notar que o Tribunal de origem não se pronunciou a respeito da nulidade do processo por ofensa ao princípio do promotor natural, entretanto, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que em se tratando de habeas corpus impetrado contra decisão proferida em sede de apelação, não há falar em supressão de instância, em face da devolutividade integral da causa à instância superior.

4. Não prospera a alegada violação do princípio do promotor natural sustentada pelo impetrante, pois, conforme se extrai da regra do art. 5º, LIII, da Carta Magna, é vedado pelo ordenamento pátrio apenas a designação de um "acusador de exceção", nomeado mediante manipulações casuísticas e em desacordo com os critérios legais pertinentes, o que não se vislumbra na hipótese dos autos.

5. A instituição do Ministério Público é una e indivisível, ou seja, cada um de seus membros a representa como um todo, sendo, portanto, reciprocamente substituíveis em suas atribuições, tanto que a Lei nº 8.625/93 prevê, em seus arts. 10, IX, alíneas e e g, e 24, a possibilidade de o Procurador-Geral de Justiça

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designar um Promotor de Justiça substituto ao titular, para exercer sua atribuição em qualquer fase do processo, inclusive em plenário do Júri.

6. No caso, pelo que se depreende dos elementos acostados aos autos, a designação ocorreu regularmente, mediante portaria e com a devida publicidade, sendo certo que os documentos citados pelo impetrante, na exordial, são insuficientes para se afirmar que o Parquet designado, na época, estava impedido para atuar no presente feito, ou mesmo se havia motivos para se arguir a sua suspeição.

7. Ainda que houvesse motivos, a arguição não pode ser agora acolhida, porque formulada a destempo, tendo ocorrido, portanto, a preclusão, a teor do disposto no art.571, V e VIII, do Código de Processo Penal.

8. Habeas corpus denegado.

DOS “SUJEITOS NATURAIS” DA JUSTIÇA E A PARIDADE DE ARMAS: JUIZ, DEFENSOR E PROMOTOR NATURAIS

Para que haja verdadeira justiça é necessário que se dispense às partes as mesmas possibilidades e instrumentos, assim como, as mesmas armas propiciando uma disputa justa e equânime.

Com esse intuito, garante-se à magistratura a figura Juiz Natural que, nas palavras de Fredie Didier significa “substancialmente, (...) na exigência da imparcialidade e da independência dos magistrados. Não basta o juízo competente, objetivamente capaz, é necessário que seja imparcial, subjetivamente capaz.” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 92)”

A Defensoria Pública, instituição ainda incipiente, que só através das Emendas Constitucionais 74/2013 e 80/80, consolidou-se como entidade permanente, independente e autônoma, no

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cenário jurídico, já apregoava o Defensor Natural como um direito de cidadão hipossuficiente, garantindo-se a este o direito de ser patrocinado pelo patrono objetivamente escolhido e determinado de acordo com as normas. Assim, a Lei Complementar 80 de 1994, garante a figura do Defensor Público Natural, em seu art. 4-A, inciso IV, ao prever que “o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural”.

A paridade de armas, segundo Aury Lopes Jr. (p. 220) , é corolário necessário à defesa técnica, assim leciona:

“a defesa técnica é considerada indisponível, pois, além de ser uma garantia do sujeito passivo, existe um interesse coletivo na correta apuração do fato. Trata-se, ainda, de verdadeira condição de paridade de armas, imprescindível para a concreta atuação do contraditório. Inclusive, fortalece a própria imparcialidade do juiz, pois, quanto mais atuante e eficiente forem ambas as partes, mais alheio ficará o julgador”

Ora, garantindo-se ao Juiz e ao Defensor que são atores no processo penal, – apesar de suas particularidades hermenêuticas– a garantia de serem “sujeitos naturais” na jurisdição penal, nada mais lógico, que, em consonância com o disposto na Constituição de 1988, garanta-se ao Ministério público esse princípio e à sociedade o Promotor Natural, excluindo-se a figura do acusador episódico.

CONCLUSÃO

A figura do Promotor Natural, dessa forma, deve ser vista como uma garantia da sociedade, da instituição e também do membro do Parquet, vedando-se o promotor de exceção por interesses internos, externos, próprios ou alheios.

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Essa garantia é essencial ao desenvolver da tutela penal, administrativa e cível dos interesses difusos e da sociedade. É assegurando esse instituto que se forma a tríplice figura dos “sujeitos processuais naturais” que são imprescindíveis, principalmente, à persecução penal.

Não obstante a reticência jurisprudencial em aceitá-lo com firmeza, a atual composição do STF ainda não firmou entendimento, sendo que os julgados aqui colacionados – que contam com mais de 10 anos – podem ser superados em um próximo momento no qual o Supremo seja instado a se manifestar.

Não há outra forma de concluir esse trabalho sem a clara noção que a existência do princípio e garantia do Promotor Natural encontra-se devidamente fundamentada no ordenamento jurídico e com amplos argumentos favoráveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 12 novembro. 2014.

BRASIL. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 12 nov. 2014.

BRASIL. Lei Complementar 80 de 1994 (Lei Orgânica da Defensoria Pública), de 12 de Janeiro de 1994. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp80.htm>. Acesso em 05 nov 2014.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 11 ed. Salvador: JusPODVM, 2009.

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LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Volume único. 3ª ed. Salvador: JusPODVM, 2015.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal – 11.ed. – São Paulo : Saraiva, 2014

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 20 ed. São Paulo. Saraiva, 2007.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 6ª ed. São Paulo. RT. 2000, p.92

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O VALOR DA JORNADA DE TRABALHO E DO TRABALHADOR

LARA CAXICO MARTINS MIRANDA: Advogada. Graduação pela Universidade Estadual de Londrina. Pós Graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Damásio de Jesus e em Direito Constitucional pela LFG.

RESUMO: O início histórico do desenvolvimento da ciência trabalhista é marcado pela separação entre o trabalhador e os meios de produção, de modo a viabilizar o monopólio dos instrumentos de trabalho a uma classe aquisitivamente dominante. A sociedade capitalista, hoje predominante na grande maioria dos Estados, iniciou-se pela exploração do indivíduo e da sua força de trabalho. O valor, sem dúvida, era a característica maior de tudo que era produzido e daquele que produzia.

PALAVRAS-CHAVES: capitalismo, mais-valia, trabalho.

INTRODUÇÃO

No princípio da implantação do sistema capitalista, a “mais-valia” surgiu como modo de demonstrar a relação entre o salário pago e o valor do trabalho produzido. É certo que a disparidade entre os fatores mencionados foi a primeira conclusão que os sociólogos chegaram acerca do surgimento deste sistema econômico.

Inicialmente, o valor do trabalho a ser tomado na análise do produto era visto como muito menor do que a mercadoria a ser vendida. Além disso, o salário era considerado como necessário para o suprimento de necessidades básicas e fisiológicas do

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homem, o que possibilitava a o pagamento de valores irrisórios, que garantisse apenas a sobrevivência, ainda que indigna.

O capitalismo, em suma, não estava ligado apenas à economia, mas também e principalmente ao pensamento de uma época, dotado de preconceitos e análises superficiais dos indivíduos.

O VALOR DA JORNADA DE TRABALHO E DO TRABALHADOR

A base de cada sociedade humana é o trabalho: indivíduos cooperam entre si num processo para fazer uso das forças da natureza e suprir suas necessidades básicas. Nas sociedades capitalistas esse processo pressupõe uma separação entre o trabalhador e os meios de produção, de modo a viabilizar o monopólio dos instrumentos de trabalho a uma classe aquisitivamente dominante.

Nesse contexto, os trabalhadores possuiriam liberdade quanto aos meios de produção e liberdade para disporem de si mesmos e integrarem o mercado de trabalho com sua única mercadoria: a força de trabalho capaz de produzir e gerar valor. Esta força seria o conjunto das capacidades físicas e espirituais que existem no indivíduo vivo e que ele põe em movimento para produzir.

O trabalho na sociedade capitalista difere dos das outras sociedades. Os trabalhadores, antes detentores do seu próprio trabalho e com domínio total do processo produtivo, passam a vender sua força de trabalho em troca de pagamento. O tempo e o espaço de trabalho são outros: o relógio passa a mensurar a quantidade de trabalho em horas. O espaço físico deixa de ser o lar e é na fábrica que os trabalhadores vão se condicionar a um disciplinamento constante. A atividade laborativa exigia disciplina na execução de tarefas mecanicamente repetitivas, não se tinha horário para descanso e muitas vezes as refeições eram feitas ao lado das máquinas. O trabalhador abdicava da convivência com

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amigos e parentes, horas de lazer, descanso e mesmo estudo para se dedicar exclusivamente ao trabalho. Isso ocorria porque os salários, muito baixos, não possibilitavam mais do que o nível de sobrevivência. O indivíduo se reduzia a uma máquina, assim como aquela com a qual trabalhava.

O valor é a característica maior de tudo que é produzido. Marx associa o valor à utilidade conferida a um produto por alguém, tida por ele como o valor de uso. As necessidades satisfeitas por um valor de uso podem ser físicas, cognitivas ou mesmo instrumentais. Alimentos possuem um valor de uso físico: são necessários a sobrevivência do homem. Um livro, por sua vez, apesar de não se associar as necessidades básicas, também possui um valor de uso, pois as pessoas necessitam da leitura. Semelhante a esses últimos estão a faca, o machado, o cobertor e a roupa. A metralhadora de um assassino ou o cassetete de um policial possuem um valor de uso tanto quanto um pacote de arroz ou o bisturi de um cirurgião.

Sob o capitalismo, todavia, os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias. Para que isso ocorra é necessário que o já citado valor de uso e o valor de troca estejam separados por uma divisão de trabalho altamente desenvolvida na sociedade. Mercadorias não possuem apenas um valor de uso, mas tem como essência o seu valor de troca, pois não são feitas para serem consumidas diretamente, mas para serem vendidas. Os valores de uso e de troca, por sua vez, não são correspondentes. O fato primordial que os distingue está na utilidade que deve possuir o valor de uso, enquanto que o valor de troca apenas corresponde ao montante pelo qual será este trocado por outras mercadorias. O fato secundário, porém de total relevância, é que no valor de troca se embute a mais-valia. Esta é tida por Marx como a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador. Assim, fica constituído um meio de exploração do trabalhador pelos detentores dos meios de produção.

Há, no capitalismo, uma esfera de circulação de mercadorias onde a força de trabalho é comprada e vendida por homens livres e

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juridicamente iguais. Livres porque comprador e vendedor de uma mercadoria são determinados apenas por sua livre vontade, e iguais porque diante do capital todos os seres humanos são dotados de igualdade.

Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho também possui valor, que é determinado pelo tempo necessário à sua produção, portanto também reprodução, desse artigo específico. Assim, seu valor corresponde ao valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor:

O seu valor, como o de qualquer outra mercadoria, estava determinado antes de ela entrar em circulação, pois determinado quantum de trabalho social havia sido gasto para a produção da força de trabalho, mas o seu valor de uso consiste na exteriorização posterior dessa força. (MARX, 1996, v.1, p.278).

O valor de uso da força de trabalho é o trabalho, e uma vez que o trabalhador tenha sido empregado, o capitalista coloca-o para trabalhar. Mas o trabalho é a fonte de valor, e, além disso, o trabalhador criará durante um dia de trabalho mais valor do que o capitalista paga por seus dias de trabalho. Mas o decisivo [para o capitalista] foi o valor de uso específico desta mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. (MARX, 1996, v.1, p.160).

Como comprador da força de trabalho, o objetivo do capitalista é tirar o maior proveito do valor de uso de sua mercadoria, pois o capital tem o impulso vital de valorizar-se. Nesse sentido, ele procura prolongar desmedidamente a jornada de trabalho tanto quanto possível para, através da mais-valia, absorver a maior massa possível de trabalho. A acumulação de capital

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aumenta quanto mais dividido é o trabalho, e vice-versa, sendo o trabalho a única fonte de riqueza na concepção do capitalista.

Se considerarmos um dia de trabalho de 8 horas e que 4 horas desse dia bastassem para pagar o salário desse indivíduo, as demais 4 horas seriam embolsadas pelo patrão. O que ocorre é semelhante ao indivíduo trabalhar 5 dias para si e 5 dias gratuitamente para o capitalista. Isso, porém não é claro e visível, pois o trabalho e o mais-trabalho confundem-se para a realidade do trabalhador, perpetuando sua exploração.

É neste ponto que Marx fundamenta sua teoria da mais-valia. Esta, ou lucro, é meramente a forma peculiar de existência do trabalho excedente no modo de produção capitalista. A importância desta análise da compra e venda de trabalho permite-nos traçar origens da exploração do trabalhador pelo capital. Essa exploração somente é possível porque o modo de pensar, agir e sentir do trabalhador foram forjados pela sua classe social:

Na produção social de sua vida, os homens entram em relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, em relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. (LEFEBVRE, 1971, p.106).

Assim, é possível perceber que a ideologia capitalista mantém mascarada a realidade de exploração a que são submetidos os trabalhadores. Estes, certos de que cumprem seu trabalho e por ele recebem salário, e profundamente dependentes do emprego para sobreviverem, ficam mentalmente impossibilitados de agirem criticamente contra as condições, por vezes desumanas, a que são submetidos. É fato ainda que o produtor é alienado de seu produto, bem como todo o processo de produção, tornando-se um especialista de uma atividade isolada. Tendo em vista que a

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atividade produtiva é fonte da consciência, certo é que essa alienação da atividade gera também uma consciência alienada. Torna-se assim uma alienação não apenas de bens materiais, mas também físicos, mentais, políticos, econômicos, etc.

Voltando ao já explicitado, tem-se que a jornada de trabalho não é dada de forma constante. Ela se constitui por uma parte em que o trabalhador é remunerado, e por outra em que ele é explorado. A parte referente ao necessário à sobrevivência do trabalhador possui um limite mínimo, pois se associa a reprodução do próprio trabalhador. Sua grandeza total, entretanto, é variável: muda com a duração do mais-trabalho. Com base no modo de produção e pensamento capitalista, não haveria limite máximo para a jornada de trabalho, afinal, quanto mais trabalho, mais mercadorias com valores de troca muito maiores do que os valores de uso e conseqüentemente mais lucro. No entanto, vale lembrar que aquele que produz as mercadorias possui limitações físicas e mentais. Dessa forma, a jornada de trabalho possui sim um limite máximo independente do desejo do capitalista.

O limite máximo da jornada de trabalho pode ser duplamente determinado. Durante um dia natural de 24 horas, todo indivíduo necessita de um tempo mínimo para suprir necessidades básicas como alimentar-se, vestir-se, dormir, higienizar-se etc. Não há como o mesmo dispor de 16 horas do seu dia para dedicar-se ao trabalho, por exemplo. Além deste, existe o limite moral em que se esbarra o mais-trabalho. Um indivíduo necessita de um mínimo de tempo para relacionar-se, desfrutar do lazer, satisfazer suas necessidades espirituais e sociais.

O capitalista tem sua própria visão sobre esta última Thule, o limite necessário da jornada de trabalho. Como capitalista ele é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital. O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas

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se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista. (MARX, 1996, v.1, p.330).

Da maneira mais simples, o capital é uma acumulação de valor que atua para criar e acumular mais valor. A mais-valia, ai exposta, se confunde com a própria noção de lucratividade a partir da exploração do trabalhador; ela é quem alimenta o burguês, o capitalista.

O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o resultado de uma luta multissecular entre capitalista e trabalhador. Nada melhor para explicitar a exploração do homem embasada no processo capitalista da mais-valia do que os ramos de produção da revolução inglesa. Em meio ao glamour e o poderio financeiro da Inglaterra, jovens e adultos definhavam atrás de máquinas fazendo, muitas vezes, mais de 16 horas de trabalhos diários. O impulso à prolongação da jornada de trabalho, a voracidade por mais lucro levava a abusos desmesurados contra os trabalhadores.

As fábricas do início da Revolução Industrial representavam péssimos ambientes de trabalho. Tinham instalações precárias, muitas vezes sem iluminação, abafadas e sujas, colocando em risco a vida dos trabalhadores. Os salários recebidos pelos trabalhadores beiravam o nível da sobrevivência. Não havia direitos trabalhistas como férias, décimo terceiro salário, auxílio doença ou descanso semanal remunerado. Os trabalhadores estavam sujeitos a castigos físicos dos patrões e quando desempregados, ficavam sem nenhum tipo de auxílio, passando até por situações de precariedade. No quadro de funcionários das fábricas as crianças também eram incluídas, porém estas recebiam salários bem mais baixos que os dos adultos. Na indústria têxtil os menores formavam até 50% da massa trabalhadora.

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Como uma classe, os ceramistas, homens e mulheres, (...) representam uma população física e moralmente degenerada. São em regra raquíticos, mal construídos e freqüentemente deformados no peito. Eles envelhecem antes do tempo e são de vida curta, flegmáticos e anêmicos, denunciam a fraqueza de sua constituição por meio de obstinados ataques de dispepsia, perturbações hepáticas e renais e reumatismo. Sobretudo sofrem sob as doenças do peito, pneumonia, tísica, bronquite e asma. Sofrem de uma forma peculiar desta última conhecida como asma de ceramista ou tísica de ceramista. A escrofulose, que ataca as amígdalas, os ossos e outras partes do corpo, é uma doença que afeta mais de 2/3 dos ceramistas. A degenerescência da população deste distrito não é muito maior exclusivamente graças ao recrutamento dos distritos rurais circunvizinhos e ao casamento com raças mais sadias. (MARX, 1996, v.1, p.342-343).

Em contrapartida o trabalhador, afirmando seus direitos como vendedor de trabalho, impõe limites ao mais-trabalho, determinando para a jornada de trabalho uma grandeza normal e aceitável para sua vida.

Em uma análise dialética, Karl Marx afirmou que o sistema capitalista representa a própria exploração do trabalhador por parte do dono dos meios de produção, na disputa desigual entre capital e proletário. Para absorver o trabalho, com cada gota de mais-trabalho, o capitalista investe no processo de valorização do tempo e do suporte físico dos operários. Caso não faça isso, tem então o prejuízo, que aumenta proporcionalmente ao tempo de ociosidade dos trabalhadores. O prolongamento da jornada de trabalho além dos limites do dia natural, adentrando a noite, faz com que o capital se multiplique apropriando-se da vida social, física e moral do trabalhador.

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Além da precariedade do ambiente de trabalho no período já citado, quando chegavam em casa a vida não se tornava melhor. Os trabalhadores moravam em ruas que não tinham calçadas e os esgotos corriam a céu aberto. A água não era tratada e isso facilitava o contágio com doenças, como a cólera. O problema da poluição do ar deslanchou com as fábricas que, nesta época, passaram a lançar no ambiente substâncias poluentes e tóxicas como fuligem das caldeiras e produtos usados no tratamento dos tecidos e das tintas. Doenças respiratórias como asma, bronquite, tuberculose e pneumonia se tornaram comuns nas cidades inglesas.

Todos os membros da família do trabalhador também eram trabalhadores, submetidos sem distinção aos mesmos trabalhos. A inferioridade do salário das mulheres e das crianças justificava a intensa procura por essa mão-de-obra nas fábricas. Um dos motivos, além do barateamento de custos, era a maior facilidade de se disciplinar esses dois grupos de operários. As crianças eram utilizadas nas fábricas e nas minas de carvão, sendo que muitas morriam devido ao excesso de trabalho, da insalubridade do ambiente e da desnutrição. Também trabalhavam na agricultura, freqüentemente mal agasalhadas, no campo ou na fazenda, sob qualquer condição climática.

O método de fazer meninos trabalhar alternadamente de dia e de noite leva ao iníquo prolongamento da jornada de trabalho, tanto nos períodos de maior pressão dos negócios, quanto no seu decurso normal. Esse prolongamento em muitos casos não é apenas cruel, mas também simplesmente inacreditável. Não pode deixar de ocorrer que, por esse ou aquele motivo, um menino falte vez ou outra ao revezamento. Um ou mais dos meninos presentes que já concluíram sua jornada de trabalho têm então de preencher a falta. Esse sistema é tão conhecido que o gerente de uma laminação, quando

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perguntei-lhe como seria substituído o menino que faltara ao seu turno, respondeu: Eu sei que o senhor sabe disso tão bem quanto eu, e não hesitou em admitir o fato. (MARX, 1996, v.1, p.355).

Durante toda a sua existência o trabalhador nada mais é do que uma máquina que trabalha para valorizar o capital que nem ao menos lhe pertence. Não há tempo para desenvolvimento da intelectualidade humana, dos estudos, da religiosidade ou mesmo das relações interpessoais.

(...) o capital atropela não apenas os limites máximos morais, mas também os puramente físicos da jornada de trabalho. Usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção sadia do corpo. Rouba o tempo necessário para o consumo de ar puro e luz solar. Escamoteia tempo destinado às refeições para incorporá-lo onde possível ao próprio processo de produção, suprindo o trabalhador, enquanto mero meio de produção, de alimentos, como a caldeira, de carvão, e a maquinaria, de graxa ou óleo. Reduz o sono saudável para a concentração, renovação e restauração da força vital a tantas horas de torpor quanto a reanimação de um organismo absolutamente esgotado torna indispensáveis. Em vez da conservação normal da força de trabalho determinar aqui o limite da jornada de trabalho, é, ao contrário, o maior dispêndio possível diário da força de trabalho que determina, por mais penoso e doentiamente violento, o limite do tempo de descanso do trabalhador. O capital não se importa com a duração de vida da força de trabalho. O que interessa a ele, pura e simplesmente, é um maximum de força de

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trabalho que em uma jornada de trabalho poderá ser feita fluir. Atinge esse objetivo encurtando a duração da força de trabalho, como um agricultor ganancioso que consegue aumentar o rendimento do solo por meio do saqueio da fertilidade do solo. (MARX, 1996, v.1, p.362).

A atenção do capitalista esta limitada à relação entre a divisão do trabalho e a acumulação de capital, fatores esses que interferem em seus lucros. Pouco se importa com a desvalorização da dimensão humana que o capital produz. O trabalho alienado, ou seja, aquele em que o indivíduo não reconhece o produto de seu próprio trabalho, alienando-o no ato da produção, tem como conseqüência a propriedade privada. Além disso, ideologicamente se convence o operário do possível acesso ao bem por ele mesmo produzido.

Não bastasse a desvalorização da dignidade humana, sobretudo no trabalho, pelo capitalista, apresenta-se a todos uma cultura intimamente ligada ao trabalho e que faz dele sinônimo de caráter e realização da pessoa enquanto ser. O trabalho contém representações simbólicas para o homem, de forma que o mesmo o veja como forma de se edificar socialmente, adquirindo utilidade frente à sociedade. Muitas vezes, no entanto, o trabalho se converte em forma de opressão ao trabalhador, o expondo de forma grosseira e desumana. Os indivíduos se submetem a essas condições não apenas pela necessidade de sobrevivência e sustento da família, mas também pelo sentimento de “dignidade social”. . Além disso, no contexto social o poder aquisitivo, alcançado através do trabalho, confere maior status quanto maior a capacidade de consumo apresentada, sendo este outro fator gerador da supervalorização do trabalho em detrimento do trabalhador. A dimensão do “ter” se sobrepõe à do “ser”.

Nesse sentido, o trabalho vem se tornando um valor do ser humano, sendo que, a partir do momento em que o indivíduo é destituído desse bem ele se torna indigno. Assim, torna-se o trabalho um importante instrumento de integração social, forjando uma sociabilidade que ata trabalho e trabalhadores.

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O Direito, nesse contexto de supervalorização do trabalho e depreciação do homem enquanto pessoa dotada de honra, decorre da emergência das categorias da liberdade e da igualdade que convém ao capital, tornando os homens sujeitos de direito. Como conseqüência disso, a compra e venda da força de trabalho adquire expressão jurídica a partir de um contrato. A ciência jurídica, para Marx, seria fruto das relações sociais e o Estado não seria representante dos interesses coletivos como se propõe a ser, mas sim um instrumento de poder de uma classe sobre outra.

A partir dessa intervenção jurídica, o trabalho privado se torna trabalho social. Para Marx, a idéia de direito faz com que as determinações do capital fiquem imperceptíveis. Os trabalhadores não conseguem identificar a exploração do capital justamente por conviverem com as idéias de liberdade e igualdade burguesas, quando na verdade são “forçados a se venderem voluntariamente”. Por ser uma relação fundada no assalariamento e não na coerção direta sobre o trabalhador, desde suas origens o capitalismo obriga o homem a ser livre para que possa vender sua força de trabalho.

Segundo Marx, a exploração capitalista é maquiada pelo efeito ilusório do direito: a extração de mais-valia, ou mais-trabalho, é encoberta pela relação jurídica de compra e venda a que se submetem, por sua “livre vontade”, dois sujeitos de direito formalmente iguais. Sobre isto, na obra O Capital, Marx expõe:

O que a experiência em geral mostra ao capitalista é uma superpopulação constante, isto é, superpopulação em relação à necessidade momentânea de valorização do capital, apesar de que seu fluxo seja constituído de gerações humanas atrofiadas, cuja vida se consome depressa, que rapidamente se suplantam, como se fossem, por assim dizer, colhidas prematuramente. (MARX, 1996, v.1, p.365-366).

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Apesar disso o Direito, enquanto instituidor e regulador do Estado, não pode ser concebido apenas de forma ideológica, pois não há como suprimir a realidade e a materialidade das relações das quais ele é expressão. Nesse sentido, o seu objetivo e das atividades dos juristas é regular as relações trabalhistas de modo que ninguém seja lesado. É evidente que apesar de o tratamento jurídico ser igualitário os sistemas econômico e social não possuem a mesma característica. Sendo assim, acredita-se que o tratamento jurídico deva direcionar-se para as particularidades de cada indivíduo visando diminuir as desigualdades, desmascarando definitivamente a ideologia jurídico-burguesa de que proletários e capitalistas são iguais. Considerado por Paulo Bonavides um dos princípios mais igualitários, a ideia de “dar a cada um segundo suas necessidades” se faz aplicável nesse cenário em que o predominante abismo entre as classes insiste em permanecer. Cabe aqui a conformação da lei à situação concreta analisada, baseando-se o jurista em princípios constitucionais de justiça e direitos fundamentais para que a verdadeira equidade se concretize e o homem enquanto centro do ordenamento jurídico esteja também no centro de suas finalidades.

Como uma sociedade que busca afirmar seus ideais democráticos, tem-se como necessidade essencial não apenas a valorização do trabalho mas também a dignificação do trabalhador por meio de honrosas condições de trabalho e salários. A economia deve estar a serviço do homem e não ser este sacrificado em nome do capital e do lucro.

CONCLUSÃO

Durante toda a sua existência o trabalhador nada mais é do que uma máquina que trabalha para valorizar o capital que nem ao menos lhe pertence. Não há tempo para desenvolvimento da intelectualidade humana, dos estudos, da religiosidade ou mesmo das relações interpessoais.

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Não bastasse a desvalorização da dignidade humana, sobretudo no trabalho, o capitalismo, inicialmente, apresentava-se a todos como uma cultura intimamente ligada a determinação do indivíduo enquanto ser. Esse, entretanto, era definido pela quantidade e pelo valor do seu trabalho. Destaca-se que, como visto, o trabalho contém representações simbólicas para o homem. Esse deve, diferentemente do que ocorria, determinar que o ser humano veja o exercício das atividades laborais como forma de se edificar socialmente, adquirindo utilidade frente à sociedade.

Apesar do estudo mencionar uma perspectiva histórica do desenvolvimento do trabalho na sociedade, cumpre vislumbrar o quanto desta ainda sobrecarrega a contemporaneidade. Apesar de ter-se a ciência trabalhista brasileira bem definida e muito aplicada, no cotidiano ainda se vê focos de graves abusos aos direitos dos trabalhadores. Cabe a sociedade repensar o quanto da mais valia foi deixada e o quanto ainda remanesce na atualidade.

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PORQUE RESISTEM EM REPENSAR A ESPECIALIZADA?

ROBERTO MONTEIRO PINHO: Foi diretor de Relações Internacionais da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), editor do Jornal da Cidade, subeditor do Jornal Tribuna da Imprensa, correspondente internacional, juiz do trabalho no regime paritário, tendo composto a Sétima e Nona Turmas e a Seção de Dissídios Coletivos - SEDIC, é membro da Associação Brasileira de Imprensa - ABI, escritor, jornalista, radialista, palestrante na área de RH, cursou sociologia, direito, é consultor sindical, no setor privado é diretor de RH, especialista em Arbitragem (Lei 9.307/96). Membro da Associação Sulamericana de Arbitragem - ASASUL, Membro do Clube Jurídico do Brasil, titular da Coluna Justiça do Trabalho do jornal "Tribuna da Imprensa" do RJ, (Tribuna online), colunista da Tribuna da Imprensa online), no judiciário brasileiro, através de matérias temáticas, defende a manutenção, modernização e a celeridade na Justiça do Trabalho, escreve em 48 dos principais sites trabalhistas, jurídicos e sindicais do País.

O modelo laboral brasileiro fundamenta-se na filosofia do gigantismo legal. O

juiz é a palavra máxima, desde o mínimo reivindicado, as fábulas indenizatórias

fabricadas no universo do serviço público, e dos ardilosos processos onde

reivindicações fora da realidade se tornam verdadeiras fábulas financeiras. Uma delas

o flagrante reconhecimento de vínculo por período não anotado, (em demandas contra

empresas que fecharam as portas).

A idéia dessa matriz se funda na rigidez das relações entre capital e trabalho.

A regra aparente é de que quanto mais leis, mais protegidos estariam os trabalhadores.

Como se o papel da fiscalização das DTRs fosse mera formalidade. São, além dos 44

dispositivos constitucionais de difícil alteração e de algumas leis esparsas, 922 artigos

da CLT, contendo vasto elenco de direitos dos trabalhadores, considerados imutáveis.

E as sui generis Convenções Coletivas.

Neste cenário estão - o Estado com maior número de demandas, os grupos

econômicos (bancos, redes de varejo etc.) e a “ovelha negra” do rebanho, a carteira

executória da Previdência Social. Este último um intruso, que pegou carona numa

estrutura já montada, surrupiando o espaço do trabalhador e o empregador.

Só que a CLT nasceu oito décadas atrás, no apogeu da era Vargas, um governo

ditatorial e populista, fundado na mística do dirigismo estatal. De lá para cá, quase um

século depois, o mundo mudou. Mudou radicalmente, ficou de cabeça pra baixo. Os

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mercados hoje estão unificados e as decisões das empresas na gestão de seus

negócios precisam ser cada vez mais ágeis e sintonizadas aos princípios e práticas de

uma economia globalizada.

Quem não tiver agilidade decisória, gozar de flexibilidade nas relações

trabalhistas e não modernizar-se tecnologicamente vai desaparecer do mercado. Tal

cenário era impensável na era Vargas. Mesmo assim, para os integrantes da

especializada, este tipo de estrutura, serve para defender suas vantagens, com seus

empregos opulentos, encastelados em tribunais suntuosos, e de pouca mobilidade.

Seriam eles os que não desejam rediscutir a especializada?

O que dizer de um país que edita em média, 518 normas federais, estaduais e

municipais por dia? De códigos longos, 55 mil leis, súmulas e enunciados? Como ser

empreendedor diante de um aparato burocrático que demanda 120 dias e idas e

vindas a cartórios e órgãos públicos para a mera abertura de uma empresa - tarefa

que em outros países é feita em, no máximo, 12 dias?

Pelos dados da PNAD de 2008, existiam cerca de 92 milhões de pessoas

trabalhando. Destes, 61 milhões eram empregados, sendo 48 milhões do setor privado, 6,5

milhões do setor público e 6,5 milhões trabalhadores domésticos. Ou seja, os empregados

do setor privado somavam 54,5 milhões, com 32 milhões registrados em carteira do trabalho

e 22,5 milhões sem proteção alguma. E mais: como há inúmeras categorias onde a

informalidade é elevada, somavam 19 milhões os trabalhadores por conta própria.

Eram 4 milhões os estabelecimentos formais com mais de dez empregados e 11

milhões os informais. Nos dias de hoje, a economia concorrencial exige ajustes rápidos e

crescentes em todas as áreas. Os números estão diferentes. Menos formais, mais

informais, e o rigor das leis tão defendido pelos atores internos da especializada, passaram

a ser mero coadjuvante nas relações. Predomina a sorte do empregado numa demanda

conseguir agilidade na solução do conflito, o que não está acontecendo.

Enquanto as sociedades atuais adotam princípios e práticas democráticas,

pluralistas e globalizadas, com suas empresas agindo com ampla flexibilidade legal, as

relações entre o capital e o trabalho no Brasil acham-se engessadas, presas à camisa

de força do romantismo de uma época.

É óbvio que a funcionalidade desse modelo do passado não se ajusta às

singularidades das relações trabalhistas do presente. Como a grande maioria das

empresas não consegue seguir o contexto normativo - sobretudo os micros e as

pequenas empresas - ao lado dos superprotegidos, desfilam um exército colossal de

trabalhadores não cobertos pelo aparato institucional.

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A demora nas adaptações compromete a competitividade das empresas, os

investimentos e os empregos. Em tais circunstâncias, urge modernizar as relações de

trabalho, provendo ajustes nas relações trabalhistas, com foco em ganhos de

produtividade e flexibilização na negociação de contratos de trabalho, maior agilidade

na contratação e descontratação da mão-de-obra, desoneração da folha de pagamento

e criação de mecanismos mais efetivos de resolução dos conflitos trabalhistas. Menos

estado, mais cidadão. De que adianta uma carga enorme de impostos que não são de

todo revertidos em benéfico da sociedade? Cadê o dinheiro do FAT, do BNDES e da

Previdência?