BOLETIM CONTEÚDO Boletim JURÍDICO N. 773 · Direito Penal Internacional Universidade...

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 773

(Ano IX)

(04/01/2017)

 

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BRASÍLIA ‐ 2017 

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 773 de 04/01/2017 (ano IX) ISSN

 ‐ 1984‐0454 

ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. SHN. Q. 02. Bl. F, Ed. Executive Office Tower. Sala 1308. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

04/01/2017 Eduardo Luiz Santos Cabette 

» Novos meios operacionais de investigação de dados, 

informações, cadastros e sinais trazidos pela Lei 13.344/16 

que versa sobre o tráfico de pessoas

ARTIGOS  

04/01/2017 Nathalia Lisboa de Aguilar » Assédio moral na relação de emprego e seus aspectos jurídicos 

04/01/2017 Artur Lara Ferreira 

» Tópicos especiais em concursos públicos 

04/01/2017 Dark Blacker de Andrade 

» Política e escorço histórico sobre o uso de drogas no Brasil 

04/01/2017 Samuel de Jesus Vieira 

» Estudo de caso: voto do Ministro Gilmar Mendes na suspensão de tutela 

antecipada n. 175 e seus impactos no direito social à saúde pública 

04/01/2017 Osvaldo de Oliveira Bastos Neto 

» Novos Fundamentos Epistemológicos do Direito Penal e da Criminologia: 

Ideologias, Hermenêuticas e os Dilemas das Liberdades 

04/01/2017 Tauã Lima Verdan Rangel 

» A recomendação CONSEA Nº 02/2015 em análise: o reconhecimento dos 

riscos indiretos da transgenia em sede de segurança alimentar e 

nutricional 

 

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NOVOS MEIOS OPERACIONAIS DE INVESTIGAÇÃO DE DADOS, INFORMAÇÕES, CADASTROS E SINAIS TRAZIDOS PELA LEI 13.344/16 QUE VERSA SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS

 

EDUARDO  LUIZ  SANTOS  CABETTE:  Delegado  de  Polícia, 

Mestre em Direito Social, Pós ‐ graduado com especialização 

em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, 

Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual 

Penal Especial na graduação e na pós ‐ graduação da Unisal e 

Membro  do  Grupo  de  Pesquisa  de  Ética  e  Direitos 

Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal. 

A Lei 13.344, de 06 de outubro de 2016 dispôs sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas, bem como promoveu alterações importantes na legislação brasileira, seja na área penal, seja na processual penal.

Umas das principais alterações se deu no que tange à criação de novos procedimentos mais céleres para operacionalização de investigações por meio de obtenção de informações, cadastros, dados e sinais, especialmente quando o caso envolver o tráfico de pessoas, sequestro e cárcere privado, redução à condição análoga à de escravo, extorsão qualificada pelo sequestro, extorsão mediante sequestro e crime de envio irregular de criança ou adolescente para o exterior, este último previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

As novas regras estão dispostas nos artigos 13 – A e 13 – B do Código de Processo Penal Brasileiro, incluídos pela Lei 13.344/16.

O artigo 13 – A, CPP estabelece que nas investigações referentes aos crimes supra mencionados o “membro do Ministério Público ou Delegado

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de Polícia” poderão “requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos”.

O primeiro aspecto importante diz respeito ao fato de que, conforme já se vinha assentando, o acesso a simples dados e informes cadastrais, independe de ordem judicial e pode ser objeto de requisição direta pelo Ministério Público ou pelo Delegado de Polícia. A Lei de Interceptação Telefônica (Lei 9.296/96) nada diz acerca dessas informações e a Lei 12.830/13, que trata da investigação criminal realizada pelo Delegado de Polícia reitera o poder requisitório dessa autoridade, não somente para os casos elencados na Lei 13.344/16, mas para qualquer investigação, nos termos do artigo 2º. , § 2º., da Lei 12.830/13.

Essas disposições não conflitam com as normas constitucionais, pois que a Constituição Federal somente assegura a reserva de jurisdição para os casos de interceptação das comunicações telefônicas, nada dizendo sobre dados e informes cadastrais (inteligência do artigo 5º., XII, CF). Quanto à preservação da intimidade e da vida privada, conforme consta do artigo 5º., X, CF, há que ter em mente que a mera informação de cadastros não configura uma violação considerável da privacidade, tendo em conta a proporcionalidade ínsita à motivação que justificará a requisição, qual seja, a existência de uma investigação em andamento pelo Delegado de Polícia ou pelo membro do Ministério Público interessado.

Atente-se, porém, que a lei é bem clara quanto a quais autoridades podem se valer desse poder requisitório. São elas somente o membro do Ministério Público e o Delegado de Polícia (Autoridade Policial em sentido estrito). Não é viável que qualquer outro policial ou autoridade administrativa pretenda se valer dessa prerrogativa (v.g. policiais militares, policiais civis e federais em geral, policiais rodoviários federais, agentes da ABIN etc.). A interpretação ampliativa é inviável porque a prerrogativa importa em violação de informes sobre a vida das pessoas, sendo, portanto, restritiva de direitos fundamentais e somente comportando uma interpretação igualmente restritiva.

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Esses informes cadastrais poderão ser requisitados diretamente não somente de entidades privadas, mas também de órgãos do poder público e a negativa injustificada de fornecimento configura crime de desobediência, nos termos do artigo 330, CP.

A lei inclusive estabelece um prazo curto para o fornecimento das informações. Esse prazo é de 24 horas a partir do recebimento da requisição ministerial ou policial (artigo 13 – A, Parágrafo Único, CPP). O prazo previsto é impróprio, pois que sua dilação, ainda que indevida, não acarretará a invalidade dos dados obtidos, embora, como já dito, sujeite o infrator às penas por desobediência.

Os incisos I a III do artigo 13 – A, Parágrafo Único, CPP estabelecem o conteúdo mínimo da requisição ministerial ou policial. Ela deve conter: a) o nome da autoridade requisitante; b)o número do inquérito policial e c)a identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.

De acordo com o disposto nos incisos acima elencados há que haver Inquérito Policial devidamente instaurado para que se possa fazer a requisição. Não será possível fazê-la sem a instauração de Inquérito, com base em simples Ordem de Serviço, Apuração Preliminar ou Boletim de Ocorrência. Como a lei exige o Inquérito Policial e também a identificação da unidade de Polícia Judiciária responsável pela investigação, seria de se concluir que o Ministério Público somente poderia requisitar os informes em havendo Inquérito Policial instaurado e não com base em investigações diretas promovidas por aquele órgão, a nosso ver à margem da lei. No entanto, tendo em vista o posicionamento do STF sobre a validade das investigações diretas promovidas pelo Ministério Público, há que compreender que a lei disse menos do que queria. Portanto, haverá de existir ou Inquérito Policial instaurado ou Procedimento Investigatório Criminal (PIC) do Ministério Público, sendo fato que neste último caso a indicação será da unidade do Ministério Público responsável pela investigação e não da unidade de Polícia Judiciária.

A Lei 13.344/16 também incluiu no Código de Processo Penal o artigo 13 – B. Ali não se tratam de registros de dados cadastrais e informações

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pessoais constantes de empresas privadas ou órgãos públicos em geral. O acesso para fins de investigação agora diz respeito aos “meios técnicos adequados”, através de “sinais, informações ou outros” instrumentos para fins de localização “da vítima ou dos suspeitos do delito em curso”.

Na realidade, essa possibilidade de requisição já existia em decorrência do poder de investigação do Estado com relação às infrações penais. Ademais, já decorria naturalmente do disposto no artigo 4º., “caput” c/c artigo 6º, III., CPP , na medida em que a devida apuração dos fatos e determinação da autoria poderia depender dessas localizações. Além disso, a já mencionada Lei 12.830/13 vinha reforçar esse entendimento (artigo 2º., §§ 1º. e 2º.).

Por isso, embora o artigo 13 – B, CPP mencione tão somente essa possibilidade de requisição para os casos que versem sobre o “tráfico de pessoas”, não se enxerga qualquer motivo que impeça sua aplicação a outros casos de gravidade em que a diligência seja imprescindível. São exemplos os casos elencados no artigo 13 – A, bem como situações de roubo, tráfico de drogas entre outros.

Novamente quem poderá pleitear essa requisição de informações será o membro do Ministério Público ou o Delegado de Polícia, sendo a lei muito clara, não deixando qualquer margem para interpretação diversa a ampliar o rol de legitimados ativamente para o pedido. Porém, diversamente do artigo antecedente, o membro Ministério Público e o Delegado de Polícia não poderão (a não ser excepcionalmente, como se verá mais adiante) requisitar diretamente as informações. Há imposição de intermediação judicial. Ou seja, caberá ao Membro do Ministério Público ou ao Delegado de Polícia requerer ou representar, respectivamente, ao Juiz de Direito para a obtenção da devida ordem. Compreende-se essa restrição. No artigo 13 – A, CPP tratam-se de meros dados cadastrais estáticos. Já o artigo 13 – B, CPP se refere à dinâmica movimentação ou localização de uma ou várias pessoas, implicando num monitoramento que pressupõe uma invasão de privacidade bastante mais intensa. Por essa razão imprescindível a autorização judicial, não por força do disposto no artigo 5º., XII, CF, mas por causa do estatuído no artigo 5º., X, CF que tutela a vida privada e a intimidade das pessoas. Anote-se, porém, que não exige a lei, em caso de

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representação do Delegado de Polícia, a prévia manifestação ministerial, podendo o juiz decidir diretamente, embora a praxe forense seja a da prévia oitiva do Ministério Público. Seja como for, o magistrado não estará atrelado nem à representação do Delegado de Polícia, nem ao requerimento ou manifestação do Ministério Público.

A ordem judicial será então endereçada às “empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática”. O cumprimento do fornecimento das informações não tem prazo. Deve ser feito imediatamente, segundo a letra explícita da lei. Nada mais adequado, pois que se trata de diligência marcada pela extremada urgência, visando à localização de vítimas e suspeitos, muitas vezes implicando em risco de morte para os sujeitos passivos do crime de “tráfico de pessoas”, ou mesmo outros crimes similares, de que é exemplo, a extorsão mediante sequestro. [1] Obviamente que o descumprimento da ordem, sem justa causa, ensejará crime de desobediência.

A Lei 13.344/16, como não poderia deixar de ser, sob pena de inconstitucionalidade (inteligência do artigo 5º., XII, CF), consigna que o fornecimento de sinais e informações não implicará o acesso ao conteúdo de comunicações de qualquer natureza. Este depende de autorização judicial específica, conforme disposto na lei. Essa lei, é a Lei de Interceptação Telefônica (Lei 9.296/96). Ver-se- á que isso é relevante na medida em que, em situações excepcionais, tal requisição poderá dar-se sem intermediação judicial, sendo apenas posteriormente submetida à avaliação do judiciário. Isso, obviamente, de acordo com o artigo 5º., XII, CF c/c a Lei 9296/96 não é possível no que se refere ao conteúdo de comunicações telefônicas de qualquer natureza e/ou telemáticas, incluídas aí, conforme recentes decisões do STJ, as comunicações via dispositivo de whatsapp (HC 51.531 – RO (2014/0232367-7).

Corretamente a legislação estabelece uma devida proporcionalidade temporal nesse monitoramento investigativo. O artigo 13 – B, § 2º., II, CPP determina o fornecimento dos informes por período máximo de 30 dias, renovável uma única vez por igual período, ou seja, mais 30 dias no máximo. Portanto, o monitoramento somente poderá ocorrer por prazo improrrogável de 60 dias. Essa determinação legal expressa constitui um

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avanço em relação à redação da Lei de Interceptação telefônica (Lei 9296/96 – artigo 5º.) que determina o período de quinze dias renovável por igual período, mas não diz expressamente que essa renovação será de apenas uma vez. Essa indeterminação legal gerou insegurança jurídica e posições doutrinárias e decisões jurisprudenciais admitindo renovações reiteradas bem acima de 30 dias. Há notícias de interceptações que duraram anos a fio. No HC 76686, a 6ª. Turma do STJ afastou a tese da possibilidade legal das renovações indeterminadas, anulando um caso em que a Polícia Federal realizava interceptações por mais de 2 anos ininterruptos. Tal “decisum” marca uma mudança de paradigma na jurisprudência que tendia a acatar a tese da legalidade das renovações indeterminadas temporalmente. Não obstante, quanto aos sinais de localização previstos na Lei 13.344/16, não resta qualquer margem de dúvida: somente podem perdurar por 30 dias mais 30 dias de renovação no máximo. A única chance de que esse tempo seja excedido será o surgimento de fatos novos que impliquem, na verdade, em nova ordem para apuração de outras ocorrências surgidas no decorrer da investigação.

É preciso salientar que os prazos acima são penais, de modo que é contado o dia do início. Isso porque implicam em restrição de direitos fundamentais. Como já dito, a lei estabelece os prazos máximos, nada impedindo que a ordem judicial fixe prazos menores do que os previstos legalmente no caso concreto de acordo com a proporcionalidade. O que não pode ocorrer, é o deferimento de prazos extrapolantes do limite legalmente estabelecido. Isso fará com que haja abuso de autoridade (ao menos em tese) e levará à ilicitude da prova obtida, bem como de outras provas dela derivadas, nos estritos termos do artigo 157 e seu § 1º., CPP c/c artigo 5º. , LVI, CF.

O inciso III do artigo 13 – B, § 2º., CPP torna-se ininteligível e até contraditório com os demais dispositivos sob comento se não interpretado sistematicamente com o § 4º. do mesmo artigo.

Ocorre que o inciso III sobredito estatui que “para períodos superiores àquele de que trata o inciso II” (ou seja, 30 dias mais 30 dias no máximo), “será necessária a apresentação de ordem judicial”. Ora, mas não se acabou de ver que é sempre necessária ordem judicial de acordo com o disposto no

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artigo 13 – B, “caput”, CPP? E também que não é possível, em regra, extrapolar esses prazos? Como compreender isso?

Já foi mencionado neste texto que, excepcionalmente, a ordem de fornecimento dos sinais poderá emanar diretamente do membro do Ministério Público ou do Delegado de Polícia, independentemente de intermediação judicial. Esse é o caso previsto no § 4º., do artigo 13 – B, CPP. Ali consta que o magistrado ao receber o requerimento do Ministério Público ou a representação do Delegado de Polícia, terá um prazo máximo de 12 horas para proferir decisão. Ficando inerte acima desse prazo, abre-se a possibilidade, excepcional e urgente, de que o Ministério Público ou o Delegado de Polícia faça a requisição diretamente e somente comunique o juízo depois para a devida avaliação de legalidade postergada. Observe-se que somente pode ocorrer essa atuação emergencial do Ministério Público ou do Delegado de Polícia em caso de inércia judicial. Se o magistrado indefere a ordem não pode o Delegado de Polícia ou o Membro do Ministério Público violar a decisão judicial e atuar por conta própria, pois estará produzindo provas ilícitas e incidindo em abuso de autoridade crasso. Nesses casos de indeferimento judicial, somente restará ao Delegado de Polícia refazer o pedido quantas vezes necessário, procurando satisfazer as exigências judiciais. Quanto ao Ministério Público, a lei não menciona eventual recurso. Portanto, a nosso entender caberá impetrar Mandado de Segurança com pedido de liminar contra a decisão judicial e aguardar a manifestação jurisdicional de segundo grau. Inclusive poderá o Ministério Público fazer isso com relação a representação do Delegado de Polícia que tenha encampado.

A comunicação ao juiz nestes casos deverá ser imediata, podendo perfeitamente ocorrer que o magistrado revogue a requisição ministerial ou policial em caso de ilegalidade.

Numa interpretação sistemática percebe-se então que não há contradição entre o inciso III do artigo 13 – B, § 2º., CPP e o próprio artigo 13 –B. O inciso em comento se refere a casos em que a requisição tenha sido feita diretamente pelo Delegado de Polícia ou membro do Ministério Público, devido à inércia judicial no prazo de 12 horas. Esse prazo de 12 horas deve ser contado a partir da abertura de vistas ao magistrado.

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Não obstante, ainda resta uma incongruência entre os incisos II e III. Isso porque o segundo dá a entender que o prazo de fornecimento de sinais pode ser maior do que 60 dias, enquanto o primeiro é expresso em afirmar a renovação única não ultrapassando os 60 dias.

Vislumbram-se dois posicionamentos que podem emergir na doutrina e na jurisprudência:

a)O limite de 30 dias com apenas uma renovação de 30 dias será apenas para os casos de requisição direta sem intermediação judicial. Com ordem judicial o prazo de 30 dias poderá, fundamentadamente, ser renovado por igual período quantas vezes for necessário, dentro de um critério de proporcionalidade aberto.

b)O limite de 30 dias com apenas uma renovação de 30 dias vale tanto para a requisição direta (neste caso sem qualquer margem de dúvida), quanto para a requisição precedida de ordem judicial na forma do artigo 13 – B, “caput”, CPP. O inciso III serve como elemento de contenção para os casos de requisição direta ministerial ou policial, reforçando o já disposto no inciso anterior, bem como tem aplicabilidade para renovações excepcionais via judicial quando ocorrerem fatos novos, conforme já foi esclarecido neste texto, obedecendo-se critérios rigorosos de proporcionalidade. Um exemplo seria o seguinte: imagine-se que através de fornecimento de sinais por 60 dias com ordem judicial se tenha logrado localizar uma pessoa mantida em cativeiro para fins de tráfico de pessoas. No entanto, ouvida tal pessoa libertada, ela indica a existência de mais indivíduos vítimas do mesmo grupo criminoso, sendo necessário, adequado e proporcional a renovação até a libertação e todos os vitimados. Essas renovações, obviamente, deverão ocorrer por força de ordem judicial. Também fica claro, por meio do inciso III, que para renovações que tais, mesmo no caso de inércia judicial estará vedado ao Ministério Público ou ao Delegado de Polícia agir por conta própria, ainda que em ação emergencial. Essa atuação se reduz somente à primeira requisição e sua renovação.

Observe-se que quando for o caso de requisição direta emergencial, nos termos do artigo 13 – B, § 4º., CPP, será desejável que o membro do

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Ministério Público ou o Delegado de Polícia instrua sua requisição com o requerimento ou representação protocolados, comprovando a inércia judicial no prazo de 12 horas. Isso para que as empresas de telefonia ou telemática tenham maior segurança de estarem cumprindo uma requisição legalmente embasada. Inobstante, não cabe às referidas empresas questionar as requisições (que são “ordens”, não pedidos) do Ministério Público ou do Delegado de Polícia. Essas autoridades, se agirem à margem da lei, responderão por isso e não as pessoas ligadas à empresa fornecedora do sinal, eis que estas estarão acobertadas pela presunção de legitimidade dos atos de todo e qualquer funcionário público. Na mesma medida, não cabe às empresas discutir a ordem judicial pelos mesmos motivos.

Finalmente cabe lembrar que para o fornecimento dos dados cadastrais previsto no artigo 13 – A, CPP, mister se faz haver já instaurado Inquérito Policial ou Procedimento Investigatório Criminal do Ministério Público (Inteligência do artigo 13 – A, Parágrafo Único, II e III, CPP). Quanto ao fornecimento imediato de sinais para localização de vítimas ou suspeitos, a lei deixa claro que se prescinde da prévia instauração de Inquérito Policial ou PIC. Prevalece aqui a urgência da medida, eis que não se trata da mera obtenção de cadastros, mas da localização de vítimas, muitas vezes privadas da liberdade e em risco de morte, assim como de criminosos cuja conduta deve ser sustada o mais rápido possível. É por isso que o § 3º., do artigo 13 – B, CPP concede ao Delegado de Polícia o prazo de 72 horas, contado do registro da respectiva ocorrência policial, para a devida instauração do Inquérito Policial. O mesmo pode-se dizer do Ministério Público em relação do PIC. Em não sendo cumprido esse prazo, as provas obtidas serão ilícitas, pois que terá havido violação de norma constitucional afora a norma processual (artigo 13 – B, § 3º., CPP c/c artigo 5º., X, CF). Essas provas serão inadmissíveis (artigo 157, CPP c/c 5º., LVI, CF), razão pela qual deve haver grande zelo por parte do Delegado de Polícia e do membro do Ministério Público a respeito do cumprimento desse prazo crucial. Pode-se, portanto, afirmar que se trata de um prazo próprio, eis que sua infração gerará a invalidade das provas obtidas.

NOTA:

[1] Como já dito, entende-se que por aplicação extensiva do dispositivo e outras normas preexistentes a requisição é possível

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para vários casos de gravidade que a justifiquem dentro da proporcionalidade.

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ASSÉDIO MORAL NA RELAÇÃO DE EMPREGO E SEUS ASPECTOS JURÍDICOS

NATHALIA LISBOA DE AGUILAR: Advogada e Juíza Leiga do TJ BA - Juizado Especial Cível. Concurseira. Aprovada no concurso de conciliador e juiz leigo do TJ BA 2014 e na Procuradoria do Município de Salvador (cargo: procurador).

RESUMO:  Esta  pesquisa  tem  por  finalidade  apresentar  o  estudo  do 

assédio moral na  relação de emprego,  fenômeno  também chamado de 

terror  psicológico,  que  consiste  numa  conduta  abusiva,  cruel  e 

humilhante,  repugnada  pela  sociedade,  capaz  de  atentar  contra  a 

dignidade física, psíquica e emocional do trabalhador. A pesquisa utilizará 

subsídios de vários  ramos da ciência, dado  seu caráter multidisciplinar. 

Neste  aspecto,  o  presente  trabalho  foi  realizado  através  da  pesquisa 

bibliográfica  e monográfica,  utilizando  como método  de  abordagem  o 

dedutivo e como método  jurídico o sociológico,  trazendo uma vertente 

metodológica de natureza qualitativa. A pesquisa quanto ao objetivo geral 

é exploratória e, será utilizado como técnica de pesquisa a documentação 

indireta.  Apesar  deste  tema  ser  alvo  de  debates  e  reportagens 

atualmente, trata‐se de uma prática bastante antiga e que sempre se fez 

presente na relação de emprego. Diante da relevância que o assédio tem 

alcançado  na  esfera  jurídica,  faz‐se  necessário  um  estudo  mais 

aprofundado  quanto  à  responsabilidade  civil  do 

empregado/empregador   na prática do assédio moral dentro da relação 

empregatícia. Esse fenômeno deriva de o agente escolher uma vítima, por 

motivos que vão desde a luta por uma melhor colocação na empresa, até 

a  própria  discriminação,  e  a  ataca  pontual  ou  freqüentemente  com 

atitudes hostis objetivando anulá‐la moralmente. O psicoterror acarreta 

conseqüências nocivas para a saúde física e mental do trabalhador. Cabe 

frisar  que  o  assédio moral  pode  ser  praticado  tanto  pelo  empregado 

quanto  pelo  empregador.  A  confirmação  do  ato  ilícito  capaz  de  gerar 

responsabilidade, deve preencher alguns requisitos fundamentais, quais 

sejam, ação ou omissão do agente, a culpa, o nexo causal e o dano. Sendo 

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comprovado o assédio, cabe a responsabilização civil do agente causador, 

devendo ser reparado o dano sofrido, pois a conseqüência jurídica do ato 

ilícito é a obrigação de indenizar. Como a dignidade da pessoa humana é 

um princípio fundamental e constitucional, norteador de toda relação de 

emprego,  torna‐se possível pleitear uma  indenização por danos morais 

e/ou  materiais  como  uma  forma  de  compensação  do  assédio  moral 

sofrido. É imprescindível ressaltar que a partir da Emenda Constitucional 

nº45/2004, em seu artigo 114, inciso IV, a Constituição Federal ampliou a 

competência da Justiça do Trabalho para  julgar as ações de  indenização 

por danos morais decorrentes da relação de trabalho. 

Palavras‐chave: Assédio Moral. Responsabilidade Civil. Dano. 

INTRODUÇÃO

O processo da globalização, bem como a universalização dos Direitos Humanos são exemplos de metamorfoses, que causaram a origem de novos problemas a serem desvendados pelos operadores do direito em todas as esferas jurídicas, e não é por acaso que as mudanças no que concerne às atitudes dentro ambiente de trabalho foram conseqüências de tais transformações.

A presente monografia tem por finalidade demonstrar a forte incidência do fenômeno do assédio moral no âmbito do direito do trabalho brasileiro. Mesmo se tratando de uma violência psicológica antiga contra o trabalhador, ainda é um tema com pouca expressão na legislação brasileira.

Tendo em vista, a proteção constante feita ao trabalhador, tanto no seu aspecto físico quanto psíquico-emocional, tornou-se um tema com ampla discussão entre os profissionais de diversas áreas da ciência, envolvendo desde o campo da medicina do trabalho até os Tribunais de nosso país, sendo estes confrontados diariamente com casos concretos, todos envolvidos com uma forte preocupação social.

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O assédio moral pode ser identificado como um fenômeno capaz de atormentar e depreciar as relações humanas no ambiente de trabalho. As vítimas, normalmente, são aqueles trabalhadores com alta capacidade profissional e competência, pois, são indivíduos alvos de inveja e cobiça, que se vêem envolvidos em todo um processo degenerativo e aniquilador do meio ambiente laborativo saudável. Já o agressor, por vezes, age na surdina, de forma discreta, sendo imperceptível suas práticas abusivas, apesar de existirem casos em que o assédio é absolutamente visível, já que o agressor faz questão que a vítima seja alvo de chacota.

É imperioso consignar que a situação apresentada possui uma escassa doutrina, pois os debates e jurisprudências só ganharam vigor e propulsão recentemente, sendo assim, propõe-se a caracterizar o assédio moral na relação de emprego e esclarecer sobre a responsabilidade civil dos empregados/empregadores diante da prática de tal ato. Ainda vale ressaltar que, existe apenas um projeto de lei federal que pretende qualificar o assédio moral como crime, apesar disso, causa inquietação verificar as sanções no âmbito civil que poderão ser aplicadas ao assediador.

A vertente metodológica da pesquisa será de natureza qualitativa. Isso porque tem-se como objetivo abordar situações complexas e estritamente particulares, ou seja, não se pretende numerar ou medir unidades ou categorias homogêneas, mas sim, tão somente, descrever pormenorizadamente o que diferentes especialistas no tema defendem, e após isso, estabelecer uma correlação para expor uma conclusão. Desta forma, a presente pesquisa não poderia deixar de ter outro tipo de abordagem, estando voltada para o lado social e tendo sua base estrutural no estudo de diversos especialistas.

O método de abordagem desta pesquisa será o dedutivo. A pesquisa partirá de uma premissa geral para uma específico, iniciando com as definições de relação de emprego e de assédio moral até chegar à responsabilidade civil do empregado/empregador que pratica o assédio moral na relação de emprego.

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O método jurídico de interpretação será o sociológico. Este critério trata o direito como um fenômeno cultural, um processo que se desenvolve no espaço e no tempo, estando em constante mutação em conseqüência de fatores exógenos e endógenos, considerando o direito como objeto e conteúdo da cultura. Assim, não se poderia utilizar outro método jurídico, pois será demonstrado que o fenômeno do assédio moral apesar de ser antigo, só teve seu reconhecimento recente, quando o direito do trabalho passou a proteger e se preocupar também com a saúde e o aspecto psíquico-emocional do trabalhador.

A classificação da pesquisa quanto ao objetivo geral será a exploratória, uma vez que possui uma idéia de reflexão e ampliação de conceitos. Será realizada uma exposição do assédio moral e sua incidência na relação de emprego, refletindo sobre os motivos que levam um empregado a sofrer humilhações e as possíveis conseqüências na integridade física e psíquica do mesmo.

Ter-se-á também uma pesquisa bibliográfica, no que se refere à classificação quanto aos procedimentos técnicos utilizados, já que se trata do levantamento de toda bibliografia publicada e que tenha relação com o tema em estudo. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo aquilo que foi escrito sobre determinado assunto. Serão utilizadas obras analíticas para uma melhor compreensão do tema abordado, uma vez que se preparou a presente monografia utilizando como fonte livros, artigos doutrinários, revistas jurídicas e artigos veiculados na internet, com a opinião de renomados juristas e especialistas no assunto, bem como na jurisprudência pátria, caracterizando uma técnica de pesquisa a ser seguida por documentação indireta.

Destaque-se que, na pesquisa, antes de se adentrar efetivamente na responsabilidade civil da conduta do assediador e suas conseqüências jurídicas, far-se-á uma abordagem geral dos assuntos que certamente estão inteiramente interligados ao assédio moral, em cujos passos analisar-se-á de forma sucinta os aspectos principais dos capítulos.

Preliminarmente, no primeiro capítulo, relatam-se as noções gerais do assédio moral no tempo, esclarecendo as primeiras

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pesquisas e os primeiros estudiosos que abordaram o assunto. Apresenta-se uma visão geral e as variadas definições do tema, mencionando as diferentes denominações em outros países para o mesmo fenômeno, e os seus elementos caracterizadores.

Ademais, explicar-se-á a importância da proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que quando o assediador comete o assédio moral perante uma vítima, fere um princípio constitucional.

No segundo capítulo, tratar-se-á de outro aspecto imperioso, pois será definida a relação de emprego e seus elementos caracterizadores, mostrando os sujeitos desta relação. Após, apresentar-se-ão os tipos de assédio moral, classificação feita a partir dos sujeitos que cometem o assédio, explicando ainda, os perfis do agressor e da vítima, desse processo cruel de violência psicológica, caracterizando suas condutas e finalidades.

No terceiro e último capítulo, expor-se-ão os pressupostos e tipos da responsabilidade civil, fazendo uma correlação com a ação do assediador ou a omissão dos seus colegas.

Merece destaque que ao abordar-se este aspecto, busca-se esclarecer que os requisitos fundamentais da responsabilidade civil também serão aplicados ao assédio moral para a busca de uma futura indenização por dano moral, sendo analisado de acordo com os sujeitos da relação de emprego.

Explicar-se-á que a vítima, devido às conseqüências emocionais e físicas acarretadas pela violência psicológica, terá um direito garantido pela Constituição Federal de 1988, de pleitear indenização contra o assediador ou até mesmo contra a empresa em que labora.

Mais adiante, será analisado o foro competente para ajuizar uma ação de indenização por danos morais, competindo à vítima recorrer perante a Justiça do Trabalho, de acordo com a mudança da competência trazida pela nova emenda constitucional nº 45/2004, em seu artigo 114, inciso VI, da Constituição Federal.

Desta forma, fez-se o máximo para desvendar os aspectos jurídicos que norteiam a prática do assédio moral na relação de emprego, apesar de não ser nossa intenção esgotar o tema, vez

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que sua dimensão é vasta, ter-se-á como objetivo atribuir uma visão mais ampla, buscando abordá-lo nas questões que mais possam interessar ao operador do Direito, o qual necessitará conhecer o fenômeno e seus reflexos dentro da relação de emprego, para poder proferir um julgamento baseado na justiça e atribuir um valor eficaz a respeito de reparação.

CAPÍTULO I

NOÇÕES GERAIS DO ASSÉDIO MORAL 

.  Aspectos Conceituais 

O assédio moral é considerado um fenômeno social com grande relevância nos dias atuais, todavia, não se caracteriza como um fenômeno novo, pois, sempre foi praticado em vários países. A novidade reside na intensificação, gravidade, amplitude e banalização do fenômeno que atualmente é destaque tanto no Brasil, quanto no plano internacional.

O assédio moral é tão antigo quanto a própria atividade laboral, mas, somente no início, em meados de 1970, que foi realmente identificado como sendo um fenômeno destruidor do ambiente de trabalho, acarretando sintomas prejudicais à saúde física e mental da vítima.

Segundo Hirigoyen (2002), em 1972 um médico sueco Peter Heinemann, publicou o primeiro livro sobre mobbing, o qual tratava da violência de um grupo de crianças.

O termo mobbing vem do verbo inglês to mob, cuja tradução é maltratar, atacar, perseguir, sitiar. As primeiras pesquisas sobre o assédio moral no trabalho iniciaram no campo da Medicina e da Psicologia do Trabalho.

No início de 1984 o psicólogo Heinz Leymann, de origem alemã, publica num pequeno ensaio científico, demonstrando as conseqüências do mobbing, sobretudo na esfera neuropsíquica, relatando sobre a pessoa exposta a um comportamento humilhante no trabalho durante certo período de tempo, seja por parte dos superiores, seja por parte dos colegas.

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Heinz estabeleceu que, para caracterizar a ação como mobbing, era necessário que as humilhações se repetissem pelo menos uma vez na semana e tivessem a duração mínima de seis meses. O autor citado por Hirigoyen (2002, p.77) explica que mobbing “consiste em manobras hostis, que sejam freqüentes e repetidas no ambiente de trabalho, objetivando sistematicamente a mesma pessoa.”

Com a difusão de seu estudo em meados dos anos 90, Leymann acabou por difundir o resultado de suas pesquisas por toda Europa. Após isso, a Alemanha adotou medidas de atendimento médico específico para amenizar o sofrimento das vítimas, e introduziu aspectos que envolvem o assédio moral em disciplina de estudo universitário, como parte da cadeira de Psicologia do Trabalho.

Na França, a vitimologia passou a ser especialidade na área médica, e consiste em analisar as razões que levam um indivíduo a tornar-se vítima, os processos de vitimação, as conseqüências a que induzem e os direitos que podem pretender.

Segundo Hirigoyen (2002), Heinz Leymann continuou a fazer levantamentos estatísticos na Suécia e participou da formação de pesquisadores nos países de língua alemão. Em 1990, por exemplo, calculou que 3,5% dos assalariados suecos foram vítimas de assédio.

Essas pesquisas de Heinz Leymann consolidaram uma lei em 1994 sobre condições de trabalho, completada sobre um decreto específico referente à vitimação no trabalho que caracterizava o assédio como sendo ações repetidas e repreensíveis dirigidos contra o empregado de uma maneira ofensiva.

.  Conceito

É sabido que a palavra trabalhar vem do latim vulgar tripaliare, que significa torturar e é derivado do latim clássico tripallium, antigo instrumento de tortura.

Através dos tempos, o vocábulo “trabalho” veio sempre significando fadiga, esforço, sofrimento, cuidado, encargo; em suma, valores negativos, dos quais se afastam os mais afortunados.

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A evocação dessa etimologia e desse passado se faz bastante prudente porque guarda consonância com o cenário em que se descortina o assédio moral, um quadro de violência no ambiente organizacional donde emerge um fenômeno, que apesar de invisível muitas vezes, vem merecendo especial atenção das organizações, dos funcionários e da sociedade, como um todo devido aos danos que provoca.

Compreende-se pelo termo assediar, perseguir com insistência, importunar, molestar com perguntas ou pretensões insistentes.

Já o termo, moral vem da raiz latina mores que significa costumes, conduta, comportamento, modo de agir. Ainda pode ser definido como sendo o conjunto de costumes e opiniões que um indivíduo ou um grupo de indivíduos possuem relativamente ao comportamento humano ou o conjunto de regras de comportamento consideradas como universalmente válidas.

O assédio moral não é um fenômeno exclusivo do ambiente de trabalho, podendo desenvolver-se nas relações familiares, nas escolas, quartéis, enfim, em qualquer contexto de convívio humano.

No universo laboral, o assédio moral nasce inicialmente como algo 

aparentemente  inofensivo e difunde‐se  insidiosamente, pois as pessoas 

envolvidas  se  esquivam  e  acabavam  levando  os  maus‐tratos  e 

desentendimentos na brincadeira.

Com isso, o assédio moral é considerado como aquela conduta que, 

de  forma  intencional  e  freqüente,  seja  capaz  de  ferir  a moral  de  uma 

pessoa, chegando a por em risco seu emprego ou até mesmo degradar o 

ambiente de trabalho. 

As pressões por produtividade e o distanciamento entre de superior 

hierárquico para o seu inferior, resultam na falta de comunicação direta, 

desumanizando o ambiente de trabalho, aumentando a competitividade 

e dificultando que o espírito de cooperação e de solidariedade surja entre 

os trabalhadores. 

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Observa‐se que normalmente o psicoterrorismo, como também é 

chamado o assédio moral, no ambiente de trabalho, para Vilja Marques 

(2004, p.819) se “origina na ganância pelo lucro e no abuso de poder.” 

Até o momento, os estudiosos não chegaram a uma exata definição do tema, pois esse fenômeno pode der abordado sob diversos ângulos, seja social, psicológico ou jurídico, porém faz-se necessário mencionar um conceito da estudiosa Hirigoyen (2002, p.17):

O assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.

O assédio moral pode constituir uma maneira para atingir o terror 

psicológico contra a vítima e a conseqüente degradação moral desta.

Isso porque  inicialmente ocorre  à prática de um  ato que  viole  a 

dignidade do trabalhador, sejam desde atitudes humilhantes até mesmo 

ao  isolamento,  passando  pela  desqualificação  profissional  e  acaba  no 

terrorismo, visando à destruição psicológica da vítima. 

Em  tal  fenômeno,  constata‐se  que  a  violência  isolada  não  é 

verdadeiramente grave, o efeito destrutivo está nos microtraumatismos 

freqüentes, repetidos e incessantes, em um certo lapso de tempo. 

No mesmo diapasão, o conceito elaborado por Sônia Nascimento 

(2004, p. 922) afirma que: 

(...)  assédio moral  se  caracteriza  por  ser  uma 

conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta 

contra  a  dignidade  psíquica,  de  forma  repetitiva  e 

prolongada, e que expõe o  trabalhador a situações 

humilhantes e  constrangedoras,  capazes de  causar 

ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade 

psíquica, e que tenha por efeito excluir a posição do 

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empregado no emprego ou deteriorar o ambiente de 

trabalho,  durante  a  jornada  de  trabalho  e  no 

exercício de suas funções. 

Vale  ressaltar  que  não  pode  ser  confundido  o  estresse  com  o 

assédio moral, pois aquele além de ser um estado biológico, é gerado por 

situações sociais e sócio‐psicológicas. 

O estresse apenas se torna destruidor pelo excesso, mas o assédio 

já é destruidor por si só. 

O conceito de assédio moral é bem mais amplo, pois envolve duas 

fases distintas: a primeira aparece quando o isolamento é moderado e a 

agressão  fica  restrita  às  condições  de  trabalho,  e  a  segunda  acontece 

quando a vítima já percebe ser alvo da má intenção do agressor. 

Impende  destacar  pormenorizadamente  essas  duas  etapas. 

Preliminarmente, a violência é destilada em doses homeopáticas, paralisa 

a vítima por meio de procedimentos de dominação, fazendo com que não 

consiga  mais  se  defender.  Após  isso,  um  indivíduo  ou  um  grupo  de 

indivíduos exercem seu poder sobre a vítima. 

Segundo o estudioso Heinz Leymann (apud HIRIGOYEN, 2002), psicólogo do trabalho, entende que o fenômeno é a deliberada degradação das condições de trabalho, por meio do estabelecimento de comunicações anti-éticas, que se caracterizam pela repetição por longo tempo de duração de um comportamento hostil que um superior ou colega desenvolve contra um indivíduo que apresenta, como reação, um quadro de miséria física, psicológica e social duradoura.

                   Sabe‐se, todavia, que, na raiz dessa violência no trabalho, 

existe um conflito mal resolvido ou uma incapacidade da direção do local 

de  trabalho  de  administrar  aquele  e  gerir  adequadamente  o  poder 

disciplinar.

Por fim, cabe aqui destacar que a jurisprudência começa a se manifestar a respeito da temática, cuja ementa dispõe:

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Dano Moral. Assédio moral. Contrato de inação. 

Indenização por dano moral. A  tortura psicológica, 

destinada  a  golpear  a  auto  estima  do  empregado, 

visando  forçar  sua  demissão  ou  apressar  a  sua 

dispensa  através  de  métodos  que  resulte  em 

sobrecarregar  o  empregado  de  tarefas  inúteis, 

sonegar‐lhe informações e fingir que não o vê, resulta 

em  assédio  moral,  cujo  efeito  é  o  direito  à 

indenização  por  dano  moral,  porque  ultrapassa  o 

âmbito  profissional,  eis  que mina  a  saúde  física  e 

mental da vítima e corrói a sua auto‐estima. No caso 

dos  autos,  o  assédio  foi  além,  porque  a  empresa 

transformou o contrato de atividade em contrato de 

inação,  quebrando  o  caráter  sinalagmático  do 

contrato  de  trabalho,  e  por  conseqüência, 

descumprindo a sua principal obrigação que é a de 

fornecer  o  trabalho,  fonte  de  dignidade  do 

empregado.  Recurso  improvido.  (TRT  17ª  Região, 

2001)

Observe que a jurisprudência já começa a definir os casos em que houve o assédio moral e a sua respectiva indenização.

1.2.1 Elementos do conceito

Como foi analisado, é difícil definir juridicamente e de forma objetiva o assédio moral, todavia observa-se que alguns doutrinadores enfatizam alguns elementos, dos quais serão analisados de forma sintética.

O primeiro diz respeito à intensidade da violência psicológica. Ela não deve ser analisada sob uma percepção subjetiva e particular do afetado, mas sim uma concepção objetiva que seja realmente grave.

Outro elemento muito importante, é o prolongamento no tempo, pois se for um episódio esporádico, não configura o assédio moral.

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O terceiro elemento seria a finalidade de ocasionar um dano psíquico ou moral ao empregado, para marginalizá-lo no seu ambiente de trabalho.

Como último elemento, tem-se pela efetividade do dano psíquico, os quais se reveste de índole patológica. Este dano poderá ser permanente ou transitório, e depende de um diagnóstico clínico que possa comprovar.

Segundo Barros (2006, p.890) “o último elemento é dispensável, pois acredita que o conceito de assédio moral deve ser definido pelo comportamento do assediador e não pelo resultado danoso à vítima.” Este entendimento possui grande relevância, pois se preocupa preventivamente, caracterizando não pelo resultado, mas sim pela ação.

1.2.2 Diferentes nomenclaturas

O fenômeno do assédio moral sempre existiu em toda parte, mas por haver uma diversidade de contextos e culturas, possui várias denominações diferentes.

A expressão mobbing surgiu nos Estados Unidos e origina-se do inglês “to mob”, que significa maltratar, atacar, agredir. Márcia Guedes (2003) relata que o mobbing indica literalmente, o tipo de agressão praticada por algum animal que, circundando ameaçadoramente um membro do grupo, provoca a fuga deste pelo pavor de ser atacado e morto.

Nas relações de trabalho, mobbing significa todos aqueles atos e comportamentos provindos do patrão, gerente ou superior hierárquico, ou até mesmo dos colegas, que traduzem uma atitude contínua e ostensiva perseguição que possa acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima.

O termo bullying vem do verbo inglês to bully que significa tratar com grosseria e desumanidade. A autora Hirigoyen (2002, p.79) esclarece que anteriormente a palavra bullying descrevia situações humilhantes, vexames e ameaças que algumas crianças ou grupos de crianças que infligiam as outras. Posteriormente, o termo foi estendido às agressões sofridas nos exércitos, no

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ambiente familiar, contra as pessoas idosas e no mundo do trabalho.

Existe uma diferença básica entre o termo bullying e mobbing é que o primeiro possui uma acepção mais ampla, pois vai de chacotas e isolamentos até condutas abusivas ou agressões físicas, prevalecendo a violência individual do que a organizacional.

Para Dieter Zapf (apud HIRIGOYEN, 2002, p.80) o bullying é originário majoritariamente de superiores hierárquicos, enquanto o mobbing é um fenômeno mais de grupo.

Já o termo whistleblowers ocorre quando alguém inserido no âmbito laboral detecta problemas no funcionamento normal da empresa e denuncia, conseqüentemente sofre represálias em virtude de não ter obedecido à regra do silêncio.

Nesse caso, vislumbra-se uma forma específica de assédio moral, pois tem como objetivo tão somente calar quem não obedece à regra de ficar em silêncio. Na maior parte dos países de origem anglo-saxônica como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Austrália foram tomadas medidas para proteger os denunciadores.

Também existe o ijime, cuja origem é japonesa, e significa assédio moral. Esse fenômeno visa suprimir a individualidade, ou seja, o trabalhador deve ser padronizado, sem ser individualista ou mesmo sem ter uma personalidade marcante.

.  Distinção entre o Assédio Moral e o Assédio Sexual

Não se deve confundir o assédio sexual com o assédio moral, existem diferenças substanciais entre um e outro.

O assédio sexual é um tipo penal introduzido pela Lei n. 10.224, de 15.5.2001, que se encontra descrito no rol dos crimes contra os costumes, inserido no capítulo que trata dos delitos contra a liberdade sexual.

Considera‐se  o  assédio  sexual  como  toda  conduta  de  natureza 

sexual  nãodesejada  que,  embora  repelida  pelo  destinatário,  é 

continuadamente reiterada, cerceando‐lhe a liberdade sexual.

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Por  outro  lado,  caracteriza‐se  o  assédio  moral  por  um  terror 

psicológico,  expondo  a  vítima  em  situações  humilhantes  e 

constrangedoras,  que  sejam  repetitivas  e  prolongadas,  durante  a  sua 

jornada de trabalho e no exercício de suas funções. 

A definição legal de assédio sexual está prevista no artigo 216‐A, do 

Código Penal Brasileiro (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.562), incluído 

pela Lei nº10.224/01: 

Art.  ‐A. Constranger alguém com o intuito de 

obter  vantagem  ou  favorecimento  sexual, 

prevalecendo‐se  o  agente  da  sua  condição  de 

superior  hierárquico  ou  ascendência  inerentes  ao 

exercício  de  emprego,  cargo  ou  função.  Pena 

detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. 

Veja‐se que o assédio sexual é uma  forma de abuso de poder no 

ambiente de trabalho, já caracterizado como um delito penal, sujeitando 

o assediador a uma pena. Já o assédio moral, apesar de ser um fenômeno 

de acarreta grandes conseqüências psicológicas, não é considerado um 

crime. 

Impende esclarecer que existe um projeto de Lei de nº 4.742/2001, 

que pretende introduzir ao Código Penal Brasileiro, um artigo 146 – A que 

tipifica o crime de assédio moral. 

          Neste aspecto, também existe diferença entre o assédio sexual 

e  o  assédio moral,  uma  vez  que  este  não  ocorre  obrigatoriamente  do 

superior  hierárquico  para  o  inferior.  Podem  acontecer  casos,  mesmo 

sendo  raro  na  prática,  de  existir  um  inferior  hierárquico  assediando 

moralmente o seu superior. 

Veja‐se que o assédio sexual normalmente é caracterizado como 

uma  violência  vertical,  de  cima  para  baixo,  em  que  o  agressor  ocupa 

posição hierarquicamente superior ou detém posição privilegiada. 

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Já o assédio moral, como menciona Guedes (2003, p.163), “é uma 

violência multilateral, pois, pode ser tanto vertical, horizontal ou misto, 

sendo continuada e visando excluir a vítima do local de trabalho.” 

Não se pode esquecer que o assédio sexual no ambiente de trabalho provoca, também, perdas à própria organização, em razão da deturpação de critérios de admissão, promoção e demissão, além da perda da motivação por parte de funcionários e a mácula da imagem institucional.

No assédio moral, o agressor pode utilizar-se de gestos obscenos, palavras de baixo escalão para agredir a vítima, detratando sua auto-estima e identidade sexual, diferentemente do assédio sexual cujo objetivo é dominar sexualmente a vítima.

1.4 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Destaque-se que os princípios expressam uma diretriz, já que não possuem regular situação jurídica específica, nem se reportam a um fato particular, prescrevendo o agir humano em conformidade com os valores jurídicos.

Diante de um maior grau de abstração, irradiam-se os princípios pelos diferentes setores da ordem jurídica, embasando a compreensão unitária e harmônica do sistema normativo.

A inobservância de um princípio ofende não apenas um específico mandamento obrigatório, mas a todo um complexo de comandos normativos.

Vale ressaltar que Eros Grau (2002, p. 170) menciona que

(...) enquanto as regras estabelecem o que é devido e o que não é devido em circunstâncias nelas próprias determinadas, os princípios estabelecem orientações gerais a serem seguidas em casos, não predeterminados no próprio princípio, que possam ocorrer.

O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado como um princípio geral da Constituição Brasileira de 1988. Entende-se por princípios gerais do Direito, de acordo com Bastos (1997, p.144):

(...) as idéias fundamentais sobre organização jurídica de uma comunidade,

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emanados da consciência social, que cumprem funções fundamentadoras, interpretativas e supletivas, a respeito de seu total ordenamento jurídico.

Na Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana foi elevado ao patamar de fundamento do Estado Democrático de Direito, integrando a categoria dos princípios fundamentais.

O princípio da dignidade da pessoa humana está inserido no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna:

Art.  º  A  República  Federativa  do  Brasil, 

formada  pela  união  indissolúvel  dos  Estados  e 

Municípios  e  do  Distrito  Federal,  constitui‐se  em 

Estado  Democrático  de  Direito  e  tem  como 

fundamentos:

III  ‐ a dignidade da pessoa humana(...).(PINTO; 

WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.7) 

Rizzatto Nunes (2002, p.45) acentua que a “dignidade é o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais.”

Com isso, a Carta Magna de 1988 garante ao trabalhador o direito de ter respeitada a sua dignidade como pessoa, sendo portanto, o assédio moral, um ato que viola este princípio.

Ainda mais específico, com relação ao trabalhador, a Constituição menciona em seu artigo, 5º, inciso III, no Capítulo II, correspondente às garantias e os direitos fundamentais individuais e coletivos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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III  ‐  ninguém  será  submetido  a  tortura  nem  a 

tratamento  desumano  ou  degradante;  (PINTO; 

WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.7)

O princípio da dignidade da pessoa humana neste aspecto possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha ser objeto de ofensas ou humilhações.

Por  outro  lado,  a  dimensão  positiva  presume  o  pleno 

desenvolvimento  de  cada  pessoa,  que  supõe,  de  um  lado,  o 

reconhecimento  da  total  autodisponibilidade,  sem  interferências  ou 

impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias no  seu 

trabalho;  de  outro,  a  autodeterminação  que  surge  da  livre  projeção 

histórica da razão humana.

A estudiosa Barros (2006, p.886) afirma que “é exatamente a necessidade de proteção à dignidade do empregado que justifica a punição do assédio moral”.

Foi visto que o terror psicológico no local de trabalho se caracteriza exatamente pela exposição da vítima a situações humilhantes e degradantes, que se prolongam ao longo do tempo.

Observe que o agressor ao praticar o assédio moral na relação de emprego viola um princípio geral do direito, pois o trabalho é considerado uma fonte de dignidade do trabalhador.

Amauri Mascaro (2004) acrescenta que a dignidade é um valor subjacente a várias regras do direito.

A Consolidação das Leis Trabalhistas reza no seu artigo 483 (CARRION, 2006), os casos em que o empregador atenta contra a dignidade do empregado. Observe as seguintes hipóteses legais da dispensa indireta, por ofender a dignidade da pessoa do empregado:

a) a exigência de serviços superiores às suas forças, defesos por lei, 

contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato (art. 483, a, da CLT). 

A expressão engloba as acepções de força muscular, aptidão para a tarefa, 

capacidade  profissional.  Serviço  defeso  em  lei,  envolve  as  atividades 

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proibidas pela lei penal ou que oferecem risco à vida do trabalhador ou do 

próximo. Trabalho contrário aos bons costumes, é aquele ofensivo a moral 

pública. Serviços alheios ao contrato, representam a realização de tarefas 

exigidas pelo empregador, que estão contrárias aos serviços pelos quais o 

trabalhador foi contratado;

b)  o  tratamento  pelo  empregador  ou  por  seus  superiores 

hierárquicos  com  rigor excessivo  (art. 483, b, da CLT). Essa  figura  legal 

compreende  a  presença  de  repreensões  ou  medidas  punitivas 

desprovidas  de  razoabilidade,  configurando  uma  perseguição  ou 

intolerância ao empregado; 

c) perigo de mal considerável  (art. 483, c, da CLT), o qual ocorre 

quando  o  empregado  é  compelido  a  executar  suas  tarefas  sem  que  a 

empresa  faça  a  adoção  das medidas  necessárias  para  que  o  local  de 

trabalho esteja dentro das normas de higiene e segurança do trabalho; 

d) quando o empregador ou seus prepostos praticarem contra o empregado ou pessoa de sua família ato lesivo a boa fama, honra ou ofensas físicas. (483, e, da CLT);

Conforme assinala Ingo Sarlet (2001, p.41), “a dignidade se afigura 

como  a  qualidade  integrante  e  irrenunciável  da  condição  humana, 

devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida”.

Neste aspecto,  impende  ressaltar que o artigo 22, da Declaração 

Universal  dos  Direitos  Humanos  (In:  MINISTÉRIO  DA  JUSTIÇA,  2006), 

aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 

de  1948,  preconiza  também  como  princípio  fundamental  o  respeito  à 

dignidade  da  pessoa  humana,  caracterizando  como  um  valor  ético,  in 

verbis: 

Artigo    ‐ Todo o homem, como membro da 

sociedade,  tem  direito  à  segurança  social  e  à 

realização,  pelo  esforço  nacional,  pela  cooperação 

internacional  e  de  acordo  com  a  organização  e 

recursos de  cada  Estado, dos direitos  econômicos, 

sociais e culturais  indispensáveis à sua dignidade e 

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ao  livre  desenvolvimento  de  sua  personalidade. 

(grifo nosso) 

Conclui-se que o respeito à dignidade da pessoa humana, há muito tempo, já vigora como um princípio fundamental norteador de toda e qualquer relação, inclusive a de emprego.

Ademais, importante trazer à baila uma jurisprudência que considerou um atentado à dignidade da pessoa humana, contra o trabalhador exposto ao assédio moral:

Eleição do “Empregado Tartaruga”. Ato Patronal 

Constrangedor  e  Ofensivo  a  Dignidade  Da  Pessoa 

Humana  ‐  Exposição  do  Empregado  a  Ridículo  e  a 

Vexame.  Reparação  Por  Dano  Moral.  Viabilidade. 

Afronta a dignidade da pessoa humana a instituição, 

pela empresa, de  “eleição” mensal de  “empregado 

tartaruga”,  para  assim  designar  pejorativamente 

aquele trabalhador que cometeu atrasos no horário 

de  entrada  nos  serviços,  expondo  o  empregado 

“eleito”  ao  ridículo,  além de  colocá‐lo em  situação 

vexatória  perante  os  demais  colegas  de  trabalho. 

Louvável  seria  o  empregador  instituir mecanismos 

para estimular ou  incentivar os seus empregados à 

assiduidade  e  à maior  produtividade,  sem  causar‐

lhes  constrangimentos  no  ambiente  de  trabalho. 

Pedido de reparação por dano moral que se acolhe. 

Recurso  ordinário  do  empregado  a  que  se  dá 

provimento. (TRT 15ª Região, 2001)

Portanto, o assédio moral atento contra um princípio fundamental, 

pois o assediador ao praticar uma conduta abusiva, repetida e prolongada, 

de  natureza  psicológica,  atenta  contra  a  dignidade  psíquica  do 

trabalhador,  expondo  a  situações  constrangedoras,  capazes  de  causar 

ofensa à sua personalidade ou à sua integridade psíquica. 

CAPÍTULO II 

ASSÉDIO MORAL NA RELAÇÃO DE EMPREGO 

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.  Relação de Emprego 

Antes de comentar sobre a relação de emprego, convém destacar 

inicialmente um pouco de sua história perante a humanidade. 

Na Antiguidade, o  trabalho,  em  grande parte  era  executado por 

escravos cuja condição não era a de pessoa, mas de coisa. Só existiam 

direitos para uns, os proprietários dos escravos, e deveres para os outros, 

os escravizados. A  ilimitação de poderes dos primeiros sobre segundos, 

por conseguinte, era a característica desse período histórico. 

Durante  a  Idade Média,  a  servidão  da  gleba  difundiu‐se  como  a 

principal  instituição  trabalhista. Os  trabalhadores eram considerados os 

servos da gleba, adstritos à área de cultivo a qual pertenciam, vivendo com 

sua família e pagando uma renda, o chamado feudo, em troca de proteção 

militar do senhor feudal. 

No final da  Idade Média surge as corporações de ofício que eram 

órgãos  privados  ou  públicos,  conforme  variações  de  espaço  e  tempo, 

agrupavam mestres, companheiros e aprendizes, cabendo à corporação 

impor  as  diretrizes  fundamentais  a  que  os  cooperados  estavam 

submetidos. 

De acordo com Amauri Mascaro (2004), o absolutismo corporativo 

foi suprimido pela Revolução Francesa por meio da Lei de Chapelier, de 17 

de  junho de 1791, que considerou as corporações  incompatíveis com o 

ideal de liberdade do homem, fixando jornada de trabalho e salário, sem 

a interferência das corporações. 

As  corporações  de  ofício  foram  extintas,  e  os  empregados  e 

empregadores  começaram  a pactuar diretamente  acordos  trabalhistas, 

fixando  condições  de  trabalho  sem  qualquer  interferência  exterior, 

surgindo com isso, a locação de serviços. 

A  locação  de  serviço  foi  a  primeira  forma  jurídica  de  relação 

trabalhista,  que  dava  total  liberalidade  na  vontade  do  trabalhador  e 

empregador,  onde  o  primeiro  prestava  serviços  e  o  segundo  pagava 

salários, sem interferência estatal. Havia plena autonomia da locação de 

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serviços na ordem econômica, jurídica e social. Como o absolutismo das 

corporações  foi  substituído  pelo  próprio  arbítrio  patronal,  surgiu  o 

proletariado e a questão social. 

A  força de  trabalho considerada uma mercadoria, pela economia 

liberal, estava sujeita à lei da oferta e da procura, suscetíveis, portanto a 

própria autonomia contratual e das disponibilidades do mercado. 

O declínio da liberdade contratual, com o intervencionismo jurídico, 

trouxe  a  figura  do  contrato  de  trabalho,  possuindo  características  do 

contrato de adesão. 

Na  fase contemporânea, para o autor Amauri Mascaro considera 

que a regulamentação individual do trabalho: 

(...)  é  o  resultado  de  uma  multiplicidade  de 

influências  e  de  acontecimentos  baseados  no 

pressuposto  da  necessidade  de  atribuir  ao 

trabalhador um estatuto que permita antepor‐se aos 

eventuais arbítrios do empregador. Numa sociedade 

plural  e  democrática,  o  papel  desempenhado  pelo 

contrato de trabalho é de fundamental importância, 

e  os  próprios  fins  a  que  se  destina  acham‐se  em 

consonância com a estrutura mesma da comunidade 

política na qual é encontrado e se realiza. (MASCARO, 

2004, p.496) 

Assim,  pode‐se  observar  a  importância  do  contrato  de  trabalho 

para reger as relações empregatícias numa sociedade democrática, uma 

vez que expressa o acordo de vontades entre as partes contratantes. 

2.1.1 Definição 

Busca‐se nesta pesquisa o melhor entendimento sobre a prática do 

assédio moral na relação de emprego, para isso definir‐se‐ão este vínculo 

empregatício que forma um elo entre os sujeitos desta relação. 

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A  relação  de  emprego  se  trata  de  uma  espécie  da  relação  de 

trabalho.  “Existem  relações de  trabalho  lato  sensu que não podem  ser 

confundidas  com  a  relação  de  emprego,  esta  considerada  relação  de 

trabalho stricto sensu. “(MELGAR, 2003, p.35) 

A relação de trabalho é mais abrangente, pois envolve não apenas 

os  empregados  e  empregadores,  mas  também  os  trabalhadores 

eventuais, autônomos, avulsos, entre outros. 

Há de se distinguir relação de emprego (também conhecida como 

relação  jurídica  de  trabalho),  que  pressupõe  contrato,  com  relação  de 

trabalho de fato. Esta é uma manifestação da tendência do direito de fazer 

efeitos jurídicos das situações de fato, já aquela pressupõe o contrato de 

trabalho. 

É admissível a seguinte distinção terminológica: relação jurídica de 

trabalho é a que  resulta de um  contrato de  trabalho, denominando‐se 

relação  de  emprego  e  quando  não  haja  nenhum  contrato,  será  uma 

simples relação de trabalho (de fato) 

O vínculo entre empregado e empregador é de natureza contratual, ainda que no ato que lhe dê origem nada tenha sido ajustado, ou seja, desde que a prestação de serviço tenha se iniciado sem oposição do tomador, será considerado existente o contrato de trabalho. De certo que ninguém será empregado ou empregador senão em virtude de sua própria vontade, mesmo assim, se uma pessoa começar a trabalhar para outra sem que nada haja sido previamente combinado, mas haja o consentimento de quem toma o serviço em seu benefício (contrato tácito), pode se originar um contrato de trabalho. Ainda que não exista documento formal de contrato, ou mesmo seja o contrato nulo por motivos diversos, mas daquela prestação de fato podem resultar conseqüências jurídicas para as partes.

Para  o  estudioso  Délio  Maranhão  (1993)  o  contrato  de 

trabalho  stricto  sensu é o negócio  jurídico pelo qual uma pessoa  física 

(empregado) se obriga, mediante o pagamento de uma contraprestação 

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(salário), a prestar  trabalho não eventual em proveito de outra pessoa, 

física ou jurídica (empregador), a quem fica juridicamente subordinado.

Veja‐se,  portanto,  os  elementos  caracterizadores  da  relação  de 

emprego, quais  sejam, pessoa  física do obreiro, prestando  trabalho de 

forma  contínua,  mediante  subordinação  e  recebendo  uma 

contraprestação. 

O contrato de trabalho é, ainda, intuito personae em relação à pessoa do empregado, que não poderá ser substituído na execução das suas tarefas por quem quer que seja.

Ainda é de se destacar que, apesar da pessoalidade do empregador não ser elemento essencial para a caracterização do contrato de trabalho - pode haver sucessão de empresa, com alteração jurídica de sua constituição e funcionamento, sem que com isso reste afetado o contrato de trabalho, art. 10, da CLT – (CARRION, 2006), quando se tratar de empregador pessoa física, sua morte acarreta conseqüências para o contrato de trabalho, posto que nesse caso, ainda que prossigam as atividades, é facultada ao empregado a rescisão contratual sem que lhe recaiam ônus (art. 485, da CLT). Tal previsão é resquício do Direito Civil na legislação trabalhista (obrigação personalíssima).

É, ainda, sinalagmático, uma vez que dele resultam obrigações contrárias e equivalentes (ao empregado cabe efetuar os serviços e ao patrão efetuar o pagamento do salário combinado). É consensual; sucessivo; oneroso e que pode vir acompanhado de outros contratos acessórios, como, por exemplo, o de depósito (ex: o empregado é depositário de instrumentos de trabalho pertencentes ao empregador, como amostras de vendas, ferramentas de trabalho etc.)

A relação de emprego, segundo o entendimento do ilustre Mascaro 

(2004, p.500), argumenta que “a relação  jurídica de natureza contratual 

tendo  como  sujeitos  o  empregado  e  o  empregador  e  como  objeto  o 

trabalho subordinado, continuado e assalariado.”

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Neste aspecto, existe uma causa e um objeto existentes na relação 

de emprego. A causa pode ser entendida como um  fim aparentemente 

desejado pelas partes por meio do contrato, para o empregado, o salário 

e  outras  garantias  trabalhistas,  e  para  o  empregador,  o  trabalho  e  os 

resultados das atividades do empregado. 

A causa não deve ser confundida com o objeto, pois este é o modo 

pelo qual o trabalho é prestado, ou seja, na relação de emprego o objeto 

é trabalho subordinado e não eventual. Impende que o objeto seja lícito e 

moral, caso não seja, a conseqüência será a sua  ineficácia, como ocorre 

com qualquer ato jurídico. 

Todavia  não  é  válida  para  o  contrato  de  trabalho,  a máxima  do 

Direito Civil,  isto é, se o contrato é nulo nenhum efeito será produzido, 

pois  os  efeitos  gerados  pelo  trabalho  são  vários,  como  os  salários 

contraprestativos  que  lhe  são  devidos,  além  de  outras  vantagens 

trabalhistas, sendo melhor aplicar a anulabilidade do que a nulidade, uma 

vez que o Direito do Trabalho formou uma teoria quanto a este a assunto, 

chamada irretroatividade das nulidades. (MASCARO, 2004). 

2.1.2 Sujeitos 

Existem  dois  pólos  na  relação  de  emprego:  De  um  lado  os 

empregadores e do outro os empregados. 

A  Consolidação  das  Leis  do  Trabalho  em  seu  artigo 

segundo,  caput,  conceitua:          “Art.  2.º  Considera‐se  empregador  a 

empresa,  individual  ou  coletiva,  que  assumindo  os  riscos  da  atividade 

econômica,  admite,  assalaria  e  dirige  a  prestação  pessoal  do 

serviço.”(CARRION, 2006, p.27). 

 Carrion (2006, p.28) entende que “empresa é o conjunto de bens 

materiais, imateriais e pessoais para obtenção de certo fim”. 

Considera‐se  empresa  individual,  a  pessoa  física  que  não  se 

constituiu em sociedade. Já a empresa coletiva, pode ser de direito público 

ou privado. 

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O empregador reúne em sua empresa os diversos fatores de produção. Esta, precisamente, é sua função social. Desses fatores, o principal é o trabalho. Assumindo o empregador, como proprietário da empresa, os riscos do empreendimento (art. 3º, CLT), claro está que lhe é de ser reconhecido o direito de dispor daqueles fatores, cuja reunião forma uma unidade técnica de produção.

A pessoa do empregador pode dispor da força de trabalho do empregado (um dos fatores de produção que dispõe), no interesse do empreendimento cujos riscos assumiu.

Como direitos do empregador, que inegavelmente geram subordinação ao empregado, destaca-se: os de direção (ou comando); os de controle (verificar o exato cumprimento da prestação do trabalho); os de aplicar penas disciplinares (em razão do inadimplemento do contrato de trabalho por parte do empregado). O poder disciplinar se constitui em possibilidade de aplicar as sanções disciplinares, é o meio de que dispõe o empregador para a imediata tutela de seus direitos em caso de violação das obrigações assumidas pelo empregado. O dever de obediência é limitado ao conteúdo do contrato de trabalho e em razão do tempo, ou seja, somente durante o tempo de vigência da contratação e nos limites do que ficou combinado.

De outro lado, tem-se a obrigação do empregado de se deixar dirigir pelo empregador, segundo os fins a que se propõe a alcançar no campo da atividade econômica, exatamente porque o trabalho é um dos fatores de produção, colocado à disposição do empregador mediante o contrato de trabalho.

Decorrente desse contrato, implica uma certa indeterminação do conteúdo de cada prestação e, conseqüentemente, o direito do empregador de definir, no curso da relação contratual e nos limites do contrato, a modalidade de atuação concreta do empregado. A subordinação é uma conseqüência desse direito. Mas saliente-se que o empregado não se obriga a prestar qualquer trabalho, mas sim aquele determinado.

O  empregado,  segundo  entendimento  da  autora  Barros  (2006, 

p.241) explica que  “pode  ser  considerado  como uma pessoa  física que 

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presta serviço (técnico, intelectual ou manual) de natureza não‐eventual 

a empregador mediante salário e subordinação jurídica.”

Desta  maneira,  observa‐se  que  os  pressupostos  para  ser 

empregado são pessoalidade, não‐eventualidade, salário e subordinação. 

A pessoalidade exige que o empregado trabalhe pessoalmente, não 

podendo ser substituído, salvo com a aquiescência do empregador e em 

situações esporádicas. 

Com  relação à não‐eventualidade, entende‐se pela exigência dos 

serviços serem de natureza não eventual, ou seja, a força do trabalho deve 

corresponder às necessidades normais da empresa, pois de outro modo, 

se  fosse  eventual  só  seria  contratado  em  circunstância  excepcionais  e 

transitórias ao estabelecimento. 

  O  salário  é  a  contraprestação  devida  e  paga  diretamente  pelo 

empregador  ao  empregado  em  virtude  de  um  contrato  de  trabalho, 

constitui  o  caráter  oneroso  da  relação  de  emprego,  uma  vez  que  a 

prestação de trabalho não ocorre a título gratuito. 

E por fim, tem‐se subordinação jurídica que seria como um estado 

de dependência real criado pelo direito de o empregador comandar, dar 

ordens, ou seja, não é um status que tem o empregador sob o empregado, 

mas uma subordinação decorrente da atividade exercida pelo obreiro. 

Segundo Martins (2003, p.145) “ (...)a subordinação e a obrigação 

que  o  empregado  tem  que  cumprir  as  ordens  determinadas  pelo 

empregador em decorrência do contrato de trabalho.” 

Assim,  o  empregado  é  toda  pessoa  física  que  com  ânimo  de 

emprego  trabalha  subordinadamente,  de  forma  não‐eventual  para 

outrem, de quem recebe salário. 

.  Espécies de Assédio Moral 

O assédio moral pode ser cometido tanto pelo empregado quanto pelo empregador.

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A humilhação no trabalho envolve fenômenos vertical, horizontal ou misto. O vertical se caracteriza por relações autoritárias e desumanas, predominando os desmandos, a manipulação do medo e a competitividade. Pode ser vertical descendente quando o assédio vem do superior hierárquico contra o seu subordinado, já no vertical ascendente é o subordinado quem submete seu superior hierárquico ao sofrimento.

Também existe o assédio moral horizontal, hipótese esta que se dá entre os pares, ou seja, no mesmo nível de hierarquia dentro das corporações.

Ainda, pode acontecer o assédio misto, ou seja, vertical e horizontal ao mesmo tempo.

Analisar-se-á adiante, pormenorizadamente, as espécies de assédio moral dentro do ambiente de trabalho.

2.2.1 Assédio vertical descendente

Este fenômeno ocorre quando os subordinados são agredidos pelos empregadores ou superiores hierárquicos, e levados a crer de que tem que aceitar tudo o que é imposto se quiserem manter seu emprego. Importante destacar, a comparação de Hirigoyen (2002,p.112):

A experiência mostra que o assédio moral vindo de um superior hierárquico tem conseqüências muito mais graves sobre a saúde do que o assédio horizontal, pois a vítima se sente ainda mais isolada e tem mais dificuldade para achar a solução do problema.

As razões que levam a tal perseguição são, por vezes, o medo que um superior tem de perder o controle, ou quando este tem a necessidade de rebaixar os outros para engrandecer-se. Em alguns casos, a empresa está consciente de que o superior dirige seus subordinados de forma tirânica, e consente com tal medida.

Guedes (2003, p.36) entende o mobbing descendente de forma a conceituá-lo como vertical e o define:

A violência psicológica é perpetrada por um superior hierárquico (...) pode este contar com a cumplicidade dos colegas de trabalho da vítima

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e através destes a violência pode ser desencadeada. (...) o grupo tende a se alinhar com o perverso, creditando à vítima a responsabilidade pelos maus-tratos.

Portanto, o assédio vertical descendente é, assim, o tipo de assédio mais preocupante de todos, pois a vítima fica mais desamparada e desprotegida, tendo piores conseqüências psicológicas ou físicas.

2.2.2 Assédio horizontal Este tipo de assédio é freqüente, e ocorre quando dois

empregados disputam entre si um mesmo cargo ou uma promoção. Há também a agravante de que os grupos tendem a nivelar seus indivíduos e têm dificuldade de conviver com diferenças. Por exemplo, a mulher em grupo de homens, homem em grupo de mulheres, homossexualidade, diferença racial, religiosa, entre outras.

Aqui, o conflito é horizontal, e ocorre quando um colega agride moralmente o outro e a chefia não intervém, recusando-se a tomar partido do problema, só reagindo no momento que uma das partes interfere na cadeia produtiva da empresa (quando falta seguidamente ao trabalho).

O conflito tende a recrudescer pela omissão da empresa em não intervir. Guedes (2003, p.36) conceitua e caracteriza esse tipo de assédio da seguinte forma:

(...) a ação discriminatória é desencadeada pelos próprios colegas de idêntico grau na escala hierárquica. Os fatores responsáveis por esse tipo de perversão moral são a competição, a preferência pessoal do chefe porventura gozada pela vítima, a inveja, o racismo, a xenofobia e motivos políticos. (...) a vítima pode ser golpeada tanto individual como coletivo.

Observe que o entendimento da autora afirma que o assédio pode partir tanto de um colega como de vários. A inveja e inimizades pessoais aparecem também como causadores do conflito. Nestes casos, a empresa deve intervir de maneira justa, ou seja, agir de

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maneira educativa, aplicando sanções a ambos os empregados, pois do contrário, havendo o apoio de um superior a um dos colegas, isto poderia reforçar o processo de assédio moral.

2.2.3 Assédio vertical ascendente

Este tipo de assédio acontece poucas vezes, mas pode existir quando, por exemplo, um superior recém contratado não alcança um nível de empatia e de adaptação, ou possui métodos que são reprovados por seus subordinados, e também quando não dispende nenhum esforço no sentido de impor-se perante o grupo. Isso pode levar a um nível de descrédito que tende a desencadear o assédio moral.

Ainda, vale consignar o que sustenta Guedes (2003, p.37) sobre esse tipo de assédio:

A violência de baixo para cima geralmente ocorre quando um colega é promovido sem a consulta dos demais, ou quando a promoção implica um cargo de chefia cujas funções os subordinados supõem que o promovido não possui méritos para desempenhar (...) tudo isso é extremamente agravado quando a comunicação interna inexiste entre superiores e subordinados.

Cabe referir aqui que, por ser um tipo de assédio mais raro que os demais, não deixa de ser menos repugnante para as relações laborais.

Hirigoyen (2002) relata que pode haver diversas formas desta hipótese de assédio moral, dentre as quais a falsa alegação de assédio sexual com o objetivo de atentar contra a integridade e reputação moral do superior, e reações coletivas de grupo, ou seja, existe uma cumplicidade de um grupo para se livrar do superior hierárquico que não é aceito ou lhe foi imposto, sucede freqüentemente em fusões ou compra de empresa por outra, as quais utilizam somente critérios estratégicos sem prévias consultas aos subordinados.

2.2.4 Assédio misto

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Com relação a este tipo, pode acontecer quando a vítima é atacada tanto pelos colegas de mesma linha hierárquica, como pelo superior hierárquico ou empregador.

Ocorre, geralmente, em empregos onde há alta competitividade interna e em locais de trabalho onde impera a gestão por estresse, em que o chefe ou o patrão imprime um nível elevadíssimo de exigência.

A estudiosa Hirigoyen (2002, p.114) se posiciona da seguinte maneira:

Mesmo se trate de uma história muito particular, é raro um assédio horizontal duradouro não ser vivido, depois de algum tempo, como assédio vertical descendente, em virtude da omissão da chefia ou do superior hierárquico. (...)Quando uma pessoa se acha em posição de bode expiatório, por causa de um superior hierárquico ou de colegas, a designação se estende rapidamente a todo o grupo de trabalho. A pessoa passa a ser considerada responsável por tudo que dê errado.

Sendo assim, a agressão pode iniciar do próprio superior ou chefe, e daí, se alastrarem e partirem dos próprios colegas da vítima, por medo de represálias futuras do chefe assediador. Há, na realidade, a uma tomada de posição dos colegas da vítima coadunada com o comportamento tirânico do superior.

.  Características do Assédio Moral

Foi  analisado  que  o  terror  psicológico  caracteriza‐se  pela 

degradação  das  condições  de  trabalho  em  que  prevalecem  atitudes  e 

condutas  negativas  dos  chefes  em  relação  a  seus  subordinados, 

constituindo uma experiência subjetiva que acarreta prejuízos práticos e 

emocionais para o trabalhador e a organização. 

A vítima do assédio moral é violentada no conjunto de direitos que compõem a sua personalidade. Como essa violência moral

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desenrola-se muitas vezes silenciosamente, o assediado geralmente fica sem nenhuma reação perante o assediador, acarretando sérios problemas psicológicos e sociais.

Não existe uma caricatura pronta e acabada de cada perfil. É um equívoco afirmar que todo assediador é simplesmente malvado e que toda vítima é sempre pobre e desprotegida. O comportamento de um dos protagonistas pode alterar o do outro, pois a patologia do dirigente é tolerada, todavia a dos empregados não é tão compreendida.

Esclarece-se que não há diferença entre a violência ocorrida no âmbito privado, seja entre o casal, ou no seio familiar, ou no contexto profissional, entre empregados e empregadores. Uma vez que havendo a violência moral, ela assume proporções relativas e generalizantes à diversidade de sua manifestação.

Observar-se-á adiante que não há um perfil fixo, mas sim características pessoais tanto para a vítima como para o assediador. O que torna um agressor em potencial é a busca pelo poder e o medo de perdê-lo, ocorrendo uma notável insegurança frente ao seu subordinado.

2.3.1 Da vítima

A vítima escolhida é isolada do grupo sem explicações, passando a 

ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada e desacreditada 

diante dos pares. Estes, por medo do desemprego e a vergonha de serem 

também  humilhados,  associado  ao  estímulo  constante  da 

competitividade,  rompem  os  laços  afetivos  com  a  vítima  e, 

freqüentemente, reproduzem e reatualizam ações e atos do agressor no 

ambiente de trabalho, instaurando o pacto da tolerância e do silêncio no 

coletivo,  enquanto  a  vítima  vai  gradativamente  se  desestabilizando  e 

perdendo sua auto‐estima. 

Ao  contrário do que  se  imagina, as vítimas não  são empregados 

desleixados  ou,  até  mesmo,  negligentes,  mas  são  “justamente  os 

empregados com senso de responsabilidade quase patológico” (GUEDES, 

2003, p.63). A autora esclarece que a vítima é ingênua no sentido em que 

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acredita nos outros e naquilo que fazem, além de normalmente ser pessoa 

bem educada e possuidora de valiosas qualidades profissionais e morais. 

A mesma autora afirma que apontar as características da vítima não 

é uma  tarefa  fácil, pois há  fatores  sócio‐culturais que  têm  significativa 

preponderância sobre o fenômeno. 

Assim, definir o perfil da vítima é uma tarefa complexa, porquanto 

está  intimamente  ligado  ao  ambiente  de  trabalho,  à  personalidade  do 

agressor  e  à  capacidade  de  resistência  do  próprio  assediado.  Pode‐se 

afirmar, então, que este perfil é multifacetado. 

Euler Sinoir (2004) afirma que a vítima do assédio não é uma pessoa 

pacata, sem opinião própria, que fique apenas executando as tarefas que 

lhe foram dadas ou trabalhando no seu canto para receber o salário no 

fim do mês, pois o agressor não se preocupa com essas pessoas,  já que 

não há ameaça de se perder o cargo nem existe um perigo de potencial. 

Entende‐se por uma vítima em potencial que ameace o agressor, in 

verbis: 

A  vítima  é,  normalmente,  dotada  de 

responsabilidade acima da média, com um nível de 

conhecimento superior aos demais, com uma auto‐

estima  grande  e,  mais  importante,  acredita 

plenamente  nas  pessoas  que  a  cercam.  Tais 

qualidades  juntas  em  uma  única  pessoa  leva  o 

agressor a usar de todos os meios legais ou não com 

o objetivo de reduzir‐lhe a auto estima, o senso de 

justiça,  levando  a  sua  destruição  profissional  e 

psicológica. 

Normalmente  a  vítima  pode  ser  uma  pessoa 

sozinha no grupo, por exemplo uma única mulher no 

escritório, um único médico de um corpo clínico ou 

feminino, ou alguém que se comporte diferente aos 

demais  (...).  Ou  alguém  que  faz  sucesso,  recebe 

elogios  dos  clientes  e  ganha  promoção  causando 

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uma certa inveja no agressor e até mesmo ciúme nos 

colegas. Ou, ainda, uma pessoa nova no cargo antes 

ocupado por outra mais popular, que tenha alguma 

qualidade a mais do que a maioria, provocando um 

mal  estar  e  insegurança  aos  demais  do  grupo. 

(OLIVEIRA, 2004, p. 7) 

O que ocorre efetivamente é que o perfil do assediado estará de acordo com o do agressor, uma vez que escolhe uma determinada pessoa na qual proteja suas próprias fraquezas e medos, para poder enfraquecê-la cada vez mais.

O terror psicológico acarreta para as vítimas conseqüências, que estão diretamente ligadas com fatores que se relacionam com a intensidade e a duração da agressão.

As conseqüências específicas, em curto prazo, pelas vítimas do assédio moral são o estresse e a ansiedade, combinado com um sentimento de impotência e humilhação. Destes prejuízos decorrem perturbações físicas, como cansaço, nervosismo, distúrbios do sono, enxaqueca, distúrbios digestivos, dores na coluna, etc. Diga-se que “tais perturbações seriam uma autodefesa do organismo a uma hiperestimulação e a tentativa de a pessoa adaptar-se para enfrentar a situação.” (HIRIGOYEN, 2002, p.77)

Já em longo prazo, as conseqüências tornam-se mais graves, e a confusão, começa a se tornar um choque, transformando-se em ansiedade, perturbações psicossomáticas, ou a um estado depressivo. Segundo a vitimóloga Hirigoyen:

Esses estados depressivos estão ligados ao esgotamento, a um excesso de estresse. As vítimas sentem-se vazias, cansadas, sem energia. Nada mais lhe interessa. Não conseguem mais pensar ou concentrar-se, mesmo na atividade mais banais. Podem, então, sobrevir idéias de suicídio. O risco é ainda maior no momento em que elas tomam consciência de que foram lesadas e que nada lhes dará a possibilidade de verem reconhecidas suas razões. Quando há um suicídio, ou tentativa de

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suicídio, isso conforta os perversos em sua certeza de que o outro era fraco, perturbado, louco, e que as agressões que lhe eram infligidas eram justificadas. (HIRIGOYEN, 2002, p.77)

Alguns distúrbios também são diagnosticados nas vítimas do assédio moral em estágio mais avançado com conseqüências fisiológicas ocasionando problemas digestivos (gastrites, colites, úlceras de estômago), ganho ou perda de peso, doenças cardiovasculares, doenças de pele, entre outras.

Assim, pode-se afirmar que qualquer pessoa pode estar sujeita as hipóteses de assédio, todavia, algumas situações propiciam o ocorrimento destes casos, como por exemplo, a questão de pertencer a minorias sociais, de serem pessoas que resistem à padronização de comportamentos, pessoas excessivamente competentes, ou ainda aquelas que não estão ligadas à rede de relacionamento “certa”, ou seja àquela “oposta” ao assediador.

2.3.2 Do assediador

Pode‐se  destacar  aqui  as  características  mais  marcantes  do 

agressor, uma vez que não há como definir um perfil fixo. 

O agressor é um sujeito perverso, pois possui este comportamento 

como  regra  de  vida.  Segundo  Guedes  (2003,  p.57)  “na  realidade,  a 

perversidade  implica estratégia de utilização e depois de destruição do 

outro, sem a menor culpa”. 

Um dos principais objetivos do assediador é de livrar‐se da vítima e 

fazê‐la desistir do emprego. 

O assediador, que também pode ser qualquer pessoa, sempre será dotado de comportamento com características de narcisismo ou perversidade, e considerarão sempre as outras pessoas como se inimigos fossem, vivendo numa interminável competição, na qual terá de sair vencedor, não importando os métodos que utilize.

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A estudiosa Hirigoyen (2002) traça o perfil esclarecedor do agressor 

narcisista,  dependente  dos  outros  para  viver,  uma  vez  que  sente‐se 

impotente diante da solidão. O perfil narcisista é movido pela inveja e seu 

objetivo é roubar a vida de suas vítimas. Alimenta‐se da energia dos que 

se  vêem  seduzidos  pelo  seu  charme,  além  de  sentir  profunda  inveja 

daqueles  que  parecem  possuir  coisas  que  lhe  faltem  ou  que, 

simplesmente, sabem extrair prazer da vida. São críticos ferinos e sentem 

prazer  em  criticar  os  outros. Assim,  provam‐se  onipotentes,  diante  da 

nulidade dos outros.

Nutre por si próprio um sentimento de grandeza, exagerando sua própria importância. Tem excessiva necessidade de ser admirado e aprovado, é arrogante, egocêntrico, evita qualquer afeto, acha que todas as coisas lhe são devidas.

O agressor critica todos que o cercam, mas não admite ser questionado ou censurado. Está sempre pronto a apontar as falhas. É insensível, não sofre, não tem escrúpulos, explora, e não tem empatia pelos outros. É invejoso e ávido de poder.

Muitas vezes a finalidade do assediador é massacrar alguém mais fraco, cujo medo gera conduta de obediência, não tão somente da vítima, como também daqueles empregados que se encontram ao seu lado no meio de trabalho.

Nota‐se que, por esse perfil, o narcisista continua sendo o espelho, 

ou  seja,  todos  devem  seguir  seu  comportamento,  suas  atitudes,  pois 

precisam saber que ele é o melhor.

Ainda pode‐se observar que, quando acontece algo de errado, esse 

agressor atribuirá a responsabilidade aos outros, não interessando quem, 

desde  que  continue  sendo  o  melhor,  na  visão  de  seus  superiores 

hierárquicos. 

Euler Sinoir (2004, p. 6) afirma que normalmente 

“  (...)  o  agressor  é  uma  pessoa  que  está 

aparentemente muito  satisfeita  com  ela mesma  e 

raramente  se  questiona  sobre  suas  atitudes. 

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Enquanto  não  for  descoberta  sua  forma  de  agir, 

continuará perseguindo seus objetivos.” 

O  mesmo  autor  enfatiza  que  não  existem  diferenciações  no 

comportamento do agressor, mas sim uma mudança de comportamento 

dentro de cada descrição. Uns agem com calma analisando friamente o 

terreno em que pisam, dosando cada gesto; outros são mais histéricos, 

mais  senhores  de  si,  agindo  sem  si  preocuparem  com  que  os  demais 

pensam, pois têm a certeza de que estão certos e nada vai demovê‐los 

dessa idéia. 

Cada  qual  tem  uma  forma  própria  de  agir, mas  o  objetivo  será 

sempre o mesmo, qual seja, humilhar, destruir e sugar a vítima, levando‐

a a tomar atitudes que afetam a sua saúde física e mental, desencadeando 

no  pedido  de  demissão  ou,  até mesmo,  no  extremo  da  tentativa  de 

suicídio. 

Guedes (2003, p.59) leciona que “os verdadeiros perversos, muitas 

vezes,  passam  ao  largo  das  características  elencadas  pelos  estudiosos, 

porque são indivíduos que fogem a qualquer esquematização.“ 

É certo que a pessoa que assedia a outra é insegura e está demonstrando que é incompetente.

Vale observar também que existem casos específicos de pessoas paranóicas, que gostam de se fazer de vítimas, não aceitam a menor crítica e facilmente se sentem rejeitadas. São pessoas que têm problemas de relacionamento com os que os cercam e normalmente não assumem suas culpas. Essas são potencialmente agressoras e não vítimas. O fato de existirem esses paranóicos não deve encobrir a existência de vítimas reais de assédio moral.

Cabe exemplificar algumas atitudes tomadas pelo assediador para 

com a vítima: impedir de se expressar e não explicar o porquê; fragilizar, 

ridicularizar,  inferiorizar,  menosprezar  em  frente  aos  pares, 

responsabilizar  publicamente,  podendo  os  comentários  de  sua 

incapacidade  invadir,  inclusive,  o  espaço  familiar;  desestabilizar 

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emocional  e  profissionalmente. A  vítima  gradativamente  vai  perdendo 

simultaneamente sua autoconfiança e o interesse pelo trabalho.

No momento oportuno, serão analisadas as conseqüências jurídicas do ato que pratica o assediador, ou seja, aquela conduta capaz de ensejar uma responsabilidade civil para com a vítima.

Ademais,  restringe‐se  por  ora,  a  mencionar  as  atitudes  mais 

freqüentes tomada pelo assediador contra a vítima do assédio moral.

2.4 Assédio Moral como Dano Pessoal O assédio moral ataca os direitos essenciais da pessoa.

Nesse aspecto, o dano moral e o dano pessoal possuem estreita relação, de acordo com a doutrina do professor Vieira de Oliveira, “se entendermos, pois, que o dano moral tem a mesma compreensão que o dano pessoal, isto é, que ele se verifica pela lesão à integridade física, psíquica, intelectual, ética e social da pessoa humana, ambos se identificam.” (2000, p.19)

Observe o que Guedes menciona: "no terror psicológico são precisamente os direitos essenciais da pessoa, aqueles que compõe a medula da personalidade e que resultam da entrada do ser humano no mundo jurídico, que são atacados". (2003,p.113)

Desta forma, o dano sofrido pela vítima do assédio moral é pessoal, porquanto são atacados tanto atributos psíquicos que se compõe de direitos à liberdade, à intimidade, à integridade psíquica e ao segredo, quanto os direitos morais propriamente ditos, formados pelo direito à identidade, à honra, ao respeito, à dignidade, ao decoro pessoal e às criações intelectuais.

Interessante observar que o termo tecnicamente correto, porque melhor exprime o conceito jurídico do instituto, é dano pessoal ou dano à personalidade, tomando o termo pessoa em toda sua ampla dimensão, compreendendo a integridade psicofísica, a intelectual, a afetiva, a moral e a social.

O assédio moral está inserido em uma espécie de dano moral e, por conseqüência, um dano pessoal, pois tal fenômeno pode transgredir diferentes faculdades da pessoa humana, seja moral, intelectual ou social.

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O dano pessoal atinge a pessoa humana enquanto ser portador de 

uma  dignidade,  como  preceitua  o  artigo  1º,  inciso  III,  da  Constituição 

Federal. Sendo assim, encontra‐se resguardado o princípio do artigo 5°, X, 

da Constituição Federal:

Art.  º  ‐  Todos  são  iguais  perante  a  lei,  sem 

distinção  de  qualquer  natureza,  garantindo‐se  aos 

brasileiros  e  aos  estrangeiros  residentes  no  País  a 

inviolabilidade  do  direito  à  vida,  à  liberdade,  à 

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos 

seguintes: (...) 

X ‐ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a 

honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito 

a  indenização  pelo  dano  material  ou  moral 

decorrente  de  sua  violação;  (PINTO;  WINDT; 

CÉSPEDES, 2006, p.7) 

O dano moral “consiste no prejuízo ou lesão de direitos, cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro” (PAMPLONA FILHO, 2002, p.52), como é caso dos direitos da personalidade, a saber, o direito à vida, à integridade física, à integridade psíquica e à integridade moral, como a honra, imagem e identidade.

Desta forma, como foi exposto anteriormente, o dano moral provindo do mobbing, caracteriza-se como um dano pessoal, podendo gerar para as vítimas o justo ressarcimento que lhe são devidos, com base no artigo 5º, inciso X, da Carta Magna.

CAPÍTULO III

RESPONSABILIDADE CIVIL DA CONDUTA

3.1 Conceito

A tarefa de definir objetivamente a responsabilidade civil não é fácil, isso porque o tema possui natureza interdisciplinar, ou seja, refere-se a todos os Direitos.

Sabe-se que a vida em sociedade exige que os indivíduos respondam por seus atos, atitudes e reações ou por atos de

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terceiros a que possam estar ligados moralmente como seus auxiliares ou prepostos.

Assim, todo indivíduo tem o dever de não praticar atos lesivos, danosos e prejudiciais à outra pessoa, dos quais resultem ou possam resultar-lhe prejuízos.

É de suma relevância o estudo da teoria da responsabilidade no âmbito civil frente à conduta do assediador moral, pois, sabe-se que a principal conseqüência é o assédio sofrido.

No campo da responsabilidade civil encontra-se a indagação sobre o dano experimentado pela vítima deve ou não ser reparado, por quem o causou, em que condições e de que maneira deve ser estimado ou ressarcido.

Stoco (1999, p.62) afirma que a responsabilidade civil “envolve, antes de tudo, o dano, o prejuízo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação do patrimônio de alguém”. Prossegue o autor, mencionando que sem a ocorrência do dano, não há responsabilidade.

Em regra, o objetivo desta teoria é de recolocar o lesado na situação anterior ao fato que ocasionou o dano, em cumprimento ao princípio da restitutio in integrum.

Cumpre lembrar que o termo responsabilidade tem sua origem no latino respondere, que significa a obrigação de alguém em assumir com as conseqüências jurídicas de sua atividade. O Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (1995, p.679) define no seguinte verbete:

RESPONSABILIDADE. S.f. (Lat., de respondere, na acep. de assegurar, afiançar.) Dir. Obr. Obrigação, por parte de alguém de responder por alguma coisa resultante de negócio jurídico ou de fato ilícito.

Para que surja a obrigação de indenizar, faz-se necessária à existência de determinados fatores, denominados pressupostos ou elementos da responsabilidade civil.

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Há grande importância da teoria citada com relação ao assédio moral, pois para a reparação do dano é necessário que ela seja comprovada. Observe a jurisprudência abaixo, que revela a importância da existência da responsabilidade civil na prática do psicoterror, para a configuração do dano moral:

Responsabilidade Civil - Indenização Por Danos Morais - Ofensa A Direitos De Personalidade. Não havendo nos autos comprovação de que a atitude da empresa tenha agredido direitos de personalidade do trabalhador, com honra, dignidade, boa fama, etc., não resta caracterizado o assédio moral, não havendo como subsistir pedido de indenização por danos morais. (TRT 20ª Região, 2006).

Apesar de ser bastante difícil utilizar um critério taxativo para a caracterização de tais pressupostos, necessários à configuração da responsabilidade civil, uma vez que as conclusões dos doutrinadores são bastante divergentes a respeito desse tema, conclui-se que os requisitos fundamentais são, a conduta do agente, a culpa deste, o dano sofrido, que pode ser material ou moral e a relação de causalidade.

3.2 Requisitos Fundamentais

3.2.1 Ação ou omissão do agente

Não restam dúvidas de que o elemento primário de todo ilícito é uma conduta humana e voluntária no mundo exterior.

A responsabilidade civil é gerada a partir de uma conduta contrária ao ordenamento jurídico vigente. Esta conduta pode ser através de uma ação ou de uma omissão.

Por isso, o ato humano pode ser, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado.

A indenização pode derivar de uma ação ou omissão individual do agente, sempre que, agindo ou se omitindo, infringe,

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um dever contratual, legal ou até mesmo social, gerando o direito à indenização.

Importante destacar que para Pamplona Filho (2002, p.27) é preciso que haja o ato comissivo ou omissivo capaz de gerar o dano:

Para que alguém seja responsabilizado civilmente por um dano, é preciso que algum ato tenha sido praticado ou deixado de praticar, seja pelo próprio agente ou por terceiro de que ele seja responsável. Essa conduta (comissiva ou omissiva) deve ser – em regra genérica cuja exceção dependerá sempre de previsão normativa explícita – um ato ilícito do próprio responsável ou de um terceiro, sob sua guarda ou fiscalização (...).

Neste diapasão, pode-se caracterizar o terror psicológico como uma conduta comissiva repetitiva, prolongada e abusiva, que expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica.

Com relação ao ato omissivo, será observado mais detalhadamente adiante, que pode haver casos em que a empresa responda pelos atos de seus empregados ou prepostos, quando age omissivamente, diante da prática no ambiente laboral do assédio moral.

Demonstrados os malefícios empregados às vítimas do assédio moral, bem como os danos de natureza pessoal (moral), o assediado poderá buscar à devida reparação no âmbito civil, cabendo questionar quem será compelido a reparar os prejuízos sofridos, visto haver empregado e empregador sujeitos e vítimas do assédio moral.

Entende-se que preliminarmente para a reparação, deve buscar a identificação dos sujeitos, ou de quem parte a agressão, pois, foi analisado que a ação comissiva ou omissiva é um pressuposto fundamental para responsabilizar civilmente.

3.2.2 Culpa

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No nosso ordenamento jurídico vigora a regra geral da culpa como fundamento da responsabilidade civil, apesar de existirem alguns casos que não se faz necessário a comprovação da culpa.

De modo geral, o dever ressarcitório pela prática de atos ilícitos resulta da culpa, ou seja, da reprovabilidade ou censurabilidade da conduta do agente.

O art. 159 do Código Civil (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006) estabelece o ato ilícito como fonte da obrigação de indenizar os danos causados à vítima. Como se vê, é de ordem pública, o princípio que obriga o autor do ato ilícito a se responsabilizar pelo prejuízo ou dano que causou.

A culpa está caracterizada no Código Civil em seu artigo 186 (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.177), in verbis: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Entende Stoco (1999, p.66) que a culpa, de forma genérica, “é um fundo animador do ato ilícito, da injúria, ofensa ou má conduta imputável.”

O ato ilícito é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola direito subjetivo individual, causando prejuízo à outrem, originando o dever de reparar tal lesão.

A culpa pode ser lato sensu ou strito sensu. A primeira acontece quando existe uma intenção deliberada de ofender o direito, ou de ocasionar prejuízo a outrem, havendo o pleno conhecimento do mal e direto propósito de o praticar. Já a segunda, só existe quando não houve um intento deliberado, proposital, mas o prejuízo veio a surgir por negligência ou imprudência (STOCO, 1999).

Após essas breves ponderações, pode-se, então, chegar-se a uma definição de culpa.

A culpa caracteriza-se como violação de um dever jurídico imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, compreendendo o dolo (culpa lato sensu), que é a violação intencional de dever jurídico, e a culpa em

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sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência, ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um dever.

O dolo pode ser direto, quando o agente almejava deliberadamente alcançar o resultado e eventual, quando a vontade do agente não era dirigida à obtenção do resultado, querendo ele algo diverso, porém assumindo o risco de causar com seu comportamento um dano a outrem.

Já a culpa stricto sensu, por sua vez, apresenta-se sobre três modalidades, quais sejam, a imperícia, que é a falta de habilidade ou inaptidão para praticar certo ato; a negligência, a qual consiste na inobservância de normas que nos ordenam agir com atenção, capacidade, solicitude e discernimento, e finalmente a imprudência, que é a precipitação ou o ato de proceder sem cautela.

Ao cabo de Rui Stoco (1999), culpa em sentido estrito possui a seguinte classificação:

a) in committendo ou in faciendo, se o agente praticar um ato positivo (imprudência);

b) in omittendo, caso o agente cometa uma abstenção (negligência);

c) in eligendo, a qual advém da má escolha daquele a quem se confia à prática de um ato ou o adimplemento da obrigação (Súmula 341 do STF);

d) in vigilando, que decorre da falta de atenção com o procedimento de outrem, cujo ato ilícito o responsável dever pagar.

3.2.3 Nexo de causalidade

Para existir a obrigação de indenizar, faz-se necessário que o prejuízo suportado pela vítima (dano) advenha da ação ou omissão do ofensor, que existindo entre ambos uma perfeita relação de causa e efeito. Não havendo tal relação, inexiste a obrigação de indenizar.

Assim, não basta que o agente haja procedido contra o ordenamento jurídico, ou seja, não se define a responsabilidade pelo fato de ter cometido um erro de conduta, mas é necessária uma relação de causalidade entre a injuricidade da ação e o mal cometido.

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Portanto, o vínculo entre o prejuízo e o ato ilícito designa-se nexo causal, de modo que o fato lesivo deverá ser oriundo da ação, diretamente ou como sua conseqüência previsível. Tal nexo representa, portanto, uma relação necessária entre o evento danoso e a ação que o produziu, de modo que essa é tida como sua causa e aquele como seu efeito.

Percebe-se que a questão do nexo causal é uma quaestio facti e não quaestio iuris. Importante destacar que deve se estabelecer uma relação de causalidade entre a injuricidade e o mal causado.

É imprescindível provar a existência do elo de causalidade entre o ato de assediar moralmente o empregado ou empregador e o dano sofrido, uma vez que se trata de requisito fundamental para a responsabilização civil.

3.2.4 Dano

Constitui-se o dano no abalo sofrido pela vítima, o qual pode ocasionar-lhe um prejuízo de ordem econômica, consistindo no dano patrimonial, ou pode acarretar-lhe repercussão apenas de ordem psíquica, consubstanciando-se, então, no dano moral.

Não se pode cogitar obrigação de indenizar sem a existência de um dano, já que a admissão de tal idéia ensejaria um enriquecimento sem causa àquele que receberia a indenização.

Com relação ao assédio moral também não é diferente, pois, para a vítima responsabilizar o assediador deve provar a existência do dano, que é na verdade o próprio assédio sofrido. Veja-se abaixo, uma ementa do acórdão proferido pela segunda Turma, do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, em que o empregado provou a existência do dano sofrido em conseqüência do assédio moral:

DANO MORAL  ‐ VENDEDOR QUE NÃO ATINGE 

METAS  ‐  SUBMISSÃO  A  SITUAÇÃO  VEXATÓRIA NO 

AMBIENTE  DE  TRABALHO.  Demonstrando  a  prova 

testemunhal que o empregado ‐ vendedor ‐ quando 

não  atingia  as  impostas  metas  de  venda,  era 

obrigado  a  usar  um  chapéu  cônico,  contendo  a 

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expressão  "burro",  durante  reuniões,  na  frente  de 

todos  ‐  vendedores,  gerente,  supervisores  ‐ 

oportunidade em que era alvo de risadas e chacotas, 

indubitáveis  o  vexame  e  a  humilhação,  com 

conotação  punitiva.  O  aborrecimento,  por  certo, 

atinge a saúde psicológica do empregado e, estando 

sujeito  a  tal  ridículo  e  aflição,  por  óbvio  estava 

comprometido  em  seu  bem  estar  emocional.  Tal 

procedimento  afronta  diretamente  a  honra  e  a 

dignidade da pessoa, bens resguardados pela Carta 

Maior. Iniciativas absurdas e inexplicáveis como esta 

têm  que  ser  combatidas  com  veemência, 

condenando  o  empregador  ao  pagamento  de 

indenização por dano moral. (TRT 9ª Região, 2002).

Assim, cabe à vítima, em regra, provar que sofreu um dano. Isso porque sem prova do dano, ninguém pode ser responsabilizado civilmente.

Com relação à prova de existência do assédio moral, destaca-se a observação feita por Barros (2006), mencionando que incumbe à vítima apresentar indícios que levem a uma razoável suspeita, aparência ou presunção da figura em exame, e o demandado assume o ônus de demonstrar que sua conduta foi razoável, isto é, não atentou contra direito fundamental.

É imperioso destacar, para um melhor entendimento da matéria, quais são os requisitos à configuração do dano, segundo a doutrina de Pamplona Filho (2002), a saber:

a) efetividade ou certeza do dano; b) subsistência ou atualidade do dano no momento da reclamação do lesado; c) pessoalidade do dano; d) causalidade entre o dano e o fato; e) legitimidade do autor para pleitear a indenização; f) ausência de causas excludentes de responsabilidade.

Com relação aos requisitos do dano face à prática do assédio moral, veja-se a ementa de um acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região:

Dano Moral. Requisitos. Para o deferimento de indenização por dano moral, mister, se faz

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estarem presentes os seguintes requisitos: comprovação da materialidade do ato do empregador, prejuízo manifesto por parte do empregado e nexo de causalidade entre o ato e o prejuízo sofrido. In casu, restando sobejamente provada a prática do ato lesionador - assédio moral, deve ser mantida a sentença que deferiu o pleito de dano moral. (TRT 20ª Região, 2006)

Sendo assim, para que haja a reparação do dano, como o produto da responsabilidade civil, ou seja, uma sanção imposta ao responsável pelo prejuízo em favor do lesado, tem-se que, em regra, os danos devem ser ressarcíveis, todavia para que ele seja efetivamente indenizável faz-se necessário à concorrência de alguns dos requisitos anteriormente mencionados.

3.3 Tipos de Responsabilidades

3.3.1 Objetiva

A existência fática do dano, sem indagar a existência de culpa, como 

acontece  na  teoria  subjetiva,  é  a  característica  da  responsabilidade 

objetiva. Ou seja, não é necessária a presença da culpa a estabelecer o 

nexo causal entre a conduta do agente e o prejuízo por ele causado. O 

agente responsável por um ato  lesivo, que colocar em risco algum bem 

jurídico de outrem, através desse ato, será, pois, considerado o elemento 

gerador  de  um  dever  de  indenizar  o  dano  que,  porventura,  causar  ao 

lesado.

Torna‐se necessário, apenas, um nexo causal entre o ato do agente 

e o dano causado ao lesado. Em essência essa teoria está vinculada à idéia 

do  risco  –  quem  provoca  uma  lesão  ao  valor  alheio,  responsável  pelo 

ressarcimento do  lesado. Essa obrigação pela recomposição do prejuízo 

independerá  da  verificação  –  comprovação  –  de  culpa  na  conduta  do 

agente lesante. 

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 A culpa é presumida pela legislação ou simplesmente é dispensada 

a sua comprovação. É suficiente ter ocorrido o dano e sua associação à 

conduta que o causou, para haver a responsabilidade. 

Com o intuito de melhor esclarecimento, deve-se citar o ensinamento de Rodrigues (2002, p.10):

Na responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois, desde que exista relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente. (...)

A teoria do risco é a da responsabilidade objetiva. Segundo essa teoria, aquele que, através de sua atividade, cria risco de dano para terceiros deve ser obrigado a repará-lo, ainda que sua atividade e seu comportamento sejam isentos de culpa. Examina-se a situação, e, se for verificada, objetivamente, a relação de causa e efeito entre o comportamento do agente e o dano experimentado pela vítima, esta tem direito de ser indenizada por aquele.

Portanto,  a  responsabilidade  objetiva  se  caracteriza  por  ser 

independente da presença de culpa, no agir de quem ocasionou a lesão, 

mas prescinde da presença dos demais elementos da  responsabilidade 

civil.

Tem  que  haver  nexo  causal  adequado  entre  a  atividade  do  que 

causou o dano e a lesão. Essa teoria é conhecida como responsabilidade 

sem  culpa.  No  nosso  Código  Civil,  a  excepcionalidade  da  presença  da 

teoria objetiva é evidente. 

 Como exemplo  típico, aparece a  responsabilidade que  cabe aos 

empregadores  ou  comitentes  em  caso  de  atos  praticados  por  seus 

empregados e prepostos, que está expressa no Código Civil, em seu artigo 

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932 (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p. 226): “São também responsáveis 

pela  reparação  civil:  (...)  III  –  o  empregador  ou  comitente,  por  seus 

empregados,  serviçais  e  prepostos,  no  exercício  do  trabalho  que  lhes 

competir, ou por razão dele.” 

Por  isso,  a  responsabilidade  objetiva  também  é  denominada 

responsabilidade  pelo  risco  (teoria  do  risco),  isso  porque  teria  o  seu 

suporte em um risco específico, de perigo geral, produzido pela atividade 

do homem, de tal sorte que incidiriam em seu campo de ação tão somente 

os  riscos  imprevisíveis ou excepcionais. Na  responsabilidade objetiva o 

fundamento da indenização decorreria da existência de um evento lesivo 

ligado ao agente por um nexo de causalidade. 

Para minimizar questões mais de ordem bizantina do que técnico‐

jurídica,  a  doutrina  passou  a  empregar  o  termo  responsabilidade  sem 

culpa  para  abarcar  todas  as  hipóteses  que  escapassem  da  órbita  da 

responsabilidade subjetiva. 

3.3.2 Subjetiva

Nesta teoria, a responsabilidade civil está embasada, em todos os 

casos, na presença certa de culpa por parte do agente do ato que causou 

o  dano.  Chama‐se  de  subjetiva,  em  virtude  de  estar  caracterizado  na 

pessoa um aspecto volitivo interno, ou, pelo menos, revelar‐se, mesmo de 

uma maneira tênue, uma conduta antijurídica.

O agente do prejuízo quer o resultado danoso ou assume o risco de 

que ele ocorra, ou ainda atua com imprudência, negligência ou imperícia. 

Ocorreria, no primeiro caso, dolo e no segundo caso, culpa. A legislação 

admite‐os, na prática, como equivalentes, com o nome comum de culpa. 

De acordo com Pamplona Filho (2002, p.31) a responsabilidade civil 

subjetiva  “é  a  decorrente  de  dano  causado  diretamente  pela  pessoa 

obrigada a reparar, em função de ato doloso ou culposo.” 

A conduta do agente responsável pelo dano estaria sempre viciada 

pela culpa. Está, assim, esse agente obrigado a ressarcir o prejuízo quando 

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seus atos ou fatos sejam lesivos a direito ou interesse alheio, desde que 

possa ser considerado culposo o seu modo de agir. 

A teoria subjetiva fundamenta a responsabilidade na culpa provada 

presumida. Por esse motivo, a princípio, a responsabilidade civil surgirá da 

comprovação de culpa, incidindo em todos aqueles que, de um ou outro 

modo, estejam ligados ao prejuízo causado. 

Segundo  esta  teoria,  para  que  haja  a  obrigação  de  indenizar  é 

necessário que seja demonstrada a culpa do suposto violador do direito 

da vítima, sendo desta última a incumbência de provar tal situação para 

que tenha direito à indenização. 

A  essência  da  responsabilidade  subjetiva  vai  assentar, 

fundamentalmente, na pesquisa ou indagação de como o comportamento 

contribui  para  o  prejuízo  sofrido  pela  vítima.  Assim  procedendo,  não 

considera apto a gerar o efeito ressarcitório um fato humano qualquer. 

Somente será gerador daquele efeito uma determinada conduta, que a 

ordem jurídica reveste de certos requisitos ou de certas características. 

Desta  forma,  a  teoria  da  responsabilidade  subjetiva  erige  em 

pressuposto  da  obrigação  de  indenizar,  ou  de  reparar  o  dano,  o 

comportamento culposo do agente, abrangendo no seu contexto a culpa 

propriamente dita e o dolo do agente. 

A  culpa  em  um  dado  episódio  danoso  pode  ser  do  lesante,  do 

lesado,  ou  de  ambos.  Se  houve  uma  parcela  de  culpa  de  cada  um  na 

ocorrência  do  prejuízo,  pela  teoria  subjetiva  aplicada  ao  caso,  será 

atribuído proporcionalmente o ônus da recomposição, na medida exata 

da contribuição de cada um no resultado final danoso. 

3.3.3 Contratual

A responsabilidade contratual se origina da inexecução contratual. Pode ser de um negócio jurídico bilateral ou unilateral. Resulta, portanto, de ilícito contratual, ou seja, de falta de adimplemento ou da mora no cumprimento de qualquer obrigação. É uma infração a um dever especial estabelecido pela vontade dos

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contratantes, por isso decorre de relação obrigacional preexistente e pressupõe capacidade para contratar.

Com efeito, para caracterizar a responsabilidade civil contratual, norteada pelo princípio da pacta sunt servanda, faz-se mister que a vítima e o autor do dano já tenham se aproximado anteriormente e se vinculado para o cumprimento de uma ou mais prestações, sendo a culpa contratual a violação de um dever de adimplir, que constitui justamente o objeto do negócio jurídico.

Assim, a culpa é presumida, em regra, invertendo-se o ônus da prova, cabendo a vítima provar, apenas que a obrigação contratual foi descumprida, restando a outra parte o onus probandi, por exemplo, de que não agiu com culpa ou que ocorreu alguma causa excludente.

Cabe frisar que, como foi mencionado no Capítulo II desta monografia, a relação de emprego advém de um contrato de trabalho, daí a relevância de explicar o conceito desse tipo de responsabilidade.

3.3.4 Extracontratual

Esta responsabilidade também chamada de aquiliana, se resulta do inadimplemento normativo, ou seja, da prática de um ato ilícito por pessoa capaz ou incapaz (art. 180, do Código Civil), da violação de um dever fundado em algum princípio geral de direito, visto que não há vínculo anterior entre as partes, por não estarem ligadas por uma relação obrigacional.

A fonte desta inobservância é a lei, basta a lesão a um direito sem que entre o ofensor e o ofendido preexista qualquer relação jurídica. Aqui, ao contrário da contratual, caberá à vítima provar a culpa do agente.

Entretanto, para que alguém tenha o dever de indenizar outro, alguns pressupostos têm que estar presentes, quais sejam: ação ou omissão do agente; relação de causalidade entre a ação do agente e o dano causado; existência de dano moral ou material, pois a responsabilidade civil baseia-se no prejuízo para que haja uma indenização; e, dolo ou culpa.

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Ensina Pamplona Filho (2002, p. 35) que “na culpa aquiliana, viola-se um dever necessariamente negativo, ou seja, a obrigação de não causar dano a ninguém.”

Tais considerações sobre os tipos de responsabilidade civil serão de grande valia para o desenvolvimento do presente capítulo, uma vez que a hipótese do dano decorrente da relação de emprego, como em qualquer outro tipo de relação jurídica, podem ocorrer de danos decorrentes de violações contratuais ou de deveres gerais de condutas.

3.4 Responsabilidade Civil do Empregado/Empregador

Foram demonstrados os malefícios empregados às vítimas do assédio moral, devendo haver a devida reparação no âmbito civil, cabendo o questionamento sobre quem será compelido a reparar os prejuízos sofridos, visto haver empregado e empregador sujeitos e vítimas do assédio moral.

Preliminarmente, cabe extrair da agressão os elementos principais para buscar a reparação. Primeiro, a identificação dos sujeitos, ou de quem parte a agressão e a quem é dirigida. Trazendo os sujeitos elencados na segunda parte deste trabalho, verifica-se que a agressão pode partir de: empregado, superior hierárquico ou colega de mesma linha hierárquica. Podendo ser dirigida, da mesma forma a empregado, colega ou superior hierárquico. Após, verifica-se os outros elementos pré-requisitos ensejadores da responsabilidade civil, quais sejam o dano, a existência de culpa, dolo ou risco, e o nexo de causalidade.

3.4.1 Empregado que assedia superior hierárquico ou empregador

Como já foi mencionado, esse caso é bem mais difícil de acontecer, porém não impossível, caracterizando-se pelo ataque do empregado ou empregados ao superior hierárquico ou o próprio empregador, também denominado assédio vertical descendente. De acordo com a legislação trabalhista, a empresa ao identificar a agressão, deve dispensar o empregado naquelas hipóteses que incidam sobre a justa causa, elencados no artigo 482 da CLT (CARRION, 2006, p. 379), in verbis:

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Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

(...) b) incontinência de conduta ou mau procedimento;(...)

h) ato de indisciplina ou de insubordinação; (...)

k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;(...) (grifo nosso).

Dentre as hipóteses do referido artigo, notam-se que podem ser interpretadas como assédio moral do empregado: o mau procedimento; a indisciplina e o ato lesivo da honra praticado contra o empregador e superiores hierárquicos.

De uma maneira geral, considera-se mau procedimento o comportamento incorreto do empregado, através da prática de atos que firam a discrição pessoal, as regras do bem viver, o respeito, o decoro e a paz; atos de impolidez, de grosseria, da falta de compostura, que ofendem a dignidade.

Neste aspecto, cumpre mencionar a jurisprudência acerca da hipótese de justa causa por mau procedimento:

É motivo bastante para a dispensa por justa causa a iniciativa do empregado de criticar o seu superior hierárquico de forma contundente e com uso de expressões desairosas e deselegantes, demonstrando menosprezo à sua hierarquia que deve operar numa empresa organizada. (TRT 15ª Região, 2006)

Indisciplina, segundo o mestre Valentin Carrion (2006, p. 383), é o "descumprimento de ordens gerais do empregador dirigidas impessoalmente ao quadro de empregados.”

Enquanto que o ato lesivo contra a honra do empregador e superiores hierárquicos, Almeida (2003, p.233) ensina que:

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As ofensas podem ser dirigidas ao empregador ou a superiores hierárquicos, assacando contra eles fatos extremamente ofensivos a sua dignidade pessoal e que, sabidamente, não são verdadeiros. Entendemos que, sobretudo em relação ao empregador, irrelevante que tais ofensas tenham sido proferidas fora do local de serviço; pois se alcançada repercussão na comunidade, caracterizada está a falta nominada.

Assim, também cabe a hipótese de demissão por justa causa “quando o empregado atente contra honra e boa fama, ou seja, calúnia, injúria ou difamação no local da empresa ou onde esta exerce sua atividade.” (CARRION, 2006, p.384).

Se a agressão não for alguma daquelas elencadas nas hipóteses, e também não se enquadrar em mau procedimento ou ato lesivo à honra, pode o empregador promover a dispensa sem justa causa, indenizando o empregado, suposto assediador.

Cumpre salientar, que após este trâmite, pode o empregador promover ação com vistas a responsabilizar subjetivamente o empregado-agressor, devendo ser comprovado, pelo empregador ou superior hierárquico, a culpa, a ação ou omissão, o dano e o nexo causal.

No caso de ser superior hierárquico o assediado, a alternativa do remanejamento da vítima para outro setor de trabalho é resolução paliativa para o problema, pois tal alternativa não tem o condão de coibir futuras agressões por parte do empregado agressor ou empregados agressores.

3.4.2 Empregado que assedia empregado

O assédio moral horizontal é um dos casos mais comuns e consiste quando o agressor é o próprio colega de trabalho na mesma linha hierárquica que o agredido. Acontece freqüentemente na concorrência por cargos melhores, e ainda mais em empresas com uma gestão de competição interna voltada especificamente ao lucro sem limites.

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O empregado que assedia moralmente outro colega no ambiente de trabalho, responderá subjetivamente, ou seja, para garantir uma reparação do dano sofrido o assediado deve-se provar a ação ou omissão, a culpa, o dano e o nexo causal.

Apesar do comportamento de todo e qualquer empregado exigir um dever de conduta, o elemento anímico da culpa deverá ser comprovado, evitando abusos que importariam na transferência do risco da atividade econômica (teoria objetiva) para o empregado.

Há que se verificar se o agredido busca uma solução no decorrer do contrato de trabalho, seja alertando superiores sobre as agressões sofridas, seja buscando ajuda de médico da empresa, ambas atitudes com a intenção de solucionar o problema. Surtindo efeitos, e a empresa colaborar com a vítima no sentido de dispensar o agressor ou remanejá-lo, cabe à vítima buscar a indenização que entender possível junto à Justiça do Trabalho contra o agressor.

E ainda, mesmo que a empresa tenha ajudado a vítima, poderá incluí-la no pólo passivo da demanda, por força da teoria objetiva imposta pelo Código Civil, art. 932, inciso III (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006), o qual prevê que são também responsáveis pela reparação civil, o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir.

Verificada a culpa in vigilando e in eligendo por parte do empregador, já que houve desídia deste em cuidar dos atos de seus prepostos, bem como elegeu mal o empregado que assediou, torna-se responsável objetivamente pelo ato de seu preposto.

Se a empresa não colaborar com o empregado agredido, este poderá rescindir o contrato de trabalho e pleitear uma indenização pelo assédio moral dos agressores e da empresa, por força das alíneas "c" e/ou "e", do artigo 483 da CLT (2006, p. 385):

Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: (...)

c) correr perigo manifesto de mal considerável;(...)

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e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família ato lesivo da honra e boa fama; (...)

O risco de mal considerável, como ensina a doutrina, é aquele mal originado da inércia da empresa em prover aos empregados um ambiente de trabalho saudável, cumprindo com normas de segurança e medicina do trabalho.

A inércia da empresa na busca de resoluções para o conflito e na melhora constante do ambiente do trabalho implicará em um nível de culpa na relação contratual. Quanto aos atos lesivos da honra e da boa fama, estes também compreendem a calúnia, difamação ou a injúria.

Com relação ao empregado assediador pode aplicar a demissão por justa causa, com base neste artigo da Consolidação das Leis do Trabalho (2006 p.379).

Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

b) incontinência de conduta ou mau procedimento;(...)

h) ato de indisciplina ou de insubordinação;

i) abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boa fama

praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; (...) (grifo nosso).

Ressalta-se que poderá perseguir a indenização durante o contrato de trabalho, mas, na realidade, isso é quase humanamente impossível. Hirigoyen (2002, p.345) se posiciona da seguinte forma:

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Quando as ocorrências de assédio moral provêm de colega ou de pertinentes à hierarquia, será necessário, se forem graves, processar o autor diretamente, da mesma maneira que o empregador. (...) A responsabilidade do empregador deve ser por ele assumida a partir do momento em que toma ou deveria tomar conhecimento, mas não adota as providências necessárias para coibir tais comportamentos. As empresas são responsáveis por seus empregados, sendo, pois, absolutamente normal que sejam condenadas juridicamente se um de seus empregados adotar um comportamento inadmissível.

Desta maneira, o empregado-assediado pode pleitear perante o empregado assediador e a empresa a indenização devida do dano moral causado.

3.4.3 Superior hierárquico ou empregador que assedia empregado

Deste tipo de assédio moral (vertical descendente), a empresa responde objetivamente por força da nova legislação cível. O preposto não deixa de ser o representante hierárquico da empresa, exprimindo seu poder de chefia.

Por vezes, os responsáveis recebem poder que extrapola e como demonstrado, faz crescer o descontrole das pessoas que exercem a liderança no ambiente do trabalho.

De acordo com o novo ordenamento jurídico, a responsabilidade civil do empregador ou superior hierárquico por ato causado por empregado, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele, deixou de ser uma hipótese de responsabilidade civil subjetiva, com presunção de culpa, para se transformar em uma hipótese legal de responsabilidade civil objetiva.

Cabe destacar que tal entendimento foi ratificado pelo Supremo Tribunal Federal de acordo com a Súmula 341(2006): “É

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presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do seu em pregado ou preposto.”

Nessa coerência de idéias, o superior que dolosamente assedia trabalhador, incorre objetivamente com a intenção de lesar, bem como a empresa que coaduna com atos que tendem a incorrer em lesões, responde objetivamente ao caso específico do artigo 932, III, do novo Código Civil (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.226), o qual reza que são "também responsáveis pela reparação civil: (...) o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele".

Há responsabilidade desde que o trabalho tenha propiciado ao preposto a oportunidade de causar o dano. Também há responsabilidade do patrão mesmo no caso de abuso das funções por parte do empregado, desde que os terceiros estejam de boa-fé, ignorando que o preposto tinha ultrapassado os limites das suas atribuições.

Em qualquer hipótese, porém, para que se subsista a responsabilidade do patrão, por ato culposo do empregado, preciso será que este se encontre a serviço, no exercício do trabalho, ou por ocasião dele. Sem demonstração dessa circunstância, não é lícito concluir pela responsabilidade do preponente. Entretanto, para a caracterização dessa responsabilidade, pouco importa que o ato lesivo não esteja dentro das funções do preposto. Basta que essas funções facilitem sua prática.

Assim, ambos são responsáveis, sendo coerente que o agredido pleiteie o ressarcimento somente da empresa, por serem os atos do agressor tirano, aqueles representados pela política empresarial, podendo reaver o que pagar, por força do que reza o artigo 934 do Código Civil (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.226): “Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.”

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Parece-nos, porém, ser medida de extrema justiça resguardar-se, sempre, a possibilidade da ação regressiva do empregador, pelos atos de seus empregados.

Vale ressaltar, inclusive, que alguns ordenamentos jurídicos, no Direito Comparado, albergam previsões, por exemplo, de responsabilidade patrimonial do empregado assediador, independentemente da responsabilidade patrimonial da empresa.

3.4.4 Superior hierárquico ou empregador juntamente com empregados que assediam outro empregado

É o caso do assédio misto, onde as agressões podem partir do chefe ou superior hierárquico e se alastrar, fazendo com que os colegas da vítima também lhe dirijam agressões. Ou ainda, as agressões partem dos colegas e o chefe é parcial com tal atitude.

Importa, aqui, verificados os sujeitos, observar a inserção da responsabilidade objetiva e subjetiva a ambos os casos. Ao primeiro caso, o qual as agressões partem do chefe ou superior, geralmente acontece, por parte do empregado tomada de posição, ou seja, o grupo toma o partido do chefe.

Cabe analisar o nível de participação dos colegas, até que ponto eles contribuíram para as agressões, pois, responderão subjetivamente pelos seus atos. Não se pode negar, que há aqueles que concordam com o chefe e o auxiliam a pisotear e agredir a vítima. Mas também não se pode olvidar daquelas pessoas que, por estar em grupo, e por medo de represálias ou de perder o emprego, aplicam a tomada de posição, porém sem desferir agressões.

Assim, tem-se que no primeiro caso onde as agressões partem do chefe, para que haja a reparação do dano, aplica-se a teoria objetiva, sem verificação da culpa, enquanto, no segundo caso, onde os empregados agem com cumplicidade aos superiores, incorre na teoria subjetiva.

3.5 Direito à Indenização por Dano Moral

Considerado o texto constitucional, que admite a qualquer pessoa indenização moral, independentemente da indenização material, cabe ao trabalhador reclamar por dano moral em razão das relações de trabalho.

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.8)

A indenização em decorrência do dano moral se fundamenta na restauração da moral. Todavia, resta-nos esclarecer como indenizar pecuniariamente algo que é inviolável, como a dignidade e a honra.

Não restam dúvidas de que cabe perfeitamente a vítima pleitear o seu direito à indenização decorrente da prática do assédio moral, pois este não pode ser caracterizado como um mero dissabor do dia-a-dia.

Para isso, é insofismável que a quantificação do valor que visa a compensar a dor da pessoa, requeira por parte do julgador grande bom-senso e sensibilidade, uma vez que o artigo 944, do Código Civil (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.227) menciona que: “A indenização mede-se pela extensão do dano.” E mais, a sua fixação deve-se pautar na lógica do razoável, a fim de se evitar valores extremos (ínfimos ou vultosos).

Na fixação do valor, o julgador normalmente subordina-se a alguns parâmetros procedimentais, considerando a extensão espiritual do dano devido à prática do psicoterror, a imagem do lesado e a do que lesou, a intenção do autor do fato danoso, tudo isso como meio de ponderar o mais objetivamente possível, direitos

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ligados à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

Confirmando o entendimento de que o assediado tem pleno direito à indenização, impende citar a seguinte ementa:

Danos  Morais  ‐  Assédio  Moral  Configurado  ‐ 

Devida  Indenização Reparatória  ‐ Constitui  assédio 

moral a tortura psicológica atual e continuada a que 

é  submetido  o  empregado,  consubstanciada  no 

terror  de  ordem  pessoal,  moral  e  psicológico, 

praticado  no  âmbito  da  empresa,  podendo  ser 

exercitado pelo  superior hierárquico, por grupo de 

empregados do mesmo nível e pelos  subordinados 

contra  o  chefe,  isto  é,  pode  ocorrer  no  sentido 

vertical, horizontal e ascendente. Tem por objetivo, 

via de regra, tornar insuportável o ambiente laboral, 

obrigando  o  trabalhador  a  tomar  a  iniciativa,  por 

qualquer  meio,  do  desfazimento  do  vínculo 

empregatício.  O  "mobbing"  caracteriza‐se  pela 

prática atual e freqüente de atos de violência contra 

a  pessoa  do  empregado,  dos  quais  participam, 

necessariamente,  o  ofensor,  o  ofendido  e 

espectadores (grupo de empregados), uma vez que 

tem  por  finalidade  promover  a  humilhação,  o 

constrangimento  perante  os  demais  colegas  de 

trabalho.  Marie‐France  Hirigoyen  define  o 

psicoterror  como  sendo  "toda  e  qualquer  conduta 

abusiva,  manifestando‐se,  sobretudo,  por 

comportamentos,  palavras,  atos,  gestos,  escritos, 

que possam trazer dano à personalidade, à dignidade 

ou à  integridade  física ou psíquica de uma pessoa, 

pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente 

de trabalho" (in "assédio moral a violência perversa 

do  cotidiano").  In  casu,  ficaram  comprovados,  à 

saciedade, a humilhação e o constrangimento a que 

era  submetido,  rotineiramente,  o  empregado,  na 

presença dos demais colegas de trabalho, por ato do 

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superior hierárquico, por não ter atingido a meta de 

produção, consubstanciados na atribuição da pecha 

de  "irresponsável",  "incompetente",  "fracassado", 

dentre outros. Cabível, destarte, a  indenização por 

danos  morais.  Recurso  ordinário  improvido,  no 

particular.(TRT 6ª Região, 2005)

Diante da exposição feita acerca do assédio moral, nota-se que este pode gerar perfeitamente um direito de indenização perante o assediador ou empresa, uma vez que ficou claramente demonstrada a conseqüência absolutamente prejudicial à saúde e integridade da vítima.

3.6 Juízo Competente

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, em 08 de dezembro de 2004, e sua posterior publicação no Diário Oficial da União de 31/12/2004, ampliou-se expressivamente a competência material destinada à Justiça do Trabalho. Trata-se, sem dúvida, de alteração que marca um novo momento histórico vivido pela Justiça do Trabalho, momento cuja importância só não supera aquela verificada em 1946, quando de sua integração ao Poder Judiciário.

A Constituição Federal estipulou em seu artigo 114, inciso VI a competência material da Justiça do Trabalho para processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho: "Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (...)VI - as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;” (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2006, p.42):

A Constituição de 1988 erigiu a direito constitucional, o direito à indenização moral, e me parece não haver campo mais fértil para aplicação de tal direito do que o do Trabalho, nem haver outra justiça mais competente para dirimir os conflitos derivados dessa indenização moral do que a própria justiça trabalhista.

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Ratificando o entendimento de que a competência, nos casos de 

indenização por danos morais, decorrente de relação de trabalho, seja da 

Justiça do Trabalho, relevante trazer à baila a seguinte jurisprudência:

Dano Moral e Material – Competência da Justiça do Trabalho – Com o advento da atual Carta Magna, a matéria referente ao dano moral e material está respaldada pelas disposições contidas no artigo 5º, V e X, em particular na Justiça do Trabalho. A argumentação mais freqüente encontrada na doutrina e na jurisprudência pátria é de que, em se tratando de ofensa à moral do empregado ou do empregador, desde que oriunda do contrato de trabalho, é competente esta Justiça Especializada para dirimir tal conflito. Inteligência do art. 114/CF.(TRT 23ª Região, 1999).

A  competência  passa  a  ser  definida,  efetivamente,  com  base  na 

natureza da  relação de direito material e, portanto,  tendo em  conta a 

origem do conflito (ou a causa de pedir próxima), sendo irrelevante, em 

princípio, a natureza da pretensão objeto da ação.

Ademais, a Súmula 736 do STF (2006) na qual afirma que "compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores."

Desta forma, Justiça do Trabalho é competente para julgar as ações de indenização por danos morais decorrentes do assédio moral na relação de emprego.

3.7 Legislação

Na verdade, não existe uma legislação específica sobre o conceito de assédio moral, suas sanções ou penalidades. Todos os embasamentos jurídicos foram de acordo com a jurisprudência Pátria dominante, juntamente com o pensamento majoritário da doutrina.

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Contudo, a preocupação com este fenômeno vem aumentando cada vez mais, e prova disso, é que já está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei Nº 4742/2001 para incluir o assédio moral no Código Penal, caracterizando-o como crime.

Inicialmente esse projeto foi elaborado pelo deputado federal do Estado de Pernambuco Marcus de Jesus (2001), preceituando o seguinte:

Introduz artigo 146-A, no Código Penal Brasileiro - Decreto-lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940 - , dispondo sobre o crime de assédio moral no trabalho. O Congresso Nacional decreta:

Artigo 1º - Art. 1º O Código Penal Brasileiro - Decreto-lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940 - passa a vigorar acrescido de um artigo 146 A, com a seguinte redação:

Assédio Moral no Trabalho

Art. 146 A. Desqualificar, reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico funcional ou laboral.

Pena: Detenção de 3 (três) meses a um ano e multa.

Artigo 2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Foi feita uma análise pela Comissão de Constituição Justiça e de Redação, e com o voto do relator deputado Aldir Cabral (2001) aprovou o projeto de lei, pela constitucionalidade, juridicidade, boa técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação do Projeto de Lei nº 4.742, de 2001, e de seu apenso, Projeto de Lei nº 4.960 de 2001, na forma do substitutivo abaixo transcrito:

SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE LEI Nº 4.742, DE 2001.

Acrescenta o art. 136-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal

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Brasileiro, instituindo o crime de assédio moral no trabalho.

O Congresso Nacional decreta: Artigo 1º - O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de

dezembro de 1940, Código Penal Brasileiro, fica acrescido do art. 136-A, com a seguinte redação:

Art. 136-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.

Pena - detenção de um a dois anos. Artigo 2º - Esta lei entra em vigor na data de

sua publicação. Este projeto foi um grande avanço do Poder Legislativo, diante

das práticas reiteradas do assédio moral, prova disso, são as jurisprudências constantes a respeito do fenômeno.

Recentemente foi aprovada pelo Congresso, a lei do assédio sexual, que busca coibir comportamento que tem estritas relações de semelhança com o crime que pretende-se catalogar (Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001). Essa manifestação do Legislativo demonstra sua disposição inequívoca de coibir atos aos quais, até bem pouco tempo, não era dada a devida importância.

Com relação ao âmbito estadual, o assédio moral também já alcançou sua relevância, demonstrando uma preocupação dos Estados em coibir esta prática, como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Ceará, Espírito Santo, e Pernambuco e Rio Grande do Sul.

No âmbito municipal já existem diversas leis aprovadas contra a prática do assédio moral, observe alguns: Americana – SP, Campinas –SP, Cascavel – PR, Guarulhos –SP, Iracemápolis – SP, Jaboticabal – SP, Natal – RN, São Gabriel do Oeste – MS, São Paulo – SP, Sidrolândia – MS e muitas outras cidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O assédio moral na relação de emprego, apesar de ser um fenômeno social antigo, teve seu reconhecimento recentemente, estando presente na vida dos trabalhadores, ferindo sua integridade física, psíquica e emocional, colocando em perigo sua qualificação e capacitação em seu ambiente de trabalho, fato que tem despertado grande interesse entre estudiosos de diversos campos profissionais e pela própria sociedade, que repugna com veemência essa conduta.

A prática do assédio moral na relação de emprego é derivada de 

uma  conduta  vexatória,  constrangedora  e  reiterada  do  agressor,  por 

motivos diversos,  acarretando  sérios danos  à  saúde  física  e mental da 

vítima.  As  pressões  por  produtividade  e  o  distanciamento  do  superior 

hierárquico para o seu inferior, resultam na falta de comunicação direta, 

desumanizando o ambiente de trabalho, aumentando a competitividade 

e dificultando que o espírito de cooperação e de solidariedade surja entre 

os trabalhadores.

A Constituição Federal de 1988 erigiu a categoria de direito fundamental o princípio da dignidade da pessoa humana. De igual forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos preconiza a dignidade como fundamento de uma sociedade. Contudo, ao praticar o terror psicológico na relação de emprego, o agente fere a dignidade de todo e qualquer empregado. A Consolidação das Leis do Trabalho também preconiza a dignidade do trabalhador em seu artigo 483.

O agressor ataca de forma pontual e freqüente com atitudes hostis, humilhantes e prolongadas objetivando anular a vítima moralmente e torná-la incapacitada para o exercício da sua função. No entanto, esse fenômeno, muitas vezes, é disfarçado e sutil, de forma que sua constatação e percepção tornam-se difíceis, fazendo com que passe a ser notório apenas quando a vítima já adquire doenças psíquico-emocionais ou chegue a um estado depressivo.

O agente assediador, ao contrário do que se possa imaginar, não escolhe vítimas desleixadas, mas exatamente aquelas que se sobressaiam no seu ambiente laboral, sejam por qualidades profissionais ou morais.

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A prática do assédio moral pode ser cometida tanto pelo empregado quanto pelo empregador. Assim, quanto ao sujeito, o terror psicológico classifica-se como vertical descendente, quando o assédio vem do superior hierárquico contra o seu subordinado, vertical ascendente que constitui a forma mais rara, sendo que neste caso é o subordinado quem submete seu superior hierárquico ao sofrimento, horizontal, quando o assédio acontece entre os empregados de mesma linha hierárquica, e por fim, o misto, que ocorre quando o superior hierárquico e empregado praticam assédio contra outro empregado.

Merece destaque que, devido à dificuldade da configuração do assédio moral, deve ser observada com cautela no tocante a sua caracterização jurídica, devendo sempre analisar a gravidade da violência psicológica, o prolongamento no tempo da conduta, a finalidade de ocasionar um dano e que este seja efetivo.

Pode-se asseverar que o assédio moral acarreta um dano pessoal para a vítima. Com isso, ao cometer essa prática insidiosa, não deve o agente ficar impune.

Neste aspecto, existe o instituto da responsabilidade civil capaz de fazer com que o indivíduo assuma a obrigação e as conseqüências jurídicas de sua atividade.

Sabe-se que para responsabilizar civilmente um indivíduo, fazem-se necessários alguns requisitos fundamentais, quais sejam, a ação ou omissão, a culpa, o nexo causal e o dano. A responsabilidade do empregador e do empregado que assediam moralmente é objetiva e subjetiva, respectivamente.

Apurados os elementos caracterizados da responsabilidade civil, gera para a vítima um direito de pleitear em juízo uma correspondente indenização. Apesar da dificuldade em valorar essa reparação, ela não pode ser dispensada, uma vez que possui um caráter compensatório e punitivo, devendo, portanto, ser atribuído um valor que pese ao agressor e assim, venha a prevenir todas as conseqüências nocivas para o ambiente laboral e principalmente, para a vítima.

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Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, a competência, para os casos de indenização por dano moral decorrente da relação de trabalho, passou a ser da Justiça do Trabalho, previsto no artigo 114, inciso VI, da Carta Magna.

Hodiernamente, não existe uma lei federal específica que possa punir o assediador. Mas, a preocupação com este fenômeno já vem sendo bastante discutida em jurisprudências e já foram até mesmo aprovadas algumas leis no âmbito estadual e municipal, com a finalidade de coibir esta prática. Vale ressaltar que a ausência de lei federal, não pode servir de incentivo para a conduta do terror psicológico.

Deveras claro, reconhece-se que o legislador acertadamente já progrediu muito, prova disso é que já foi aprovado um projeto de lei federal objetivando caracterizar o assédio moral como um crime.

Mediante o exposto, indubitavelmente pode-se asseverar que é de fundamental importância à colaboração dos operadores de direito para coibir a prática do assédio moral no país, construindo, pois uma jurisprudência embasada e pacificada na defesa da dignidade da pessoa humana, punindo de maneira exemplar os agressores, bem como aqueles que se mostrarem coniventes com tal comportamento, facilitando ou encorajando a ação dos perversos.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA Brasileira de Letras Jurídicas. Dicionário jurídico. 3. ed. Rio 

de Janeiro: Forense Universitária, 2015. 

ALMEIDA, Amador Paes de. CLT comentada. São Paulo: Saraiva, 2013. 

ASSE,  Vilja  Marques.  Um  fenômeno  chamado 

psicoterrorismo. Revista LTR, São Paulo, v. 68, n. 07, p. 819, jul. 2014. 

BARRETO, Margarida M. S. Uma jornada de humilhações. Dissertação de Mestrado – Departamento de Psicologia Social da PUC/SP, São Paulo, 2016.

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BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 2. ed. São 

Paulo: LTr, 2016.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

BRASIL, Constituição (1988). Emenda constitucional n°45, de 31 de dezembro de 2004. Dá nova redação ao art. 114 e outros, da Constituição Federal, alterando e inserindo parágrafos. PINTO, Antônio L. de T; WINDT, Márcia, C. V. dos S.; CESPEDES, Lívia (orgs). In Vade Mecum. São Paulo: Saraiva,2016.

____________. Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Recurso 

Ordinário.  n°1796/2002.  Publicado  no  Diário  Oficial  de  Curitiba  em 

. . .  Disponível  em:  <http://www.trt20.gov.br>.  Acesso  em  10 

out. 2006.

____________. Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região. Recurso 

Ordinário.  Publicado  no  Diário  Oficial  de  Sergipe  em 

. . .  Disponível  em:  <http://www.trt20.gov.br>.  Acesso  em  20 

out.. 2006. 

____________. Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Recurso 

Ordinário.  Publicado  no  Diário  Oficial  de  Sergipe  em 

. . .  Disponível  em:  <http://www.trt20.gov.br>.  Acesso  em  20 

out. 2006. 

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 8. ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2005.

MELGAR,  Alfredo Montoya.  Derecho  del  trabajo. Madrid:  Tecnos, 

2003.

MONTEIRO, Antônio Lopes. BERTAGNI, Roberto Fleury de Souza. Acidentes do trabalho e doenças ocupacionais: conceito, processos de conhecimento e de

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execução e suas questões polêmicas. 2.ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000.

 

   

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TÓPICOS ESPECIAIS EM CONCURSOS PÚBLICOS

ARTUR LARA FERREIRA: Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro- PUC-Rio, pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e advogado.

Resumo: Contemporaneamente, os concursos públicos têm atraído a atenção de milhões de brasileiros nos últimos anos. Além disso, a ‘‘indústria dos concursos’’ movimenta bilhões de reais a cada ano. Do ponto de vista jurídico, o tema também vem ganhando extrema relevância, visto que cada vez mais o Poder Judiciário vem decidindo polêmicas e pacificando entendimentos relativos aos concursos e aos direitos dos candidatos. Apesar disso, ainda hoje é comum nos depararmos com cláusulas editalícias de duvidosa legalidade. Diante de tamanhos problemas, o primeiro tópico do presente trabalho focará seus estudos em diversos pontos polêmicos, tais como: as limitações editalícias relativas ao sexo, altura mínima e idade máxima dos candidatos. Ao final destacaremos o atual entendimento dos tribunais superiores quanto ao direito dos candidatos aprovados dentro do número de vagas. Para tanto, é fundamental destacar que, em cada um desses tópicos, abordaremos as principais posições doutrinárias e jurisprudenciais.

Palavras-chave: Concurso Público. Requisitos. Idade máxima. Altura Mínima. Candidatos Aprovados. Direito subjetivo à posse.

INTRODUÇÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Concurso Público consolidou-se como o processo administrativo por meio do qual a Administração Pública seleciona os melhores candidatos para preencher os

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cargos e empregos públicos na administração pública direta e indireta, na forma do artigo 37 da CRFB.

A sua exigência na atual ordem constitucional decorre dos princípios constitucionais da isonomia, da moralidade e da eficiência. Além de justificarem a exigência de realização de concursos públicos, tais princípios devem ser observados em todas as fases do certame, sob pena de inconstitucionalidade.

O presente trabalho abordará a natureza e os principais tópicos relativos ao enquadramento jurídico dos concursos públicos na jurisprudência dos tribunais superiores e na doutrina.

I- DOS REQUISITOS À INVESTIDURA EM CARGOS E EMPREGOS PÚBLICOS

A atual redação constitucional indica que cabe ao legislador estabelecer os requisitos para o preenchimento de cargos e empregos públicos na administração direta e indireta (Artigos 37, I, II CF). Todos os requisitos à investidura em cargos e empregos públicos devem estar previstos diretamente em lei. O Supremo Tribunal Federal possui entendimento no sentido da impossibilidade de fixação, por exemplo, de limite de idade ou de altura exclusivamente no edital.

Além da necessária previsão legal, os requisitos de acesso aos cargos e empregos públicos devem possuir vinculação direta com a função que será exercida pelo candidato em caso de aprovação. Do contrário, estaríamos diante de clara afronta aos princípios da isonomia, da moralidade e da razoabilidade.

Os requisitos podem ser divididos em duas espécies de acordo com o momento de apresentação:

- Os requisitos de inscrição são todas aquelas exigências que devem ser cumpridas no momento de inscrição como condição para participação no certame. Ex: pagamento de inscrição, apresentação de documentos, entre outros.

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- Os requisitos do cargo possuem relação direta com a função a ser exercida. Como exemplo, podemos citar a comprovação de regular inscrição no respectivo conselho fiscalizador, escolaridade, entre outros.

Por guardarem relação direta com as funções a serem exercidas, os tribunais têm entendido que os requisitos do cargo só devem ser exigidos no momento da posse do candidato já aprovado.

Nesse sentido, o enunciado de súmula 266 do Superior Tribunal de Justiça:

‘‘ O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público.’’

Apesar do apresentado, é curioso perceber que o STJ e o STF entendem que o requisito constitucional de 3 anos de atividade jurídica para o ingresso na magistratura e no Parquet deve ser comprovado já no momento de inscrição no concurso.

Por conta disso, encontramos algumas críticas importantes por parte da doutrina. Entre os autores, podemos destacar José dos Santos Carvalho Filho[i] e Rafael Oliveira[ii].

Nesse sentido, o já citado Rafael Oliveira[iii] afirma que: ‘‘Entendemos, contudo, que a comprovação

do requisito temporal deve ser exigida somente no momento da posse, pois as citadas normas constitucionais exigem os requisitos para ‘‘ingresso na carreira’’, o que efetivamente pressupõe aprovação prévia no concurso.’’

II DOS REQUISITOS DE IDADE, ALTURA E SEXO EM CONCURSOS PÚBLICOS

Conforme visto anteriormente, os requisitos para a aprovação no cargo ou emprego público dependem de expressa previsão legal, não sendo possível se falar numa ‘‘reserva do edital’’. Além disso, vimos que tais requisitos por serem, a princípio,

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ilegítimos por restringirem a participação de todos os interessados podem ser justificados sob a luz da proporcionalidade.

Nesse ponto veremos a interpretação dos tribunais superiores sobre questões tormentosas como a idade máxima, a altura mínima e o sexo.

Quanto à idade, o Supremo Tribunal Federal considera possível a limitação de idade para a participação em concursos públicos quando a mesma possa ser justificada pela natureza das atividades a serem desenvolvidas no cargo ou emprego público a ser preenchido. A doutrina costuma citar os exemplos de cargos policiais e militares. Nesse sentido, o enunciado de súmula 683 do STF:

‘‘O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da , quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.’’

O Conselho Nacional de Justiça já possui entendimento no sentido não ser legítima a restrição de idade máxima em 45 anos para o ingresso na magistratura. Nesse sentido:

‘‘Procedimento de Controle Administrativo. Concurso Público para Magistratura. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Exigência de idade máxima menor que 45 anos. Impossibilidade. – “I) A limitação de idade para ingresso na Magistratura afronta os princípios da isonomia, razoabilidade e legalidade, pois não há previsão constitucional desta natureza e a maturidade elemento importante para o exercício da judicatura. II) O argumento referente ao tempo de aposentadoria é inconsistente, não podendo ser vedado o acesso do candidato ao concurso com base na suposta data em que ele se aposentaria’’[iv]

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Importante ressaltar que, por conta do artigo 40, I, §1º, da CF, não é possível o ingresso na administração pública após os setenta anos de idade.

Além da idade, o requisito de altura mínima também costuma ser cobrado em certos editais para ingressos na carreira militar ou policial.

O Supremo Tribunal Federal já entendeu que tal requisito é legítimo desde que necessário à atribuição da função, devendo ser avaliado de acordo com a proporcionalidade.

Nesse sentido:

‘‘RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NA CARREIRA DE DELEGADO DE POLÍCIA. ALTURA MÍNIMA.REQUISITO. RAZOABILIDADE DA EXIGÊNCIA. 1. Razoabilidade da exigência de altura mínimapara ingresso na carreira de delegado de polícia, dada a natureza do cargo a ser exercido. Violação ao princípio da isonomia. Inexistência. Recurso extraordinário não conhecido.’’[v]

Cumpre observar que o requisito deve estar previsto em lei. Nesse sentido:

‘‘AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. POLICIAL MILITAR. ALTURA MÍNIMA. PREVISÃO LEGAL. INEXISTÊNCIA. 1. Somente lei formal pode impor condições para o preenchimento de cargos, empregos ou funções públicas. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.’’[vi]

Outra questão muito debatida pela doutrina diz respeito ao afastamento de indivíduos de um determinado sexo de um concurso. Como exemplo, a doutrina costuma citar a contratação de pessoal para trabalhar em penitenciárias femininas.

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Nesses casos, a exigência, a meu entender mostra-se perfeitamente razoável, tendo em vista que atividades como a revista íntima de presidiárias só poderá ser realizada por profissionais do sexo feminino, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana das presidiárias.

III- DA POSIÇÃO ATUAL DOS TRIBUNAIS QUANTO AOS DIREITOS DOS CANDIDATOS APROVADOS

Avaliados alguns pontos relevantes no que concerne aos requisitos e restrições presentes em concursos públicos, avaliaremos a questão dos candidatos já aprovados.

Preliminarmente, é importante destacar que a doutrina e a jurisprudência tradicionais apontam no sentido da mera expectativa de direito à nomeação. Segundo tal entendimento, apenas com a nomeação, o candidato passaria a ter direito à posse.

Mais tarde, com a evolução da jurisprudência, passou-se a defender que o candidato aprovado tem direito à nomeação e à posse, dentro do prazo de validade do concurso, se a administração inobservar a ordem de classificação.

Nesse sentido, o enunciado de súmula 15 do Supremo Tribunal Federal:

‘‘DENTRO DO PRAZO DE VALIDADE DO CONCURSO, O CANDIDATO APROVADO TEM O DIREITO À NOMEAÇÃO, QUANDO O CARGO FOR PREENCHIDO SEM OBSERVÂNCIA DA CLASSIFICAÇÃO.’’

Da mesma forma, os candidatos teriam direito à nomeação em caso de realização de contratações precárias para o exercício da mesma função para qual se realizou o concurso.

Recentemente, a jurisprudência dos tribunais superiores evoluiu ainda mais, prevalecendo o entendimento no sentido de que os candidatos

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aprovados dentro do número de vagas teriam o direito subjetivo à nomeação e à posse dentro do prazo do concurso.

Tal tese é no sentido que de que ao definir o número de vagas para o cargo ou emprego público, a Administração Pública se autovincularia com base nos princípios da boa-fé e da confiança legítima. Com isso, o ato de nomeação de aprovados dentro do prazo de validade do concurso deixa de ser discricionário, passando a ser vinculado.

Nesse sentido:

‘‘DIREITOS CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. NOMEAÇÃO DE APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO. EXISTÊNCIA DE VAGAS PARA CARGO PÚBLICO COM LISTA DE APROVADOS EM CONCURSO VIGENTE: DIREITO ADQUIRIDO E EXPECTATIVA DE DIREITO. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO EM PROVER CARGOS VAGOS: NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO. ARTIGOS 37, INCISOS II E IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. Os candidatos aprovados em concurso público têm direito subjetivo à nomeação para a posse que vier a ser dada nos cargos vagos existentes ou nos que vierem a vagar no prazo de validade do concurso. 2. A recusa da Administração Pública em prover cargos vagos quando existentes candidatos aprovados em concurso público deve ser motivada, e esta motivação é suscetível de apreciação pelo Poder Judiciário. 3. Recurso extraordinário ao qual se nega provimento.’’[vii]

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Apesar disso, diante da crise fiscal que assola os entes federados, é preciso se interpretar tal entendimento com parcimônia.

Há que se reconhecer que todos os diretos são relativos e portanto, estão sujeitos à ponderação diante das particularidades de determinados casos concretos.

Rafael Oliveira é um dos autores que destaca a possibilidade de se reconhecer a legitimidade da ausência de nomeação quando a Administração comprovar que, por fatos supervenientes e relevantes, as finanças se mostram seriamente afetadas. Em alguns casos, a eventual nomeação poderia acabar por impactar na violação dos limites de gastos com pessoal impostos pela Constituição (Artigo 169) e pela LRF (Artigo 19 da LC 101/2000). Diante de hipóteses excepcionais e devidamente constatadas, essa parece, ao meu ver, ser a melhor solução para compatibilização dos dispositivos constitucionais e legais em análise.

No entanto, é preciso se reconhecer que a regra continua sendo no sentido de que os candidatos aprovados dentro do número de vagas teriam o direito subjetivo à nomeação e à posse dentro do prazo do concurso. É preciso que se tenha cuidado para evitar que os eventuais administradores tentem erroneamente tratar a exceção como regra, vindo a frustrar a legítima expectativa dos candidatos.

IV- CONCLUSÃO

Através do presente estudo visualizamos a consolidação do concurso público como o processo administrativo por meio do qual a Administração Pública seleciona os melhores candidatos para preencher os cargos e empregos públicos na administração pública direta e indireta. Além disso, abordamos algumas das muitas polêmicas relativas a exigências editalícias.

Nesse aspecto verificamos que a jurisprudência atual dos tribunais superiores é no sentido de exigir a expressa previsão legal de tais requisitos, não bastando a previsão no edital. Além da previsão legal, exige-se uma pertinência entre os requisitos e as funções a serem exercidas pelo futuro detentor daquele cargo ou emprego público. Com base nessa linha raciocínio, e utilizando-se do princípio da proporcionalidade, o Supremo

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Tribunal Federal possui importantes precedentes em matéria de idade máxima, altura mínima e restrições quanto ao sexo do candidato.

No capítulo final abordamos outra matéria extremamente atual em matéria de concursos públicos. Trata-se da situação dos candidatos aprovados. Nesse ponto, vimos que a doutrina e a jurisprudência inicialmente apontavam para uma mera expectativa de direito dos candidatos. A seguir, foi destacada uma gradativa mudança da jurisprudência, de modo que os atos de nomeação e posse dos candidatos aprovados dentro do número de vagas passaram a ser vinculados, salvo em casos excepcionais, citados pela doutrina, como os que importem na violação dos limites de gastos com pessoal.

REFERÊNCIAS

-ARAGÃO, Alexandre Santos de- Curso de Direito Administrativo- 1ª edição . Rio de Janeiro: Forense 2012

-CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. O empregado público / Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante, Francisco Ferreira Jorge Neto. – 3. ed. – São Paulo : LTr, 2012

-CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 23ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 424

-DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 20ª ed., São Paulo: Atlas 2007

-OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo- 3ª ed.- São Paulo: MÉTODO, 2015

NOTAS

[i] CARVALHO FILHO, José dos Santos Manual de direito- 23. ed. rev., ampl. e atualizada até 31.12.2009. – Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010 p. 702

[ii] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo- 1ª ed.- São Paulo: Método, 2013 p. 657

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[iii] Ibidem, p. 657

[iv] PCA 347- Rel. Cons. Ruth Carvalho- Julgado em 14.3.2007- DJU 23.3.2007

[v] RE 140889- Rel. Maurício Corrêa- Julgado em 30.05.2000

[vi] AI-AgR 627586-BA Relator: Ministro Eros Grau Julgado em: 27.11.2007

[vii] RE 227.480 Relator: Ministro Menezes Direito Julgado em: 16.09.2008

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POLÍTICA E ESCORÇO HISTÓRICO SOBRE O USO DE DROGAS NO BRASIL

DARK BLACKER DE ANDRADE: Advogado, formado na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Pós-graduado em ciências criminais.

RESUMO: O  tema  criminalização da  conduta de portar/adquirir drogas para  consumo  pessoal,  em  desacordo  com  determinação  legal  ou regulamentar, apesar de não acarretar prisão nos dias atuais,  continua sendo  considerado  crime  pelos  Tribunais  Superiores.  O  regramento jurídico  da  matéria  sofreu  com  o  passar  do  tempo  influências transnacionais de combate às drogas,  tendo como pilares as  teorias de Movimento de Lei e Ordem, a Ideologia de Defesa Social e a Ideologia de Segurança Nacional. Dessa maneira, reunidas, se tornaram em uma arma poderosa em face dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito.  A  história  no  Brasil  sobre  a  temática  remonta  as  Ordenações Filipinas, perpassando por momentos  em que o usuário de drogas  era apenado de forma igualitária ao traficante de drogas, até os dias atuais. Hodiernamente não há possibilidade de prisão ao agente que adquira ou porte  drogas  para  consumo  pessoal,  não  obstante  ser  concebível  a aplicação de penas alternativas como a advertência sobre os efeitos das drogas,  prestação  de  serviços  à  comunidade,  medida  educativa  de comparecimento a programa ou curso educativo, admoestação verbal e multa. 

PALAVRAS‐CHAVE: POLÍTICA DE DROGAS – TRANSNACIONALIZAÇÃO DO CONTROLE – LEGISLAÇÃO SOBRE DROGAS – LEI 11.343/2006. 

ABSTRACT:  The  subject  of  criminalization  of  the  conduct  of  porting  / purchasing drugs for personal consumption, in disagreement with legal or regulatory  determination,  despite  not  imprisonment  these  days, continues to be a crime by the Superior Courts. The  juridical rule of the subject has suffered with the passing of time transnational influences of fight  against  drugs,  having  as  pillars  the  theories  of  Law  and  Order Movement, the  Ideology of Social Defense and the  Ideology of National 

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Security. In this way, together, they have become a powerful weapon in the  face of  the  guiding principles of  the Democratic  State of  Law.  The history  in Brazil on  the subject goes back  to  the Philippine Ordinations, going through moments in which the drug user was equally distressed to the  drug  trafficker,  to  this  day.  There  is  currently  no  possibility  of imprisonment  for  the agent who acquires or carries drugs  for personal consumption, although it is conceivable to apply alternative penalties such as  warning  about  the  effects  of  drugs,  providing  services  to  the community,  educational  measure  of  attendance  at  a  program  or educational course, verbal admonition and fine. 

KEYWORDS: DRUG POLICY ‐ CONTROL TRANSNATIONALIZATION ‐ DRUG LEGISLATION ‐ LAW 11.343 / 2006. 

 INTRODUÇÃO

O Direito Penal possui a  função de  tutelar os bens  jurídicos mais importantes para convivência harmoniosa dos seres humanos, devendo ser a ultima ratio devido à ingerência agressiva em um dos bens jurídicos mais importantes para os indivíduos que é a liberdade. Neste ponto, resta evidente  o  caráter  “mínimo  intervencionista”  do  estatuto  repressivo, possuindo a  incumbência de reprimir condutas quando os outros ramos do direito forem insuficientes para tal regulamentação. 

O presente trabalho perquirirá os  fundamentos da criminalização do uso/porte de drogas no Brasil, delineando as principais ideologias por detrás de tal ingerência Estatal. Para isso também será traçado o escorço histórico no Brasil sobre a criminalização, chegando aos dias atuais em que a  Lei  n.°  11.343/2006,  em  seu  artigo  28, mantém  o  discurso  político‐criminal proibicionista com esteio em teorias como a da defesa social. 

A  importância  desse  trabalho  é  contribuir  para  a  quebra  de paradigmas dos quais transformam o Direito Penal em uma  ferramenta deletéria para  alguns  acontecimentos  sociais de  grande  relevância, em que deveriam ser tratados por outros ramos institucionais como políticas públicas voltadas ao tratamento do usuário. 

 POLÍTICA E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 

.  O Discurso e a Transnacionalização do Controle 

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Para  iniciarmos  a  exposição  de motivos  desse  tópico,  inevitável asseverar o entendimento que, no Brasil, existe uma política criminal das drogas.  Inobstante,  igualmente  verdadeira  é  a  afirmação  de  que  o exercício  desta  função  por  intermédio  do  Estado  está  dissociado  dos anseios  Constitucionais.  Trata‐se  de  um  sistema  repressivo  em consonância  com  o  discurso  criminalizador  transnacional,  onde, principalmente as camadas sociais mais vulneráveis são violadas em seus direitos e garantias fundamentais. 

Digno de nota, não constitui nosso objetivo transcrever de forma inexorável  os  contornos  históricos  e  ideológicos  legitimadores  do contexto  atual  que  estamos  insertos,  até  porque  constitui  tarefa inalcançável.  A  complexidade  encontra‐se  na  questão  axiológica  que permeia cada contexto histórico que se perfaz analisado, mormente em temas  políticos‐criminais  e,  igualmente,  por  entendermos  que  a regulamentação  pelo  direito  penal  das  drogas  consubstancia  produto moralizador. 

Enfim, pode parecer entranho, mas há aproximadamente 100 anos substâncias que hoje são proibidas eram permitidas, a cocaína, heroína, morfina, maconha, são exemplos de drogas que eram legais ao redor do mundo. Acontece que,  com o passar do  tempo, motivações políticas e sociais influenciaram na segregaram de várias substâncias. 

A questão religiosa é determinante, o Cristianismo, cujas principais vertentes  são  o  Catolicismo,  a Ortodoxia Oriental  e  o  Protestantismo, estabelece uma espécie de tolerância ao álcool, passando a ser utilizado não  só  para  situações  festivas, mas  também  em  rituais  sagrados. Não obstante, no século XIX há uma  inversão de valores quando a doutrina Metodista,  umas  das  vertentes  do  Protestantismo,  fundada  por  John Wesley na  Inglaterra, começa a  instituir a  ideia de que o álcool é em si mesmo pecaminoso. 

Essa  ideologia  influência  sobremaneira  os  Estados  Unidos  da América, vai ganhando espaço e se permeando na política quando, em 1920,  é  instituída  a  denominada  Lei  Seca,  proibindo‐se  o  comércio  de qualquer tipo de substância alcoólica. Nesse ínterim, surgem pelas cidades americanas  os  chamados  speakeasies[1],bares  clandestinos  que comercializavam  destiladas  fortíssimas,  frequentados  por  pessoas 

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influentes da sociedade o que gerou assaz dificuldade no cumprimento da lei. 

O que aconteceu é o retrato atual da sociedade, surgiram pessoas que  se beneficiavam  com o  contrabando das bebidas, os  traficantes, a ilicitude  aumentou  a  corrupção  e  a  violência,  os  custos  da  política proibicionista  cresceram  significativamente.  Em  decorrência  desse contexto social, a economia americana entrou em crise em 1929 e, depois disso, em 1933 a proibição do álcool foi abolida. 

Apesar da legalização do consumo de álcool, a política belicista teve seus contornos delineados. Nessa senda, a prática e o uso relacionado a outras  substâncias  foram  consideradas  ilícitas,  o  aparato  destinado  à repressão  foi  revertido  para  estas  drogas.  Em  1945  é  instituída  a Organização  das  Nações  Unidas  e,  como  veremos  adiante,  três convenções  sob  o  seu  comando  determinaram  a  linha  de  controle internacional das drogas.    

Reportando‐se à década de 50, apesar de se  iniciar o discurso da periculosidade dos usuários de drogas, constituía arrefecida a importância dispensada  à  temática. De  fato,  a  consumição  se  vinculava  aos  grupos marginais da sociedade e, por conta disso, estas pessoas foram vinculados às  questões  referentes  à  violência,  pobreza  e  principalmente  à delinquência. Em  linhas gerais, Rosa Del Olmo  (1990, p. 30) explica que inicia o discurso ético‐jurídico, pois “havia o temor de que as drogas se tornassem atraentes. Difundia‐se seu discurso em termos de “perversão moral” e os consumidores eram considerados degenerados ou criminosos viciados dados a orgias sexuais”. 

Logo  depois,  na  década  de  60,  o  uso  das  drogas  se  vincula  aos movimentos de contestação, aumentando a utilização da maconha e do LSD. Contra  legem, ganha força o consumo de substâncias  ilícitas o que provoca  uma  maior  visibilidade  internacional  sobre  o  assunto,  como resultado se instaura o pânico moral conducionista de diversas legislações penais. Surge, nesse ínterim, a Convenção Única sobre Estupefacientes em 1961, aprovada em Nova Iorque, representando a construção temerária da  realidade  quanto  ao  assunto,  comprometendo‐se muitos  países  no combate ao tráfico ilícito. Segundo Maria Lúcia Karam: 

A  Convenção Única  de  1961,  com  suas  quatro listas  anexas  em  que  elencadas  as  substâncias  e 

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matérias  primas  proibidas,  embora  ressalvando expressamente  a  reserva  do  que  disposto  na Constituição  de  cada  uma  das  Partes,  impôs  a criminalização,  inclusive  de  atos  preparatórios,  nas regras postas em seu artigo 36 (KARAM, 2009, p. 4). 

O consumo nesse período já não é próprio dos guetos, mas também dos  jovens  brancos  de  classe  média,  o  que  faz  insurgir  uma  guerra maniqueísta, ao passo que as drogas assumem o perfil do mal que atingira as pessoas benévolas. Com o discurso da transnacionalização do controle social,  os  países  centrais  buscam  resolver  o  problema  da  entrada clandestina das substâncias proibidas por intermédio de suas fronteiras, logo, os países menos desenvolvidos, a exemplo do México, eram vistos como inimigos. 

Nesse  contexto,  caracterizado  pela  figura  vampiresca  das drogas, maxime  pela  influência  das  superpotências mundiais,  surge  o Movimento  de  Defesa  Social.  Essa  ideologia,  nos  dizeres  de  Rosa  Del Olmo, corresponde:  

[...]  a  uma  ideología  caracterizada  por  uma concepción  abstracta  y  ahistórica  de  la  sociedad donde se desacan  fundamentalmente  los principios del bien y del mal y la culpabilidad, necesaria em ese momento  como  centralizadora y unificadora de  lãs normas  universales  que  debían  imponerse  (OLMO, 1984, p. 90)[2]. 

Por  conseguinte,  o  direito  de  escolha  dos  indivíduos  e  a peculiaridade de cada localidade passam a ser derrogados por interlúdio da  repressão.  É  estabelecida  a  ideologia  da  diferenciação,  sendo  a toxicomania um perigo social e econômico para a humanidade. Nas lições de Salo de Carvalho: 

Com a incorporação dos postulados da Doutrina de  Segurança  Nacional  (DSN)  no  sistema  de seguridade pública a partir do Golpe de 1964, o Brasil passa  a  dispor  de  modelo  repressivo  militarizado centrado  na  lógica  bélica  de eliminação/neutralização de inimigos. A estruturação da  política  de  drogas  requeria,  portanto, 

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reformulação:  ao  inimigo  interno  político (subversivo)  é  acrescido o  inimigo  interno político‐criminal  (traficante).  Categorias  como  geopolítica, bipolaridade,  guerra  total,  adicionadas  à  noção  de inimigo interno, formam o sistema repressivo que se origina  durante  o  regime militar  e  se mantém  no período  pós‐transição  democrática  (CARVALHO, 2010, pp. 21‐22). 

Novos  inimigos  públicos  não  econômicos  foram  criados  pelas agências repressivas, ad exemplum, a heroína e a cocaína na década de 70,  valendo‐se  da  ideia  de  repressão máxima  e  alargamento  das  leis incriminadoras (ideologia de lei e ordem). Nesse último período, merece registro  a  instituição  em  1971  da  Convenção  sobre  Substâncias Psicotrópicas em Viena, momento em que ganha forma a mutabilidade do discurso quanto aos usuários de drogas, vejamos as explicações de Rosa Del Olmo: 

No início da década de setenta, e em parte como consequência  da  perseguição  à maconha,  surge  a epidemia da heroína, a ponto de o presidente Nixon qualificá‐la  de  primeiro  inimigo  público  não econômico.  Surge  assim  o  estereótipo  político‐criminoso,  que  é  reforçado  pelo  discurso  jurídico‐político ao  lado do discurso médico que  criou  com maior  ênfase  o  estereótipo  da  dependência,  pelo lugar destacado que  tem na  época o problema do consumo (OLMO, 1990, p. 78).   

Com  o  discurso  transnacional  de  banimento  das  substâncias psicotrópicas  na  década  de  oitenta,  o  principal  objetivo  é  controlar  o comércio  ilegal de drogas que se alastra pela sociedade, além disso, os usuários  passam  a  ser  considerados  clientes  dos  traficantes  e consumidores  das  substâncias  ilícitas.  O  marco  regulatório  desse momento sociopolítico foi a Convenção de Viena de 1988 que, conforme delineia Maria Lúcia Karam: 

 A Convenção de Viena de 1988 nitidamente se inspira na política de  guerra  às drogas,  lançada na década anterior e aprofundada naqueles anos 80 do século  XX.  Essa  guerra,  como  já  pude  ressaltar, 

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naturalmente,  não  é  uma  guerra  apenas  contra  as drogas,  dirigindo‐se  sim,  como  quaisquer  guerras, contra  pessoas,  aqui  contra  as  pessoas  dos produtores,  distribuidores  e  consumidores  das substâncias  e  matérias  primas  proibidas  (KARAM, 2003, pp. 4/5). 

Os Estados Unidos da América passa a transferir a responsabilidade pelo alto consumo em seu território aos países marginais, potencializando a  repressão  bélica.  Dessa  maneira,  na  América  latina,  e,  mas especificamente no Brasil, a Lei n.° 6.368/76 corrobora o modelo oficial jurídico‐político  belicista,  prevendo  no  artigo  16  pena  privativa  de liberdade de 06 meses a 02 anos de detenção ao usuário. 

Consoante  expõe Denis  Russo,  os  EUA,  cujo  presidente  naquela época era Ronald Reagan, pronunciaram‐se da seguinte forma: 

A guerra contra as drogas não podia ser  lutada apenas dentro de  casa –  cocaína era produzida na América  do  Sul,  heroína  vinha  da  Ásia,  maconha chagava do México. Só seria possível acabar com as drogas  se  o mundo  colaborasse.  Em  1989, meses após o fim do governo Reagan, o Muro de Berlim caiu e os Estados Unidos viraram a única superpotência do mundo.  O  governo  americano  ameaçava  com sanções econômicas os países que não colaborassem com aquela guerra justa (RUSSO, 2011, pp. 21/22). 

Em artigo dedicado a análise do  inimigo no Direito Penal, afirma Raúl Eugenio Zaffaroni: 

La  administración  norteamericana  también presionó  a estas dictaduras para que declararan  la guerra a la droga, en una primera versión vinculada estrechamente a la seguridad nacional: el traficante era  un  agente  que  pretendía  debilitar  la  sociedad occidental, el  joven que  fumaba marihuana era un subversivo,  se  confundían  e  identificaba  a  los guerrilleros  con  los  narcotraficantes  (la narcoguerrilla),  etc.  A  medida  que  se  acercaba  la caída del muro de Berlín, se necesitaba otro enemigo 

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para  justificar  la alucinación de una nueva guerra y mantener  niveles  represivos  altos.  Para  ello  se reforzó la guerra contra la droga[3]. 

Na  década  de  1990  muitos  países  ampliaram  os  gastos orçamentários  de  seus  órgãos  repressivos.  Sem  dúvida,  com  o  auxílio financeiro dos americanos, buscou‐se erradicar as drogas do planeta e, com o fim de colocar em prática esse planejamento, direitos fundamentais foram violados, mormente o das partes mais vulneráveis da sociedade. Repisando as ilações precedentes, Vera Malaguti Batista (2003, p. 54) aduz que “o sistema penal está estruturalmente montado para que não opere a  legalidade  processual  e  para  exercer  seu  poder  com  o máximo  de arbitrariedade seletiva dirigida aos setores vulneráveis”. 

Para  entendermos  o  que  a  citada  autora  explica,  basta  nos recordarmos  em  2011,  quando  começaram  a  ser  instaladas  no  Rio  de Janeiro  as  Unidades  de  Polícia  Pacificadora  (UPP’s).  Esse  modelo  de segurança pública, supostamente repressor do delito de trafico de drogas, legitimou  o  devassamento  da  intimidade  das  camadas  mais  pobres daquela cidade, a exemplo da entrada autoritária de diversos policiais nas residências dos moradores das  favelas em busca de  traficantes,  ferindo flagrantemente o direito constitucional à privacidade. 

Inquestionavelmente,  observa‐se  empiricamente  que  no modelo de Segurança Pública ocorre um constante desenvolvimento da logística militarizada.  Em  outras  palavras,  existe  uma  constate  reafirmação  dos pseudoinimigos da sociedade, isso, é claro, com a imprescindível ajuda da sistemática de controle penal e o valioso papel da mídia. Nesse sentido, leciona Salo de Carvalho: 

Dessa  forma,  a  partir  do  final  da  década  de setenta e início da década de oitenta ocorrerá a fusão de dois modelos ideológicos diferenciados (mas não dicotômicos  ou  exclusivos),  cujo  efeito  será  a formação  do  modelo  repressivo  que  sustentará  o proibicionismo  nacional.  No  que  diz  respeito  a estrutura  normativa,  a  ideia  de  Defesa  Social permeará o  imaginário  legislativo, adquirindo  forte impacto em sua aplicação judicial; quanto ao sistema de  segurança  pública,  o  modelo  de  Segurança Nacional determinará lógica militarizada, a qual será 

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transferida  às  agências  civis  de  controle  do  desvio punível (CARVALHO, 2010, p. 23). 

Logo,  como  resultado  desses  movimentos  voltados  pura  e simplesmente  à  segurança  nacional,  as  políticas  armamentistas repressoras  atingem  seu  ápice,  estabelecendo,  em  segundo  plano,  a proteção  dos  direitos  e  garantias  fundamentais.  Além  disso,  Eugenio Zaffaroni  (2011,  p.  317)  explica  que  “os  atores  políticos,  procurando clientela eleitoral, elaboram leis repressivas, longe de qualquer contexto ideológico coerente, mesclando argumentos moralistas, perigosistas e de segurança nacional”. 

Diante do exposto, denotam‐se três pilares imprescindíveis para a manutenção  da  sistemática  proibicionista  relativo  às  drogas:  o Movimento de Lei e Ordem, a Ideologia de Defesa Social e a Ideologia de Segurança Nacional. Dessa maneira, reunidos, se tornam em uma arma poderosa em face dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. 

A Ideologia de Defesa Social possui o objetivo de servir de esteio a disseminação de  teorias consistentes na  interpretação e  tratamento do crime  e  da  criminalidade.  Seus  princípios  fundamentais  caminham  no sentido  de  que  o  Estado,  como  representante  da  sociedade,  possui legitimidade de  combater os  fatos delitógenos por  intermédio de  suas instâncias oficiais. 

Corrobora a ideia do bem e o mal (maniqueísmo), com o propósito de, quando da prática de um delito, este seja a expressão da culpabilidade dos indivíduos que atentam contra os valores e princípios sociais. Deveras, maquia  os  reais  anseios  de  controle  social  por  intermédio  do  penal, alicerçando o discurso de que a pena previne a prática de novos desvios (prevenção  geral  e  especial),  discurso  evidentemente  dissociado  da realidade, onde o consumo de drogas cresce diariamente. 

Constrói falsamente a concepção de que a lei penal se dirige a todos de uma forma igualitária, em sua vertente material. Na realidade, sabe‐se que  ocorre  justamente  o  contrário  do  que  se  afirma,  impõem‐se  o controle social dos grupos minoritários desviantes diante de uma ordem econômica vigente. 

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 Em relação à  Ideologia de Segurança Nacional,  influenciada pelo Movimento  de  Defesa  social,  são  reproduzidas  ações  rigorosas  de combate aos fenômenos criminais. Assim sendo, Salo de Carvalho (2010, p. 38) explica que esses modelos pautados no sistema repressivo bélico “moldam  intervenções  punitivas  que  invertem  os  postulados legitimadores do Estado de Direito”. 

Esta  expansão  do  poder  punitivo  deságua  no  terceiro  pilar  do discurso proibicionista da política criminal de drogas no Brasil consistente no Movimento de Lei e Ordem. Esta ideologia enxerga o transgressor das leis  como doença  infecciosa para o  convívio  social,  causador de perigo constante e iminente, apenas excluído pelas ferramentas do Estado e pelo Direito Penal Emergência. 

Ocorre que tais teorias legitimam o chamado direito penal do autor. Conforme explica Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 110) “é uma corrupção do  direito  penal,  em  que  não  se  proíbe  o  ato  em  si, mas  o  ato  como manifestação  de  uma  forma  de  ser  do  autor,  esta  sim  considerada verdadeiramente delitiva”. 

Quando  a  pessoa  está  adquirindo  ou  portando  algum  tipo  de substância estupefaciente para consumo pessoal está  lesando a própria saúde,  colocando em  risco  sua autodeterminação em  face de prazeres momentâneos.  O  Estado,  por  interlúdio  de  suas  instituições  oficiais, resolveu  reprimir  tal  conduta  com a utilização de  sua  ferramenta mais deletéria, isto é, o Direito Penal, obnubilando alternativas menos gravosas e mais eficazes de enfrentamento do tema.    

.  Escorço Histórico Brasileiro 

Traçar  o  histórico  da  criminalização  do  uso  de  substâncias entorpecentes não é tarefa fácil. Devido às mudanças no tratamento da matéria ao  longo dos anos e os valores que permeavam cada época em que  se  produziram  os  diplomas  legislativos,  inevitável  são  desvios  em qualquer tentativa de tracejar uma linha reta na história brasileira sobre as drogas. 

Delinear com precisão os caminhos percorridos pelo homem em um dado momento histórico  é  tarefa  inalcançável. As dificuldades  sobre  a missão de reconstruir o passado são tratadas por Francesco Carnelutti ao afirmar: 

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Quando se fala em história, o pensamento logo se  detém  nas  dificuldades  que  envolvem  a reconstrução do passado, mas, guardadas as devidas proporções,  entre  a  grande  e  a  pequena  história, essas  mesmas  dificuldade  são  enfrentadas  e precisam  ser  superadas  no  Processo  Penal (CARNELUTTI, 2010, p. 66). 

Deste  modo,  partindo  da  premissa  de  que  o  processo  de criminalização da conduta em comento foi construído em decorrência da transnacionalização do controle de princípios moralistas, buscar‐se‐á sua historiografia sem austeridade. Como explica Salo de Carvalho (2010, p. 04), “se o processo criminalizador é invariavelmente processo moralizador e normalizador, sua origem é fluída, volátil,  impossível de ser adstrita e relegada a objeto de estudo controlável”. 

De  fato,  verificamos que  a  legislação brasileira que  criminaliza o portar/adquirir drogas para uso pessoal remonta as Ordenações Filipinas. Em matéria penal este foi o estatuto que mais vigeu, ultrapassou mais de 200 anos no tempo, sendo criado pelo Rei Filipe II em 1603, vigendo até 1830. 

O assunto era tratado no  livro V do Código Filipino em seu Título LXXXIX que prescrevia: “que ninguém tenha em sua caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”[4]. Deste modo, naquela época a conduta de usar, portar e  vender  rosalgar, ou  seja,  sulfeto de arsênio, salvo se tivesse licença para tanto, constituía crime. 

Em relação ao Código Penal Brasileiro do Império de 1930 que foi instituído por  força do mandamento constitucional de 1824  (art. 179, § 18), nada foi tratado a respeito da proibição do consumo ou comércio de substâncias  entorpecentes,  retornando  a  proibição  na  Constituição  da República. 

No  período  republicado  foram  promulgados  basicamente  dois diplomas penais, o de 1890 e o de 1940. No primeiro, conforme explica Salo de Caravalho: 

[...] passou‐se a regulamentar os crimes contra a saúde  pública,  previsão  que  encontrou  guarita  no Título  III  da  Parte  Especial  (Dos  Crimes  contra  a 

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Tranqüilidade  Pública).  Juntamente  com  a incriminação do exercício irregular da medicina (art. 156); da prática da magia e do espiritismo (art. 157); do  curandeirismo  (art.  158);  do  emprego  de medicamentos  alterados  (art.  160);  do envenenamento  das  fontes  públicas  (art.  161);  da corrupção da água potável (art. 162); [...] o artigo 159 previa  como  delito  “expor  à  venda,  ou  ministrar, substâncias  venenosas  sem  legítima  autorização  e sem  as  formalidades  prescriptas  nos  regulamentos sanitários”, submetendo o  infrator à pena de multa (CARVALHO, 2010, p.11). 

Extrai‐se do excerto acima uma lacuna legislativa sobre o assunto, pois, até então, não havia previsão expressa da criminalização da conduta de  portar/adquirir  substâncias  entorpecentes  ilícitas  para  consumo pessoal. Após a publicação do diploma na década de noventa, ocorreram muitas alterações e leis esparsas regulando a matéria, em face disso, teve origem a Consolidação das Leis Penais em 1932, ocorrendo nova disciplina da  temática e o acréscimo de doze parágrafos ao artigo 159 do Código Penal de 1890. 

Não obstante, é com a edição do Decreto 780/36, modificado pelo Decreto n.° 2.953/38 e o Decreto‐Lei n.° 891/38, que verdadeiramente o Brasil  se  insere  na  política  proibicionista  relativa  às  substâncias entorpecentes. Assim, tratando do assunto, expõe Salo de Carvalho que: 

A  edição do Decreto‐Lei  891/38,  elaborado  de acordo  com  as  disposições  da  Convenção  de Genebra de 1936, regulamenta questões relativas à produção, ao tráfico e ao consumo, e, ao cumprir as recomendações  partilhadas,  proíbe  inúmeras substâncias  consideradas  entorpecentes (CARVALHO, 2010, p.12). 

É de se notar, que no final da década de trinta a política criminal de drogas  adquire  uma  verdadeira  roupagem  repressiva.  Dessarte,  o legislador ordinário se abstém de  tipificar condutas pontuais e  ingressa com  mais  afinco  no  modelo  internacional  de  repressão  às  drogas, tipificando a conduta de adquirir drogas para consumo pessoal. 

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Conforme descreve Vicente Greco e Rassi: 

[...]  foi  criada  a  Comissão  Nacional  de Fiscalização  de  Entorpecentes,  pelo  Decreto‐Lei  n. 3.114,  de  13  de  março  de  1941,  alterado  pelo Decreto‐Lei  n.  8.647,  de  1946,  com  atribuições  de estudar  e  fixar  normas  gerais  sobre  fiscalização  e repressão em matéria de entorpecentes, bem como consolidar as normas dispersas a respeito (VICENTE; RASSI, 2008, p. 02). 

Merece registro que o Decreto‐Lei n.° 891/38 surge por imperativo da Comissão Nacional de  Fiscalização de Entorpecentes,  inspirado pela Convenção  de Genebra  de  1936,  trazendo  em  seu  bojo  a  relação  das substancias  consideradas  ilegais.  Igualmente  restringiam  a  produção, tráfico e o consumo de drogas, vejamos os delitos definidos no art. 33 do Decreto‐Lei supramencionado: 

Facilitar,  instigar  por  atos  ou  por  palavras,  a aquisição,  uso,  emprego  ou  aplicação  de  qualquer substância  entorpecente,  ou,  sem  as  formalidades prescritas  nesta  lei,  vender,  ministrar,  dar,  deter, guardar,  transportar,  enviar,  trocar,  sonegar, consumir  substâncias  compreendidas  no  Art.1  ou plantar,  cultivar,  colher as plantas mencionadas no Art.2,  ou  de  qualquer  modo  proporcionar  a aquisição,  uso  ou  aplicação  dessas  substâncias  ‐ penas: um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000  a  5:000$000. § 1 ‐ Se o infrator exercer profissão ou arte, que tenha servido  para  praticar  a  infração  ou  que  tenha facilitado  ‐  penas:  além  das  supra  indicadas, suspensão do exercício da arte ou profissão, de seis meses  a  dois  anos.  §  2  ‐  Sendo  farmacêutico  o infrator ‐ penas: dois a cinco anos de prisão celular, multa  de  2:000$000  a  6:000$000  ‐  além  da suspensão do exercício da profissão por período de três  a  sete  anos.  §  3  ‐  Sendo  médico,  cirurgião‐dentista ou veterinário o  infrator  ‐ penas: de três a dez  anos  de  prisão  celular, multa  de  3:000$000  a 

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10:000$000  ‐  além  da  suspensão  do  exercício profissional de quatro a dez anos[5].” 

A propósito, o novel disciplinamento das drogas no Brasil passa a possuir um sistema punitivo autônomo, além da pena de multa que já era aplicada, há imposição da prisão celular após o devido processo legal caso o  agente  fosse  condenado.  Com  efeito,  a  expressão  “substâncias entorpecentes”  passar  a  substituir  a  palavra  “veneno”  que  antes  era utilizada no tipo legal. 

Por outro lado, com a entrada em vigor do Código Penal de 1940 há uma  recodificação  da  matéria,  tipificando  no  artigo  281  o  ilícito  de comercializar, possuir ou usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica. Inobstante, posteriormente é publicado o Decreto‐Lei n.° 4.720/42 que trata do cultivo de plantas entorpecentes e para  extração,  transformação  e  purificação  de  seus  princípios  ativo‐terapêuticos, e a Lei n.° 4.451/64 que  introduziu modificações no artigo 281 do Código Penal de 1940, acrescentando a conduta de plantar. Há, como  se  observa,  uma  descodificação  da  matéria,  passando  a  ser regulamentada por leis extravagantes.  

Com a Ditadura Militar há o ingresso definitivo do Brasil na ideologia internacional de combate às drogas, havendo a edição do Decreto‐Lei n.° 54.216/64 que aprovara a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, diploma  estabelecedor de medidas de  controle  e  fiscalização no plano nacional  contra  o  tráfico  ilícito  de  entorpecentes  e  cooperação internacional. A Portaria de 08 de maio de 1967 do Serviço Nacional de Fiscalização  de  Medicina  e  Farmácia  (SNFMF)  adotou  a  lista  de entorpecentes da  referida  convenção que era mais  completa que a do Decreto‐Lei n° 891/38. 

Por  conseguinte,  instalou‐se  o  discurso  oficial  ético‐jurídico  de combate aos produtos e substância determinados ilícitos. Sobressai, nesse ínterim, o estereótipo do usuário de drogas como um grupo desviante, degenerado, perturbador da paz e ordem social. Conforme preconizado pela Convenção Única o toxicômano constitui perigo social e econômico para convivência humana. 

No ano de 1967 entra em vigor o Decreto‐Lei n.° 159, ato normativo de suma  importância para repressão do uso de substâncias que causem dependência física e/ou psíquica, trazendo em seu bojo outras substâncias 

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capazes  de  determinar  subordinação  química  ou  física  para  fins  de controle  e  fiscalização.  Explicando  os  contornos  históricos  da matéria, Vicente Greco e Rassi expõem que: 

Em  30  de  janeiro  de  1968,  o  SNFMF regulamentou  a  extração,  produção,  fabricação, transformação,  preparação,  manipulação, purificação,  fracionamento,  embalagem, importação,  exportação,  armazenamento, expedição,  compra,  venda,  troca,  oferta,  cessão, prescrição  e  uso  das  substâncias  capazes  de determinar dependência física ou psíquica, trazendo em  anexo  a  tabela  com  o  rol  das  substâncias (VINCENTE; ROSSI, 2008, p. 03). 

Com a publicação do Decreto‐Lei n.° 385 em 1968,  foi alterada a redação do artigo 281 do Código Penal igualando a pena do usuário ao do traficante.  Posteriormente  há  nova  regulamentação  do  artigo  por intermédio  da  Lei  n.°  5.726/71,  restabelecendo  a  diferenciação  entre traficante e usuário. Esse novo disciplinamento é considerado a iniciativa mais  completa  e  válida  na  repressão  aos  tóxicos  no  âmbito mundial, trazendo medidas como  internação em estabelecimento hospitalar para tratamento psíquico pelo tempo necessário à sua recuperação. 

A Portaria do Ministério da Saúde n° 131 de 06 de abril de 1972 é publicada para aprovar o regulamento  interno da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CONFEN), órgão orientador e disciplinador da  fiscalização e  controle de  substâncias entorpecentes e equiparadas, com o  fito de reprimir o tráfico e utilização  ilícita. Esse órgão  foi criado pelo Decreto n° 780 de 28 de abril de 1936, e mantido pelo Decreto‐Lei n.° 891 de 1938. 

A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes constituiu órgão consultivo do Ministério da Saúde para orientar o Governo em suas relações com a ONU e outras autoridades internacionais ou estrangeiras, visando  o  cumprimento  de  acordos  e  convenções  sobre  a  matéria, sobretudo como instrumento de política sanitária relativa aos fármacos. 

É mantido o discurso médico‐jurídico com a publicação das Leis n.° 6.368/76 (substituindo a Lei 5.726/71) e n.° 10.409/2002, diferenciando o consumidor do traficante, mas ainda estabelecia a pena de prisão celular. 

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A  Lei  nº  10.409/02  é  promulgada  com  o  fim  de  substituir  aquela integralmente,  contudo,  tal  diploma  legislativo  foi  confeccionado  de péssimo modo, sendo vetado integralmente o Capítulo III, “Dos Crimes e das  Penas”. Vetou‐se  também o  artigo 59 que previa  a  revogação por inteiro  da  n.°  Lei  6.368/76,  permitindo  a  vigência  simultânea  dos  dois diplomas no que eram compatíveis. 

Nessa  feita,  as  substâncias  consideradas  ilícitas  passaram  a  ser reguladas pelas Portarias da denominada Agência Nacional de Vigilância Sanitária  (ANVISA),  especialmente  a Portaria  SVS/MS n° 344, de 12 de maio de 1988. O Decreto n° 85.110 de 02 de setembro de 1980 instituiu o chamado  Sistema Nacional  de  Prevenção,  Fiscalização,  e Repressão  de Entorpecentes, integrante do Conselho Federal de Entorpecentes (órgão central). 

No dia 22 de dezembro de 2000 entra em vigor o Decreto n.° 3.696 (substituindo o Decreto n° 85.110/80) que tratou do artigo 3° da Lei n.° 6.368/76, norma esta que dispunha sobre o Sistema Nacional Antidrogas (SISNAD). Doravante, o Decreto n.° 3.696/00 foi substituído pelo Decreto n° 5.912 de 27 de setembro de 2006, passando a regulamentar o SISNAD, criado posteriormente pela atual Lei Antidrogas. 

Impende salientar que a Constituição Federal de 1988 ampliou o rol das  penas  (rol  não  taxativo),  prevendo  em  seu  inciso  XLVI  que  “a  lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a)  privação  ou  restrição  da  liberdade;  b)  perda  de  bens;  c) multa;  d) prestação  social alternativa; e) suspensão ou  interdição de direitos”[6]. Dessa  forma,  abriu  espaço  para  uma  nova  regulamentação  legislativa, estabelecendo  ainda  a  criação  dos  Juizados  Especiais  Criminais  para  a conciliação,  julgamento  e  execução  de  infrações  de  menor  potencial ofensivo (Lei n.° 9.099 de 1995). 

Na sequência evolutiva da legislação, o Projeto n° 7.134 de 2002 do Senado Federal ‐ que lhe foi apensado o Projeto n° 6.108/2002 do Poder Executivo  ‐  foi  reeditado  pelo  Senador  Romeu  Tuma  e  recebeu substituição na Câmara, voltando ao Senado onde recebeu emendas e se converteu  na  Lei  n.°  11.343  de  2006.  Com  a  entrada  em  vigor  desse diploma, deixa‐se de ser aplicada a pena de prisão ao usuário de drogas, não podendo em nenhuma hipótese o usuário ser submetido à prisão. 

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É de bom alvitre salientar que, sendo o agente incurso no artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 poderá ser submetido às penas alternativas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestar serviço à comunidade ou medida socioeducativa. Caso seja reincidente, poderá sofrer admoestação verbal e/ou multa, conforme § 6°, do artigo 28 da Lei sobre Drogas, mas nunca ser conduzido à prisão. 

.   Artigo   da Lei n.°  .  de   

Tema de grande  relevância no perímetro do Direito Penal e que merece ser tratado, mesmo que de forma sucinta, diz respeito ao conceito de crime. Para inteligibilidade dos contornos atinentes ao artigo 28 da Lei Antidrogas, imprescindível trazer à baila os elementos caracterizadores do delito e, doravante, perscrutarmos sobre o tipo legal ora em comento. 

A  doutrina,  com  o  passar  do  tempo,  foi  amadurecendo  e fornecendo  elementos  mais  seguros  sobre  as  condutas  humanas consideradas  desviantes,  desenvolvendo‐se  teorias  unitárias  e estratificados  (vários  planos  analíticos)  acerca  dos  fatos  delituosos. Conforme é cediço, uma das principais funções do Direito Penal consiste na  sua  finalidade  preventiva,  tentando,  por  intermédio  de  normas proibitivas e suas respectivas sanções, dissuadir as pessoas de cometerem transgressões ao ordenamento jurídico. 

Basicamente,  até  chegarmos  à  moderna  teoria  geral  do  crime perpassamos  por  três  fases  distintas  que  não  se  excluem:  o  conceito clássico de delito, o conceito neoclássico de delito e o conceito finalista de delito.  Dessa  forma,  espargindo  brilhantismo,  assenta  Cesar  Roberto Bitencourt em seu tratado de Direito Penal que: 

A  atual  concepção  quadripartida  do  delito, concebida como ação, típica, antijurídica e culpável (essa concepção pode ser definida como  tripartida, considerando  somente  os  predicados  da  ação, tipicidade,  antijuridicidade  e  culpabilidade),  é produto de construção recente, mais precisamente, do  final  do  século  XIX.  Anteriormente,  o Direito  comum  conheceu  somente  a  distinção entre imputatio facti e imputatio iuris. Como afirma Welzel,  “a  dogmática  do  Direito  Penal  tentou compreender, primeiro (desde 1884), o conceito do 

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injusto, partindo da distinção: objetivo‐subjetivo. Ao injusto  deviam  pertencer,  exclusivamente,  os caracteres externos objetivos da ação, enquanto que os elementos anímicos subjetivos deviam constituir a culpabilidade (BITENCOURT, 2007, p. 205). 

Hodiernamente,  como  apontado  pelo  preclaro  doutrinador,  o critério  majoritariamente  circundado  no  Brasil  se  refere  ao  conceito “analítico de crime” que, nos dizeres de Francisco de Assis: 

[...]  dentre  as  várias  definições  analíticas  que têm  sido  propostas  por  importantes  penalistas, parece‐nos mais  aceitável  a  que  considera  as  três notas  fundamentais  do  fato‐crime,  a  saber:  ação típica  (tipicidade),  ilícita  ou  antijurídica  e  culpável (culpabilidade).  O  crime,  nessa  concepção  que adotamos,  é,  pois,  ação  típica,  ilícita  e  culpável (TOLEDO, 1994, p. 80). 

Sobre o tema continua Cezar Roberto ao afirma: 

O  próprio  Welzel,  na  sua  revolucionária transformação  da  teoria  do  delito,  manteve  o conceito analítico de crime. Deixa esse entendimento muito  claro  ao  afirmar  que  “o  conceito  de culpabilidade  acrescenta  ao  da  ação  antijurídica  – tanto  de  uma  ação  dolosa  como  não  dolosa  –  um novo elemento, que é o que a converte em delito”. Com essa afirmação Welzel confirma que, para ele, a culpabilidade é um elemento constitutivo do crime, sem  a  qual  este  não  se  aperfeiçoa  (BITENCOURT, 2007, p. 210). 

Desses entendimentos acima esposados podemos  inferir que, em relação à concepção analítica, para a existência de um fato criminoso se faz necessária uma conduta típica, antijurídica e culpável. Sem a existência desses três elementos o crime, em sua vertente jurídica, pode não existir. Como a proposta desse tópico é analisar a conduta de trazer consigo ou adquirir drogas para consumo pessoal, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ou seja, a figura prevista do art. 28 da Lei n.° 11.343 

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de 2006, nos ateremos a perquirir as nuances do elemento denominado de “fato típico”. 

. .   O Tipo Criminoso 

O Direito Penal  regula as  condutas humanas que  se ajustam aos seus  dispositivos  legais,  ou  seja,  ações  ou  omissões  especificadas  nos denominados  tipos  penais.  Destarte,  por  interlúdio  dessas  descrições normativas, busca‐se tutelar os valores mais nobres dos seres humanos, a exemplo da liberdade, à vida, dentre outros bens jurídicos. 

Nessa  senda,  os  elementos  insertos  nos  textos  normativos possibilitam  a  diferenciação  entre  os  atos  de  vontade  proibidos  dos permitidos, isto é, quando uma pessoa pratica uma ação ou omissão que se ajuste a um desses comandos descritivo‐normativos, diz‐se que  fora praticada um fato típico. Consoante explicita Zaffaroni e Pierangeli (2011, p.  387),  “obtivemos  já  duas  características  do  delito:  uma  genérica (conduta) e outra específica (tipicidade), ou seja, que a conduta típica é uma espécie do gênero conduta”. 

Assim  sendo,  são modelos absortos de  comportamentos que,  se forem  realizados, haverá  responsabilização penal. Ainda  sobre o  tema, expõe  Zaffaroni  e  Pierangeli  (2011,  p.  388)  que  “os  tipos  penais  são instrumentos  legais,  logicamente  necessários  e  de  natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes”. 

A conduta que ora se analisa e seus demais delineamentos estão expressos no artigo 28 da Lei de Drogas, segue a redação: 

Art.  28.  Quem  adquirir,  guardar,  tiver  em depósito,  transportar  ou  trouxer  consigo,  para consumo  pessoal,  drogas  sem  autorização  ou  em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:  I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à  comunidade;  III  –  medida  educativa  de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1°  Às  mesmas  medidas  submeti‐se  quem,  para consumo  pessoal,  semeia,  cultiva  ou  colhe  plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de 

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substâncias ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2° Para determinar  se a droga destinava‐se  a  consumo  pessoal,  o  juiz  atenderá  à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao  local  e  às  condições  em  que  se  desenvolveu  a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à  conduta  e  aos  antecedentes  do  agente.  §  3°  As penas  previstas  nos  incisos  II  e  III  do  caput  deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.  §  4°  Em  caso  de  reincidência,  as  penas previstas  nos  incisos  II  e  III  do  caput  deste  artigo serão  aplicadas  pelo  prazo  máximo  de  10  (dez) meses. § 5° A prestação de  serviços à  comunidade será  cumprida  em  programas  comunitários, entidades  educacionais  ou  assistenciais,  hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem  fins  lucrativos,  que  se  ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6° Para garantia das medidas a que se refere o caput, nos incisos I, II, III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê‐lo, sucessivamente a:  I  –  admoestação  verbal;  II  – multa.  §  7° O  juiz determinará  ao  Poder  Público  que  coloque  à disposição  do  infrator,  gratuitamente, estabelecimento  de  saúde,  preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado[7].  

Merece ser dito que essa norma pode ser visualizada de acordo com os  seus  elementos: os objetivos‐descritivos, os normativos  (expressões que necessitam de uma verificação cognitiva para extrair seus sentidos) e os  subjetivos.  É  preciso  verificar  cada  uma  dessas  informações  para entendermos de  forma clara e precisa quais comportamentos humanos que se amoldam ao tipo em comento.  

Os  verbos  ‐  elementos  objetivos  ‐  são  os  núcleos  do  tipo  penal alocados no  texto, consubstanciando em ações penalmente  relevantes. Pela redação do artigo retrotranscrito, verifica‐se que foi promovido um alargamento na criminalização do usuário de drogas. Antes, o artigo 16 da Lei n.° 6.368 de 1976 previa apenas as condutas de adquirir, guardar e ter 

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em depósito, sendo acrescido pela nova lei os verbos transportar ou trazer consigo substâncias ou produtos proscritos pela lei brasileira, ocorrendo à chamada novatio legis incriminadora. 

Praticar a conduta constante no verbo adquirir significa comprar, angariar  mediante  o  pagamento  ou  de  forma  gratuita.  Em  relação  à expressão guardar, possui o sentido de conservar para utilização em curto período, proteger. Ademais, trazer consigodenota a ideia de ter  junto ao corpo, na carteira, bolso, ou outro meio. Ter em depósito significa maior perpetuidade e quantidade relacionada às substâncias psicotrópicas. Por fim, transportarsignifica levar de um lugar para outro por intermédio  de veículos, sacolas, malas, e etc. 

A posteriori, em seu parágrafo primeiro, o artigo também prevê os comportamentos  de  semear  (propalar),  cultivar  (amanhar)  ou  colher (recolher) substâncias ou produtos que possam causar dependência física ou psíquica, não havendo maiores controvérsias quanto ao sentido desses verbos. 

Importante  destacar  que  as  condutas  de  usar  ou  consumirnão configuram ilícito penal  por falta de previsão normativa (em consonância com  o  princípio  da  legalidade).  Basta  imaginarmos  uma  pessoa  sendo flagrada após a utilização de alguma substância estupefaciente, a saber, a maconha,  a  cocaína,  o  crack,  dessa  forma,  terminantemente  este indivíduo não terá praticado qualquer conduta ilícita (ou antijurídica). 

Em  outro  giro,  o  elemento  subjetivo  do  crime  se  consubstancia no dolo, ou seja, na vontade livre e consciente de praticar alguma conduta descrita  como  delito.  Traçando  os  contornos  do  tema,  Moraes  e Capobianco afirmam que o crime doloso: 

É  aquele praticado pelo agente que objetiva o resultado  ou  que,  no  mínimo,  assume  o  risco  de produzi‐lo,  isto é,  tem  consciência da  conduta que pratica.  Dolo  é  a  vontade  livre  e  consciente  de praticar  a  ação  ou  omissão,  de  executar  o  fato definido  como  crime  pela  letra  da  lei  (MORAIS; CAPOBIANCO, 2010 p.150). 

In  casu,  seria  a  vontade  livre  e  consciente  de  adquirir  ou  trazer consigo substância entorpecente na forma prevista no artigo 28 da Lei de 

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Drogas.  Não  menos  importante,  porém,  que  a  assunção  do  risco  de produzir o resultado desejado (dolo), é impreterível à vontade “específica” de  obter  a  droga  para  uso  pessoal.  Sem  a  presença  desse  elemento específico da redação legal, o autor terá praticado crime diverso ou o fato será irrelevante para o Direito Penal. 

Corroborando  o  exposto,  verbi  gratia,  na  hipótese  de  alguma pessoa trazer consigo algum tipo de substancia estupefaciente (o crack, por exemplo) com o objetivo de vendê‐la, ao invés de consumi‐la, estará inserto na figura prevista no art. 33 da Lei n.° 11.343 de 2006, praticando o tráfico ilícito de drogas. 

Nesse ponto, com o fito de diferenciar o usuário do traficante de drogas ‐ isso porque as cinco condutas que estão previstas no artigo 28 da Lei n.° 11.343 de 2006 também aparecem em seu artigo 33 que dispõe sobre  a  figura  do  tráfico  de  drogas  ‐  o  §  2°  traz  critérios  objetivos  e subjetivos  de  diferenciação.  Desta maneira,  os  operadores  do  direito como os Delegados de Polícia, Promotores e Juízes deverão se atentar à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoas, bem como à conduta e aos antecedentes do agente[8]. 

 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Considerações acerca do tema “uso de drogas” e seus consectários à sociedade não é tarefa simples, pois envolve vários seguimentos sociais como religião, sistemas oficiais de controle social, a moralidade, dentre outros. Observa‐se um grande empreendimento de esforços por parte dos países  para  buscar  uma  fórmula  que  chegue  perto  de  arrefecer  os transtornos que envolvem a dependência química. 

No passado o Brasil na  tentativa de solucionar o  tráfico social de substâncias proibidas e o  seu  consumo,  aplicou  ao  consumidor  sanção penal semelhante à estabelecida ao  traficante,  impondo‐lhe ao  final do devido  processo  legal  pena  de  prisão.  Com  a  densificação  do constitucionalismo no século XX, altera‐se a perspectiva de interpretação do ordenamento jurídico, com a Constituição Federal servindo de filtro a produção legislativa infraconstitucional. 

Com o objetivo de  respeitar os valores expressos na constituição federal, principalmente os princípios da privacidade e  intimidade, a  Lei 

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11.343 de 2006 em seu artigo 28 deixou de prever a prisão celular para usuário, e a Política Nacional de Drogas advém com um viés sanitarista. Deste modo  o  Brasil  chega  perto  dos  principais  sistemas mundiais  de combate ao uso de drogas, em que o agente é visto como alguém que precisa das mãos do Estado para se livrar do vício que assola sua saúde. 

Não obstante o adquirir/portar drogas para consumo pessoal ainda é  considerado  crime pelo Supremo Tribunal Federal,  ressaltando que a Corte Superior se debruça sobre o Recurso Extraordinário (RE) 635659 em que  se  discute  a  inconstitucionalidade  do  artigo  28  da  Lei  de  Drogas. Pedido de vista do ministro Teori Zavascki  suspendeu o  julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral. 

Em  voto‐vista  apresentado  ao  Plenário,  o  ministro  Fachin  se pronunciou pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, que criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal, restringindo  seu  voto  à maconha,  droga  apreendida  com  o  autor  do recurso. O ministro explicou que, em temas de natureza penal, o Tribunal deve  agir  com  autocontenção,  “pois  a  atuação  fora  dos  limites circunstanciais  do  caso  pode  conduzir  a  intervenções  judiciais desproporcionais”. 

O  ministro  Roberto  Barroso  também  limitou  seu  voto  à descriminalização da droga objeto do RE e propôs que o porte de até 25 gramas  de maconha  ou  a  plantação  de  até  seis  plantas  fêmeas  sejam parâmetros de  referência para diferenciar consumo e  tráfico. Portanto, sinaliza a Suprema Corte em considerar inconstitucional o portar/adquirir drogas  para  consumo  pessoal,  seguindo  uma  tendência  mundial  em constatar a derrocada da guerra contra as drogas, causadora de milhares de mortes a cada ano no Brasil e no mundo. 

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NOTAS:

[1] Expressão entendida como “fale baixo”.

[2] [...] a uma ideologia caracterizada por uma concepção abstrata e ahistórica da sociedade onde se destacam fundamentalmente os princípios do bem e do mal e da culpabilidade, necessária nesse momento como centralizadora e unificadora das normas universais que ser impostas.

[3] O governo dos EUA também pressionou essas ditaduras para declarar guerra à droga, em uma primeira versão intimamente ligada à segurança nacional: o comerciante era um agente que visaenfraquecer a sociedade ocidental, o jovem que fumou maconha era um subversivo, é confuso e identificou os guerrilheiros comtraficantes de drogas (narcoguerrilla), etc Quando ele se aproximou da queda do Muro de Berlim, um outro inimigo era necessário para justificar a alucinação de uma nova guerra emanter altos níveis de repressão. Isto foi reforçado pela guerra contra as drogas.

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[4]  Disponível  em: 

<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1240.htm>.  Acesso  em  25 

Agost. 2012.

[5] Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/legis/decreto_lei/891_38.htm>. Acesso em 28 Agost. 2012.

[6] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 30 Agost. 2012.

[7] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 01 Set. 2012.

[8] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 05 Set. 2012.

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ESTUDO DE CASO: VOTO DO MINISTRO GILMAR MENDES NA SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA N. 175 E SEUS IMPACTOS NO DIREITO SOCIAL À SAÚDE PÚBLICA

SAMUEL DE JESUS VIEIRA: Advogado atuante nas áreas Civel, Administrativo e Consumidor.

RESUMO: A presente pesquisa trata de analisar o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes do supremo tribunal federal na STA 175 onde figuravam como partes interessadas a União e o município de Fortaleza – CE. A decisão tem especial importância por demonstrar a sedimentação da judicialização das políticas públicas, em especial as relacionadas à saúde pública, de especial interesse de toda a sociedade.

PALAVRAS – CHAVE: Políticas públicas. Direitos sociais. Saúde pública. Sociedade. Judicialização.

ABSTRACT: The present research examines the vote of Minister Gilmar Mendes of the Federal Supreme Court in STA 175 where the Union and the municipality of Fortaleza - CE appeared as interested parties. The decision is of particular importance for demonstrating the sedimentation of the judicialization of public policies, especially those related to public health, which are of particular interest to society as a whole.

KEYWORDS: Public policies. Social rights. Public health. Society. Judiciary.

1. CONCEITOS INICIAIS: DIREITOS SOCIAIS, POLITICAS PÚBLICAS E JUDICIALIZAÇÃO

A concretização de direitos fundamentais é sempre assunto importante quando se trata da prestação de serviços públicos, mais especificamente no que tange a analise de sua adequação as previsões constitucionais relativas ao tema.

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Os direitos fundamentais, ao longo do tempo, sofreram importantes mudanças no que se refere a sua interpretação. Foram inúmeras as fases até se alcançar, apesar de bastante óbvio atualmente, a idéia de direitos fundamentais coletivos, ditos direitos da sociedade ou sociais.

Na lição de Alexandre de Moraes (2016, p.202), os sociais “são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal”

A constituição federal tratou de alçar os direitos sociais a condição de direitos indisponíveis além de auto-aplicáveis, tudo com o objetivo de garantir máxima eficácia no momento de sua aplicação.

Interessante ainda notar que, em muitas situações os direitos sociais são entregues a sociedade através das chamadas políticas públicas, estas podem ser conceituadas, nas palavras do ilustre doutrinador José dos Santos Carvalho Filho como sendo:

Políticas públicas, por conseguinte, são as diretrizes, estratégias, prioridades e ações que constituem as metas perseguidas pelos órgãos públicos, em resposta às demandas políticas, sociais e econômicas e para atender aos anseios das coletividades. Nesse conceito tem-se que diretrizes são os pontos básicos dos quais se originara a atuação dos órgãos; estratégias correspondem ao modus faciendi, isto é, aos meios mais convenientes e adequados para a consecução das metas obtidas mediante processo de opção ou escolha, cuja execução antecederá à exigida para outros objetivos; e ações constituem a efetiva atuação dos órgãos públicos para alcançar seus fins. As metas constituem os objetivos a serem alcançados: decorrem na

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verdade, das propostas que nortearam a fixação das diretrizes. (CARVALHO FILHO, 2006, p.107)

Outro importante fator a ser informado inicialmente é que em muitos os casos o poder público se abstém de realizar determinadas ações que se constituem em verdadeiras obrigações sociais do Estado para com a sociedade, essa situação de abstenção estatal acaba gerando um conflito de interesses, de um lado o poder público alegando falta de receitas públicas suficientes para concretizar ações governamentais de caráter obrigatório, e, do outro os particulares lesados em seus direitos buscando, quase sempre judicialmente, a prestação estatal que lhe é devida.

Com o aumento desse problema e a constante busca da sociedade por uma prestação social através de uma decisão judicial positiva, surge na doutrina e jurisprudência a discussão a cerca desse fenômeno, o qual ficou batizado de judicialização das políticas públicas, que se constituem na busca ao judiciário como última alternativa para a obtenção da prestação de um dever estatal instrumentalizado em uma prestação social normalmente entendida como uma política pública.

O objeto do presente estudo é analisar a o voto do ministro Gilmar Mendes na STA 175 em que foi discutida justamente o tema da judicialização da saúde pública, tema este que se encontra em voga e cada vez mais vem tomando as rodas de debates acadêmicos pela sua essencial importância no contexto das políticas publicas relacionadas a saúde pública.

2. A STA 175

A suspensão de tutela antecipada 175 trata de um caso modelo em que o poder judiciário interveio em uma ação que versava sobre a prestação do direito à saúde pública, garantido assim que a tutela á esse direito social fosse satisfeita.

A lide versava sobre a entrega de medicamentos Zavesca (miglustat) à pessoa beneficiada na ação. Figurava como obrigados a União, o Estado do Ceará e o município de Fortaleza.

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Os entes públicos alegaram, como de praxe, a violação do principio da separação dos poderes, grave violação a ordem econômica e saúde pública para se abster de cumprir a obrigação que lhes é incumbida.

O que chamou a atenção no julgamento foram os apontamentos feitos pelo ministro Gilmar Mendes ao proferir seu voto, se posicionando favoravelmente ao direito à prestações estatais positivas em matéria de direitos sociais.

O que chamou mais atenção foi a quebra do argumento sempre corriqueiro em questões semelhantes em que o ente estatal alega violação do principio da separação dos poderes na atitude do judiciário em buscar obrigar o ente público a prestar de forma positiva o direito a saúde do individuo, mesmo alegando reserva do possível nesses casos, Como se vê abaixo no trecho extraído do voto do relator ministro Gilmar Mendes:

O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do Direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder judiciário é fundamental par o exercício efetivo da cidadania e para a realização do direito à saúde, por outro as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os elaboradores e executores das políticas públicas, que se vêem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e além das possibilidades orçamentárias. (...)

(...) A intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária

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determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas.

O ministro Gilmar Mendes, com isso, buscou afastar a possibilidade de qualquer argumento no sentido de impossibilidade da prestação pública de serviço à saúde em virtude haver quebra da autonomia dos entes estatais.

Importante destacar que o ministro Gilmar Mendes ainda aponta que reconhece um direito público subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde, mas não há direito absoluto a todo e qualquer procedimento que recupere a saúde. Nesse sentido, o ministro constatou que muitos casos envolvendo o direito à saúde não configuram intervenção indevida do Judiciário na livre apreciação ou discricionariedade de formulação de políticas públicas pelos demais poderes. Isto se deve ao fato de muitas vezes o que se pede é o cumprimento de política já estabelecida, o que não caracteriza elaboração de políticas públicas pelo juiz.

Muitas vezes o que ocorre é somente a efetivação de políticas que já se encontram na esfera de obrigação do ente público, e que, o que ocorre é somente a imposição de seu cumprimento que não vem sendo prestado de forma regular ou se quer vem ocorrendo.

Esse entendimento, ampliado para os demais direitos sociais, leva a conclusão que a atuação judicial deve ser exceção, mas não impossível diante de omissões, sejam administrativas, sejam legislativas. Assim, quando não se têm obrigações específicas previstas na Carta Magna, diante da interpretação do art. 5, §1º, CF, não existem óbices a eventuais interferências judiciais para concretizar direitos sociais.

O poder judiciário não atua adentrando na competência, seja administrativa ou legislativa, dos demais órgãos e agentes públicos. O que se verifica na judicialização de direitos sociais como os em discussão, é tão somente a busca pelo poder judiciário em efetivar a prestação de serviços públicos. 3. REPERCUSSÕES DO JULGAMENTO DA STA 175

Muitas foram as discussões travadas em torno do julgamento da STA 175, a maioria no âmbito doutrinário onde se buscou traçar

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uma nova perspectiva na atuação do judiciário quando o assunto é o alcance de seus julgados.

O que se verificou foi que a judicialização de direitos se transformou em um debate sobre o papel do judiciário na sociedade. Há os que apontam que o mesmo deve se limitar a não interferir na esfera de competência de outros entes e também existem apontamentos que corroboram com a idéia de um poder judiciário social e atuante em matérias de cunho social.

Certo é que, a judicialização de matérias relacionadas a políticas públicas trás em si um desabafo da sociedade que em muitas situações se via de braços cruzados sem qualquer auxilio do poder público para que fossem efetivados seus direitos.

O judiciário ao instrumentalizar, de forma efetiva, a entrega de prestações positivas à sociedade mostra a obrigação dos entes púbicos de promover o bem social, mesmo que essa obrigação seja imposta ao ente público por outro ente estranho a entrega das prestações sociais positivas a que é incumbido.

A doutrina e jurisprudência nacionais ainda discutem a judicialização de políticas públicas acirradamente, estabelecendo limites e formas que tendem a evoluir muito, visto que a discussão apesar de grande ainda é jovem e tende a sofrer transformações.

4. CONCLUSÃO

Com isso, ficou clara a intenção do ministro Gilmar Mendes em deixar assentado que nem sempre se busca, pela via judicial, que o mesmo promova uma inovação em determinado plano de governo para que seja implementada determinada política social, muitas vezes essas políticas já existem e o que se busca é sua efetivação no campo social.

A própria constituição estabelece essa premissa quando assim expõe “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Fica ainda clara a necessidade de medidas sociais de caráter preventivo e de prestação eficiente que evitem a busca constante

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ao judiciário. Os entes públicos devem criar meios céleres e efetivos de concretização de direitos sociais.

Existindo o direito fundamental à saúde no ordenamento, há o correspondente dever do Estado (União, Estados, Distrito Federal e municípios) em prestá-lo. A questão da garantia mediante políticas sociais e econômicas, para o Ministro Gilmar Mendes necessita de formulação de políticas públicas que concretizem o direito à saúde por meio de escolhas alocativas. Essas políticas devem visar à redução do risco de doença e de outros agravos – caráter preventivo – e o acesso universal e igualitário a todos, a reforçar a responsabilidade solidária dos entes da Federação.

O problema a ser solucionado talvez não seja o judiciário interferindo na administração como costumeiramente apontado pelos entes públicos, quando judicializando determinadas matérias busca implementar políticas sociais em matéria de saúde, uma vez que, em muitas vezes o que está em voga são políticas já existentes. Analisando isso como critério para decisão, o Ministro Gilmar Mendes demonstra que a existência, ou não, de política estatal (formulada pelo SUS) que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte se mostra como um primeiro parâmetro a ser considerado. Porém, se esta não existir, deve-se distinguir entre três situações: se a não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la ou de uma vedação legal a sua dispensa.

Com isso fica claro que a judicialização de políticas sociais, como por exemplo as voltadas a saúde pública, objeto do trabalho, nem sempre são obrigações impostas pelo judiciário à administração pública, e que interfiram nas metas e planos de governo que foram traçados. A judicialização busca trazer concretude a preceitos que já são deveres dos entes públicos e que são inerentes á própria atividade administrativa e em nada confronta o principio da separação dos poderes, visto que a todo poder é dada a obrigação de cumprir os preceitos que estão estabelecidos na Constituição Federal.

BIBLIOGRAFIA

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NOVOS FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DO DIREITO PENAL E DA CRIMINOLOGIA: IDEOLOGIAS, HERMENÊUTICAS E OS DILEMAS DAS LIBERDADES

OSVALDO DE OLIVEIRA BASTOS NETO: Bacharel em Direito - FBB; Bacharel em Ciências Sociais - UFBa; Mestre em Sociologia - UFBa; Professor universitário e de faculdades; Atualmente leciona em cursos de graduação: Direito e Serviço Social; Leciona em cursos de pós-graduação: Agência Brasileira de Análise Criminal - ABACRIM, Curso de Especialização em Segurança Pública - (CESP-PMBa), Curso de Especialização em Gestão Estratégica de Segurança Pública - (CEGESP-PMBa); Autor de Livros especializados, artigos acadêmicos e crônicas. Coordenador do Observatório de Estudos Criminais - Salvador - Ba.; Coordenador do Seminário em Direito Penal, Literatura e Hermenêutica: Coordenador Adj. do Curso de Especialização em Ciências Criminais e Sistemas Prisionais - Dom Petrum.

Resumo:  Aponta  para  as  novas  transformações  nos  fundamentos  do 

Direito  Penal  e  da  Criminologia,  ressaltando  a  perspectiva  ideológica 

revolucionária destes novos “fundamentos”. Salienta também a dicotomia 

ente modernidade e pós‐modernidade e os seus reflexos no pensamento 

jurídico. Além disso, retoma os  fundamentos  teológicos e  filosóficos do 

pensamento moderno para explicar as  transformações no pensamento 

jurídico pós‐moderno. 

Capítulo  I  –  Introdução:  A  Ideologia,  Modernidade  e  Pós‐

Modernidade

A definição de modernidade sempre foi um desafio. Mas podemos 

traçar  alguns  parâmetros  básicos  que  sustentam  a  possibilidade  de 

entendermos  tal  fenômeno.  Cabe,  antes  de  tudo,  apontar  que  deste 

trabalho  tenta‐se entender os  fundamentos epistemológicos do Direito 

moderno e agora, no mesmo sentido, os desafios do Direito pós‐moderno 

em  meio  a  um  contexto  de  complexas  mudanças  paradigmáticas  e 

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discursivas.  Nesse  sentido,  é  tomado  como  parâmetro  de  análise  de 

fenômeno  de  “pensamento  laico”  que  culmina  no  século  XVIII  com 

aparecimento do conceito de “Ideologia”. 

Diante  de  tantas  possibilidades  de  traçarmos  os  caminhos  da 

Modernidade e, do Direito Moderno, como sua criação suprema é possível 

partir  do  pressuposto  de  que  a  “era  moderna”  e  nela  o  chamado 

“pensamento  moderno”  surgem  de  um  ambiente  no  qual  está  em 

formação  um  universo muito mais  amplo  que  costuma‐se  chamar  de 

“civilização ocidental” ou  “cultura ocidental”. Assim  sendo,  três pilares 

formam  essa  cultura ocidental:  a  filosofia  e  a  cultura  greco‐romana;  o 

Direito Romano e a  tradição  judaico‐cristã. Ainda nesse último quesito, 

algo que terá reflexo em toda a formação do “Pensamento Moderno” e, 

por  isso,  do  “Direito Moderno”,  as  “Questões  Teológicas”,  que  tantas 

vezes  impregnaram  as  filosofias  medievais  e  modernas,  orientando, 

mesmo  quando  se  falou  num  suposto  pensamento  laico,  debates  que 

resultaram  num  universo  heterogêneo, mas  que,  com muito  esforço, 

podemos chamar de: “pensamento moderno”. 

O Direito então passa a ser o universo aonde mais se refletem esses 

debates e questionamentos. É neste universo, no qual  teoria  jurídica e 

teoria política ainda se confundiam, que  irá se buscar  respostas para o 

possível ordenamento de uma sociedade que, tida como um projeto, que 

visava possibilitar a convivência entre os seres humanos, a tal sociedade 

moderna. Dentre as “questões teológicas” o problema da “Queda” e da 

origem do mal cobram respostas da Filosofia e em seguida de um Direito 

que  foi  pensado  e  repensado  como  forma  de  sustentar  um  Contrato 

Social. Ou seja, o homem sobre o qual se volta a Filosofia Moderna e toda 

a sua trajetória laica é o homem da “Queda”, aquele que foi expulso do 

paraíso. Essa questão vai ser fundamento para todo o universo Moderno 

e agora Pós‐Moderno. A partir daí, outras dúvidas teológicas surgem e se 

infundem na filosofia contribuindo para o sustento da tradição moderna, 

tais  como:  “Deus existe?”,  “Deus desistiu da humanidade ou perdeu o 

controle?”, “Como explicar e conter o Mal?”. E agora, num mundo sem 

Deus, como explicar o Ser?”. É a partir destes questionamentos básicos 

que  se  sustentam  todas  as  discussões  política  e  jurídica,  repletas  de 

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ideologias  e  suas  respectivas utopias para  as quais, o Direito  e  Estado 

modernos, são chamados a ordenar e legitimar. 

Em passagem ilustrativa, ensina e esclarece Daniel‐Rops: 

O  fascínio  dos  livros  de  viagens  ‐  até, 

paradoxalmente, o grande interesse pelas missões – 

acabava  por  criar  a  famosa  lenda  do  “Bom 

Selvagem”,  tão  cheio  de  virtudes,  tão  superior  ao 

homem civilizado, e que não  tivera necessidade do 

Evangelho para ser perfeito...  [...] Os “filósofos” do 

século XVIII – Diderot, com a Enciclopédia, e Voltaire 

– foram buscar ao Dicionário inúmeras armas para as 

suas lutas anti‐religiosas. [...] Assim nasceu a querela 

entre os antigos e os modernos, em que intervieram 

os maiores nomes da literatura. (2001, p. 27 a 32) 

A trajetória filosófica, discursiva e mesmo epistemológica que levou 

ao aparecimento do conceito de Ideologia, tem entendimento pacífico na 

literatura  de  referência  (VINCENT,  1995;  ARENDT,  1979;  THOMPSON, 

1990). Como consequência de uma trajetória intelectual na qual filósofos 

e  philosophes,  buscaram  encontrar  explicações  para  o  entendimento 

humano que estivessem afastadas, cada vez mais, dos antigos paradigmas 

medievais  contrários  a  uma  visão  antropocêntrica  da  Razão.  Em 

esclarecedora  lição,  Adão  Lara  em  “Caminhos  da  Razão  no  Ocidente” 

(1986) afirma que: 

Os  medievais,  quando  queriam  justificar  os 

valores  fundamentais  da  civilização,  recorriam  às 

letras  divinas  (a  Bíblia).  [...]  Nos  séculos  da  Idade 

Média,  o  homem  é  olhado  como  uma  criatura  de 

Deus.  Ele  se  define,  na  relação  com  o  absoluto,  o 

transcendente,  o  que  está  além  deste  cosmos 

concreto  e material, no qual  vivemos.  [...] A partir 

dela toda a cultura se estrutura e toda a civilização se 

organiza.  [...]  A  racionalidade  da  convivência  era 

explicada pela teologia, articulação racional da Bíblia, 

a  qual  contém  a  revelação  divina  e  era 

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institucionalizada pela Igreja. O medieval, antes de se 

sentir membro de qualquer Nação ou Estado, sentia‐

se membro da cristandade. (p. 26, 27, 28) 

A  transição para o  racionalismo moderno,  como  assim podemos 

chamar,  é  por  demais  complexa  e  percorreu  uma  linha  temporal 

impossível  de  ser  abordada  em  toda  sua  amplitude  num  trabalho 

introdutório.  Cabe  aqui,  apenas,  pontuar  passagens  e  conceitos 

importantes  para  a  construção  do  raciocínio  que  perpassa  essa 

monografia. Feito este esclarecimento, ainda baseado na  lição de Adão 

Lara (1986): 

A  cultura  humanista,  pelo  contrário,  parte  de 

outra premissa: é possível, urgente e proveitoso levar 

até às últimas consequências a força da racionalidade 

e da natureza humana, prescindido da revelação e da 

graça  divinas.  Não  se  tratava  de mandar  Deus  às 

favas. Para a maior parte dos humanistas, tratava‐se 

de pedir a Deus para esperar um pouco, na sala de 

visitas, até que a razão acabasse o seu trabalho. Era 

um novo mundo a ensaiar. (p.31) 

Entendimento semelhante tem Gonçal Mayos (2004), que, em “O 

Iluminismo Frente ao Romantismo no Marco da Subjetividade Moderna”, 

afirma: 

Em primeiro  lugar devemos definir o que deve 

ser  compreendido  como  o  projeto  constitutivo  da 

Modernidade  (presente  em  toda  ela  ao  menos 

implicitamente). O essencial do projeto moderno é a 

assunção  do  desafio  de  que  a  humanidade  se 

colocasse totalmente a cargo de si própria a partir de 

suas  exclusivas  potencialidades  e  faculdades.  Ele 

implicava  a  renúncia  absoluta  a  toda  instância  ou 

pretensão que não poderia ser validada a partir do 

estritamente  humano,  superando:  os  ideais  ou 

preconceitos  aceitos  sem  crítica,  a  autoridade 

injustificada,  toda  tradição  imposta,  toda 

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transcendência  que  não  se  desprendesse  da 

imanência, etc. Para isso, na Modernidade partia‐se 

essencialmente  do  sujeito  pensante,  de  sua 

autonomia e das evidências que a ele eram dadas, 

considerando‐se  que  só  a  partir  do  sujeito  se 

podia garantir sua certeza ou verdade em função de 

um método  rigoroso.  E o  objetivo  central  final  era 

a  emancipação  humana  de  todas  as  servidões 

exteriores  (da  natureza,  das  inclemências  e  das 

dificuldades  para  assegurar  uma  vida  digna)  ou 

interiores  (superando  a  barbárie,  a  escravidão, 

o  domínio  e  a  violência  aos  quais  os  humanos  se 

submetem  mutuamente)  para  então  garantir  a  si 

a liberdade, a felicidade e a paz. Para isto, em geral, 

se reconhecia a necessidade de se levar a cabo uma 

radical  revolução ou  regeneração – ao menos – da 

sociedade, de suas intenções e inclusive, do próprio 

ser da humanidade. (p. 133) 

É nesse contexto, retratado em rápida síntese, que se desenvolvem as 

buscas  de  um  “pensamento  humanista”,  “pensamento  laico”,  de  uma 

“autonomia da razão”, de uma “compreensão do entendimento humano”, 

que abrirá espaço para o surgimento da ideia e conceito de Ideologia no 

século XVIII. 

Segundo  a  literatura  de  referência  as  ideias  e  os  fenômenos  que 

originaram  o  conceito  de  Ideologia  transitaram  por  todo  o  período 

moderno, podendo mesmo estar na origem da própria modernidade. O 

conflito entre o  Iluminismo e o Romantismo no século XVIII  ilustra esta 

questão.  Foram  ideologias  em  conflito que no Direito deram  em  geral 

origem a um profícuo debate sobre as possibilidades do Direito tornar‐se 

uma ciência, seguir subordinando o uso da Razão Prática (Kant, 1959) ou 

às  tradições  dos  costumes  (Savigny,  2005).  Foi  daquele  Iluminismo 

revolucionário  que  surgiu  a  Ideologia,  enquanto  conceito  e  ensaio  de 

sistema de pensamento.   

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Em  esclarecedor  estudo  sobre  as  ideias  modernas  revolucionárias 

Ostrensky (2006), observa que: 

Na  Inglaterra  do  século  XVII,  o  conceito  de 

revolução  remete  quase  sempre  a  dois  conceitos 

distintos, invariavelmente relacionados à astronomia 

e  ao  que  hoje  intitulamos  física.  O  primeiro  é 

sinônimo  de  circunvolução  e  designa  o  processo 

cíclico  de  geração,  corrupção  e  morte  pelo  qual 

passam  todos seres, mesmo os grandes corpos das 

repúblicas. [...] Daí falar‐se também, não naquilo que 

se  transforma,  mas  no  que  alterna  em  algo  já 

conhecido,  isto  é,  as  repetições  e  os  ciclos. 

Revolucionar é revolver. [...] Apenas com a Revolução 

Francesa  o  conceito  se  tornará  um  importante 

instrumento de compreensão política, designando os 

episódios históricos em que seres humanos haviam 

produzido o colapso de uma ordem política, social ou 

econômica e a emergência, em seu  lugar, de novos 

valores  e  regimes.  [...]  O mesmo  tipo  abordagem 

pode se aplicar a outras questões, tais como o Direito 

a expressar determinada opinião religiosa e o caráter 

representativo do Estado. (2006, p. 27 a 31) 

É nesse  ambiente  tumultuado  em  termos de  ideias  e propostas de 

mudanças que filósofos se confundem com philosophes. Os philosophes 

iluministas não criavam de fato, sistemas de pensamento, algo próprio dos 

filósofos  e,  sim,  ideologias  revolucionárias  e  panfletárias  que  como 

observa Robert Danton em “Poesia e Política: redes de comunicação na 

Paris do século XVIII” (2010) usavam os recursos das músicas populares, 

discurso  em  via  pública  ou  jornais  clandestinos  para  difundir  os  seus 

discursos revolucionários. 

Mas, a Ideologia, termo criado pelo francês Antonie Destutt de Tracy, 

por  volta  de  1790,  tinha  como  objeto  formular  um  método  de 

pensamento que superasse a chamada metafísica daquele tempo. Nesse 

sentido, Tracy é apontado  tanto como  filósofo quanto philosophes,  isto 

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porque a sua proposta de sistematização é revolucionária no sentido de 

se opor  à  influência do  cristianismo nas doutrinas  jurídicas  e políticas, 

assim como suas  instituições representativas. Por outro  lado, ao propor 

um novo modelo de ordem através de uma nova sistematização racional 

do  pensamento  e  compreensão  humanas  estaria  na  categoria  do 

“filósofo”. 

Isso se torna mais claro na relação entre Tracy e Napoleão Bonaparte, 

que bem esclarece Andrew Vicent em “Ideologias e Políticas Modernas”:   

“Ideologia” foi um neologismo composto a partir 

dos  termos gregos eidos e  logos. Pode ser definida 

como  “ciência  das  ideias”.  [...]  Tracy  era 

profundamente anticlerical e materialista. [...] Como 

muitos  philosophes  iluministas  e  pensadores 

enciclopedistas Tracy acreditava que todas as áreas 

da experiência humana, muitas das quais haviam sido 

previamente examinadas  sob o ângulo da  teologia, 

deveriam  ser  agora  examinadas  pela  razão.  [...] 

Bonaparte,  também,  de  maneira  profética, 

denunciou  os    idéologues  como  um  “Colégio  de 

Ateus”. [...] Bonaparte parecia sofrer de “ideofogia”. 

[...]  sentido  pejorativo  de  ideologia,  indicando 

esterilidade  intelectual,  inépcia  prática  e,  mais 

particularmente,  sentimentos  políticos  perigosos, 

tendeu a perseverar. [...] Ideologia, assim, tornou‐se 

uma  esfera  limitada,  na  França,  equivalente  a 

“doutrina  política”.  [...]  Marx  usou  o  conceito  no 

título de uma das suas primeiras obras, A  Ideologia 

Alemã,  como  um  rótulo  pejorativo,  referindo‐se 

àqueles, principalmente aos  jovens hegelianos, que 

interpretam o mundo filosoficamente, mas que não 

parecem capazes de transformá‐lo. (1992, p. 11 a 16) 

A  interpretação  adotada  por  John  B.  Thompson  em:  “Ideologia  e 

Cultura Moderna”,  segue  viés  análogo  ao  de  Vicent  (1992),  Segundo 

aquele: 

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Por dois séculos, o conceito de ideologia ocupou 

um  lugar  central  e,  às  vezes,  inglório  no 

desenvolvimento  do  pensamento  social  e  político. 

Introduzido,  originalmente,  por  Destutt  de  Tracy, 

como um rótulo para uma possível ciência das ideias, 

o  termo  “ideologia”,  rapidamente,  tornou‐se  uma 

arma numa batalha política,  travada no  terreno da 

linguagem (1998, p. 43). 

Adotando uma perspectiva  semelhante Frederick M. Walkins em “A 

Idade da Ideologia”, entende que as ideologias ou mesmo o que chamou 

de “a  idade das  ideologias” são credos seculares que atuaram de forma 

direta nas revoluções dos séculos XVII e XVIII, depois de terem provocado 

inúmeras  reviravoltas  e  controvérsias  religiosas  com  a  Bíblia  e  o 

cristianismo. Daí  conquistaram  importância  e  influência na  conduta de 

homens e grupos humanos. Mas é com a chamada revolução tecnológica, 

mais conhecida como Revolução Industrial, que as Ideologias terão o seu 

papel revolucionário profundamente acentuado. Ainda segundo o autor: 

“Uma  característica  típica  das  modernas  ideologias  é  a  sua  feição 

militantemente revolucionária. É uma consequência natural, ainda que de 

alguma maneira necessária, de suas íntimas relações com o processo de 

inovação tecnológica” (1966, p. 13). 

Em  “Origens  do  Totalitarismo”  (1998),  Hannah  Arendt  buscou 

entender  o  fenômeno  do  totalitarismo,  tomando  como  referência  o 

problema  da  “questão  judaica”.  Ela  obervou  o  quanto  é  perigosa  a 

construção de discursos que numa falsa apelação ao bom senso, difundem 

ideias que aglutinam as massas em torno de certos  ideais e utopias que 

levaram ao massacre de milhões de seres humanos e a quase destruição 

da sociedade ocidental. Nesse sentido, dois fenômenos são marcantes: o 

socialismo nazista e a efetivação da experiência de um Estado totalitário 

moderno.  Empreendeu  então  encontrar  os  fundamentos  históricos, 

filosóficos e ideológicos que resultaram e se aglutinaram no fenômeno da 

Segunda  Guerra.  Encontrou  então  na  Ideologia  o  seu  mais  perigoso 

instrumento de manipulação das massas para  formar um  ambiente de 

terror. Segundo Atendt: 

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Platão, em sua luta contra os sofistas, descobriu 

que  “a  arte  universal  de  encantar  o  espírito  com 

argumentos”  (Fedro,261)  nada  tinha  a  ver  com  a 

verdade, mas só visava a conquista de opiniões, que 

são  mutáveis  por  sua  própria  natureza  e  válidas 

somente  “na  hora  do  acordo  e  enquanto  dure  o 

acordo”  (Teeteto,  172b). Descobriu  também  que  a 

verdade  ocupa  uma  posição  muito  instável  no 

mundo, pois as opiniões, isto é “o que pode pensar a 

multidão”, decorrem antes da persuasão da verdade. 

A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e 

os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com 

a  vitória  passageira  do  argumento  às  custas  da 

verdade, enquanto os modernos querem uma vitória 

mais duradoura, mesmo que às custas da realidade 

(1998, 29). 

Interessante  notar  que  a  formulação  dos  argumentos  de Arendt 

sobre  ideologia  quase  se  aproximam  dos  de  Marx,  mas  parecem  se 

identificar  com  os  de  Napoleão  que  chamou  a  Ideologia  de  uma 

“metafísica obscura”. Para Arendt a ideologia é um discurso manipulador 

da verdade e da realidade em função de uma utopia a ser alcançada. Isso 

gerou  no  século  XX  a  tragédia  dos massacres  efetivados  através  dos 

Estados  totalitários  nazifascistas  e  comunistas,  mas  que  também 

contaram com a participação de cidadãos que se imaginavam defensores 

do bem. Como ela mesma afirma: “nos estágios  finais do  totalitarismo, 

(absoluto, por que  já não pode  ser  atribuído  a motivos humanamente 

compreensíveis)”, (1998, p. 13). Numa reflexão profunda e esclarecedora 

afirma a autora: 

As  ideologias – os  ismos que podem explicar a 

contento  dos  seus  aderentes,  toda  e  qualquer 

ocorrência  a  partir  de  uma  única  premissa  –  são 

fenômeno recente, [...] As ideologias [...] pretendem 

ser  uma  filosofia  científica.  [...]  A  Ideologia  é  bem 

literalmente o que o nome indica: é a lógica de uma 

ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a 

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ideia é aplicada. [...] A ideia de uma ideologia não é a 

essência eterna de Platão, vislumbrada pelos olhos 

da mente,  nem  o  princípio  regulador  da  razão,  de 

Kant,  mas  passa  a  ser  instrumento  de  explicação 

(1998, p. 520 e 521).    

Numa outra perspectiva, em “Interpretação e Ideologia” (1977), o 

filósofo francês Paul Ricoeur buscou elaborar uma teoria da interpretação 

do ser, tentando trazer respostas para o grande desafio moderno sobre o 

sentido da existência. Para  isso, Ricoeur desenvolve uma hermenêutica, 

que  como  é  próprio  do  século  XX,  busca  o  sentido  da  linguagem 

desmistificando o processo de  interpretação, deixando em  suspenso as 

grandes temáticas teológicas modernas do pecado original e da relação do 

homem  com  Deus.  Para  entender  a  existência  vivida  desenvolve  uma 

“filosofia da vontade”, admitindo a falibilidade humana como algo natural 

sem o remorso da “Queda” ou do “Pecado Original”. É nisso que consiste 

a sua desmistificação da linguagem numa perspectiva da compreensão do 

sentido da  existência  vivida. Afasta‐se de  certo modo  em  sua obra do 

problema da realidade do Mal para admitir a sua possibilidade e assim, 

assumir o sentido da falibilidade humana. Admite o ser humano como um 

ser dotado de  “negatividade” no  sentido de estar dessintonizado de  si 

mesmo. 

Nesse  ambiente  desenvolve  uma  crítica  às  ciências  humanas  e, 

principalmente uma crítica hermenêutica sobre os discursos  ideológicos 

que estariam sempre presentes em toda forma de conhecimento, por isso, 

se afasta do conceito de ideologia em quando fenômeno relacionado às 

classes sociais. Para Ricoeur, seguindo orientação weberiana, a ideologia 

se manifesta das relações socialmente inte gradas por ações mutuamente 

estabelecidas, dentro de um sistema de significações. Nas suas próprias 

palavras: 

A  ideologia  depende  daquilo  que  poderíamos 

chamar de uma teoria da motivação social. Ela é, para 

a  práxis  social,  aquilo  que  é  para  um  projeto  de 

indivíduo um motivo. Um motivo é ao mesmo tempo 

aquilo que justifica e compromete. Da mesma forma, 

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a ideologia argumenta. Ela é movida pelo desejo de 

demonstrar que o grupo que a professa tem razão de 

ser  o  que  é.  [...] Mas  como  a  ideologia  consegue 

preservar  seu  dinamismo?  [...]  Toda  ideologia  é 

simplificadora e esquemática. [...] Sua capacidade de 

transformação  só é preservada  com  a  condição de 

que as ideias que veicula tornem‐se opiniões, de que 

o  pensamento  perca  rigor  para  aumentar  sua 

eficácia,  como  se  somente  a  ideologia  pudesse 

mediatizar não somente os atos fundadores, mas os 

próprios  sistemas  de  pensamento  (1977,  p.  68  e 

69).      

A  partir  destas  conceituações  e  reflexões  sobre  a  Ideologia  é 

possível  desenvolver,  explicar  e  entender  como  vem  ocorrendo  a 

influência  de  “novas  ideologias”  que  vêm  caracterizando  o  que  será 

chamado aqui, genericamente, de: “Relativismo Jurídico”. O problema em 

questão  aponta  para  um  fenômeno  que  vem  se  expandindo  de  forma 

genérica, em todo o universo jurídico e, mundialmente, a partir da forte 

influência do Direito Internacional e suas instituições correlatas. Observa‐

se uma evidente penetração de novas doutrinas jusfilosóficas que trazem 

no  seu  bojo  um  forte  viés  ideológico  e  revolucionário  para  a  nova 

hermenêutica  jurídica,  sedimentando  novas  interpretações  que  vão  se 

refletir  desde  a  legitimação  das  novas  causas  de  pedir,  passando  pela 

interpretação  do  Direito,  até  a  jurisprudência  e  novas  leis 

“revolucionárias”. 

Esta  “inversão  paradigmática”  conduz  à  necessidade  de 

entendimento dos novos suportes epistemológicos do Direito. Além disso, 

reclama  por  identificar  o  sentido  destas  “novas  doutrinas”.  Em  outras 

palavras, os seus fundamentos  jusfilosóficos e a relação de  legitimidade 

que  tem  sido  utilizada,  relacionando  a  ideia  de  “mudança  do Direito” 

como reflexo das mudanças no mundo das relações humanas. 

Atentamos  então  para  o  fato  de  que  tais  mudanças,  tanto  no 

mundo da  vida,  como no universo  jurídico  são oriundas de um Direito 

Internacional, inteiramente direcionado por Agências, ONGs e Fundações 

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que financiam estas mudanças, adotando as mais sofisticadas técnicas de 

Engenharia  Social  ao mesmo  tempo  em  que,  atuam  como  grupos  de 

pressão, principalmente nas Casas Legislativas, no ambiente acadêmico e 

mesmo no próprio poder  judiciário e  instituições correlatas através dos 

adeptos e simpatizantes das novas ideologias jusfilosóficas.    

A  reprodução  exata, por  exemplo, do  Plano Nacional de Diretos 

Humanos – 3 (PNDH – 3), no ambiente jurídico, Agenda inclusive, muito 

pouco  citada  pelos  juristas,  porém  cuja  efetivação  das  diretrizes 

demonstra  a  forte  influência  deste  novo Direito  Internacional  sobre  o 

Direito  Pátrio.  E,  além  disso,  ao  mesmo  tempo,  como  fundamento 

legitimador  de  uma  nova  compreensão  dos  direitos  humanos 

completamente  distanciada  dos  antigos  paradigmas  modernos, 

principalmente  jusnaturalistas  e  kantianos/hegelianos  e  agora, 

evidentemente neomarxistas revolucionários. 

É  neste  atual  cenário  de  intenso  confronto  ideológico,  que  o 

principal herdeiro do  Iluminismo  racionalista, o Positivismo  Jurídico,  se 

torna agora, o alvo predileto das doutrinas  relativistas,  cujo objetivo é 

atingir  toda  e  qualquer  influência  da  tradição  moderna  no  Direito, 

conduzindo‐nos para um mundo e um Direito pós‐modernos. Não  foi o 

Positivismo Jurídico a única Escola do Direito a se preocupar e a buscar um 

fundamento científico para o Direito. Mas, sem dúvida,  foi a que  levou 

esta  questão  às  últimas  consequências.  Por  isso,  atingir  o  Positivismo 

Jurídico,  tecendo‐lhes  as mais  variadas  críticas  é,  antes  de  tudo,  uma 

estratégia política, pois enfraquecer o paradigma da segurança jurídica é 

condição  fundamental  para  uma  penetração,  cada  vez  maior,  das 

doutrinas relativistas de base completamente ideológicas, neomarxistas, 

revolucionárias. 

Capítulo II – Da Nova Epistemologia do Direito: modernidade e pós‐

modernidade 

Em “Sexta‐Feira Negra” o escritor americano David Goodis aborda o 

submundo de um grande centro urbano como a cidade de Filadélfia num 

cenário pouco estimulante para atitudes honrosas. Onde a sobrevivência 

tornar‐se a ordem do dia e por isso, muitas vezes, não há espaço para a 

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soberania  da  moral.  Nesta  obra  a  personagem  central  é  Hart,  um 

desocupado marginal  comete  crimes de acordo  com as necessidades e 

possibilidades. 

Em meio a um ambiente de  frio  intenso, numa noite de  inverno em 

janeiro, aquele homem caminhava por uma avenida quando...: 

“Ele  continuou  seu  caminho,  lutando  contra  o 

frio. Passou por uma vitrine com moldura espelhada 

e  permaneceu  em  frente  a  ela,  olhando  para  si 

próprio. [...] Precisava de um corte de cabelo. [...] E 

também  precisava  se  barbear.  [...]  Estava 

envelhecendo. Mais um mês e faria 34. [...] 

Percorreu mais um quarteirão e parou em frente 

a uma loja de roupas. Um cartaz na vitrine anunciava 

uma liquidação. Um sujeito prematuramente careca 

arrumava uns trajes na vitrine. Hart entrou na loja. 

O vendedor sorriu avidamente para ele. 

Hart disse: 

‐ Gostaria de ver um sobretudo. 

‐ Oh, sem dúvida – disse o vendedor. – Temos 

vários muito bons. 

‐ Quero apenas um – disse Hart. [...] 

‐ Hart disse: 

‐ Você está disposto a me vender um sobretudo? 

‐ Oh, sem dúvida – disse o vendedor. – De que 

tipo o senhor quer? 

‐ Do tipo quente. [...] 

‐ Hart vestiu o sobre tudo. Ficou perfeito. 

‐ Aí está o seu casaco – disse o vendedor. 

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Hart correu os dedos pela  lã verde brilhante. E 

perguntou: 

‐ Quanto custa? 

‐ Trinta e nove dólares e 75 centavos – disse o 

vendedor‐, e é uma barganha. [...] 

‐ Está certo disse Hart. – Vou levá‐lo. – Dirigiu‐se 

para a porta. 

‐ São 39,75 – disse o vendedor. Ele caminhava 

atrás de Hart e começou a  ficar nervoso assim que 

Hart acelerou o passo, e gritou: ‐ Ei, escute... 

Hart abriu a porta e caiu fora. 

Havia  três  clientes  no  pequeno  botequim  da 

Décima Segunda quase esquina com a Race. [...] Hart 

dirigiu‐se ao banheiro, tirou o casaco e arrancou as 

etiquetas  com o  tamanho e o preço do  sobretudo. 

[...] dirigiu‐se ao balcão e pediu uma cerveja. Já havia 

bebido  dois  terços  quando  um  policial  entrou  no 

botequim [...] e então se encaminhou lentamente em 

direção a Hart. 

Hart  encarou‐o,  mantendo  o  copo  próximo  à 

boca. 

O policial apontou para o casaco verde brilhante: 

‐ Onde você arranjou? 

‐ Numa loja ‐ respondeu Hart. 

‐ Onde? 

‐ Acho que foi Atlantic City. Mas talvez tenha sido 

em Albuquerque. 

‐ Você está querendo bancar o esperto? 

‐ Sim – disse Hart. 

‐ Você roubou este casaco, não? 

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‐ Claro – disse Hart, e jogou o resto da cerveja na 

cara do policial e  saltou para a  frente, enquanto o 

policial recuava com um grito, e caía fora, escutando, 

enquanto  fugia,  a  excitação  que  deixava  atrás  de 

si.”(2007, p. 6,7,8, 9 e 10) 

A  cena descrita  ilustra uma  situação muito debatida atualmente no 

universo jurídico. Qual deve ser a compreensão e tratamento dado pelo 

Direito  penal  ao  fenômeno  criminal?  Os  crimes  cometidos  por  Hart 

compõem  o  perfil  de  criminalidade  que  assusta  os  grandes  centros 

urbanos, que torna a vida insegura e faz mobilizar todo aparato policial no 

tal “combate à criminalidade”? Sendo a resposta afirmativa ou negativa 

como o Direito Penal  e  a Criminologia  estão  sendo utilizados para dar 

respostas  a  estes  ou  outros  fenômenos  criminais? Hart  ilustra  o  perfil 

típico de criminoso que alimenta a indústria da (in)segurança? 

Como já foi visto não é novidade a incursão de ideologias nas chamadas 

ciências  humanas  desde  ao  menos  o  século  XVIII.  De  fato,  o  que 

chamamos  hoje  de  Ciências  Humanas  nascem  como  ideologias  que 

ganham escopo acadêmico‐científico a partir do século XIX. Não por acaso 

durante os séculos XIX e XX o grande desafio foi encontrar um raciocínio 

que merecesse o status de científico, livrando‐se do problema ideológico. 

Aparece a ideia de pureza, ou seja, de um raciocínio científico puro. 

Como exemplo deste dilema no século XIX a grande polêmica para o 

Direito  Penal  e  a  Criminologia  sobre  o  problema  da  imputação.  Se  o 

homem  é  “predestinado”  como  imputar  a  culpa  pelo  crime?  Este 

comportamento  criminoso  já não  faria parte desta predestinação?  Por 

outro  lado,  temos  o  “livre‐arbítrio”,  que  em  aparente  conflito  com  a 

predestinação daria ao homem a mais completa responsabilidade pelos 

seus  pensamentos  e  atos.  Transformar  o  pecado  em  crime  e  fazer  a 

punição  não  corresponder  à  vingança  foram  desde  então  complexos 

desafios. 

Tal  fenômeno  só  pode  ser  entendido  buscando‐se  os  fundamentos 

filosóficos e  ideológicos das doutrinas atuais. Dificuldade que é possível 

identificar  na  literatura  brasileira  quando  tal  tema  é  abordado.  As 

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discussões epistemológicas sobre a Teoria Geral do Direito resvalam para 

o problema dos resumos e dos manuais que  inibem o aprofundamento 

dos debates sobre o tema. Daí, porque a necessidade de recorrer a uma 

literatura mais eclética, para melhor  fundamentar as  ideias. A visão de 

Lenio Streck sobre o problema nos esclarece: 

Pergunte‐se,  por  exemplo,  a  um  filósofo  se  é 

possível  escrever  sobre  Aristóteles,  Kant  ou 

Heidegger  de  “forma  descomplicada”  ou 

“simplificada”...;  pergute‐se  a  um  cirurgião  se  é 

possível  fazer  manual  “descomplicado”  acerca  de 

como  se  faz  uma  operação  cardíaca  ou  um 

transplante...;  entretanto,  parede  que  o  direito  se 

tornou  locus  privilegiado  das  (ou  dessas) 

simplificações,  como  se  o  jurista  não  estivesse 

inserido em um “modo de ser‐no‐mundo”, enfim em 

um  mundo  que  existe  a  partir  de  paradigmas  de 

conhecimento. 

Olhando  por  este  ângulo,  a  situação 

hermenêutica  da  doutrina  e  da  jurisprudência 

de terrae basilis Não é nada animadora. [...] 

A  dogmática  jurídica,  entendida  como  senso 

comum teórico (um saber não crítico‐reflexivo), vem 

sofrendo novos influxos decorrentes da massificação 

do Direito. Nem linha vem crescendo em importância 

os setores ligados aos cursinhos de preparação para 

concursos.  É  o  que  se  pode  denominar  de 

“neopentecostalismo  jurídico”,  em  que  juristas,  à 

semelhança  de  alguns  pastores/pregadores  que 

podem ser vistos em congressos, sites e até mesmo 

em  televisão,  fazem  apologia  da 

estandartização/simplificação  do  Direito.  (2013,  p. 

81, 82) 

Temos então como hipóteses deste trabalho três pressupostos: a) que 

a modernidade tem sólidos fundamentos judaico‐cristãos que levaram à 

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construção de um modelo de ordem e, por isso, o objetivo das doutrinas 

pós‐modernas  é  desmontar  esta  estrutura  e  criar  o  novo modelo  de 

ordem, ou seja, uma “nova ordem” político‐jurídica; b) que a influência da 

ideologia é muito mais presente no ambiente acadêmico, dito científico, 

do que é comumente aceito e  identificado; c) e que, por  isso mesmo, o 

Direito  e  as  demais  Ciências  Humanas,  tornam‐se  instrumentos 

veiculadores, difusores e legitimadores destas transformações vinculadas 

diretamente a movimentos revolucionários e partidos políticos. 

Como exemplo, atualmente, estão em vigor, discursos “críticos” que 

buscam  de  fato,  por  dúvida  em  tudo  que  esteve  constituído.  A 

(des)construção  de  tudo.  Ao  mesmo  tempo,  apresentam‐se  com 

propostas salvacionistas de base neomarxista, empreendidas através do 

gramscianismo e foucaultianismo, que tentam colocar para o Direito Penal 

um ônus mal calculado. Pari passu, a criminologia é retomada como mero 

condão legitimador de mudanças contra um Direito Penal. Agora, é a vez 

de  uma  criminologia  reduzida  a  um  conjunto  de  ideologias 

revolucionárias, determinadas a desconstruir o Direito Penal “burguês”. 

Quais os fundamentos dos novos direcionamentos ideológicos que estão 

sendo dados ao Direito em geral e, particularmente ao Direito Penal e à 

Criminologia? 

Então é exatamente isso, o discurso jurídico hoje é fundamentalmente 

ideológico, travado no universo da linguagem, com o objetivo de inverter 

todo o sentido semântico da  linguagem  jurídica de outrora. Como bem 

esclarece Goyard‐Fabre: 

Mesmo que a explosão crítica do mundo jurídico 

às vezes se perca, hoje, nos dédalos das discussões 

argumentativas e deliberativas, tornando‐se pesada 

pelos  excessos  semânticos  e  obscuridades 

linguísticas que a “pós‐modernidade” tanto aprecia, 

ela  recorre, de modo mais ou menos voluntário ou 

mais ou menos consciente, a uma racionalidade não 

metafísica  que  permite  pensar  o  direito  até  na 

imprescritibilidade  de  seus  princípios  fundadores 

(2006, p. XIX).  

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O conceito de crime, por exemplo, sempre foi um desafio para o Direito 

Penal, mesmo quando fez recurso da criminologia desde o século XIX para 

lhes  dar  fundamento.  No  seu  trajeto  da  construção  moderna  as 

tipificações do “crime” seguiram diretrizes diversas, mas, sempre esteve 

orientado, tal como todo o Direito moderno, por parâmetros ético‐morais 

de base greco‐romana e  judaico‐cristãs. O primeiro grande rompimento 

foi com o conceito de pecado, como parte do processo de afastamento 

entre  instituições cristãs, Estado, Direito, percorrendo o trajeto de uma 

suposta  laicização do  “pensamento” ocidental.  Logo em  seguida,  como 

extensão, aparecem os dilemas da pena. O principal deles: como punir 

sem vingar? 

Entretanto,  de  acordo  com  as  origens  modernas  judaico‐cristãs  o 

homem  tem uma natureza pecadora que, por analogia e extensão, não 

teria o homem também uma natureza violenta ou mesmo criminosa? Esse 

tema, que transcorreu todo o debate jusnaturalista e, a própria Teoria do 

Contrato Social, traz essa preocupação na sua essência. O desafio assim 

proposto,  expõe  um  leque  de  opções  de  como  entender  o  certo  e  o 

errado, a virtude e o pecado dentro de uma visão racionalizada e moderna 

que tem na concepção de “crime” e punição a possibilidade de controlar, 

em alguma medida, a conduta humana no convívio social. 

São muitos os problemas colocados na dimensão jurídica e diversas são 

a  respostas  desenvolvidas.  A  questão  sobre  a  dúvida  se  existe  um 

comportamento criminoso como resultado de uma mente criminosa ou 

se, o crime é, de fato, apenas uma construção moral e jurídica, foi também 

tão influente no Direito Penal quanto na Criminologia. 

Temos então a possibilidade de encontrar um conflito ideológico que 

está sendo travado no interior do universo jurídico através do qual, esses 

conteúdos ideológicos se travestem de Ciência Jurídica. Nesse ambiente, 

o  inimigo  número  um  é  exatamente  o  Direito  de  base  cristã, 

correspondendo  à  crítica  que  já  vinha,  ao menos,  desde  o  período  e 

movimento Iluminista. 

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Desde o  início do Segundo Tratado de Governo, em  intensa reflexão 

com  Bíblia,  quando  questiona  autoridade  de  Adão  sobre  seus 

descendentes e o as possibilidades do Direito Natural, J. Locke, afirma: 

A  Liberdade por  tanto não  corresponde a uma 

liberdade para fazer o que lhe aprouver, viver como 

lhe agradar e não estar submetido lei alguma. Mas a 

liberdade dos homens sob um governo consiste em 

viver  segundo  uma  regra  permanente,  comum  a 

todos  nessa  sociedade  e  elaborada  pelo  poder 

legislativo nela erigido (1998, p. 402 e 403). 

  Em o Leviatã, T. Hobbes, com reflexão semelhante, afirma: 

Um crime é um pecado que consiste em cometer 

um ato que a lei proíbe, ou em omitir um ato que ela 

ordena. Assim,  todo  crime é um pecado, mas nem 

todo  pecado  é  um  crime. A  intenção  de matar  ou 

roubar é um pecado desde que nunca se manifeste 

através de palavras ou atos, porque Deus, que vê o 

pensamento  dos  homens  pode  culpá‐los  por  ele  ( 

1997, p.223). 

Um século depois, Beccaria, já na condição de expoente do iluminismo 

italiano, no opúsculo “Dos Delitos e das Penas”, em radical oposição as 

discussões bíblicas no Direito, afirma: 

Os  juízes  não  recebem  as  leis  dos  nossos 

ancestrais como uma tradição de família e como um 

testamento que deixasse aos prósperos  somente o 

cuidado de obedecer. [...] Em cada delito o juiz deve 

fazer  um  silogismo  perfeito.  [...]  quando  o  juiz  for 

forçado a construir mais de um silogismo, ou queira 

fazê‐lo, abre‐se a porta à incerteza. 

Não  existe  coisa mais  perigosa  do  que  aquele 

axioma comum que é preciso consultar o espírito da 

lei.  Seria  um  dique  rompido  ante  à  torrente  de 

opiniões (1979, p. 40 e 41). 

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Isto posto, ficam mais claros os fundamentos da afirmação de que é no 

Direito pós‐moderno, permeado por tantas ideologias em conflito, que se 

observa a mais evidente ofensiva contra a moral  judaico‐cristã. É neste 

universo  que  está  se  desenvolvendo  uma  avalanche  de  doutrinas  que 

tentam  extirpar  dos Ordenamentos  Jurídicos  toda  a  influência  do  que 

outrora  foi  sagrado.  Isto  porque  a  primeira  e  objetiva  experiência  de 

“laicizar” o Direito, que já vinha ocorrendo como conteúdo da formação 

do  pensamento  moderno,  se  radicaliza  com  o  Iluminismo,  tentando 

afastar desde então, qualquer  conteúdo  supostamente “sagrado”. Para 

Engels e Kautsky, tal fenômeno foi explicado da seguinte maneira: 

A bandeira religiosa tremulou pela última vez na 

Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos 

mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova 

concepção  de mundo,  fadada  a  se  tornar  clássica 

para burguesia, a concepção jurídica de mundo. 

Tratava‐se da secularização da visão teológica. O 

dogma  e  o  direito  divino  eram  substituídos  pelo 

direito humano, e a Igreja pelo Estado (2012, p. 18). 

Como é possível perceber, não há nada de tão novo, nos atuais grandes 

debates, que não tenha sido contemplado em outros tempos. O desafio 

deste nosso tempo é entender como estas questões se manifestam agora. 

Como são difundidas e, a facilidade como são internalizadas sem a devida 

reflexão. Sobre  isso, observa‐se o pouco  interesse pela  identificação de 

ideologias políticas no  suposto cientificismo acadêmico, num momento 

em  que  mais  penetra  o  “relativismo  ideológico”  no  discurso  dito 

acadêmico‐científico. 

Além disso, a única  característica própria do nosso  tempo é afastar 

completamente  a moral,  como  possibilidade  de  norma  organizadora  e 

mantenedora da sociedade e, entregar esta responsabilidade, unicamente 

ao  Direito.  Em  nenhum  momento  da  história  ocidental  houve  tal 

entendimento. É exclusivo do nosso  tempo,  tentar  repudiar  toda  regra 

moral  como  mero  conjunto  de  preconceitos,  ao  tempo  em  que 

substituímos o discurso religioso pelas ideologias revolucionárias. Por isso, 

não é difícil perceber a substituição de uma moral por outra e a tentativa 

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de deslegitimar o direito positivado, pondo em seu lugar a positivação das 

novas ideologias revolucionárias.  

Diante do exposto é possível ampliar a questão mostrando como tais 

estratégias discursivas invadem as interpretações sobre o comportamento 

criminoso. Nesta perspectiva de uma inversão de sentidos ou mesmo dos 

esvaziamentos dos conceitos é estabelecida uma relação direta sobre o 

crime  ser  apenas  uma  invenção  jurídica. Desde  então,  desenvolveu‐se 

bastante, teorias doutrinário‐ideológicas, que analisam a tal da violência 

e  em  sequência,  os  crimes,  como  tendo  origens  em  causas  genéricas. 

Desde as décadas de 60 e 70, do século XX, a O.N.U. vem construindo o 

discurso  do  “problema  social”  através  de  uma  série  de  Convenções  e 

outros  instrumentos  internacionais,  colocando  sempre,  desde  aquele 

tempo, o crime como um problema que  tem suas origens em questões 

econômicas.  Estava  em  andamento  uma  adaptação  da  teoria 

rousseauniana‐marxista, através da qual, discretamente, foi se infiltrando 

a lógica de que, se o crime tem origem em problemas socioeconômicos e, 

uma vez que as economias são em sua maior parte capitalistas,  logo, o 

problema do crime estaria nas relações socioeconômicas capitalistas. 

Nesse  discurso,  os  países  comunistas  sempre  foram  poupados, 

misteriosamente,  de  atenção  e  críticas.  Nesse  contexto,  foi‐se  então, 

passando também a ideia de que, se o problema era o capitalismo, logo, a 

solução seria o retorno do comunismo em novo estilo.  Além disso, foi‐se 

também,  tentando  anular  a  interpretação  do  crime  como  problema 

psíquico, ou  seja,  anulou‐se pouco  a pouco  a  concepção de  “indivíduo 

moderno”  que,  de  origem  greco‐romana  e  judaico‐cristã,  foi  tão 

fundamental para a  construção da  concepção de  “homem moderno” e 

mesmo “cidadão moderno”. 

Todos  esses  debates  sempre  foram  alimentados  pela  expansão  da 

criminalidade  que,  em  cada  tempo  e  lugar,  sempre  causou  espanto  e 

preocupação  na  seara  penal.  Agora  constantemente  reformulado  por 

ideologias em conflito novas críticas surgem apontado  tanto problemas 

como soluções. 

Já no seu tempo, como observa Hungria: 

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A  criminalidade  aumenta,  condicionada  pelo 

processo de marginalização social, e provavelmente 

continuará aumentando.  [...] O mecanismo policial‐

judiciário  não  funciona,  apresentando‐se  como 

sistema  opressivo,  desigual  e  injusto.  As 

investigações realizadas pela polícia são comumente 

viciadas  pela  violência  ou  pela  corrupção,  atuando 

seletivamente  sobre  pobres  e  marginalizados.  A 

justiça  é  demasiadamente  lenta  e 

surpreendentemente  ineficaz.    O  sistema 

penitenciário,  da  maioria  dos  nossos  países, 

caracteriza‐se  pela  superpopulação  em 

estabelecimentos  antigos  e  inadequados,  onde 

prevalece a ociosidade e a violência (HUNGRIA, 2015, 

p. 05). 

As agendas postas até o momento tratam de estabelecer critérios 

de análise que vão do extremo da extinção do Direito Penal como defendia 

Enrico Ferri (2006) ao aumento do rigor e expansionismo penal como  já 

denunciou Jesús‐María Silva Sánchez  (2013). Ferri propôs a substituição 

do  Direito  Penal  pela  Sociologia  Criminal  e  as  penas  por  políticas  de 

prevenção  e  ressocialização que  ele  chamou de  “substitutivos penais”. 

Segundo Ferri numa severa crítica à política criminal: 

Esta  justiça  se mostra  inoperante, não  só para 

defender a sociedade contra os delinquentes, senão 

também para proteger suas vítimas. A reparação dos 

danos causados pelo delito, não é hoje mais que uma 

fórmula  platônica  adicionada  à  sentença  de 

condenação  penal,  e  que,  para  produzir  um  efeito 

formal,  é  enviada  ante  outro  tribunal  e  sofre  as 

custosas lentitudes intermináveis da justiça civil. [...] 

Não são, pois, somente as razões teóricas tiradas do 

estudo  científico  do  delito,  são  também  as  lições 

práticas  da  experiência  cotidiana  as  que  impõem 

uma  nova  orientação  a  administração  da  justiça 

penal em suas diferentes engrenagens, substraindo‐

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a  ao  empirismo  e  ao  espírito  de  expiação  e  de 

vingança  a  vez,  de  que  organiza‐la  segundo  dados 

experimentais  da  antropologia  e  da  sociologia 

criminal (2006, p.263).           

Por sua vez, Silva Sánchez (2013) já no nosso tempo, faz uma análise 

mais ampla, porém  com preocupações  semelhantes às de Ferri  (2006). 

Silva Sánchez faz críticas severas aos abolicionismos originários de autores 

que sofrem influência da Escola de Frankfurt. Contudo, sobre a polêmica 

a respeito da “expansão do Direito Penal”, reconhece que há, de fato, uma 

forte  tendência  ao  aparecimento  de  novos  tipos  penais  e  o 

recrudescimento de alguns já existentes. Na sua lição: 

Nos  últimos  anos,  a  defesa  do  “minimalismo” 

tem  sido  associada,  sobretudo,  às  posturas 

defendidas por alguns dos mais significativos autores 

da  denominada  “Escola  de  Frankfurt”.  Esses 

voltando‐se para a defesa de um modelo ultraliberal 

do Direito Penal, vêm propondo sua restrição a um 

“Direito  Penal  básico”  que  tenha  por  objetivo  as 

condutas atentatórias à vida, a saúde, à liberdade e à 

propriedade,  com  manutenção  das  máximas 

garantias da lei, na imputação de responsabilidades e 

no processo. Nessa ótica, caracterizam a evolução do 

Direito Penal “oficial” como uma “cruzada contra o 

mal”,  desprovida  de  uma  mínima  fundamentação 

racional. 

Pois  bem,  ante  tais  posturas  doutrinárias, 

realmente não é nada difícil constatar a existência de 

uma clara tendência claramente dominante em todas 

as  legislações  no  sentido  da  introdução  de  novos 

tipos  penais,  assim  como  um  agravamento  dos  já 

existentes (2013, p. 27 e 28). 

Temos então, como expoente do pensamento jurídico‐pena latino‐

americano  e  de  viés  socialista,  o  Eugenio  Zaffaroni  que,  fortemente 

influenciado pela Escola de Frankfurt alerta para a ineficiência do sistema 

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penal,  particularmente  na  América  Latina,  onde  é  exercido 

fundamentalmente visando os interesses de classes. Para o autor: 

Seria  completamente  ingênuo  acreditar  que  o 

verdadeiro poder do sistema penal seja exercido, por 

exemplo,  suas  agências  detêm,  processam  e 

condenam um homicídio. Esse poder se exerce muito 

eventualmente,  de  maneira  altamente  seletiva  e 

rodeada de ampla publicidade através dos meios de 

comunicação social de massa. [...] Diante da absurda 

suposição  –  não  desejada  por  ninguém  –  de 

criminalizar reiteradamente toda a população, torna‐

se óbvio que o  sistema penal está estruturalmente 

montado para que a legalidade processual não opere 

e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau 

de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente aos 

setores vulneráveis (1989, p. 24 e 27).   

Se por um lado é de extrema importância observar os usos políticos 

do Direito Penal e, de fato, de toda a política criminal, temos também que 

observar essa forte tendência, também política e ideológica, de perceber 

o crime como decorrente de questões socioeconômicas. A anulação do 

psiquismo individual para explicar a conduta delitiva tem implicado numa 

tendência a enfatizar e demandar uma postura tuteladora por parte do 

judiciário,  frente  aos  novos  desafios  que  a  criminalidade  crescente  faz 

apresentar. A dialética imposta a essa situação implica uma permanente 

tensão entre “indivíduo versus coletivo” que, também, atende muito mais 

a bandeiras políticas do que a resultados plausíveis em termos de redução 

das diversas formas de crime.   

Todo  esse  discurso  está  hoje  fundamentado  numa  suposta 

Criminologia  e  até  mesmo  numa  suspeita  Sociologia  Jurídica  que, 

juntamente  com o  influente  relativismo das  Teorias da Argumentação, 

consolidam no universo  jurídico uma completa e  radical  relativização e 

inversão conceitual. 

Capítulo III – Filosofia Jurídica: modernidade e pós‐modernidade 

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As questões  ligadas ao que se chamou no final do século XX de a 

crise dos paradigmas não era tão nova assim. Se atentarmos com cautela, 

já  era  uma  polêmica  que  se  arrastava  desde  o  século  XIX. A  busca  de 

certeza nas ciências naturais alcançou êxito desde logo. De resto a busca 

de  aperfeiçoamento  dos  métodos  resultaram  em  permanente 

aperfeiçoamento  e,  até mesmo,  seguras mudanças  de  paradigmas.  O 

problema  residiu  com  insistência  nas  “humanidades”.  Atualmente 

chamadas  de  ciências  humanas,  despontaram  preocupadas  com  uma 

semelhança  com  as  ciências  naturais,  principalmente  quando  Augusto 

Comte lançou a sua Filosofia Positivista. 

Já no século XX, quando restou pacificada a ideia de que as ciências 

humanas não poderiam  ser exatas, o  caráter  científico apontou para a 

“questão  do  método”.  No  vai  e  vem  entre  ciência  e  ideologia, 

questionando  permanentemente  todos  os  paradigmas,  o  uso  de  um 

método lógico fundamenta a possibilidade de um conhecimento seguro e 

alguma certeza sobre as descobertas e afirmações. Como ensinou Thomas 

Kuhn: 

O significado das crises consiste exatamente no 

fato  de  que  indicam  que  é  chegada  a  ocasião  de 

renovar instrumentos. [...] Já não se pode mais falar 

em  pesquisa  sem  qualquer  paradigma.  Rejeitar  o 

paradigma  sem  simultaneamente  substituí‐lo  por 

outro é rejeitar a própria ciência. [...] Todas as crises 

iniciam com o obscurecimento de um paradigma e o 

consequente relaxamento das regras que orientam a 

pesquisa normal. (1991, p. 105, 110 e 115) 

No  mesmo  sentido  argumenta  Miguel  Reale  em  “O  Direito  como 

Experiência” ao entender que: 

Toda  pretensão  de  apresentar  a  Ciência  do 

Direito  independente  de  quaisquer  pressupostos 

filosóficos, ou os subentende  inadvertidamente, ou 

equívoco  agnosticismo  filosófico  que  já  equivale  a 

uma contraditória tomada de posição especulativa. 

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Essa ponderação vem‐me à mente sempre que 

se  cuida  de  traçar  uma  linha  demarcatória  rígida 

entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, 

concebendo‐se esta como algo de pleno e válido em 

si  e  por  si,  com  tal  abstração,  não  só  dos  valores 

metafísicos  ou  da  cosmovisão  que  cada  jusfilósofo 

necessariamente possui, mas também dos princípios 

condicionadores de qualquer tipo de conhecimento 

dotado de rigor e certeza (1968, p.75). 

Atualmente Filosofia Jurídica quase se confunde com Hermenêutica e 

esta, vem cedendo  lugar ao discurso único da Teoria da Argumentação. 

Em  geral  os  teóricos  da  argumentação  adotam  um  forte  relativismo 

conceitual  e  se  baseiam  na  possibilidade  de  democratizar  o  Direito 

fazendo recurso dos “argumentos persuasivos” diante de situações reais. 

Nos posicionamentos adotados por estas novas “hermenêuticas” sempre 

a figura do  juiz se torna central onde restam duas perspectivas: o texto 

tem uma verdade que cabe ao juiz encontrá‐la e dar voz a esta verdade, 

ou o juiz interpreta como ato de vontade podendo inclusive se afastar do 

texto escrito. Em todos dois sentidos é dado ao juiz a responsabilidade e 

o mérito de fazer a melhor escolha (DWORKIN 2002, 2005; ALEXY, 2011). 

Daí porque atribui‐se a possibilidade da construção do entendimento 

a  partir  de  um  estado  de  consciência  suficiente  para  uma  decisão  ou 

sentença, apenas baseado em titulações acadêmicas. A ideia de repudiar 

a  interpretação  da  lei,  o  texto  escrito,  como  parâmetro  para  o 

entendimento  tornou‐se  um  dogma  disfarçadamente  utilizado  para 

implantar outro dogma, que é, exatamente, o relativismo dogmático. 

Nesse sentido, esclarece Streck: 

[...] deslocar o problema da atribuição de sentido 

para  a  consciência  é  apostar,  em  plena  era  do 

predomínio  da  linguagem,  no  individualismo  do 

sujeito  que  “constrói”  o  seu  próprio  objeto  do 

conhecimento.  Pensar  assim  é  acreditar  que  o 

conhecimento  deve  estar  fundado  em  estados  de 

experiência  interiores pessoais, não se conseguindo 

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estabelecer uma relação direta entre estes estados e 

o conhecimento objetivo de algo para além deles. 

Isso, aliás, tornou‐se lugar comum no âmbito do 

imaginário  dos  juristas.  Com  efeito,  essa 

problemática parece explicita ou implicitamente. Por 

vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, 

os  juízes  (singularmente  ou  por  intermédio  de 

acórdãos  nos  Tribunais)  deixam  “claro”  que  estão 

julgando “de acordo com a sua consciência” ou “seu 

entendimento  pessoal  sobre  o  sentido  da  lei”.  Em 

outras  circunstancias,  essa  questão  parece 

devidamente  teorizada  sob  o  manto  do 

poder discricionário dos juízes.   

Não  se  pode  olvidar  a  “tendência” 

contemporânea  (brasileira)  de  apostar  no 

protagonismo  judicial  como  uma  das  formas  de 

concretizar  direitos.  Esse  “incentivo”  doutrinário 

decorre  de  uma  equivocada  recepção  daquilo  que 

ocorreu na Alemanha pós‐segunda guerra a partir do 

que se convencionou chamar de  Jurisprudência dos 

Valores. (2013, p. 20)          

O que é possível observar então, que com a bandeira de “democratizar 

o direito” e, elaborar argumentos persuasivos que fundamentem decisões 

e  sentenças,  evidencia‐se  o  aumento  da  possibilidade  do mergulho na 

insegurança  jurídica e no arbítrio autoritário do  juiz. Mas, este debate, 

apesar de não ser tão recente a filosofia jurídica, já pode ser considerado 

um discurso “pós‐moderno”. Por isso, enfatiza Streck em “O que é isto – 

decido conforme mina consciência?”: 

Já como preliminar é necessário lembrar [...] que 

não é e não pode ser aquilo que o interprete quer que 

ele seja. [...] A pergunta que se põe é: onde ficam a 

tradição, a coerência e a integridade do direito? Cada 

decisão  parte  ou  estabelece  uma  grau  zero  de 

sentido?” (2013, p. 25 e 27). 

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A  modernidade  e  toda  sua  estrutura  teórica  sempre  estiveram 

fundadas  em  dicotomias.  “Individual  versus  coletivo”, 

“indivíduo  versus  Estado”,  “liberdade  versus  ordem”, 

“Estado versus sociedade”. Talvez estas sejam as mais importantes e, por 

isso mesmo, sempre ocorreu o dilema sobre a facticidade e legitimidade 

do significado de: “liberdade” e “igualdade”. Além disso, o que sempre 

agravou  tais dilemas  foi o  fato de a sociedade moderna sempre esteve 

estruturada em função de alguma hierarquia. A hierarquia não é de modo 

algum  uma  invenção moderna, mas  sempre  foi  no  interior  da  própria 

teorização moderna um ponto frágil utilizado pelos seus opositores. 

O  projeto  moderno,  salientando  aí  o  Direito  e  o  Estado,  foi  uma 

frustrada  investida  de  criar  uma  sociedade  razoável  por  aqui mesmo, 

chegando  muitas  vezes,  às  utopias  dos  paraísos  terrestres.  Mas,  as 

consequências  desse  projeto,  logo  apareceram  na  medida  da  sua 

implantação, dentre elas, a segregação, mostrando que a razão e a ciência 

não eram suficientes para garantir um resultado plausível. 

A  segregação  parece  ser  um  fenômeno  natural  nas  sociedades 

humanas.  Mas,  quais  e  como  os  contornos  modernos  foram  se 

desenvolvendo?  No  filme  de  Ridley  Scott,  Blade  Runner  –  O  caçador 

de Andróides,  lançado  em  1982,  logo  alcançou  o  status  de  clássico  da 

ficção científica. Previa que no ano 2019, o planeta Terra, já em acentuada 

decadência, apresentaria um quadro no qual, os habitantes considerados 

humanos habitam em gigantescos edifícios apartados de tudo. Os demais 

habitantes  são  “humanos  decadentes”  e  “androides”  que,  devido  a 

sofisticada evolução da engenharia genética alcançaram força e agilidade 

superiores  aos  verdadeiramente  humanos.  Esses  androides  chamados 

de  replicantes  rebelam‐se,  fogem das  suas  colônias,  abandonam  a  sua 

gênese  e  tornam‐se  uma  ameaça  aos  “humanos  superiores”,  seus 

criadores. Para conter esses seres rebeldes e  intrusos cria‐se uma  força 

especial de polícia para efetivar a “retirada”, o que significa matar,  tais 

criaturas. Essa força policial especial chama‐se blade runners, cuja missão 

é impedir a penetração dos androides nos espaços humanos. O problema 

está no fato de que os replicantes alcançam características cada vez mais 

humanas, inclusive não aceitando o limite de tempo de quatro anos para 

sua existência. 

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Ao mesmo  tempo,  os  blade  ranners  apresentam  características 

cada vez mais desumanas. Nessa confusão de parâmetros existenciais e 

não  só  por  isso,  o  filme  traz  inquietações.  Independente  das  origens, 

“humanos superiores” ou “inferiores” e “replicantes” confrontam‐se com 

questões  ontológicas  como  o  conflito  com  o  seu  próprio  passado,  o 

sentido  da  existência  e  o  prolongamento  da mesma  num mundo  sem 

Deus. 

Sem passado não há referência para o futuro. Mas qual futuro? Para 

os replicantes o futuro é imitar o mais possível o seu criador, o homem. Já 

o homem ao tentar tornar‐se Deus, por dominar inteiramente as leis da 

ciência, condenou‐se a perder o sentido da sua própria existência. Vive 

agora no alto e cercado de muros. Neste mundo blade runner o céu não é 

para todos e aqueles que não forem eleitos estão condenados a viver no 

inferno  que  está  embaixo  ou  à  morte  como  castigo  pela  rebeldia. 

Chegamos ao futuro. 

Tal como Deckard, personagem‐herói, caçador de androides, ao se 

ver num mundo totalmente criado pelo homem criador, o homem‐deus, 

se questiona sobre a veracidade do seu próprio passado. E se seu passado 

fosse apenas virtual? Ou seja, e se ele não tivesse passado tal como os 

androides não têm? Então não haveria porque confiar num futuro. Pois, 

sem passado, qual seria o  futuro? Diante desse  impasse, esse presente 

exíguo, sem a certeza se houve “antes” e haverá “depois”, sublima os seus 

desejos se entregando com paixão à criação do homem‐deus. Acasala com 

uma androide. Foge na sua nave, buscando um além‐paradisíaco por aqui 

mesmo, pois está convencido de que o Céu é uma ilusão. 

O  significado  do  filme  “Caçador  de  Androides”,  ilustra muito  bem 

alguns dos principais desafios modernos e pós‐modernos e, como isto está 

posto para dimensão  jurídica. Os dilemas entre  liberdade e  igualdade, o 

sentido do ser e da existência, a origem do mal, ganham representações 

variadas  de  tempos  em  tempos.  Daí  porque  os  permanentes  debates 

sobre a  lei mais  justa, ou mesmo um Direito  justo, buscando até, novas 

versões  a  respeito  da  universalização  dos  direitos,  tentando  mesmo, 

realizar a utopia da paz e felicidade universais. 

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Essa nova Filosofia Jurídica, que inclusive embasa e interpreta os Novos 

Direitos Humanos, está baseada sobremaneira em dois livros de K. Marx. 

São eles, principalmente: A Ideologia Alemã e A Questão Judaica. A obra 

de Marx está toda voltada para a grande batalha pela descristianização do 

ocidente,  fenômeno  que  compõe  toda  a  formação  do  pensamento 

moderno.  Na  busca  de  implantar  uma  inversão  política,  jurídica, 

econômica  e  social, Marx  vai  buscar  no  hegelianismo  alguns  dos  seus 

principais  fundamentos. O debate  teológico que ele desenvolve  com  a 

juventude hegeliana, verifica‐se principalmente, no embate que traça com 

Bauer  e  Feuerbach,  demonstrando  o  interesse  em  fundamentar  uma 

oposição ao cristianismo por ser este uma das principais sustentações da 

moderna  cultura  ocidental.  Por  isso,  atingir  o  Direito,  que  é  parte 

fundamental desta estratégia, pois é o mesmo que ao legalizar, legitima a 

manutenção de valores que impedem a revolução. 

No primeiro livro leciona o autor: 

No que diz respeito ao crime ele é, conforme já 

vimos antes, o nome para uma categoria universal do 

egoísta  em  acordo  consigo  mesmo,  negação  do 

Sagrado,  pecado.  Nas  antíteses  e  comparações 

acerca  dos  exemplos  do  sagrado  apresentadas: 

Estado,  direito,  lei,  a  relação  negativa  do  Eu  com 

esses Sagrados [...]. Como o furto de um pobre‐diabo 

que  se  apropria  de  uma  moeda  alheia  pode  ser 

colocado  na  categoria  de  crime  contra  a  lei,  esse 

pobre‐diabo furta uma moeda sem outra razão que 

não a de dar ao gosto de infringir a lei. Exatamente o 

mesmo que  Jaques  Le bon‐homme  imaginava mais 

acima acerca de as leis existirem graças ao sagrado, e 

que apenas graças ao sagrado os ladrões são metidos 

no  cárcere.  [...]  Compreende‐se,  portanto,  depois 

daquilo  ficamos  sabendo  acerca  do  crime,  que  a 

punição é  a  autodefesa e  a  resistência do  Sagrado 

contra os que querem dessacralizá‐lo (2007, p. 378, 

380). 

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   Em A Questão  Judaica  também  fica  claro o debate  teológico anti‐

cristão e contra as liberdades individuais: 

Se  reconhecem  o  Estado  cristão  como 

legalmente  estabelecido,  reconhecem  também  o 

regime  de  geral  escravidão.  Porque  seria,  então, 

penosa a opressão particular, se aceitam a opressão 

geral? Por que razão deve o alemão estar interessado 

na  libertação do  judeu, se o  judeu não se  interessa 

pela  libertação  do  alemão?  O  Estado  cristão  sabe 

apenas de privilégios. Neste Estado, também o judeu 

possui  o  privilégio  de  ser  judeu.  [...] O  Estado  é  o 

intermediário entre o homem e a liberdade humana. 

Assim como Cristo é o mediador a quem o homem 

atribui  toda  a  sua  divindade  e  todo  o  seu 

constrangimento religioso, assim o Estado constitui o 

intermediário ao qual o homem confia toda a sua não 

divindade, toda a sua liberdade humana. [...]  Assim, 

nenhum dos supostos direitos do homem vai além do 

homem  egoísta,  do  homem  enquanto membro  da 

sociedade  civil;  quer  dizer,  enquanto  indivíduo 

separado da comunidade, confinado a si próprio, ao 

seu  interesse privado e ao  seu  capricho pessoal. O 

homem está  longe de, nos direitos do homem,  ser 

considerado como um ser genérico; pelo contrário, a 

própria  vida  genérica  –  a  sociedade  –  surge  como 

sistema externo ao indivíduo, como limitação da sua 

independência  original.  […]  Na  democracia 

aperfeiçoada,  a  consciência  religiosa  e  teológica 

aparece a si mesma como mais religiosa e teológica 

pelo fato de aparentemente não possuir significado 

político  ou  objetivos  terrestres,  de  ser  assunto  de 

coração retirado do mundo, expressão dos limites do 

entendimento,  produto  da  arbitrariedade  e  da 

fantasia,  verdadeira  vida  no  além.  O  cristianismo 

atinge  aqui  a  expressão  prática  do  seu  significado 

religioso universal, [...] (2009, p.44, 54,54) 

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Por isso, Marx entende que: 

A democracia política é cristã na medida em que 

nela,  o  homem  passa  por  ser  soberano, 

por ser supremo, mas é o homem no seu fenômeno 

insocial,  incultivado,  o  homem  na  sua  existência 

contingente,  o  homem  tal  como  anda  e  está,  o 

homem  tal  como  está  corrompido,  perdeu  a  si 

mesmo,  se  alienou,  se  encontra  dado  sob  a 

dominação de relações e de elementos  inumanos – 

numa  palavra,  o  homem  que  ainda  não  é  um  ser 

genérico real (2009, p. 58, 59). 

Então, já no final da obra, Marx chega ao centro da sua crítica que é a 

negação dos Direitos Humanos, conforme estão na Declaração Francesa. 

Com clareza ele observa: 

A  incompatibilidade da religião com os Direitos 

Humanos reside tão pouco no conceito dos Direitos 

Humanos, que o direito de ser religioso do modo que 

lhe aprouver, de exercer o culto da sua religião, até 

está  expressamente  contado  entre  os  direitos 

humanos. 

Os direitos humanos  são  como  tais, diferentes 

dos direitos do cidadão. Quem é homem diferente de 

cidadão?  Ninguém  senão  o membro  da  sociedade 

civil. Por que é que o membro da  sociedade civil é 

chamado de “homem”, por que é que os seus direitos 

são chamados direitos do homem? A partir de quê 

nós podemos explicar esse fato? A partir da relação 

do Estado político com a sociedade civil, a partir da 

essência da emancipação política. 

Antes de  tudo constataremos o  fato de que os 

chamados direitos do homem e do cidadão, não são 

outra  coisa  senão  os  direitos  do  membro  da 

sociedade civil burguesa, i. é., do homem egoísta, do 

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homem  separado  do  homem  e  da  comunidade 

(2009, p. 62, 63). 

Uma  vez  que  o  “homem  egoísta”  para Marx  (2009)  é  aquele  que 

desfruta das  liberdades  individuais e apesar do piedoso exemplo de um 

ladrão que rouba apenas uma moeda, Marx (2007, 2009) traz toda uma 

lógica contra o Direito, o Estado e a Lei que foi reproduzida por todos os 

seus fieis discípulos, principalmente a partir do revisionismo gramsciano 

elaborado e tão bem difundido pela Escola de Frankfurt. Tal lógica é muito 

simples  e  é  central  na obra de  escritores  como M.  Foucault  (1991). O 

conceito  de  crime  tem  origem  no  pecado  e  o  pecado  tem  origem  na 

violação das normas de Deus. No  sentido  inverso,  se Deus não  existe, 

como era próprio da pregação ateísta, pecado também não e por isso, a 

categoria crime não passa de preconceito e meio de controle de classe. 

Foucault ainda vai além, substitui o conceito de “sociedade burguesa” 

por “sociedade do controle” e defende explicitamente em toda sua obra, 

que toda norma, seja ela moral ou jurídica, é excludente e segregadora. 

Por se  tratar de mecanismos oriundos de uma “sociedade do controle” 

para acabar com essa exclusão e segregação é preciso extinguir as normas 

morais e jurídicas. Desta forma, abolindo o crime, estaria se realizando a 

utopia  de  uma  sociedade  sem  crimes  onde  todos  são  iguais,  pois  não 

haveria  mais  as  discriminações  ou  segregações  estabelecidas  pelas 

normas.  O  próprio  Foucault  demonstra  sua  aversão  à  sociedade  das 

normas, afirmando em “A Verdade e as Formas Jurídicas” que: 

Estamos  assim  na  idade  do  que  eu  chamo  de 

ortopedia social. Trata‐se de uma forma de poder, de 

um tipo de sociedade que classifico como sociedade 

disciplinar por oposição às sociedades propriamente 

penais que conhecemos anteriormente. É a idade do 

controle social. Entre os teóricos que a pouco citei, 

alguém  de  certa  forma  previu  e  apresentou  como 

que um esquema desta  sociedade de vigilância, da 

grande  ortopeia  social.  Trata‐se  Bentham.  Peço 

desculpas  aos  historiadores  da  filosofia  por  esta 

afirmação,  mas  acredito  que  Bentham  seja  mais 

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importante  para  a  nossa  sociedade  do  que  Kant, 

Hegel  etc.  Foi  ele  que  programou,  definiu  e 

descreveu  da  maneira  mais  precisa  as  formas  de 

poder  em  que  vivemos  e  que  apresentou  um 

maravilhoso  e  célebre  pequeno  modelo  desta 

sociedade  da  ortopedia  generalizada:  o 

famoso Panopticon (2005, p. 86).   

Observa‐se  então  que  o  conflito  ideológico  que  atualmente 

permeia o Direito reflete‐se fundamentalmente numa crise de paradigmas 

jurídicos. Grosso modo,  de  um  lado  os  revolucionários  libertários  que 

tentam  abolir  um  Direito,  insistentemente  acusado  de  “repressor”, 

“ilegítimo” e “segregador”. Do outro, aqueles que admitem as mudanças 

de  paradigmas,  mas  conservam  determinadas  tradições  jurídicas  e 

filosóficas como parâmetro de orientação para o embasamento de novas 

doutrinas e paradigmas. 

Capítulo  IV  ‐  Conceitos,  Doutrinas  e  Escolas  Penais:  do  penalismo 

positivista ao abolicionismo penal revolucionário   

Desde  o  final  do  século  XIX  quando  Raymond  Saleilles  (2006) 

escreveu “A Individualização das Penas”, que algumas questões tornam‐

se  evidentes  no  universo  do  Direito  Penal,  principalmente,  como 

relacionar  liberdade,  responsabilidade e punição. Na  introdução  a esta 

obra o também,  famoso  jurista de então, Gabriel Tarde, salienta alguns 

dilemas para Direito ocidental moderno que continuaram desafios para a 

Escola Positiva. Por exemplo: 

[...]  a  dificuldade  em  conciliar  suas  duas 

conclusões:  por  um  lado,  conservar  a 

responsabilidade  moral,  apoiada  no  livre‐arbítrio, 

como fundamento da condenação; de outro, fundar 

a penalidade em um princípio totalmente distinto: a 

individuação da pena. [...] 

Não obstante,  isso  significa que, quando o ato 

não parecer emanar do  caráter próprio do agente, 

quando  parecer  uma  anomalia  passageira,  não  é 

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oportuno punir,  já que não há de  se  reformar  seu 

caráter por causa de atos que não lhe dizem respeito. 

Portanto,  seria  mais  racional  fazer  com  que  a 

culpabilidade  e  a  penalidade  dependessem  da 

natureza  do  caráter  pessoal.  E  então, 

responsabilidade  e  individuação,  longe  de  se 

contradizerem ou afrontarem‐se de maneira estéril, 

teriam a mesma origem (2006, p. 17). 

Na medida em que se pretendia que o Direito e particularmente o 

penal se afastassem dos juízos de valores morais e o Direito Penal pudesse 

adquirir um grau de ciência, cada vez mais, no século XIX, a criminologia e 

a sociologia positivista foram matrizes para embasar a perspectiva do um 

Direito científico ou, dito de outro modo, uma ciência jurídica. Por isso: 

Não se trata de dimensionar a pena com relação 

ao  mal  cometido;  nem  se  trata  apenas  de 

dimensioná‐la  segundo  o  grau  de  criminalidade 

empregado  no  momento  do  ato;  antes  de  tudo, 

trata‐se de adaptá‐la à natureza da perversidade do 

agente,  à  sua  virtualidade  criminal,  que  se  deve 

impedir  que  se  traduza  em  novos  atos  [...] 

considerando a punição mais como um remédio do 

que como uma dívida e uma expiação (2006, p. 17). 

E ainda, como se estivesse no nosso tempo, observa Tarde: 

É  algo  estranho,  quando  os  criminalistas 

contemporâneos,  naturalistas  ou  socialistas, 

investigam as causas do delito, não descobrem mais 

do que fatores impessoais, o clima, a estação, a raça, 

as  anomalias  cranianas  ou  de  outra  espécie,  os 

estímulos do meio social; em resumo, naturalizam ou 

socializam o delito e o  tornam  impessoal  (2006, p. 

17).   

O  entendimento  de  que  o  Direito  Penal  é  um  conjunto  de  leis 

positivadas  cujo objetivo é proteger a  sociedade é muito evidente nos 

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estudos do  século XIX. Essa  visão a  respeito do Direito Penal originou, 

inclusive, interpretações mais radicais, algumas das quais estão presentes 

até hoje. Dentre elas a “defesa social” ou a “nova defesa social”, também 

o “abolicionismo penal” que, tal como antes e agora, pregam a extinção 

dos presídios, e a substituição do Direito Penal por uma sociologia criminal 

que estaria voltada exclusivamente para a adoção de políticas preventivas 

e ressocializadoras. O próprio Raymond Saleilles admitia: “O Direito Penal, 

evidentemente, é sociologia criminal” (2006, p. 27).   

A primeira questão  reside na necessidade de  se  trazer o Direito 

Penal para uma proximidade com o mundo fático. E isso, sem dúvida, é ao 

mesmo tempo uma reação à abstração teórica da Escola Clássica. Pode‐se 

perceber  então  que  são  imediatas  as  reações  a  essa  necessidade  ao 

apresentar‐se com certa constância, na medida em que, senão os crimes, 

mas a forma de cometê‐los cobra atualizações das Políticas Criminais e por 

isso,  da  persecução  penal.  Não  por  acaso  surge  naquele  contexto  a 

expressão  “defesa  social”,  retratando  o  principal  objetivo  e  função  do 

Direito  Penal,  para  logo  em  seguida,  tornar‐se  uma  Escola  penal  e 

criminológica. 

A  origem moderna  da  legitimidade  do  Estado  criar  leis  e  punir 

encontra‐se toda no jusnaturalismo e no contratualismo. Hobbes resume 

muito bem esta questão quando afirma: “Mas tal como os homens, tendo 

em vista conseguir a paz, e através disso sua própria conservação, criaram 

um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram 

cadeias artificiais, chamadas leis civis” (1997, p. 172). 

Em  Rousseau,  um  século mais  tarde,  a  questão  está  ainda mais 

clara: 

O  fim  do  tratado  social  é  a  conservação  dos 

contratantes:  quem  quer  o  fim  quer  também  os 

meios, que  são  inseparáveis de  alguns  riscos e  até 

algumas perdas. 

[...]  quanto  mais  o malfeitor  insulta  o  direito 

social, torna‐se por seus crimes rebelde e traidor da 

Pátria, de que cessa de ser membro por violar suas 

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leis e à qual até faz guerra; a conservação do estado 

não  é  compatível  com  a  sua,  deve  um  dos  dois 

morrer,  e  é mais  como  inimigo  que  se  condena  à 

morte como cidadão (2004, p.46) 

Temos então, duas perspectivas diferentes. Em Hobbes temos uma 

das  matrizes  do  Direito  liberal.  Já  em  Rousseau  a  matriz  do  Direito 

socialista. Não por acaso, é o mesmo Rousseau que  infunde o  início da 

“naturalização do crime”, ou seja, imputar ao meio ambiente social a culpa 

pelos comportamentos danosos, uma vez que, para Rousseau, “o homem 

nasce livre e em toda parte encontra‐se a ferros” (2004, p. 23). O homem 

como  vítima  do  seu  meio,  essa  ideia  está  presente  em  muitos 

jusnaturalistas. Mas é Marx, no século seguinte, que levará tal concepção 

às últimas consequências. 

Neste século XIX, a obra de Liszt se insere num contesto de visível 

contestação ao classicismo, onde para fundamentar uma tese científica do 

Direito Penal, um Direito Penal Positivo, a Criminologia passa a ser fonte 

primária de informações a respeito. Outras necessidades já se apresentam 

como, por exemplo, trazer o Direito Penal para uma aproximação com a 

realidade  dos  atos  humanos.  Tais  ideias,  como  formadoras  do  Direito 

Penal  moderno,  já  podiam  ser  identificadas  no  próprio  pensamento 

hobbesiano. Para Hobbes: 

Um pecado não é apenas uma  transgressão da 

lei,  é  também  qualquer manifestação  de  desprezo 

pelo legislador. Por que tal desprezo é uma violação 

de todas as leis ao mesmo tempo. [...] Não há lugar 

para humana  acusação de  intenções que nunca  se 

tornaram visíveis em ações exteriores. [...] 

Nenhuma  lei  feita depois de praticado um  ato 

pode transformar este num crime, pois se o ato for 

contraditório à  lei de natureza a  lei existe antes do 

ato, uma lei positiva não pode ser conhecida antes de 

ser feita, portanto não pode ser obrigatória (1997, p. 

223, 225).   

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Porém, nestes contrapontos entre o Direito penal liberal e o Direito 

penal socialista, uma das grandes expressões do Direito penal socialista 

atual, a partir da qual Direito Penal e Criminologia voltam a se encontrar 

é, Alexandro Baratta (2002), numa clara abordagem neomarxista que lhe 

dá,  inclusive, o  status de um dos  expoentes da  Escola da Criminologia 

Crítica. Segundo o autor: 

Um  confronto  desmistificador.  Desde  o  velho 

discurso da Sociologia Criminal, que ainda estuda o 

crime como realidade ontológica preconstituída, até 

o novo discurso da Sociologia do Direito Penal, que 

estuda as definições e o processo de criminalização 

do  sistema penal  como elementos  constitutivos do 

crime e do status social de criminoso (2002, p. 09). 

  

O argumento de que o Estado não tem direito legítimo para exercer 

a punição é um discurso marxista muito refletido nas obras de: Gramsci 

(2004), Habermas (1997) e Foucault (1991).  No contexto atual, seguindo 

as diretrizes do Direito Penal Crítico e da Criminologia Crítica, ou  seja, 

neomarxistas,  Zaffaroni  (2001),  por  exemplo,  na  América  Latina, 

argumenta  que  o  sistema  penal  já  não  consegue  dar  as  respostas  ao 

mundo cotidiano e fático, pois atua a partir de construções teóricas que 

não mais  condizem  com a  realidade. Afirma então  ser o  sistema penal 

uma: 

[...] programação normativa que baseia‐se numa 

“realidade” que não existe e o   conjunto de órgãos 

que deveria levar a termo essa programação atua de 

forma completamente diferente. [...] É bastante claro 

que, enquanto o discurso  jurídico‐penal  racionaliza 

cada vez menos – por esgotamento de seu arsenal de 

ficções gastas ‐, os órgãos do sistema penal exercem 

seu poder para controlar um marco social cujo signo 

é a morte em massa (2001, p. 12, 13) 

Talvez a primeira questão mais importante que a obra de Zaffaroni 

tenta  mostrar  é  a  condição  de  um  ordenamento  jurídico,  e  mais 

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especificamente de um Direito Penal de Terceiro Mundo.   E, retratando 

tal contexto, diz Zaffaroni: “Hoje, temos consciência de que a realidade 

operacional  de  nossos  sistemas  penais  jamais  poderá  adequar‐se  à 

planificação do discurso jurídico‐penal” (2001, p. 15). É preciso então que 

antes de  falarmos nas penas perdidas temos que  lembrar das  inúmeras 

situações  históricas,  inclusive  recente,  nas  quais  ao  invés  de  nos 

distanciarmos de  certas  raízes históricas mantivemos a  continuidade. É 

muito mais honesto do que essa culpabilização  frustrada a  respeito do 

“sistema capitalista”. 

Tanto  Foucault  (1991)  como  Zaffaroni  (2001)  fazem  descrições 

ideológicas  da  história  das  instituições  modernas,  mudando 

completamente  o  sentido  do  que  passaram  a  chamar  de  “poder”. 

A disciplina que passa a caracterizar o sistema penal moderno é sempre 

analisada e interpretada como simples artimanha do poder de uma classe. 

Nesse ponto,  tanto  Foucault  como  Zaffaroni  se articulam  com a  teoria 

marxista, substituindo o conceito de “classe burguesa” por “sociedade do 

controle” e “luta de classe” por “relações de poder”. 

Entretanto, Foucault (1991) e Zaffaroni (2001), põem em dúvida o 

desenvolvimento das doutrinas e instituições penais modernas tal como 

sinalizam as obras de Hobbes (1997), Montesquieu (1973), Beccaria (1968) 

e Bentham (2002), por exemplo. A introdução do conceito de “disciplina” 

é muito mais sinônimo de evolução das regras de convívio desenvolvidas 

pela sociedade moderna, urbano‐industrial, do que a reduzida concepção 

de repressão ou segregação, como que,  implementada como estratégia 

sorrateira de grupos dominantes. É evidente que as ideologias e poder de 

classe estão presentes em qualquer grupo social. Nesse sentido, Marx e 

Foucault, não inventaram nada. 

Ao seguir Foucault para analisar a “disciplina” Zaffaroni entra em 

contradição com seus argumentos iniciais. Primeiro, porque como foi visto 

a  “disciplina”  sempre  foi  carente,  sempre  houve  imenso  esforço  para 

impor‐se.  Segundo,  porque  parece  consolidar  a  estigmatização  de  que 

realmente nós, povos e pessoas de Terceiro Mundo não temos realmente 

condições de interiorizar os valores modernos de origem europeia, todos 

girando em torno ou fundamentados mesmo na autodisciplina. 

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De fato, antes de tudo estamos falando de uma crise da República. 

Essa crítica ao Direito Penal vem sendo desenvolvida, principalmente com 

base na teoria marxista de escolas criminológicas tais como a Criminologia 

da Reação Social, a Criminologia Crítica e o Abolicionismo Penal. 

 Críticas dirigidas ao Direito Penal e, principalmente essa crítica na 

América Latina, tem duas variáveis que se apresentam permanentemente. 

Primeiro,  a  crítica  ao  Direito  Penal  carece  de  pontuação  específica. 

Segundo, o discurso direcionado  contra o Direito Penal é muitas  vezes 

resultado da ausência da  reflexão  sobre o Estado na República e a  sua 

insuficiência institucional. Em outras palavras, é simplesmente inexistente 

o  desenvolvimento  teórico  sobre  o  Estado.  Dessa  forma,  a  crítica  ao 

Direito carece de uma reflexão entre a validade e a eficácia passando pela 

instituição, “Estado”.  

Sobre essa tendência pondera Jorge L. Esquirol: 

Essa  fórmula  pode  parecer  inofensivamente 

instrumental  ou  mesmo  incidental,  uma  vez  que 

promete grandes  resultados. Todavia ela não é um 

modo  institucionalmente  sustentável  de 

fortalecimento do Direito. [...] Esse processo abala e 

empobrece  aquelas  mesmas  instituições.  E,  ao 

mesmo  tempo,  as  torna  ainda mais  vulneráveis  ao 

neocolonialismo.  [...]  Agindo  desse  modo  cria‐se 

aquela  característica  típica  de  uma  “república  das 

bananas” que os reformadores simplesmente alegam 

descrever e querer fortalecer. 

Essa representação do Direito  latino‐americano 

como fracassado é ao que me refiro como sendo uma 

ficção (2011, p. 444).   

De modo  geral  são autores  como  Zaffaroni  (2001) e Nilo Batista 

(2001),  que  propõem  críticas  ao  Direito  Penal  sem,  contudo, mostrar 

exatamente  qual  caminho  a  seguir  enquanto  alternativa,  quais 

reformulações podem ser adotadas e, principalmente aonde, exatamente 

podemos encontrar alternativas sensatas.  

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O  rápido  desenvolvimento  tecnológico  dotou  o  Estado  de  tal 

capacidade  de  vigilância  que,  quando  incorporado  pelas  forças  de 

segurança  do  Estado,  dotaram‐no  de  uma  capacidade  incrível  de 

vigilância, captura e busca de provas. Ao mesmo tempo é visível que um 

número cada vez maior de pessoas se dispõe a comer crimes e dos mais 

variados tipos. Por isso, quando Zaffaroni afirma que o “discurso jurídico‐

penal é falso” (2001, p. 14) em função da manutenção de interesses das 

relações de poder, temos de perguntar quem escreve e interpreta sobre o 

Direito, senão juízes e juristas? 

Em outras tantas vezes esses autores “críticos”, tecem suas análises 

e  comentários, direcionando para o Direito o que de  fato é uma  clara 

questão  de  Estado,  de  República,  de  divisão  de  poderes  e  instituições 

fortes ou fracas. 

Por exemplo, quando Zaffaroni, denuncia: 

Seria  completamente  ingênuo  acreditar  que  o 

verdadeiro poder do sistema penal seja exercido, por 

exemplo, quando suas agências detêm, processam e 

condenam um homicídio. Esse poder que se exerce 

muito eventualmente, de maneira altamente seletiva 

e rodeada de ampla publicidade através dos meios de 

comunicação social de massa, é ínfimo se comparado 

com o poder de controle que os órgãos do sistema 

penal  exercem  sobre  qualquer  conduta  pública  ou 

privada  através  da  interiorização  dessa  vigilância 

disciplinar por grande parte da população  (2001, p. 

24). 

O aparato estatal, muito pelo contrário, este sim, exerce um poder 

mínimo  sobre  o  comportamento  das  pessoas,  inclusive  não  observa  o 

referido autor, das  inúmeras  falhas nos  sistemas de  segurança pública, 

que poderiam, se mais percebidos do que são, fazer todos os criminosos 

atuarem quase de uma só vez. Esse aparato estatal exerce uma ameaça 

violenta  e  constante,  exatamente  por  que  já  perdeu  todo  o  poder  de 

controle  das  massas  insubordinadas  e  do  crime  em  geral.  O  próprio 

Zaffaroni em passagem posterior reconhece o problema: 

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Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os 

abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, 

todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças 

etc.  fossem  concretamente  criminalizados, 

praticamente não haveria habitante que não  fosse, 

por diversas vezes, criminalizado (2001, p. 26). 

Essa  essência  da  crise  da  modernidade  que  leva  a  buscas  de 

alternativas para o que o está aí é bem retratada quando Zaffaroni diz: 

O discurso jurídico‐penal não pode desentender‐

se do “ser” e refugiar‐se ou isolar‐se no “dever‐ser” 

porque para esse “dever‐se” seja um “ser que ainda 

não  é” deve  considerar o  vir‐a‐ser possível do  ser, 

pois, do contrário, converte‐a em um ser que jamais 

será.  Isto  é  num  embuste.  Portanto,  o  discurso 

jurídico‐penal é socialmente falso, também perverso: 

torce‐se  e  retorce‐se,  tornando  alucinado  um 

exercício  de  poder  que  oculta  ou  perturba  a 

percepção do verdadeiro exercício de poder (2001, p. 

19)   

O problema desta reflexão de Zaffaroni, visivelmente influenciada 

pela teoria marxista é que desloca o Direito deontológico para a dimensão 

ontológica. Em outras palavras, a perspectiva deontológica  se adequou 

muito bem às tradições modernas na medida em que o “não pecar mais” 

cedeu lugar para a “ressocialização”. Ainda assim, como observaram Marx 

e Engels, na Ideologia Alemã (2007), a exigência ou mesmo a possibilidade 

do vir a ser, nesta perspectiva, nega o ser. Por  isso, o direito não pode 

criminalizar  quem  é.    Sendo  assim,  o Direito  Penal,  até  então,  é  uma 

expressão  da  modernidade  e,  dentro  deste  universo,  de  valores  e 

doutrinas, cujas origens estão lá no passado dos fins da Idade Média, onde 

a concepção de  liberdade é a palavra de ordem. Agora, o Direito vai se 

tornando cada vez mais, ontológico, ou seja, o Direito vem sendo chamado 

para legalizar e legitimar o que o indivíduo é. Qualquer outra disposição 

legal  torna‐se  preconceito  ou  repressão.  Antes  os  significados  de 

“liberdade”  oscilavam  entre  estar  subordinado  à  lei  e  autogoverno  ou 

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autocontrole.  Então,  como  adequar  o  Direito  Penal  à  nossa  realidade 

fática e não  reduzi‐lo a um abolicionismo  inconseqüente ou uma mera 

regulação do crime?  Além disso, quando a filosofia existencialista fala de 

um “dever‐ser”, está falando de expectativa; da possibilidade de normas 

comuns  de  conduta  e  convívio.  Por  isso  adequou‐se  ao  Direito  Penal 

moderno, que buscava distanciar‐se da filosofia cristã. 

Não é novidade perceber que as instituições modernas, vindas de 

caravelas, não se adaptaram bem por aqui. Sérgio Buarque de Holanda em 

Raízes do Brasil já afirmava: 

A  frouxidão  da  estrutura  social,  a  falta  de 

hierarquia organizada deve‐se alguns dos episódios 

mais  singulares  da  história  das  nações  hispânicas, 

incluindo‐se  nelas  Portugal  e  Brasil.  Os  elementos 

anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com 

a  cumplicidade  ou  a  indolência  displicente  das 

instituições e costumes. [...] 

Essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos 

honoríficos,  de  posições  e  riquezas  fáceis,  tão 

notoriamente característica da gente de nossa terra, 

[...]. E, no entanto, o gosto da aventura, responsável 

por  todas  essas  fraquezas,  teve  influência  decisiva 

em nossa vida nacional (1988, p. 05, 15 e 16).   

É  ainda  importante  notar  que  mesmo  os  autores  brasileiros  e 

latinos  que  em  geral  reclamam  por  um Direito  Penal  “adequado”  vão 

buscar  legitimação para suas “críticas” em autores e doutrinas também 

estrangeiras, ou seja, distantes do nosso contexto. 

Nesse  sentido,  o  Abolicionismo  Penal,  que  nasce  nos  países 

nórdicos particularmente na Noruega, chega ao Brasil e América Latina em 

grande  estilo. De  base marxista,  foucaultiana,  essa  doutrina  prega  em 

regra o fechamento dos presídios e a extinção do Direito Penal.   De um 

modo geral todos esses doutrinadores usam a mesma retórica estratégica 

de  tentar denunciar a permanência de  caracteres antigos nos  sistemas 

penais atuais.   Não conseguem compreender e explicar os motivos que 

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levam ao aumento das taxas de crime e da população prisional no mundo 

inteiro,  senão,  através  de  acusações  genéricas  ao 

capitalismo.    Geralmente  denunciam  os  Estados  Unidos,  como  se  as 

prisões cubanas, chinesas ou russas fossem algum modelo a ser seguido. 

Segundo  Thomas Mathiesen, um dos  autores mais  reconhecidos 

dessa corrente, 

[...]  o  sistema  penal  atual,  elaborado  por 

políticos, e muito mais dependente no contexto geral 

daquilo que  chamamos de  “opinião pública”  e dos 

meios de comunicação de massa. [...] 

O calcanhar de Aquiles, o solo de barro da prisão 

é  sua  total  irracionalidade  em  termos  de  seus 

próprios objetivos estabelecidos, um pouco como a 

caça  às  bruxas  sem  provas.  Em  termos  de  seus 

próprios objetivos, a prisão não  contribui em nada 

para  nossa  sociedade  e  nosso  modo  de  vida. 

Relatórios após  relatórios, estudos após estudos às 

dezenas, centenas e milhares, claramente mostram 

isso. 

Como vocês sabem, a prisão tem cinco objetivos 

estabelecidos  que  são  ou  têm  sido  usados  como 

argumentos para o encarceramento. Primeiro, há o 

argumento  da  reabilitação,  [...].  Segundo,  há  o 

argumento  da  intimidação  do  indivíduo,  [...]. 

Terceiro, há o argumento da prevenção geral, isto é 

dos  efeitos  da  intimidação,  [...].  Quarto  há  o 

argumento  da  interdição  dos  transgressores,  [...]. 

Quinto,  e  último,  acrescentem  a  essa  justiça 

equilibrada  –  a  resposta  neo‐clássica  ao  crime 

através da prisão e a lista estará completa  (2003, p. 

89, 90, 91, 95).   

Mathiesen  (2003),  com base em Foucault  (1991) observa que os 

mecanismos de controle foram se aperfeiçoando, principalmente com o 

desenvolvimento e difusão da  televisão que define valor es a partir da 

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imagem. A mensagem escrita foi substituída pela  imagem. Sendo assim, 

algumas  pessoas  passam  a  ser  alvos  selecionados  de  atenção, 

particularmente no que diz respeito aos mecanismos repressivos.   

Daí que, segundo a Escola do Abolicionismo Penal, faz muito pouco 

sentido punir com prisão pessoas que já são previamente estigmatizadas 

e,  num  aparato  prisional  apartado  das  suas  finalidades.  É  exatamente 

nestas teorias do Abolicionismo Penal que Zaffaroni (2001) e Nilo Batista 

(2001),  por  exemplo,  estão  baseados  para  tecer  críticas  ao  sistema 

prisional e ao Direito Penal, no Brasil e na América Latina. 

Os debates e teorizações sobre a função do Direito Penal em nosso 

tempo, não são tão recentes. Já vem ao menos desde os anos de 1970, 

quando tantas formas de rebelião: gangues, terrorismo marxista e máfias 

(envolvendo  a  criminalidade  econômica),  por  exemplo,  tornam‐se, 

portanto,  focos  de  atenção  político‐jurídica  no  mundo  inteiro, 

particularmente  na  Europa.  É  nesse  ambiente  que  aparece  o 

Funcionalismo  Penal  alemão,  cuja  especulação  doutrinária  inicia‐se 

exatamente  nesse  contexto,  no  qual,  pessoas  ou  grupos  “libertários” 

explodem  bombas  em  lanchonetes  repletas  de  pessoas  em  quando 

intelectuais marxistas acusam e reduzem o Direito Penal a uma elaborada 

estratégia de conspiração de classe e manutenção das relações de poder. 

As obras de Roxin  (2008) e posteriormente,  Jakobs  (2007) estão 

fundamentadas  na  realidade  do mundo  pós‐Segunda Guerra,  contexto 

esse, que traz, outra vez, a possibilidade se afastamento dos princípios do 

Direito reincorporado pelo trauma da Guerra. Como salienta Jakobs: “De 

acordo  com  uma  cômoda  ilusão,  todos  os  seres  humanos,  enquanto 

pessoas estão vinculadas entre  si por meio do direito”  (2007, p. 09). A 

forçosa saída deste paraíso imaginado ocorre por via do visível aumento 

de  todo  tipo de crime, no mundo  inteiro, na mesma medida em que o 

Estado do bem‐estar Social e a qualidade de vida aumentavam em quase 

toda parte. 

Nesse ambiente, o Funcionalismo salienta preocupação na  forma 

de questionamento que pode ser traduzida com uma única pergunta: qual 

a função do Direito Penal em uma sociedade? Tomando tal viés Roxin em 

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“Estudos  de  Direito  Penal”  desenvolve  um  amplo  debate  com  o 

Abolicionismo  Penal.  Nesta  obra  inicia  com  aquele  tipo  de  pergunta, 

somente  mais  focada  nos  argumentos  do  Abolicionismo.    Por  isso 

questiona:  “Tem  futuro  o  Direito  Penal?”,  “O  Direito  Penal  pode  ser 

abolido?”. Segundo o autor, de  fato, o Direito Penal caminha para uma 

grande  reformulação,  cujos  resultados,  implicam  uma  profunda 

despenalização de determinadas condutas que, mesmo mantidas como 

típicas e antijurídicas, não refletem necessidade de encarceramento. 

Em certo sentido, Roxin concorda com alguns dos fundamentos do 

Abolicionismo Penal,  inclusive admitindo que a necessidade de reforma 

do  Direito  Penal  não  reside  apenas  numa  especulação  abstrata.  Ao 

contrário, tudo  indica que um dos motivos que  levam à necessidade de 

revisar o conceito e o sentido da “pena” é exatamente o fato de que as 

taxas  de  crime  aumentaram  e  os  recursos  para  construir  e  manter 

presídios já estão no patamar do esgotamento.  Para o autor: 

O  movimento  abolicionista,  que  possui  vários 

adeptos entre os criminólogos [...] considera que as 

expostas  desvantagens  do  direito  penal  estatal 

pesam mais que os seus benefícios. [...] 

Se  tais  suposições  são  realistas,  o  futuro  do 

direito penal só pode consistir em sua abolição. Mas, 

infelizmente,  a  inspiração  social‐romântica  de  tais 

ideias é acentuada demais para que elas possam ser 

seguidas. [...] 

Não corresponde, portanto, à experiência que a 

criminalidade se deixe eliminar através de reformas 

sociais.  [...]  As  circunstâncias  sociais  determinam 

muito mais “como” do que o “se” da criminalidade: 

quando camadas inteiras da sociedade passam fome, 

surge uma grande criminalidade de pobreza; quando 

a  maioria  vive  em  boas  condições  econômicas, 

desenvolve‐se  a  criminalidade  de  bem‐estar, 

relacionada ao desejo de sempre aumentar as posses 

e, através disso, destaca‐se na sociedade. [...] 

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Minha  primeira  conclusão  intermediária  é  a 

seguinte:  também  no  estado  Social  de  Direito,  o 

abolicionismo não conseguirá acabar com o futuro do 

direito penal (2008, p. 03, 04 e 05). 

Dito  isso, podemos entender que mesmo admitindo que diversas 

formas  de  comportamentos  proibidos  possam  ser  revistos,  quanto  ao 

problema  da  despenalização  é  diferente,  cabe  notar,  com  sua 

descriminalização. Essa reestruturação do Direito Penal à qual se referem 

tanto o Abolicionismo quanto o Funcionalismo implica repensar com mais 

detalhe e cuidado, tanto as Teorias do Crime quanto as Teorias da Pena. 

A reflexão elaborada por Roxin não respalda uma descriminalização 

inconseqüente como propõem os abolicionistas penais, tomando muitas 

vezes exemplos distorcidos a respeito do sistema prisional e das causas da 

criminalidade. Trata‐se sim, de reconhecer que, o fato do sistema prisional 

não  regenerar,  não  implica  dizer  que  se  deve  simplesmente  fechar  os 

presídios e deixar que, por exemplo, estupradores e homicidas venham ao 

convívio  social,  como  se  tais  comportamentos  fossem  tipificações 

oriundas de preconceitos e interesses de classes.  Ainda segundo Roxin: 

A descriminalização é possível em dois sentidos: 

primeiramente,  pode  ocorrer  uma  eliminação 

definitiva  de  dispositivos  penais  que  não  sejam 

necessários para a manutenção da paz social. [...] 

Um  segundo  campo  de  descriminalizações  é 

aberto  pelo  princípio  da  subsidiariedade.  [...]  Tal 

caminho foi encetado pelo direito alemão, p. ex., ao 

se  criarem  infrações de  contra‐condenação. Assim, 

distúrbios  sociais  com  intensidade  de  bagatela  [..] 

não são mais sujeitos à pena, e sim, como infrações 

de contra‐ordenação, [...] (2008, p. 12 e 13). 

Podemos observar, então, que tais institutos já existem do Direito 

Penal brasileiro na figura do ”menor potencial ofensivo”. Sendo assim, há 

uma  paridade  entre  o  Direito  Penal  pátrio  e  que  ocorre  no  cenário 

internacional.  Contudo,  ainda  cabe  muita  preocupação  a  respeito  da 

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pouca  diferença  que  parecemos  fazer,  de  fato,  entre menor  potencial 

ofensivo e  impunidade. A falta de operacionalidade das  instituições que 

compõem  todo  o  caminho  da  persecução  penal  e  ainda,  quando  da 

competência da execução penal, parece ser, aqui no Brasil, um problema 

político amplamente generalizado e que está acima de ideologias político‐

partidárias. 

Tal realidade tão evidente no cotidiano das instituições e na relação 

entre  estas  e  os  fenômenos  do  mundo  da  rua,  mostra  em  parte,  o 

desinteresse  em  interpretar  adequadamente  as  doutrinas  com  seus 

respectivos  institutos  e  aplicá‐las  adequadamente,  através  do  nosso 

ordenamento, aos nossos problemas mais prementes.    

Capítulo V – Ideologia e a Crise de Paradigmas no Direito Moderno e 

Pós‐moderno 

Há certos desafios para o Direito que, sem dúvida, fazem parte da 

sua história. Questões como: o que  significa e como alcançar a  justiça, 

como distribuir direitos, o que é ser igual, igualdade em que e para quê, 

estão desde os gregos e os romanos. Tais desafios fazem parte da história 

do Direito porque  lhe são  inerentes a sua existência e sentido. O maior 

desafio  dos  tempos  atuais  se  encontra  na  permanente  tensão  entre  a 

validade  e  a  eficácia  do  Direito,  uma  vez  que  nos  encontramos  num 

ambiente  caracterizado  por  uma  profunda  crise  de  legalidade  e 

legitimidade, trazidas por novas ideologias revolucionárias. 

É evidente que essa crise da legalidade e legitimidade não tem outra 

origem senão a incapacidade do Direito em dar respostas eficazes para a 

realidade do mundo da rua e da relação entre as pessoas, particularmente, 

neste século XXI. 

Não foi por acaso que só recentemente, no século XIX teoria política 

e teoria jurídica se afastam numa ambição de tratar como entes sempre 

distintos Direito e Estado. De fato, se a priori, devem ser assim tratados 

como dimensões abstratas, que primeiro são formuladas no mundo das 

ideias,  já no plano da  realidade da vida  individual e coletiva um não se 

realiza sem o outro. 

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I. Entre o Direito Natural, Direito Positivo e o Positivismo Jurídico.

A busca por uma sociedade perfeita, às vezes chamada de “ideal”, 

faz parte de uma necessidade individual e grupal de retorno ao paraíso. A 

literatura  inglesa  retrata muito bem esta questão.  Tanto no  campo da 

teoria  jurídica, política,  social ou  até mesmo nos  romances e  contos o 

problema  da  “queda”,  está  presente.  Em  seguida,  a  influência  desta 

perspectiva vai se fazer presente na França, na Alemanha e até mesmo na 

literatura russa na qual Dostoiévski é o seu maior representante.

Mutatis Mutandis é a partir da “queda” que começam os problemas 

modernos, quiçá, a própria modernidade. Vem de  longe o debate sobre 

um Direito ditado pelos deuses e um Direito criado pelos homens. Mas é 

quando  surge  o  interesse  de  se  criar  uma  sociedade  diferente  da  que 

existia até então, ou seja, européia e medieval, é que vai se buscar nos 

greco‐romanos os fundamentos para um novo modelo. 

A modernidade  foi um projeto que tinha como objetivo construir 

um novo modelo de sociedade diferente daquela que existia até então. 

Qual modelo estava sendo questionado? O modelo que vinha até então e 

que passou a ser chamado pelos “modernos” de “medieval”. De fato, o 

projeto moderno  tinha  como  ambição  construir  um  novo modelo  de 

sociedade no qual a Igreja e a Monarquia não ditassem os parâmetros de 

conduta. 

O desenvolvimento do conhecimento racional, laico, que passou a 

ser chamado de ciência também contribuiu bastante para que o homem 

sentisse  confiança  em  afastar‐se  da  religião  e  buscar  um  modelo  de 

sociedade, onde ele mesmo resolvesse os próprios problemas. 

Nesse contexto, o que aqui mais interessa é que todas as reflexões 

filosóficas são direcionas ao mesmo tempo tanto para o Direito quanto 

para  o  Estado  sem  distinção. Mas,  há  uma  questão  que  precisava  ser 

respondida. Como manter a ordem, ou uma nova ordem? 

É bem verdade que as  instituições que hoje chamamos de Estado 

moderno e Direito moderno, não seguiram a linha reta de transformação 

e  evolução  como  os  resumos  dos  manuais  acadêmicos  costumam 

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apresentar.  E  assim  foi  tanto  na  relação  entre  Estado  e Direito  como, 

internamente, no que diz  respeito ao universo de abrangência de cada 

uma destas instituições. 

Em “O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito” (1999), 

Bobbio  descreve  muito  bem  os  contextos  e  trajetórias  entre  Direito 

Natural, Direito Positivo e Positivismo Jurídico. Salienta que desde cedo já 

era  reconhecida  a  necessidade  de  articular Direito Natural  e  o Direito 

Positivo.  A  partir  no  século  XVIII  a  antiga  dicotomia  entre  os  direitos 

referidos começa a mudar de rumo. Como Bobbio afirma: 

  Estas  duas  espécies  de  direito  não  são 

consideradas  diferentes  relativamente  à  sua 

qualidade  ou  qualificação:  se  uma  diferença  é 

indicada entre ambos refere‐se apenas ao seu grau 

(ou  gradação)  no  sentido  de  que  uma  espécie  de 

direito é considerada superior à outra, isto é postas 

em planos diferentes (1999, p. 25). 

 Ao descrever essa evolução histórica do Direito ocidental salienta 

aspectos  importantes quanto ao papel desempenhado pelas diferentes 

doutrinas. Mostra inclusive a importância de perceber que: “o positivismo 

jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e 

‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas 

o direito positivo passa a ser considerado como direito no sentido próprio” 

(1999, p. 26). 

Mas o nascimento do positivismo  jurídico  retrata, antes de  tudo 

uma  crise,  na  qual  se  envolvem  o  direito  natural  e  o  que  veio  a  ser 

conhecido  como  direito  positivo,  ou  seja,  o  Direito  produzido  e 

estabelecido pelo Estado. Daí surgem algumas questões importantes tais 

como:  a  relação  entre Direito  e  Estado,  as  fontes  do Direito,  e  qual  a 

possibilidade  do  Direito  fornecer  legitimidade  a  todas  as  pretensões 

modernas, principalmente com a inclusão no seu discurso do conceito de 

“povo”. 

Não  há  dúvida  de  que  a monopolização  do  poder  por  parte  no 

Estado moderno  implicou  na  necessidade  de  formação  de  um  Direito 

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único  e  que,  as  normas  consuetudinárias  só  poderiam  ser  aceitas  na 

medida em que, não ameaçassem a segurança da propriedade privada e 

dos seus detentores. 

Isso está muito claro com a formação, desenvolvimento e influência 

do  historicismo  romântico  que  põem  dúvidas  a  respeito  do  otimismo 

iluminista que promete trazer para a sociedade humana as possibilidades 

de uma vida feliz, por conta do uso da Razão. A velha questão da “queda” 

e do “paraíso”. A modernidade  foi um projeto que na evolução do seu 

empreendimento  começou a apresentar  falhas, principalmente quando 

tratou de incorporar a ideia de igualdade e direitos para todos.   

Bobbio  lembra autores como Burke que duvidou, desde o século 

XVIII, que a razão e as instituições provenientes dela, o Estado e o Direito, 

fossem  suficientes  para  cumprir  as  promessas  inclusas  no  discurso 

moderno. 

Na verdade o conflito que se pretende atual entre jusnaturalismo e 

positivismo  jurídico não  tem  tanta razão, se  for  levado em conta que a 

tradição  de  origem  do  positivismo  jurídico  se  remete  à  Beccaria,  um 

clássico  jusnaturalista  italiano.   Mesmo  rompendo  com  a  tradição  do 

Direito  Natural  e  adotando  o  viés  utilitarista,  a  questão  trazida  pelo 

Positivismo Jurídico, não nega o “ter direitos” que possam estar ligados à 

pessoa humana e sim, a elaboração dos fundamentos do Direito e qual o 

recorte epistemológico deve ser efetivado para que estes  fundamentos 

possam ser  identificados. De fato, não por acaso, é clara a  influência do 

utilitarismo no Positivismo Jurídico logo a partir de John Austin (2006). Os 

refrões com os quais comumente é atacado o Positivismo Jurídico opacam 

o  sentido  e  a  importância  dessa  doutrina  para  o  Direito  moderno 

contemporâneo. 

Mesmo  já  sinalizando  uma modernidade  em  crise  o  Positivismo 

Jurídico surge como uma possibilidade de organizar uma ordem político‐

jurídica que pusesse termo aos desmandos dos subjetivismos e vontades 

das elites. Como mostra Morrison, analisando a obra de Austin: 

[...] O fundamento dessa constituição – dessa – 

nova ordem social – não é a vontade subjetiva ou a 

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vontade  das  elites  que,  fisicamente  configuram  a 

soberania, e  tampouco  se  reduz a uma questão de 

relações de poder. [...] A norma falida da vontade da 

aristocracia  devia  ser  substituída  pelo  governo 

racional  segundo  os  ditames  do  conhecimento 

positivo; uma ideia que também servia para manter 

a  distância  as  ideias  de  um  governo  por  maioria 

popular  que  o  círculo  benthamista  passara  a 

defender depois de perder as esperanças de mudar 

as concepções das elites dominantes. [...] A filosofia 

analítica  subseqüente  tem  valorizado  rigor 

intelectual e a  lucidez da escrita em detrimento de 

qualquer preocupação mais ampla com a  realidade 

social e política. Em resultado, nas últimas décadas o 

positivismo jurídico passou a ser atacado por ser um 

empreendimento  sustentado  por  si  mesmo  e 

desvinculado de qualquer contexto.  [...] Austin, em 

nome  do  rigor  analítico  e  conceitual  separou  o 

estudo  do  direito  da  tarefa  de  identificar  seu 

contexto  social  na  realidade  social,  e  também  da 

tarefa de identificar seus efeitos constitutivos sobre 

essa  mesma  realidade.  Tal  impressão  é,  contudo, 

resultado  de  uma  simplificação  excessiva  que  se 

encontra  no  material  didático  habitual.  [...]  Para 

Austin,  os  conceitos  acham‐se  inseridos  nos 

processos  sociais. Não  faz  sentido  falar de direitos 

como se eles se sustentassem sobre as suas próprias 

bases – os direitos não param de pé por si sós, mas 

extraem seus fundamentos da realidade dos deveres 

correspondentes; deveres que devem ser exeqüíveis 

para poder terem existência real (2006, p. 255, 256, 

263, 259, 264).    

Diante  do  exposto  fica  claro  que  é  injusta  acusação  de  que  o 

positivismo jurídico é refratário à realidade da qual nasce o Direito e que 

ainda seria resistente a mudanças e atualizações no Direito, seguindo o 

compasso das mudanças no mundo das relações humanas reais. 

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Para dirimir qualquer dúvida podemos recorrer à obra de Kelsen: 

“O  Que  é  Justiça?”  quando  o  autor  está  ponderando  sobre  qual 

composição de ordenamento  jurídico  tornaria mais  viável um universo 

social  mais  justo.  Dentro  dessa  problemática  Kelsen,  importante 

representante do neokantismo no século XX, retoma uma das principais 

questões modernas e utilitarista, a felicidade. Daí ele pergunta o que vem 

a  ser  felicidade  e  retoma  as  lições  de  Platão  quando  este  associava 

felicidade a justiça. Só que Kelsen admite que mesmo o homem diante do 

dilema  de  ter  que  buscar  a  sua  felicidade  na  vida  social,  tem  que 

reconhecer que “nenhuma ordem social poderá compensar totalmente as 

injustiças da natureza” a exemplo das seguintes questões: “por que não 

tenho a aparência do outro?” ou “por que a natureza me concedeu tão 

poucos  atrativos?”  Então  Kelsen  afirma:  “Uma  ordem  social  justa  é 

impossível, mesmo diante da premissa de que ela procura proporcionar, 

senão a felicidade individual de cada um, pelo menos a maior felicidade 

possível ao maior número possível de pessoas” (2001, p. 02, 03). 

Mas  isso não quer dizer que  tal doutrina defende a aceitação da 

sociedade injusta ou que o Direito nada pode fazer para alterar tal dilema. 

O que torna‐se evidente é a necessidade de se estabelecer uma hierarquia 

de valores, que atuem como princípios, que, por sua vez, possam de fato 

ordenar e fundamentar o Direito. Em outras palavras, o que o positivismo 

jurídico não aceita é uma transformação do Direito através do uso abusivo 

do poder discricionário das autoridades que lhe competem. 

Kelsen então traduz para o Direito a questão moderna da igualdade 

e  da  justiça  nas  relações  humanas.  Como  ele  escreve:  “Mas  quais 

interesses humanos têm esse valor e qual é a hierarquia desses valores?”. 

E  esclarece  afirmando  que:  “um  conflito  de  interesses  se  apresenta, 

todavia, quando um interesse só pode ser satisfeito à custa de outro, ou 

seja, quando dois valores se contrapõem e não é possível concretizá‐los 

ao mesmo tempo se a concretização de um implicar a rejeição do outro” 

(2006,  p.  06).  Em  seguida  ele mostra  que  o Direito  só  pode  atuar  no 

universo das relações humanas regulando as escolhas dos princípios e a 

hierarquia decorrente. 

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Sendo assim, os dogmas exercem  função  importantes, pois estão 

como  ponto  de  partida  para  a  eleição  destes  princípios  e  o 

estabelecimento da hierarquia. Se a princípio tudo parece uma questão 

de valores, postos inclusive na relação entre o Direito e o seu tempo, logo 

se faz necessário ultrapassar os limites dos juízos de valor, para recorrer 

aos juízos de realidade que são os que podem ser verificados no mundo 

da realidade através da experimentação.     

A  questão  acima,  muito  bem  ilustrada  por  Kelsen,  mostra  a 

dificuldade de igualar o diferente. Desde a Grécia antiga, retratada na obra 

de  Aristóteles  (2001)  a  questão  das  “desigualdades  originais”  e  a 

concepção de tratar as desigualdades de forma desigual foi um desafio. O 

problema  está  na  interpretação  que  vem  sendo  dada  recentemente  a 

respeito da obra de Aristóteles, a partir do momento em que os resumos 

acadêmicos distorcem completamente o sentido dos conceitos. Os gregos 

consideravam que a desigualdade seria algo natural e deveria ser mantida 

assim,  na  medida  que  retratava  também  uma  hierarquia.  Por  isso  é 

recente  a  interpretação  de  “ajuda”,  de  “amparo”  para  os  que  são 

considerados  desiguais,  bem  retrata  nas  políticas  compensatórias  ou 

também chamadas de descriminação positiva. 

Habermas trouxe a mesma questão em outras palavras: 

Nisso se reflete o seguinte paradoxo, embutido 

nos fundamentos da validade do direito positivo; se 

a  função  do  direito  consiste  em  estabilizar 

expectativas  de  comportamento  generalizadas, 

como é que essa função pode ser preenchida por um 

direito vigente modificável a qualquer momento por 

uma simples decisão do legislador político? (1997, p. 

224). 

Cabe então especular sobre as possibilidades do relativismo jurídico 

que o próprio Habermas contribuiu para desenvolver e que vem atingindo 

o Direito, extrapolando a competência de sustentar a tese de que se trata 

apenas de uma adaptação à realidade. O Direito vem sendo chamado a 

dar respostas às mudanças e crises nas relações humanas, respaldando, 

muitas vezes, o que antes era o comportamento delituoso. E agora, sob o 

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argumento pseudo‐democrático de que é interesse da maioria ou de uma 

parte  significativa  da  sociedade  e  isso,  sem  falar  da  igualdade  das 

chamadas minorias. Vemos então a importância de rever os alertas que já 

haviam  sido  dados  por  aqueles  que,  como  Burke,  passaram  a  ser 

pejorativamente chamados de conservadores.  

II. O Conflito Epistemológico nas Perspectivas do Positivismo Jurídico e do Liberalismo Igualitário

Até bem pouco tempo enquanto o Direito caminhava em compasso 

com as tradições morais, culturais etc., os argumentos teóricos também 

evoluíram no sentido de analisar em que medida o Direito poderia estar 

mais próximo ou distante destas tradições. Mesmo distante das tradições 

e adquirindo perfil de um Direito estabelecido pelo Estado ou ainda com 

pressupostos  de  uma  ciência  jurídica,  a  estabilidade  jurídica, 

necessariamente era característica das duas vertentes.

O conflito entre o jusnaturalismo e o direito positivo parecia sanado 

através  da  positivação  dos  direitos  fundamentais,  quando,  a  partir  da 

segunda metade do século XX, o excessivo relativismo jurídico trazido pela 

influência da Escola de Frankfurt no universo jurídico e filosófico tratou de 

desregular todas as formas de relações humanas. Foi nesse contexto, que 

a obra de Kelsen, como representante do positivismo jurídico, tornou‐se 

alvo predileto de ataques e argumentos que segundo Lenio Streck: 

 “o positivismo enquanto ideologia é identificado 

nas  versões  juspositivistas  do  século  XIX  [...] 

geralmente procura‐se aplicar a Kelsen um  tipo de 

pecha que o colocaria como defensor do positivismo 

primitivo  caracterizado  por  esta  ideologia,  (na 

medida em que sua obra supostamente pregaria uma 

espécie  de  aplicação  cega  de  valores  do  direito 

positivo). [...] esse tipo de interpretação só pode ser 

feita por alguém que possua algum tipo de domínio 

vulgar da teoria do direito (2014, p.21). 

Tal  contradição  é  mais  visível  no  universo  jurídico  quando  os 

reclames  atuais  pregam  o  afastamento  de  uma  moral  supostamente 

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preconceituosa das entranhas do Direito. Tem‐se com isso fragilizado os 

ordenamentos  jurídicos,  de  fato,  substituindo  uma  moral  por  outra, 

utilizando‐se  valores  respaldados  numa  tal  “divida  histórica”. Ou  seja, 

estamos para além da análise do contexto, recomendado inclusive desde 

os  primeiros  idealizadores  do  positivismo  jurídico.  Temos  então  o 

presente  analisado  por  um  passado  ideologicamente  distorcido, 

obrigando o Direito a dar respostas  imediatas para transformações que 

estão sendo provocadas por movimentos revolucionários, cujas ONG`s e 

Fundações que os compõem são sabidamente financiadas pelas grandes 

corporações industriais e bancárias. Ao mesmo tempo, a relativização dos 

valores morais do nosso tempo vai ocorrer de forma intencional, através 

das  mudanças  no  modelo  educacional  e  familiar,  difundidos  com 

facilidade,  através  do  aperfeiçoamento  das  tecnologias  aplicadas  à 

comunicação de massa, seguindo à risca as  instruções do Manifesto do 

Partido Comunista. 

Mesmo  nos  momentos  mais  iniciais  da  obra  de  Kelsen,  por 

influência  kantiana,  o  Direito  não  possuía  realidade  em  si mesmo.  O 

Direito para o autor é concebido como um ato de vontade por parte do 

legislador e demais autoridades de competência jurídica. Até mesmo por 

que  sua  teoria na norma não atribui caráter de verdade ou  falsidade à 

norma  e  sim  validade  ou  invalidade.  Foi,  principalmente,  pelo  fato  de 

buscar  separar  do Direito  os  aspectos morais,  políticos,  econômicos  e 

históricos que os positivistas tornaram seus trabalhos passíveis às críticas, 

tais quais, a de que não relacionavam a teoria  jurídica à realidade a sua 

volta. 

Desta forma qual seria então a origem do Direito, o seu fundamento 

e vínculo a partir do qual um determinado ordenamento jurídico brota e 

tem validade em uma dada sociedade? Na obra de Kelsen a resposta está 

no problema da norma hipotética. Entretanto, tal pergunta levaria a uma 

resposta  infinita,  pois  se  considerarmos  a  Constituição  como  norma 

original, a Constituinte como norma fundante da original, caberia sempre 

a pergunta sobre qual norma deu origem à norma posterior. Em outras 

palavras, qual norma deu origem à Constituinte? Como esclarece Coelho: 

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Prosseguir‐se,  no  entanto,  neste 

questionamento  significa  não  alcançar  nenhum 

resultado  sensato,  pois  a  competência  para  editar 

normas  jurídicas sempre decorre de outra norma, e 

esta, por sua vez somente pode ter sido editada por 

uma autoridade competente. Estamos diante de uma 

regressão  ao  infinito,  sem  sentido  racional.  Para 

enclausurar  o  sistema  jurídico,  solucionando  a 

questão em aberto, Kelsen lança mão de uma norma 

que  deve  sustentar  o  fundamento  da  validade  da 

ordem  jurídica  como  um  todo,  mas  que 

necessariamente não tenha sido editada por nenhum 

ato  de  autoridade.  Uma  norma  não  posta,  mas 

suposta (2001, p. 11,12). 

Tal  perspectiva  de  uma  norma  original  parece  se  assemelhar  ao 

problema  da  origem  no  jusnaturalismo.    Durante  muito  tempo,  os 

tratados  jusnaturalistas  foram  interpretados de maneira  a  se entender 

que os  autores estavam  apontando para uma origem enquanto marco 

histórico para o Estado, a sociedade civil, e demais instituições correlatas. 

Em tais escritos (Locke 1998, Hobbes 1997) era corriqueira a versão de que 

primeiro surge o Estado civil, para em seguida, a sociedade, também civil, 

fundada numa suposta racionalidade.  

Foi com o advento de obras de jusfilósofos do porte de N. Bobbio 

(1999)  e  Michel  Villey  (2005),  que  tais  equívocos  começaram  a  ser 

corrigidos.  De  fato,  as  metáforas  utilizadas  pelos  jusnaturalistas 

preenchiam  também  a necessidade de  encontrar um ponto de origem 

para o novo empreendimento teórico que estava em curso, qual seja; a 

modernidade.  Por  isso  podemos  falar  que  a  modernidade  foi  um 

“projeto”.  Cada  livro  escrito  propunha  um  novo modelo  de  sociedade 

dando  ênfase  ao  Estado ou  à  sociedade  civil, partindo de uma origem 

suposta  e hipoteticamente  elaborada.  Tal  elaboração metaforicamente 

originária é muito  clara na obra de Rousseau  (1958, 2004) quando ele 

afirma que quando o primeiro homem colocou o pé num pedaço de terra, 

cercou e afirmou ser dele aquela terra, tem‐se ali a origem da propriedade 

privada. 

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O  problema  da  origem  fora  do  “paraíso”  é  um  problema 

“moderno”,  por  isso  atinge  também  os  positivistas.  Qual  teria  sido  o 

primeiro  constituinte  histórico?  Dentro  deste  contexto,  o  positivismo 

jurídico só admite como válido em Direito, o direito  que esteja incluso em 

ordenamento  jurídico  determinado  pelo  Estado.  Daí  que,  enquanto  o 

Direito natural não foi incorporado nos ordenamentos jurídicos ‐ e isso só 

começa acontecer reconhecidamente a partir da Segunda Guerra Mundial 

– esses direitos não eram reconhecidos como direitos válidos. 

A discussão que cabia também e  foi trazida por Kelsen era a que 

dizia  respeito à possibilidade de valoração moral da norma  jurídica em 

detrimento  de  buscar  uma  eficácia  que  apontasse  para  um  resultado 

rigorosamente  respaldado.  Talvez  seja  aí  que  possamos  encontrar  a 

origem dos problemas do nosso tempo; o retorno à valoração moral da 

norma  jurídica, mesmo  que  negando  essa  valoração.  Esconde‐se  essa 

valoração no discurso politicamente correto da busca por justiça. 

O impasse é então o seguinte: se o Direito Natural preserva direitos 

que supostamente vinculam‐se á natureza humana, qual a finalidade do 

Direito? Preservar a ordem a partir da regulamentação das condutas e das 

relações  entre  as  pessoas  ou  preservar  a  pessoa  em  detrimento  da 

preservação da ordem  social? Além disso, quando  estamos  falando da 

ética no Direito ao que estamos nos referindo? 

Os positivistas certamente responderiam que se tudo isso está na 

previsão  do  ordenamento  jurídico  então  é  legal  e  é  legítimo.  Os 

jusnaturalistas responderiam que baseado na preservação da dignidade 

da pessoa humana o acusado  teria que usar de  todos os  recursos para 

provar sua inocência mesmo não sendo ele inocente. 

Para o positivismo jurídico a justiça é a justiça do que está previsto 

no ordenamento jurídico e o Direito é um sistema de normas não‐morais. 

Por  influência  de Weber,  na  teoria  de  Kelsen,  o  Estado  e  o Direito  se 

equivalem e tanto em um quanto no outro há uma perspectiva objetiva 

de coerção. Por essa influência weberiana é que as normas se reduzem a 

imposições de sanções. Esse ordenamento complexo de normas e bens 

jurídicos ao qual Kelsen se refere como Direito é também uma questão de 

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escolha.  Passa  necessariamente  pela  motivação  axiológica  e  até 

dogmática. O que ele se opõe, de fato, é ao relativismo axiológico que leva 

ao  relativismo  jurídico  tirando  do Direito  o  seu  caráter  puro,  isento  e 

científico. Por isso, o problema da origem histórica da norma hipotética é 

tão  importante  para  coagir  e  regular  o  comportamento  do  homem 

decaído. 

Esse problema fica mais claro na teoria de Kelsen quando é tratada 

a  questão  da  validade  da  norma  jurídica  e  a  vinculação  à  norma 

fundamental. Segundo Coelho: 

A validade norma jurídica, em Kelsen, depende, 

inicialmente,  de  sua  realização  com  a  norma 

fundamental.  Ou  por  outra,  é  função  da 

manifestação  de  vontade  de  uma  autoridade 

competente.  Como  as  normas  jurídicas,  pela 

descrição  realizada  em  preposições,  integram  um 

sistema essencialmente dinâmico, o seu conteúdo é 

irrelevante para a definição de validade. Esse é um 

aspecto  pouco  entendido  e  pouco  difundido  da 

teoria pura do direito. A norma  jurídica é válida  se 

emana de autoridade com competência para editar, 

ainda que o respectivo comando não se compatibilize 

com  disposição  contida  em  normas  de  hierarquia 

superior (2001, p. 29) 

Complementando, todavia, para Kelsen a validade da norma está 

em certa medida vinculada à sua eficácia. Por isso, ensina Coelho: 

Sustenta a teoria pura que tanto a norma jurídica 

singularmente considerada quanto à própria ordem 

jurídica  como  um  todo  deixam  de  ser  válidas  se 

perdem a eficácia.  [...] a validade não  se  confunde 

com a eficácia, esta é apenas uma condição daquela. 

Ou seja, pode‐se sintetizar o pensamento kelseniano 

sobre  o  assunto  na  assertiva  de  que  a  ineficácia 

absoluta compromete a validade da norma  jurídica. 

Qualquer  relação  entre  validade  e  eficácia  não  se 

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pode  estabelecer  prontamente  nos  quadrantes  da 

teoria pura do direito (2001, p. 30, 33). 

O  apego  da  teoria  pura  à  questão  da  norma,  sua  legitimidade, 

validade e eficácia ocorre, outra vez, por conta da  influência weberiana 

em  Kelsen.  O  pessimismo  niilista  que  tanto  caracterizou  as  últimas 

décadas do século XIX e adentra pelo século XX,  já vinha em  formação 

mesmo quando observado  e  ressaltado o otimismo  iluminista. Para os 

jusnaturalistas o problema da “queda”, refletido no “homem decadente”, 

havia sido superado com o aparecimento do Estado moderno, e da razão 

instrumental, que nas lições de Hobbes tinha que ser Leviatã por que tinha 

como objetivo  tornar a conduta humana compatível com a convivência 

coletiva.  Entretanto, como mostra Coelho: 

A  antropologia  kelseniana  considera  o  homem 

naturalmente  inclinado  a  perseguir  apenas  a 

satisfação de interesses egoístas. O estabelecimento 

de  uma  ordem  social  não  altera  essa  realidade 

natural.  [...] nem  as normas morais ou  jurídicas  se 

podem definir a partir da natureza do homem, como 

pretendem  os  jusnaturalistas,  nem  essa  mesma 

natureza  se  pode modificar  pela  vontade  expressa 

em padrões de conduta. O homem essencialmente 

egocêntrico  se  deixará  conduzir  de  acordo  com  as 

prescrições das normas apenas se divisar vantagem – 

ou, pelo menos, menor desvantagem – na obediência 

à ordem social. Ao considerar oportuno comportar‐

se  conforme  o  sentido  da  norma,  no  entanto,  ele 

ainda  continua  manifestando  seu  caráter 

naturalmente egoísta. 

Por  isso, o direito só pode ser entendido como 

uma  ordem  social  coativa,  impositiva  de  sanções 

(2001, p. 34, 35).    

O problema agora, deste nosso século XXI, não é tanto reconhecer 

a importância do Direito sancionador e sim, preservá‐lo. Trata‐se agora de 

um  relativismo  axiológico  e  jurídico,  que  nem  os  jusnaturalistas  dos 

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séculos XVII e XVIII pensaram em tal proporção. Não é mais reconhecer os 

Direitos Humanos como direitos válidos e sim, do que estamos  falando 

quando  falamos  em  Direitos  Humanos.    A  partir  das  novas  correntes 

teóricas que debatem com o positivismo jurídico nas últimas décadas do 

século  XX,  a  obra  de  R.  Dworkin  ganha  destaque,  principalmente  na 

literatura de língua inglesa. 

Apontado  como  importante  representante  da  filosofia  liberal 

jurídica  destacou‐se  no  campo  do  que  vem  sendo  chamado  de 

“liberalismo  igualitário”.  Seus  trabalhos  foram  ganhando  esse perfil na 

proporção em que foi transportando a obra de J. Rawls para o universo 

jurídico. 

Como  é  sabido  “Uma  Teoria  da  Justiça”  (2000)  tornou‐se  uma 

referência  nas  doutrinas  sobre  o  significado  de  justiça  e  as  novas 

possibilidades do que poderia ser chamado de uma sociedade justa. Rawls 

parte de princípios liberais para propor uma revisão do modelo de Estado 

regido pela doutrina utilitarista,  (ver Bem‐estar  Social), mostrando que 

não é mais  justificável que diante de tanta riqueza ainda existam tantas 

disparidades que caracterizaram as sociedades contemporâneas, inclusive 

entre  os  países  ricos.  Nos  seus  trabalhos,  enquanto  neocontratualista 

propõe mudanças em princípios que regem as instituições que formam e 

organizam o Estado, visando obter destas instituições e na relações entre 

elas, resultados mais aceitáveis do que poderia ser uma sociedade mais 

justa. 

Seguindo esta ideia no seu confronto com o positivismo jurídico de 

Hart e influenciado pelas doutrinas de Rawls e outros autores, a questão 

central de Dworkin é a  justiça no  seu  sentido amplo. Porém, analisa e 

interpreta o Direito contemporâneo na realidade dos tribunais diante das 

demandas,  cada  vez mais  amplas,  por  novas  concepções  do que  é  ter 

direitos. Rawls  chamou  esta  questão  de  “as  intratáveis  concepções  de 

bem” e Dworkin aborda este mesmo tema, enfatizando as possibilidades 

do  Direito  quando  desafiando  por  estas  demandas  e  seus  novos 

significados sobre equidade.  

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A  teoria  rawlsiana  é  certamente  considerada  uma  teoria 

institucionalista, pois o referido autor era professor de filosofia política em 

Harvard. Tanto ele quanto Dworkin estão num ambiente onde a palavra 

“crise” começa a ser generalizada. É nesse ambiente de crise institucional 

generalizada  que  tanto  Rawls  quanto  Dworkin  ganham  notoriedade. 

Seguindo  Gargarella  que  analisa  a  obra  de  Rawls  e  a  influência  em 

Dworkin: 

Os vínculos entre as concepções defendidas por 

Rawls e Dworkin em torno da justiça são claramente 

mais fortes que suas diferenças. Dworkin preocupa‐

se em aperfeiçoar uma visão  como a proposta por 

Rawls, mas compartilhando com ele muito dos seus 

pressupostos básicos. Para Dworkin, uma concepção 

liberal  igualitária  adequada  precisa  apoiar‐se  em 

quatro idéias básicas, muito próximas às defendidas 

por Rawls, Em primeiro lugar, o liberalismo igualitário 

deve  distinguir  entre  “personalidade”  e  as 

“circunstancias”  que  cercam  cada  um.  O  Objetivo 

desse  liberalismo deve ser nesse sentido,  igualar as 

pessoas em  suas  circunstâncias, permitindo que os 

indivíduos se  tornem  responsáveis pelos  resultados 

de  seus gostos e ambições:  se alguém,  situado em 

uma posição de  relativa  igualdade  com os demais, 

decide, por exemplo, empreender uma ação muito 

arriscada,  sabendo  das  possibilidades  de  que  ela 

termine mal, então, no caso de um final infeliz em sua 

empreitada,  deve  arcar  sozinho  com  o  resultado 

obtido. [...] Se uma pessoa prefere o trabalho ao ócio, 

e a outra o ócio ao trabalho, então certamente serão 

compensadas  de  modo  desigual,  mas  essas 

desigualdades não gerarão transferências adicionais 

(2008, p. 67, 72).        

Na mesma  ambição de  interpretar  a obra de Dworkin, Morrison 

observa que: 

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[...] ele procura uma objetividade para o discurso 

jurídico  e  um  novo  sentido  para  a  prática  jurídica. 

Uma prática que ele revigora com um compromisso 

ético particular; o  liberalismo  jurídico. [...] Ao  longo 

de  sua  obra,  Dworkin  substitui  o  positivismo  pela 

abordagem  interpretativa,  mas  parece  conservar 

algo do  legado positivista.  [...] A  teoria de Dworkin 

será, então, simplesmente sua interpretação e, desse 

modo,  prescritiva?  Será  que  todo  o  seu  projeto 

consiste  em  impor  sua  versão  do  liberalismo  ao 

campo cada vez mais diversificado da teoria jurídica? 

Contra  tal  crítica,  Dworkin  alega  estar 

apresentando uma “verdade”  inerente ao material. 

Sua  obra  mais  elaborada  (O  Império  do  Direito, 

1986),  Dworkin  afirma  estar  trabalhando  com  a 

concepção  de  direito  de  uma  insider  e  se  diz 

preocupado em manter a  “fidelidade” ao material; 

sua  interpretação  será  fiel  ao  empreendimento  do 

direito e não irá despojá‐lo de seu significado latente; 

ao  recusar‐se  a  discutir  a  natureza  do  direito  com 

observadores externos, sua interpretação vai ignorar 

os comentários céticos e articular melhor a ambição 

do  direito  para  nós,  de modo  que  possamos  unir 

esforços. [...] Numa época em que a terminologia do 

pluralismo  jurídico  tornou‐se  lugar‐comum  [...] 

haverá algum sentido em que se possa falar sobre um 

conjunto diversificado de práticas que abrangem o 

direito moderno [...] como se existisse uma corrente 

inequívoca  de  ideias  comuns?  (2006,  p.  499,  500, 

501).  

A crítica de que o positivismo  jurídico se afastou da análise social 

realista para, atualmente, respaldar a posição daqueles que defendem um 

relativismo jurídico acentuado ou um pluralismo jurídico confortável, que 

atenda  a  todas  as  ansiedades  pós‐modernas  postas  em  pauta  para  o 

Direito, não se legitima se fizermos até mesmo uma breve reflexão sobre 

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os objetivos do Direito e a sua relação com o ambiente do seu tempo. As 

demandas que estão aí nesse ambiente, e cobradas para o Direito, não se 

tratam  apenas  ou  simplesmente  de  carência  de  regulação  legal. Mas, 

também,  porque  não  podem  ser  atendidas  pelas  demais  instituições 

políticas  e  sociais. Moldar o Direito  aos  simples  clamores políticos das 

massas é criar um socialismo  jurídico autoritário, disfarçado de  luta por 

justiça. 

Parece que o dilema da obra de Dworkin passa por estas questões. 

Questionar  a  obra  do  ex‐professor,  de  forma  ríspida  no  seu  aspecto 

semântico,  doutrinário  e  epistemológico,  deixou  para  o  ex‐aluno,  o 

desafio já trazido pelo mestre de como lidar com os “casos difíceis”. Esses 

“casos  difíceis”  que  momentaneamente  parecem  pontuais,  de  fato, 

exemplificam nos tribunais o clamor de parte da população de um grupo. 

O aceite deste clamor pode implicar em violação de princípios e de direitos 

para  a  parte  do  grupo  que  não  se  pronunciou.  Por  exemplo,  o 

reconhecimento de cotas raciais em universidades. 

Em “Uma Questão de Princípios” Dworkin afirma que: 

Um  juiz  que  decide  baseando‐se  em 

fundamentos políticos não está decidindo com base 

em  fundamentos de política partidária.  [...] A visão 

correta, creio, é a de que os juízes baseiam e devem 

basear seus julgamentos de casos controvertidos em 

argumentos  de  princípio  político,  mas  não  em 

argumentos de procedimento político.  [...] o que é 

Estado  de  Direito? Os  juristas  pensam  que  há  um 

ideal político distinto e importante chamado o Estado 

de  Direito. Mas  discordam  quanto  ao  que  é  esse 

ideal.  Há,  na  verdade,  duas  concepções  muito 

diferentes do Estado de Direito, cada qual com seus 

partidários.  A  primeira  é  a  que  chamarei  de 

concepção “centrada no texto legal”. Ela insiste que, 

tanto quanto possível, o poder do Estado nunca deve 

ser exercido contra os cidadãos individuais, a não ser 

em  conformidade  com  as  regras  explicitamente 

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especificadas  num  conjunto  de  normas  públicas  à 

disposição  de  todos.  [...]  Chamarei  a  segunda 

concepção  do  Estado  de  Direito  de  concepção 

“centrada nos direitos”. De muitas maneiras, é mais 

ambiciosa  que  a  concepção  centrada  no  livro  de 

regras. Ela pressupõe que os cidadãos têm direitos e 

deveres morais entre si e direitos políticos perante o 

estado como um todo. [..] O Estado de Direito dessa 

concepção  é o  ideal de  governo por meio de uma 

concepção  pública  precisa  dos  direitos  individuais. 

[...] A concepção centrada nos direitos, portanto, é 

mais complexa que a concepção centrada no  texto 

legal. [...] elas são, não obstante, compatíveis quanto 

aos  ideias  mais  gerais  para  uma  sociedade  justa. 

Qualquer comunidade política será melhor, se seus 

tribunais não tomares nenhuma atitude que não as 

especificadas em  regras publicadas previamente, e, 

também,  se  suas  instituições  jurídicas  fizerem 

cumprir qualquer direitos que os cidadãos individuais 

tenham (2005, p. 06 07, 08). 

Dessa perspectiva a questão então entre o Positivismo Jurídico e o 

Liberalismo  Igualitário  é  muito  mais  de  hermenêutica  do  que  de 

fundamentos epistemológicos ou princípios. Além disso, um “caso difícil” 

nos tribunais, como foi dito, não se refere em geral a um “caso isolado” e, 

mesmo quando se trata disso,  logo se reflete no âmbito da coletividade 

para respaldar anseios surdos ou novas perspectivas que são instigadas. 

Se o Liberalismo Igualitário de Dworkin visa promover condições para ao 

mesmo tempo respeitar o  livre‐arbítrio e reduzir desigualdades, como o 

Direito pode trazer estas respostas se a fragmentação dos direitos pode 

levar  a  um  instrumentalismo  jurídico  muito  mais  potencializador  de 

conflitos do que solucionador? 

Analisando  a  obra  de  Dworkin,  Sgarbi  tem  o  seguinte 

entendimento: 

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No ano de 1985,  também em  livro  constituído 

pela  reunião de artigos, Uma Questão de Princípio, 

Dworkin continua sua trajetória teórica; agora, além 

de polemizar com seus críticos, procura desenvolver 

algumas  ideias de LDS. Disso resultam modificações 

terminológicas e desenvolvimentos no particular da 

compreensão  do  direito  como  uma  prática 

interpretativa, ou seja, a teoria de Dworkin sofreu ao 

longo dos anos aprimoramento. 

Aliás, esse processo evolutivo é por ele mesmo 

reconhecido  logo no prefácio do  livro O  Império do 

Direito. [...] 

Nesse  sentido,  com  ID  Dworkin  se  propõe 

recolher e aperfeiçoar os esforços anteriores com o 

objetivo de mais bem desenvolver a ideia do direito 

como um conceito imperativo de uma perspectiva do 

caso concreto (2009, p. 168, 169).  

Tudo  parece  começar  pela  permanente  dificuldade  de  se 

estabelecer  o  que  é  o  Direito  e  então,  quais  os  seus  fundamentos  e 

objetivos. Esse problema vai seguramente se refletir em situações reais 

dos tribunais, onde a discricionariedade do juiz, principalmente nos “casos 

difíceis”,  pode  passar  por  uma  interpretação  ampla  e  vaga  do Direito, 

distanciando‐se da norma escrita. 

A questão da argumentação, ou retórica, não poderia deixar de ser 

inerente  ao  Direito,  uma  vez  que,  não  raro  os  argumentos  e  seus 

fundamentos vão depender do ponto em que se encontram cada uma das 

partes envolvidas e, até mesmo, o juiz que decide. Nesse sentido, não fica 

clara oposição de Dworkin quando pondera que Hart valorizava pouco o 

papel  dos  princípios  (SgarbiI,  2009).  Então  o  que  está  em  jogo  é  a 

plausibilidade da segurança jurídica ao aceitar que a decisão judicial seja 

resultado de uma ponderação entre princípios e regras já estabelecidas, 

ou  arriscar  um  julgamento  baseado  em  “argumentos  políticos”,  que 

vagueiam entre os princípios em busca de amparo legal e, tudo em nome 

de uma justiça que ninguém sabe ao certo definir qual. 

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Capítulo VI ‐ Conclusão: política, crime e Ideologia: as interfaces entre 

o bem e o mal 

É  sabido  que  a  formação  do  Direito  moderno  implicou  o 

aparecimento  de  diversas  tendências  filosóficas,  algumas  das  quais  se 

tornaram  Escolas.  Sabemos  também  que  o  chamado  “pensamento 

moderno” esteve todo pautado em ideologias que, vez por outra, numa 

forte influência do historicismo, gerou o que ficou conhecido no século XX 

como: “as grandes narrativas”. 

A  questão  aqui  colocada  direcionou  uma  parte  deste  percurso, 

tentado mostrar os principais fundamentos dos grandes debates atuais. É 

evidente que em alguns momentos certas tendências foram deixadas de 

lado e permaneceu o privilégio no foco em questão. Qual seja: demonstrar 

os principais aspectos do debate ideológico dentro do direito atual e, em 

particular, quando direcionados para o Direito Penal e a Criminologia. 

Se  em  algum  momento  da  sua  história  o  Direito  Penal  e  a 

Criminologia estiveram afastados de determinantes ideológicos e políticas 

partidárias,  agora,  não  há  esperança  de  ver  brotar  um  conhecimento 

desinteressado em políticas partidárias. 

O romantismo e a utopia criminológica vêm adentrando o Direito 

Penal e, ao contrário do que pensam muitos, está solapando o  lugar de 

excelência, antes exclusivo do Direito Penal. Não é uma particularidade 

nacional. Muito ao contrário, trata‐se uma expressão da mundialização do 

Direito  Penal  na  era  das  Convenções. Mesmo  admitindo  que  estamos 

sempre imitando heranças que transformamos em passageiros modismos 

acadêmicos,  a  mundialização  do  Direito  Penal  é  uma  tendência 

persistente.  Conflita  é  claro,  com  tradições  locais  e  com  paradigmas 

acadêmicos  que,  algumas  vezes,  levaram  séculos  em  construção.  Essa 

tendência  persistente  busca  sustentar‐se  num  suposto  Direito  Penal 

“humanitário” ou mesmo “libertário”, cujos resultados já se apresentam 

quando  se  refletem em Políticas Criminais  inteiramente  fracassadas no 

mundo todo. 

A  Revolução  Sexual  como  base  deste  contexto  é  um  projeto 

realizado  e  em  andamento.  Libertar  os  instintos  sempre  foi  o  ideal 

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revolucionário  maior.  Agora,  quando  a  frustração  e  a  angústia  que 

tanto caracterizaram a existência, ao menos, segundo os niilistas, não há 

mais  lugar  para  elas.  Agora,  o  humano meramente  humano  entra  em 

cena. Impõe sua vez. 

Neste  ambiente,  onde  a  frustração  e  angústia  são  reconhecidas 

como  resultado  do  autoritarismo,  a  realização  do  prazer  afronta  os 

conceitos e preconceitos, tanto nas normas morais, quanto nas normas 

jurídicas. Então, como não haver crimes? E quais as respostas devem ser 

dadas para tal fenômeno? 

Foi nesse contexto acadêmico de Terceiro Mundo que  se  tornou 

elegante  citar  Foucault  e  outros  da  mesma  geração,  mesmo  sem  se 

observar  ao  certo  o  que  pretendiam  esses  autores.  Pouco  a  pouco, 

a  ideia de “desconstrução”  tornou‐se uma máxima. Temos ao menos o 

sintoma  da  ausência  de  cultura  que  tomou  conta  de  um  universo 

acadêmico que deveria ser a autoridade em preserva‐la. 

O crime tem suas curiosidades por nos deixar sempre próximos ao 

vazio  de  sentido  da  existência. Mas,  ainda  não  é  essa  a  sua  principal 

curiosidade. É curioso como a literatura atual sobre o fenômeno “crime” 

trata  o  objeto  em  questão.  É  inquietante  e  sintomático  quando  o 

significado  de  “esclarecimento”  é  não  perceber  que,  ao  negar  a 

consciência do agente do crime, nega‐se a consciência do ser humano por 

completo, depositando no ambiente as responsabilidades pelas condutas. 

No conjunto, o confortante conceito de “problema social” acolhe também 

o  medo  de  reconhecermos  do  quanto  somos  capazes  de  realizar  o 

inimaginável, tanto para o bem, quanto para o mal. Acaricia o ego fraco e 

mimado daqueles que não transpõem a pequena ponte entre o “princípio 

do prazer” e o “princípio da realidade”. 

Mas é no universo das carências materiais e de status, que as almas 

pobres e aflitas  se vendem aos  serviços do  capital, que  suas bandeiras 

alarmistas,  dizem  negar.  É  aí,  nesse  bom  exemplo  do  absurdo  da 

existência, que vagam almas aflitas e discursos desencontrados, buscando 

um meio de  enaltecer o próprio  ego,  cuspindo  a  culpa da  sua própria 

consciência  aflita no outro. A  alteridade pós‐moderna,  ao  contrário da 

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moderna,  se propõe ao  conflito e a destruição no  sentido mais  radical 

possível. A anarquia niilista é o seu lema. 

Como não haver crimes? Tudo está programado, então, para haver 

crimes. Tudo está  sendo  feito para  isso. O desmantelo das  instituições 

modernas, dentre elas, Estado, Direito e Família tem esse objetivo e, por 

isso, “crime” tornou‐se o mais eficiente meio no conjunto estratégico para 

fazer a “revolução”. Daí  também, a usual confusão entre o  liberalismo, 

enquanto doutrina moderna, e o uso da ideia de liberdade na atualidade 

com o objetivo de anarquizar qualquer forma de organização. A abolição 

das restrições ao intenso e imediato prazer instintual é outro importante 

meio  desse  conjunto  estratégico  para  destruir  a  modernidade  greco‐

romana  e  judaico‐cristã.  A  ideia  de  liberdade  agora  não  é  aquela  do 

liberalismo do século XVII e que migrou para o século XVIII, tornando‐se 

um dos pilares do Iluminismo. Esse liberalismo está consagrado no quinto 

artigo  da  nossa  Constituição  Federal.  Os  conceitos  revolucionários  de 

liberdade  e  individualismo  atuais  estão  fundamentados  nas  doutrinas 

anarquistas.  É daí que  vem  a  concepção de que não há  limites para o 

prazer humano  e, por  isso,  toda  liberdade  é necessária para  satisfazer 

qualquer das necessidades instintivas do ser humano e todo esse querer 

tem que ser legalizado e legitimado pelo Direito. 

Principalmente  nas  ultimas  décadas  do  século  XX  e  no  raiar  do 

século  XXI,  assistiu‐se  uma  nova  forma  de  controle  que  usualmente 

ganhou o nome de “Engenharia Social”. Esta veio se caracterizar pelo uso 

sistemático  de  todas  as  descobertas  acadêmicas  e  científicas  com  o 

objetivo muito claro de controlar o comportamento humano em todos os 

ambientes e dimensões da nossa vida. 

Sobre  isso é  ingenuidade pensar que o uso desse  conhecimento 

está sendo usado para a construção de um mundo melhor, ou que ele é 

exclusivamente um complô da burguesia etc. Muito ao contrário, qualquer 

estudo honesto e apurado irá descobrir que foi muito mais o retorno do 

socialismo ao poder, que requereu o uso planejado dos conhecimentos e 

das tecnologias para a geração de um novo consenso. 

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Esse novo consenso e a Engenharia Social são partes fundamentais 

das novas formas de poder. Por isso, agora, entre outras inversões, se a 

violência  das  ditaduras  de  direita  e  a  agressão  dos  seus  torturadores 

devem ser  imputadas à própria política e aos seus algozes, por que nas 

revoluções e ditaduras de esquerda, a violência do sistema e a agressão 

dos  seus  terroristas  e  torturadores  ficam  depositadas  na  conta  da 

“liberdade”, “igualdade” e “justiça social”? 

Muito tem se falado sobre a relação entre “modernidade” e “pós‐

modernidade”. De fato, a modernidade é uma construção ou até mesmo 

um projeto, que tem seus fundamentos na filosofia antiga e na filosofia 

judaico‐cristã. A disputa entre modernidade e pós‐modernidade traz em 

seu  bojo,  ao  tempo  em  que  lhe  é  fundamento,  a  questão  do  embate 

ideológico. Não quer dizer com isso, que essa disputa começou agora. Fez 

parte  de  toda  a  formação  do  pensamento  moderno.  Mas  é  agora, 

caracterizando  a  pós‐modernidade,  esta  rivalidade  torna‐se  mais 

evidente. 

Cabe lembrar, que foram os valores espirituais cristãos que muito 

contribuíram  para  a  formação  e  base  da  psique moderna.  Por  isso,  o 

abandono e repúdio a estes valores ameaçam uma estrutura mental que 

levou  séculos  sendo  construída  e  que  contribuiu  sobremaneira  para 

impedir  que  os  desejos  corporais  se  sobrepusessem  aos  anseios 

espirituais.  Deste modo, o novo projeto pós‐moderno se caracteriza pelo 

orgasmo corpóreo. Aquele que o corpo biológico pode proporcionar. Até 

porque  o  abandono  de  Deus  deixou  o  “ser”  sem  asas.  Não  há  outro 

mundo para o qual ir. Não por acaso, a mais próxima e possível definição 

do  que  é  o  “ser”,  na  filosofia moderna,  se  confunde  com  sua  própria 

condição. Qual seja: o “ser‐aí”, o “dasein” e nada mais. Não por acaso, 

agora, num mundo sem Deus, o  intenso prazer, o refrigério que a alma 

necessita e que a razão não tem como saciar, só pode vir do saciamento 

do mais forte e poderoso dos instintos: o sexo e as suas sexualidades.  

Neste  mundo  da  ausência  de  sentido  para  uma  existência 

transcendental  só  resta  o  aqui  e  agora  que  é  estimulado  através  da 

exacerbação de tudo que é instintivo. É o abandono do homem espiritual 

e o retorno ao passado animal. A religião que ainda cabe é exatamente 

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aquela  ou  aquelas  que  dizem  sim  ao  natural,  que  subliminarmente 

condicionam o espírito ao instinto, invertendo o modelo cristão em toda 

sua  essência.  Daí  porque,  na  pós‐modernidade,  também  a  religião 

coletiviza as consciências, perde adeptos a ideia de ”salvação individual”. 

Vigora a filosofia do “todos podem tudo” ou “é proibido proibir”. Buscar‐

se uma nova religião universal desde que não se trate de recorrer ao Deus 

cristão. Nesta nova religião mundial até a salvação é coletiva como que 

fundada no encontro de um “grande arcano”, retratado na reconstrução 

de um único arquétipo religioso, uma espécie de empréstimos de todas as 

religiões  para  formar  uma  só.  É  neste  ambiente  que  as  substâncias 

psicoativas e o sexo exacerbado tonam‐se a marca do novo caminho para 

os únicos prazeres que ainda restam. 

A “Nova Engenharia Social” que molda as mentes, comportamentos 

e vontades tem como referencial a mais famosa das suas tecnologias: a 

televisão. Mas  não  é  só  ela  e  não  se  trata  mais  de  mera  “indústria 

cultural”.  A  Nova  Engenharia  Social  articula  através  do  uso  das 

tecnologias,  condiciona  inteiramente  o  comportamento  humano  aos 

novos padrões necessários para a consolidação do projeto pós‐moderno. 

Se na modernidade o ser humano vivia ou deveria viver em busca 

de Deus, na pós‐modernidade o mesmo  ser humano vive em busca do 

prazer por aqui mesmo. Antes a busca do gozo espiritual, agora o gozo 

sexual. Isso não é resultado do simples “despertar das consciências” como 

pregam muitos.  É  sim,  resultado  de  um  capcioso  trabalho  pelas mais 

diversas vias para condicionar os comportamentos e vontades humanas 

em todo  lugar e em todas as  idades.   Não por acaso, só como exemplo, 

somos obrigados a assistir cenas de sexo, ou ao menos, de forte erotização 

todos os dias da semana nas nossas televisões. Já se ampliam situações 

em que as crianças, nas escolas, estão aprendendo mais sobre sexo do que 

sobre geografia. Temos que  também  conviver  com  cenas de  crime por 

todos os meios de comunicação. O resultado é uma necessária e instintiva 

adaptação do nosso cérebro à banalização do sexo e do crime, ou seja, 

uma adaptação à violência.              

Então,  o mal  parece  estar  aí,  diluído  em  cada  pensamento  que 

temos.  Por  isso,  a  necessidade  de  repudiá‐

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lo e estabelecer causas externas para a sua existência. Como mostram in

úmeros  fatos  da  vida  e  da  história, 

“ser humano”, é serviolento e agressivo, é cair constantemente na armadil

ha da banalização da agressão,da cobiça e da maldade. Não por acaso, 

nas 

interfaces entre o mundo do crime eas relações de poder, nada é o que 

aparenta ser. 

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A RECOMENDAÇÃO CONSEA Nº 02/2015 EM ANÁLISE: O RECONHECIMENTO DOS RISCOS INDIRETOS DA TRANSGENIA EM SEDE DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL

TAUÃ LIMA VERDAN RANGEL: Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especializando em Práticas Processuais - Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Produziu diversos artigos, voltados principalmente para o Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito Administrativo e Direito Ambiental.

Resumo: O objeto do presente está assentado na imprescindibilidade de se

desenvolver um debate sobre os alimentos transgênicos em uma perspectiva da

Bioética e do princípio da precaução. Neste aspecto, é possível salientar que o corolário

da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos potenciais que, em

harmonia com o estado atual de conhecimento, não são passíveis, ainda, de

identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito da precaução que, em

havendo ausência de certeza científica formal, existência de um dano robusto ou

mesmo irreversível reclama a estruturação de medidas e instrumentos que possam

minimizar e/ou evitar este dano. Sobreleva salientar que o dogma em apreço

encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da Declaração da

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também

conhecida como Declaração do Rio/92, que em seu princípio quinze estabelece que,

com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser

amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando

houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica

absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas

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economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental. Em tal debate está

inserido o desenvolvimento dos alimentos transgênicos, sobretudo suas

consequências, tanto para o ser humano como para o meio ambiente, a longo e médio

prazo. O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal norteador das

políticas ambientais, à medida que este se reporta à função primordial de evitar os

riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em decorrência da proeminência

assumida pelo preceito da precaução, salta aos olhos que é robusto orientador das

políticas ambientas, além de ser o alicerce fundante da edificação do jus ambiental.

Valendo-se das reflexões fomentadas pela Bioética, o presente busca pautar um exame

do tema no cenário nacional.

Palavras-chave: Alimentos Transgênicos. Princípio da Precaução. Bioética.

Sumário: 1 Bioética: Aspectos históricos e princípios orientadores; 2 Breves

contornos ao princípio da precaução; 3 Alimentos transgênicos: uma tema

de incertezas no futuro; 4 Alimentos transgênicos versus direito humano à

alimentação: um exame à luz da Bioética; 5 A Recomendação CONSEA Nº

02/2015 em análise: o reconhecimento dos riscos indiretos da transgenia em

sede de segurança alimentar e nutricional; 6 Conclusão

1 Bioética: Aspectos históricos e princípios orientadores

Bioética uma disciplina que visa à junção e a unificação da ética

com tudo que concerne à vida, conclui-se tal afirmação quando se separa a

palavra bioética, a palavra bio está ligada a tudo que se remete a vida e

palavra ética está relacionada aos valores e princípios que orientam a

sociedade, observa-se que há códigos de condutas éticas para respectivas

profissões, pois há direcionamentos no que tange a forma como cada

profissional deve se limitar a agir anexo as respectivas áreas. Foi visando

esta ética nos parâmetros biológicos que o bioquímico que pesquisava sobre

a oncologia, Van Rensselaer Potter lançou o termo “Bioética” na década de

1970. O objetivo central do Prof. Potter era estabelecer um vínculo entre a

Ciência e Ética, para o pesquisador não havia possibilidade de se separar

as duas áreas, no que diz respeito à importância que há na vida, a ciência

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que estuda a mesma não poderia andar sozinha, deveria haver algo que a

orientasse e direcionasse. Com intuito de que houvesse o avanço saudável

da ciência, Van Rensselaer começa a desenvolver a “Ciência da

sobrevivência”, que desencadeia em um novo estudo de ética, que fora

denominada como Bioética, para Potter bioética era a Ética da vida, do ser

vivo, da sobrevivência.

Por meados de 1932 a 1978 ocorreram casos de acontecimentos

terríveis ligados à saúde e ao bem-estar do ser humano. A título de

exemplificação, é possível fazer menção ao Estudo de Sífilis não-autorizado

de Tuskegee, no qual 600 (seiscentos) negros contaminados com sífilis

foram levados para um centro de pesquisa para serem estudados e

pesquisados, objetivando estudos sobre a doença, ao final, após uma

denúncia sobre a pesquisa, restou apenas 74 pessoas ainda infectadas. É

oportuno consignar que a contrapartida pela participação no projeto era o

acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames e o

pagamento das despesas com o funeral. Durante o projeto foram dados,

também, alguns prêmios em dinheiro pela participação. A inadequação

inicial do estudo não foi a de não tratar, pois não havia uma terapêutica

comprovada para sífilis naquela época. A inadequação foi omitir o

diagnóstico conhecido e o prognóstico esperado.

É possível fazer menção à exposição de Goldim, especialmente

quando aponta “o objetivo do Estudo Tuskegee, nome do centro de saúde

onde foi realizado, era observar a evolução da doença, livre de tratamento.

Vale relembrar que em 1929, já havia sido publicado um estudo, realizado

na Noruega, a partir de dados históricos, relatando mais de 2000 casos de

sífilis não tratado” (GOLDIM, 1999, s.p.). Para que houvesse um

norteamento e em resposta aos casos anteriormente ocorridos, o governo

norte-americano, em 1974 promoveu uma comissão que fora designada a

elaborar princípios éticos primordiais que orientaria a pesquisa por meio de

experimento com seres humanos. Esta conferência ficou popularmente

conhecida com o Belmont report, que identificou em forma de resumo, os

princípios éticos básicos que foram explanados durante os quatro dias de

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conferência. Atualmente, tais princípios são utilizados para norteamento na

realização dos experimentos biológicos em diversos países, os princípios

que se trata são: (i) o princípio da beneficência; (ii) o princípio da não-

maleficência; (iii) o princípio da autonomia; (iv) o princípio da justiça; e (v) o

princípio da equidade.

Tradicionalmente, o princípio da beneficência encontra-se

associado à excelência profissional desde os tempos remotos da medicina

grega, materializando-se no Juramento de Hipócrates: “Usarei o tratamento

para ajudar os doentes, de acordo com minha habilidade e julgamento e

nunca o utilizarei para prejudicá-los”. Segundo Loch (s.d., p. 03), a

beneficência significa fazer o bem, logo, em uma dimensão prática, todos os

indivíduos têm a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Ora, essa

acepção, quando empregada na área de cuidados com a saúde, que

compreende todas as profissões das ciências biomédicas, substancializa-se

em fazer o melhor para o paciente, não apenas em uma perspectiva técnico-

assistencial, mas também do ponto de vista ético. Ao lado disso, é oportuno

apontar que se trata de usar todos os conhecimentos e habilidades

profissionais a serviço do paciente, considerando, na construção da decisão,

a minimização dos riscos e a maximização dos benefícios do procedimento

a realizar (LOCH, s.d., p. 03).

O princípio da não-maleficência, por sua vez, apregoa que o

profissional de saúde tem o dever de, intencionalmente, não causar mal ou

danos a seu paciente. “Considerado por muitos como o princípio

fundamental da tradição hipocrática da ética médica, tem suas raízes em

uma máxima que preconiza: ‘cria o hábito de duas coisas: socorrer (ajudar)

ou, ao menos, não causar danos’” (LOCH, s.d., p. 02). O preceito em apreço

é empregado frequentemente como uma exigência oral da profissão médica,

materializando, desta feita, um mínimo ético, um dever profissional, que,

caso não se cumpra, coloca o profissional da saúde numa situação de má-

prática ou prática negligente da medicina ou das demais profissões da área

biomédica. Há que se reconhecer que o dogma em destaque recebe

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especial importância em razão de o risco causar danos é inseparável de uma

ação ou procedimento que está moralmente indicado.

Já o princípio da autonomia estabelece que as pessoas possuem

liberdade de decisão, ser autônomo em suas decisões, cada cidadão capaz

possui esse direto de autonomia, é a capacidade de autodeterminação.

Respeitar a autonomia do ser humano está relacionado com a preservação

dos direitos fundamentais do homem e ligado a Dignidade da pessoa

humana. E no âmbito da Bioética, para que ocorra o respeito à autonomia

das pessoas é essencial à presença de duas condições, a liberdade e a

informação. Loch aponta que autonomia é a capacidade de uma pessoa

para decidir ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si mesma,

porém para que ela possa exercer a autodeterminação são imprescindíveis

duas condições fundamentais, quais sejam: “a) capacidade para agir

intencionalmente, o que pressupõe compreensão, razão e deliberação para

decidir coerentemente entre as alternativas que lhe são apresentadas; b)

liberdade, no sentido de estar livre de qualquer influência controladora para

esta tomada de posição” (LOCH, s.d., p. 04).

Em se tratando da liberdade, profere-se que o cidadão, possui a

liberdade de decisão, sem nenhum tipo de influência e informação se

desencadeia no conhecimento que a pessoa tem do seu estado para que

possua capacidade de decidir se irá se submeter a algum procedimento.

Ademais, há de salientar, que hora e outra não haverá o respeito à

autonomia de uma pessoa em favor de beneficiar outras pessoas,

exemplificando, fumantes. Por seu turno, os princípios da justiça e da

equidade referem-se ao tratamento de todos de uma forma igual, utilizando-

se da justa medida. Verifica-se que a equidade presa o atendimento das

necessidades de cada pessoa de acordo com que precisa, é disponibilizar

aos iguais de forma igual e dar aos desiguais de forma desigual. A questão

da Justiça faz alusão ao fato de ser respeitar o direito de cada um de forma

imparcial, não concedendo privilégios a alguém. Ao lado disso, insta anotar

que Loch destaca que

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O conceito de justiça, do ponto de vista filosófico, tem sido explicado com o uso de vários termos. Todos eles interpretam a justiça como um modo justo, apropriado e equitativo de tratar as pessoas em razão de alguma coisa que é merecida ou devida à elas. Estes critérios de merecimento, ou princípios materiais de justiça, devem estar baseados em algumas características capazes de tornar relevante e justo este tratamento. Como exemplos destes princípios materiais de justiça pode-se citar: 1. Para cada um, uma igual porção 2. Para cada um, de acordo com sua necessidade. 3. Para cada um, de acordo com seu esforço. 4. Para cada um, de acordo com sua contribuição. 5. Para cada um, de acordo com seu mérito. 6. Para cada um, de acordo com as regras de livre mercado (LOCH, s.d., p. 05).

Em 2005, houve a 33º conferência geral da UNESCO, em Paris,

onde ocorrera o reconhecimento da Bioética em âmbitos universais, fora

referendada e ratificada por 191 países, integrantes das nações Unidas.

Contudo, houve discussões a cerca das particularidades da Declaração

documental da Bioética em relação à particularidade de cada país. A

Declaração Universal de Bioética e Direitos humanos descreve e apontam

os objetivos, finalidades, princípios e aplicação do mesmo, considerações

sobre Bioética;

Reconhecendo que questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas deveriam ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana e respeito universal por, e cumprimento dos direitos humanos e liberdades fundamentais, Decidindo que é necessário e oportuno para a comunidade internacional declarar princípios universais que proporcionarão uma base para a resposta da humanidade para os sempre-crescentes dilemas e controvérsias que a ciência e a tecnologia apresentam para a humanidade e para o meio ambiente. (UNESCO, 2005, p. 65).

Observa-se que a conferência geral manteve o intuito do

Professor pioneiro Van Rensselaer Potter, foi almejado nesta conferência

elaborar um suporte de princípios e procedimentos no que diz respeito à

elaboração de suas legislações, construção política e outros ramos que

estejam ligados á Bioética. Ao analisar o Documento da Declaração,

percebe-se que o mesmo está respaldado por orientações, particularmente

os princípios que cercaram a Bioética. No Brasil, em 1995 houve a criação

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da Sociedade Brasileira da Bioética (SBB), que possui por missão principal

difusão da Bioética ao Brasil e tem como objetivo;

Reunir pessoas de diferentes formações, interessadas em fomentar a discussão e difusão da Bioética. Estimular a produção de conhecimento em Bioética; promover e assessorar planos, projetos, pesquisas e atividades na área de Bioética; patrocinar eventos de Bioética, conforme regulamentos próprios; apoiar e participar de movimentos e atividades que visem a valorização da Bioética. (SOCIEDADE BRASILEIRA DE BIOÉTICA, 1995, s.p.).

Como denominou Van Potter, a Bioética é a Ciência da

Sobrevivência e promover o avanço da mesma torna-se essencial para um

crescimento na tecnologia biológica, permeando-se pelos princípios que a

norteiam. Bioética engloba e sociedade em geral, e é de suma importância

que as pessoas se interem de seu conceito e princípios, tornando-se similar

aos profissionais da saúde.

2 Breves contornos ao princípio da precaução

Em sede de comentários introdutórios, é possível salientar que o

corolário da precaução se apresenta como uma garantia contra os riscos

potenciais que, em harmonia com o estado atual de conhecimento, não são

passíveis, ainda, de identificação. É desfraldada como flâmula pelo preceito

da precaução que, em havendo ausência de certeza científica formal,

existência de um dano robusto ou mesmo irreversível reclama a

estruturação de medidas e instrumentos que possam minimizar e/ou

evitar este dano. Neste passo, sobreleva salientar que o dogma em

apreço encontra seu sedimento de estruturação no princípio quinze da

Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, também conhecida como Declaração do Rio/92, que em

seu princípio quinze estabelece que:

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos

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graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (ONU, 1992).

Quadra destacar, nesta toada, que a ausência de certeza

científica absoluta não deve subsidiar pretexto para postergação do emprego

de medidas efetivas que objetivem evitar a degradação ambiental. Mais que

isso, é oportuno consignar que, diante da situação concreta, “a incerteza

científica milita em favor do ambiente, carregando-se ao interessado o ônus

de provar que as intervenções pretendidas não são perigosas e/ou

poluentes”, como bem anota Romeu Thomé (2012, p. 69). Neste sentido,

inclusive, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, ao relatoriar o Agravo

Regimental no Agravo no Recurso Especial Nº 206.748/SP, salientou, com

bastante pertinência, a dimensão do princípio da precaução, explicitando

que “pressupõe a inversão do ônus probatório, transferindo para a

concessionária o encargo de provar que sua conduta não ensejou riscos

para o meio ambiente e, por consequência, aos pescadores da região”

(BRASIL, 2013).

O axioma em realce, neste cenário, constitui no principal

norteador das políticas ambientais, à medida que este se reporta à função

primordial de evitar os riscos e a ocorrência dos danos ambientais. Em

decorrência da proeminência assumida pelo preceito da precaução, salta

aos olhos que é robusto orientador das políticas ambientas, além de ser o

alicerce fundante da edificação do jus ambiental. Nesse passo, diante da

crise ambiental que condiciona o desenvolvimento econômico, de modo

sustentável, a segundo plano e da devastação dos diversos ecossistemas

em escala vertiginosa, prevenir a degradação do meio-ambiente passou a

se objeto da preocupação constante de todos aqueles que buscam melhor

qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. Entalhou o princípio

da precaução a Declaração de Wingspread de 1998, que “quando uma

atividade representa ameaças de danos ao meio-ambiente ou à saúde

humana, medidas de precaução devem ser tomadas, mesmo de algumas

relações de causa e efeito não forem plenamente estabelecidas

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cientificamente” (MELIM, s.d., s.p.). Os Tribunais Pátrios já se manifestaram

quanto à aplicabilidade do princípio em comento, consoante se infere dos

arestos colacionados:

Ementa: Pedido de Suspensão. Meio Ambiente. Princípio da Precaução. Em matéria de meio ambiente vigora o princípio da precaução. Esse princípio deve ser observado pela Administração Pública, e também pelos empreendedores. A segurança dos investimentos constitui, também e principalmente, responsabilidade de quem os faz. À luz desse pressuposto, surpreende na espécie a circunstância de que empreendimento de tamanho vulto tenha sido iniciado, e continuado, sem que seus responsáveis tenham se munido da cautela de consultar o órgão federal incumbido de preservar o meio ambiente a respeito de sua viabilidade. Agravo regimental não provido. (Superior Tribunal de Justiça – Corte Especial/ AgRg na SLS 1.564/MA/ Relator: Ministro Ari Pargendler/ Julgado em 16 mai. 2012/ Publicado no DJe em 06 jun. 2012). Ementa: Direito Ambiental. Ação Civil Pública. Cana-de-açúcar. Queimadas. Art. 21, parágrafo único, da Lei n. 4771/65. Dano ao meio ambiente. Princípio da Precaução. Queima da palha de cana. Existência de regra expressa proibitiva. Exceção existente somente para preservar peculiaridades locais ou regionais relacionadas à identidade cultural. Inaplicabilidade às atividades agrícolas industriais. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. [...] Recurso especial provido. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.285.463/SP/ Relator: Ministro Humberto Martins/ Julgado em 28 fev. 2012/ Publicado no DJe em 06 mar; 2012). Ementa: Processual Civil – Competência para julgamento de execução fiscal de multa por dano ambiental – Inexistência de interesse da União - Competência da Justiça Estadual - Prestação jurisdicional - Omissão - Não-ocorrência - Perícia - Dano Ambiental - Direito do suposto poluidor - Princípio da Precaução - Inversão do ônus da prova. 1. A competência para o julgamento de execução fiscal por dano ambiental movida por entidade autárquica estadual é de competência da Justiça Estadual. 2. Não ocorre ofensa ao art. 535, II, do CPC, se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide. 3. O princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe é potencialmente lesiva. 4. Nesse sentido e coerente com esse posicionamento, é direito subjetivo do suposto infrator a realização de perícia para comprovar a ineficácia poluente de sua conduta,

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não sendo suficiente para torná-la prescindível informações obtidas de sítio da internet. 5. A prova pericial é necessária sempre que a prova do fato depender de conhecimento técnico, o que se revela aplicável na seara ambiental ante a complexidade do bioma e da eficácia poluente dos produtos decorrentes do engenho humano. 6. Recurso especial provido para determinar a devolução dos autos à origem com a anulação de todos os atos decisórios a partir do indeferimento da prova pericial. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp nº 1.060.753/SP/ Relatora: Ministra Eliana Calmon/ Julgado em 01 dez. 2009/ Publicado no DJe em 14 dez. 2009).

Segundo Colombo (2004, s.p.), no direito positivo pátrio, é

possível verificar a substancialização do princípio da precaução nos incisos

I e IV do artigo 4º da Lei Nº. 6.938, de 31 de Agosto de 1981, que dispõe

sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de

formulação e aplicação, e dá outras providências, que, de forma clarividente,

expressa a imperiosidade de existir um equilíbrio entre o desenvolvimento

econômico e a utilização, de maneira racional, dos recursos naturais,

sem olvidar da imprescindível avaliação do impacto ambiental. “Este

princípio tem sido muito utilizado em ações civis públicas, seja requerendo

a paralisação de obras, seja requerendo a proibição de explorações que

possam causar, ainda hipoteticamente, danos ao meio ambiente” (THOMÉ,

2012, p. 69-70). Lançando mão das ponderações apresentadas por

Colombo (2004, s.p.), o vocábulo precaução apresenta similitude idiomática

com cuidado, logo, é imperioso, em razão do feixe irradiado pelo dogma em

análise, o afastamento de perigo e manutenção da segurança das gerações

futuras, bem assim da sustentabilidade ambiental das atividades humanas.

Verifica-se que o preceito em testilha é a concreção da busca pela proteção

da existência humana, seja pela proteção de seu ambiente como também

pelo asseguramento da integridade da vida humana. Desta premissa, insta

sustar que imperioso se faz considerar não somente o risco eminente de

uma específica atividade, mas também os riscos futuros advindos de

empreendimentos humanos, os quais, devido à compreensão e ao atual

estágio desenvolvimento da ciência, não consegue captar toda densidade.

“A aplicação do princípio da precaução deve ainda limitar-se aos casos de

‘ética do cuidado’, que não se satisfaz apenas com a ausência de certeza

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dos malefícios, mas privilegia a conduta humana que menos agrida, ainda

que eventualmente, o meio natural” (THOMÉ, 2012, p. 70).

É denotável, deste modo, que a consagração do corolário da

precaução se apresenta como robusto instrumento que estabelece a adoção

de uma nova postura em relação à degradação do meio ambiente,

afixando, por via de consequência, a estruturação de medidas ambientais,

tanto por parte do Estado quanto pela sociedade em geral, que obstem a

instalação e desenvolvimento de atividade que tenha potencial lesivo ao

meio ambiente. No que se referem às indústrias já instaladas, o princípio da

precaução assume uma feição que busque cessar o dano ambiental já

concretizado, minimizando os efeitos danosos provocados. “A leitura atenta

do acórdão combatido revela que seu fundamento de decidir foi o princípio

da precaução, considerando que, na dúvida, impõe-se a sustação dos

licenciamentos e a realização de estudos de impacto ambiental, sob pena

de o dano consumar-se” (BRASIL, 2011), como o Ministro Mauro Campbell

Marques explicitou, com clareza solar, ao relatoriar o Recurso Especial N°

1.163.939/RS.

Impende destacar, ainda, com grossos traços e cores quentes,

que a atividade econômica não pode ser exercida em desacordo com os

princípios destinados a tornar efetiva a proteção do meio ambiente. A

incolumidade do meio ambiente não pode ser embaraçada por interesses

empresariais nem ficar dependente de motivações de âmago

essencialmente econômico, ainda mais quando a atividade econômica, em

razão da disciplina constitucional, estiver subordinada a um sucedâneo de

corolários, notadamente àquele que privilegia a defesa do meio ambiente, o

qual abarca o conceito amplo e abrangente de noções atreladas ao meio

ambiente em suas múltiplas manifestações, quais sejam: o meio ambiente

natural, meio ambiente cultural, meio ambiente artificial e meio ambiente do

trabalho (ou laboral). Verifica-se que os instrumentos jurídicos de caráter

legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio

ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que

lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde,

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segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar

graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu

aspecto físico ou natural.

Figura 01. Símbolo identificador dos alimentos transgênicos. Disponível em: <http://saudeempeso.com.br/voce-sabe-identificar-um-alimento-transgenico/>. Acesso em 15 dez. 2015.

Denota-se, portanto, que o princípio da precaução, notadamente

em decorrência de seu núcleo sensível, deve ser erigido como flâmula

orientadora de inspiração, sobretudo quando, diante dos experimentos

científicos, inexistir elementos mínimos capazes de estabelecer as

consequências a médio e a longo prazo. Assim, ao se analisar o corolário

em debate, cuida reconhecer que a sua materialização reclama a presença

de quatro componentes básicos que podem ser resumidos: (i) a incerteza

passa a ser considerada na avaliação de risco; (ii) o ônus da prova cabe ao

proponente da atividade; (iii) na avaliação de risco, um número razoável de

alternativas ao produto ou processo, devem ser estudadas e comparadas;

(iv) para ser precaucionária, a decisão deve ser democrática, transparente e

ter a participação dos interessados no produto ou processo. “Dessa

maneira, esse princípio defende a ideia de que diante da ausência da

certeza científica, a existência do risco de um agravo demanda a

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implantação de medidas que possam prevenir este agravo. Ou seja, ao

legislar sobre uma ciência ainda não conhecida, deve-se ser precavido”

(RIBEIRO; MARIN, 2012, p. 362).

Nesta esteira, o princípio da precaução possui as seguintes

características que serão tratadas a seguir: incerteza científica decorrente

da possibilidade de graves prejuízos eventuais ou irreversíveis;

temporariedade; estrito cumprimento obrigatório do corolário em comento;

atuação estatal proporcionalmente; e a distribuição do ônus da prova. Para

a sua incidência basta a existência de possível ameaça de eventuais graves

prejuízos ou mesmo irreversíveis. Assim, as medidas a serem adotadas

correlacionam-se com a proporcionalidade do evento danoso, inclusive,

mensurando a impossibilidade de retroagir. Ademais, como se trata de

possíveis danos irreversíveis, não se pode permitir a inércia ou omissão de

tais danos, fundamentados na análise de probabilidade de incertezas

científicas para a adoção de medidas garantidoras, ao oportunizar o seu

controle, além de coibir a destruição do meio ambiente.

Uma das principais características do princípio da precaução é

propiciar às futuras gerações uma melhor qualidade de vida, em

consonância com um meio ambiente equilibrado. Desse modo, cuida

explicitar, oportunamente, que o Princípio da Precaução reside no fato de

procurar atuar previamente à ocorrência do prejuízo ambiental ao adotar

medidas com a devida cautela, ao visar os benefícios decorrentes de tais

medidas futuramente. No tocante ao estrito cumprimento obrigatório do

Princípio da Precaução, ressalta-se a universalidade imperativa dessa

imposição uma vez que não é plausível a delimitação e separação do meio

ambiente aos países, pois qualquer prejuízo ambiental acarreta efeitos

mundiais. Portanto, todas as medidas de cautela a serem adotadas também

devem ter seu estrito cumprimento em sede mundial. 3 Alimentos transgênicos: uma tema de incertezas no futuro

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Nas últimas décadas, o desenvolver-se e o emprego dos

organismos geneticamente modificados, ou simplesmente transgênicos, em

larga escala na agricultura têm se amparado sob três principais argumentos:

a preservação do meio ambiente, o aumento da produção para combater a

fome e a redução dos custos de produção. Organizações governamentais e

intergovernamentais têm planejado estratégias e protocolos para o estudo

da segurança de alimentos derivados de cultivos geneticamente

modificados. É nessa linha que verificasse a necessidade de alertar os

cidadãos sobre as “verdades científicas” veiculadas nas mídias ou nos

discursos políticos sociais. Ribeiro e Marin discutem que:

Ainda hoje, pesquisas e estudos que envolvem os potenciais riscos ao consumo humano de AGM ainda são muito restritos. No entanto, existem estudos sobre o efeito da ingestão de soja Roundup Ready em ratos, que demonstraram em análises ultraestruturais e imunocitoquímica, alterações em células acinares do pâncreas (redução de fatores de "splicing" do núcleo e do nucléolo e acúmulo de grânulos de pericromatina); em testículos (aumento do número de grânulos de pericromatina, diminuição da densidade de poros nucleares e alargamento do retículo endoplasmático liso das células de Sertoli), havendo a possibilidade de tais efeitos estarem relacionados ao acúmulo de herbicida presente na soja resistente, além de alterações em hepatócitos (modificações na forma do núcleo, aumento do número de poros na membrana nuclear, alterações na forma arredondada do nucléolo, indicando aumento do metabolismo) sendo potencialmente reversíveis neste último grupo de células (RIBEIRO; MARIN, 2012, p.362).

De maneira feliz, a posse das discussões sobre a ciências, ética

e meio ambiente não pertence mais unicamente aos adeptos do

desenvolvimento científico e tecnológico. Não obstante, as controvérsias

científicas sempre fizeram parte da cultura da ciência. Já na década de 1950,

Jacques Ellul, filósofo francês, abordava essa discussão (Le système

technicien, Paris: Calman-Levy, 1977):

Mais o progresso técnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos imprevisíveis. Certos progressos técnicos criam incertezas permanentes e em longo prazo [...] Processos irreversíveis foram já implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da saúde. Os problemas ambientais são exemplares. Criados pelo desenvolvimento

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tecnológico desenfreado e irrefletido, necessitam sempre de novos instrumentos e técnicas para resolvê-los. Os problemas de saúde pública ou de segurança alimentar são sistematicamente reformulados de modo que possam receber soluções técnicas ao invés de soluções políticas (ZANONI; FERMENT. 2011, p. 14).

A temática dos transgênicos cobre um conjunto de domínios e

aspectos sociais, econômicos culturais e ambientais. A grande questão que

vem sendo levantada é o quão seguras são essas tecnologias, se elas estão

de acordo com o Guia Internacional para Segurança em

Biotecnologia(IGSB) aceito pelo Programa Ambiental das Nações Unidas

(MOSS, 2008, s.p.). Ultimamente, os assuntos dos adeptos do princípio da

precaução forçam os governos de muitos países incluindo o Brasil, a

modificar suas políticas e desistir da produção de variedades geneticamente

modificadas. Assegura Rubens Onofre Nodari (2003) sobre o assunto, que

os testes de segurança são conduzidos caso a caso e modelados para as

características específicas das culturas modificadas e as mudanças

introduzidas através da modificação genética. Todavia o mesmo autor

salienta que o maior problema na análise de risco de organismos

geneticamente modificados, é que seus efeitos não podem ser previstos na

sua totalidade. Os riscos à saúde humana incluem aqueles inesperados,

alergias, toxicidade intolerância. No ambiente, as consequências são a

transferência lateral (horizontal) de genes, a poluição genética e os efeitos

prejudiciais aos organismos não alvos.

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Figura 02. Alimentos transgênicos. Disponível em: <http://www.minhaescolaweb.com.br>. Acesso em 15 dez. 2015.

Estudos elaborados por Costa (2007) apontam que, todos os

fenômenos e eventos indesejáveis resultantes do crescimento e consumo

dos organismos geneticamente modificados podem ser classificados em três

grupos de risco: alimentares, ecológicos e agrotecnológicos. Os riscos

alimentares compreendem: a) efeitos imediatos de proteínas tóxicas

oualergênicas do OGM; b) riscos causados por efeitos pleiotrópicos das

proteínas transgênicas no metabolismo da planta; c) riscos mediados pela

acumulação de herbicidas e seus metabólitos nas variedades e espécies

resistentes; d) risco de transferência horizontal das construções

transgênicas, para o genoma de bactérias simbióticas tanto de humanos

quanto de animais (TEMM et all, 2007, p. 330). Os riscos ecológicos

abarcam: a) erosão da diversidade das variedades de culturas em razão da

ampla introdução de plantas GM derivadas de um grupo limitado de

variedades parentais; b) transferência não controlada de construções,

especialmente daquelas que conferem resistência a pesticidas e pragas e

doenças, em razão da polinização cruzada com plantas selvagens de

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ancestrais e espécies relacionadas. Os possíveis resultados são o declínio

na biodiversidade das formas selvagens do ancestral; c) risco de

transferência horizontal não controlada das construções para a microbiota

da rizosfera; d) efeitos adversos na biodiversidade em razão de proteínas

transgênicas tóxicas, afetando insetos não alvos, assim como a microbiota

do solo, rompendo desta forma a cadeia trófica; e) risco de rápido

desenvolvimento de resistência às toxinas implantadas no transgênico por

insetos fitófagos, bactérias, fungos e outras pragas devido à pesada pressão

seletiva; f) riscos de cepas altamente patogênicas de fitovírus emergirem em

razão da interação do vírus com a construção transgênica que é instável no

genoma dos organismos receptores e, portanto, são alvos mais prováveis

para recombinação com DNA viral (TEMM et all, 2007, p. 330).

No que compete aos riscos agrotecnológicos, é possível

explicitar: a) riscos de mudanças imprevisíveis em propriedades e

características não alvo das variedades GM e em razão dos efeitos

pleiotrópicos de um gene introduzido; b) riscos de mudanças transferidas

nas propriedades de variedade GM que deveriam emergir depois de muitas

gerações em razão da adaptação do novo gene ao genoma, com

manifestação da nova propriedade pleiotrópica e as mudanças já citadas; c)

Perda da eficiência do transgênico resistente a pragas em razão do cultivo

extensivo das variedades GM por muitos anos; d) possível manipulação da

produção de sementes pelos donos da tecnologia “terminator” (TEMM et all,

2007, p. 330). Entretanto, observa-se que a preocupação com a produção e

utilização dos OGM por sua vez, e a combinação de riscos complexos e

incertos com a existência de vulnerabilidades sociais e ambientais, torna

ainda mais explosiva a necessidade da dialética entre produção-destruição

inerente aos atuais modelos de desenvolvimento econômico e tecnológicos.

4 Alimentos transgênicos versus direito humano à

alimentação: um exame à luz da Bioética

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A fome é um problema mundial que aflige quase a totalidade dos

países nas mais variadas proporções e magnitudes. Durante praticamente

toda a história o homem empreendeu esforços a fim de afastá-la, sendo esta

uma tarefa de alta complexidade. A boa alimentação está galgada na

capacidade humana de consumir a quantidade de nutrientes suficientes para

desenvolver com plenitude suas atividades físicas e intelectuais. De acordo

com o discutido no Comitê de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e

Culturais da ONU acerca do direito à alimentação adequada, expressa no

Comentário Geral n. 12 ao PIDESC, o referido direito inclui o acesso estável

e permanente a alimentos saudáveis, seguros e sadios, em quantidade

suficiente, culturalmente aceitos, produzidos de uma forma sustentável e

sem prejuízo da implementação de outros direitos para as presentes e

futuras gerações (ONU, 1999).

Como já dito, no Brasil o direito à alimentação está previsto em vários

documentos legais tendo sido incorporado em vários dispositivos e

princípios da Carta Constitucional de 1988. Contudo, a ausência de garantia

no cumprimento efetivo de tal direito no seio das famílias brasileiras,

configura-se como evidente afronta, sobretudo, ao princípio da dignidade

humana já que esta se perfaz no respeito à qualidade de vida, à saúde, à

alimentação e ao bem estar, destacados já no preâmbulo da CF/88:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988)

Assim, a alimentação como direito social e positivado na carta política

brasileira integra o rol dos direitos fundamentais inalienáveis e plenamente

exigíveis, indicando tal fato, sobretudo, que quando fatores estruturais ou

conjunturais do processo econômico e social não possibilitarem a realização

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do direito à alimentação, o Poder Público pode ser judicialmente acionado

para seu devido cumprimento. Ora, há que reconhecer que o direito humano

à alimentação substancializa direito inerente a qualquer ser humano,

estando, portanto, compreendido no princípio maior da dignidade da pessoa

humana.

Dessa forma, no debate acerca dos alimentos transgênicos,

sobretudo sua utilização na afirmação do direito humano à alimentação, há

defensores que entendem que aqueles serviriam para subsidiar a

materialização do direito em comento, porquanto seriam capazes de colocar

fim à fome, em especial nos países em que essa é extrema e alcançam

índices alarmantes, tal como poderá influenciar diretamente no

barateamento dos gêneros alimentícios. Em que pese tal ótica, e como

alinhavado em momento anterior, há que se discordar dessa máxima,

porquanto os efeitos produzidos pelos organismos geneticamente

modificados a longo tempo sobre o ser humano ainda é desconhecido e

requer maiores estudos, sobretudo para potenciais maléficos. O direito

humano à alimentação não deve ser encarado como sinônimo de utilização

de qualquer fonte alimentar, mas sim gêneros que sejam quantitativamente

e qualitativamente detentores de condições mínimas.

5 A Recomendação CONSEA Nº 02/2015 em análise: o

reconhecimento dos riscos indiretos da transgenia em sede

de segurança alimentar e nutricional

Em sede de comentários inaugurais, há que se destacar que a

manifestação em comento tem por escopo recomendar à CTNBio a não

aprovação da liberação do eucalipto transgênico Evento H421 pela grave

ameaça que essa tecnologia representa à saúde humana, animal e

ambiental. De plano, ao considerar o que estabelece a Política Nacional de

Segurança Alimentar e Nutricional, em seu §2º “A alimentação adequada é

direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana

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e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição

Federal, devendo, portanto, o poder público adotar as políticas e ações que

se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e

nutricional da população”. Além disso, o eucalipto é a principal fonte de

néctar e pólen usado pelas abelhas na fabricação do mel no país, sobretudo

nos estados do sul, sudeste e nordeste. Logo, o mel proveniente dos

eucaliptos transgênicos possui o gene inserido artificialmente e que isso

significa que qualquer mel produzido em colmeias cujas abelhas visitem

flores de eucaliptos transgênicos também será contaminado por material

transgênico.

Assim, ao considerar que o eucalipto transgênico possui uma

cópia do gene npt// inserida em seu DNA e que este gene codifica a enzima

neomicina fosfotransferase, que confere resistência a diversos antibióticos,

e que poderá ser também consumida quando presente no mel faz-se

necessário resgatar a definição da 3ª Conferência Nacional de Segurança

Alimentar e Nutricional que, para que se tenha uma alimentação adequada

e saudável, esta deve atender aos princípios da variedade, qualidade,

equilíbrio e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de

contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos

geneticamente modificado. Desta feita, parte significativa dos riscos dos

organismos transgênicos ao meio ambiente e à saúde provêm de potenciais

alterações não intencionais provocadas pela inserção de genes de outros

organismos no DNA destas plantas, e que isso pode levar à produção de

moléculas que os organismos não produzem em condições naturais,

inclusive toxinas e substâncias alergênicas que podem levar a riscos não-

intencionais à saúde humana, animal e ambiental. Por derradeiro, a

utilização de tal variedade implicará em mudanças na dinâmica de

crescimento desse vegetal, abreviando o período para a condição de corte

e aumentando o seu consumo hídrico, podendo gerar um desequilíbrio

hídrico de microbacias na região onde se realizar o plantio;

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6 Conclusão

Por se tratar de uma nova tecnologia e considerando o reduzido

conhecimento científico a respeito dos riscos de OGMs, torna-se

indispensável que a liberação de plantas transgênicas para plantio e

consumo, em larga escala, seja precedida de uma análise criteriosa

de risco à saúde humana e do efeito desses produtos e serviços ao meio

ambiente, respaldadas em estudos científicos, conforme prevê a legislação

vigente. Assim, normas adequadas de biossegurança, licenciamento

ambiental, e mecanismos e instrumentos de monitoramento e

rastreabilidade são necessários para assegurar que não haverá danos à

saúde humana, animal e ao meio ambiente. Também são imprescindíveis

estudos de impacto socioeconômicos e culturais, daí a relevância da análise

da oportunidade e conveniência que uma nação deve fazer antes da adoção

de qualquer produto ou serviço decorrente da transgenia.

É neste contexto, que a maioria dos países invocam o Princípio da

Precaução, como diretriz para a tomada de decisões. Assim, quando há

razões para suspeitar de ameaças de sensível redução ou de perda de

biodiversidade ou, ainda, de riscos à saúde humana, a falta de evidências

científicas não deve ser usada como razão para postergar a tomada de

medidas preventivas. Desta forma, a adoção do Princípio da Precaução,

constitui uma alternativa concreta a ser adotada diante de tantas incertezas

científicas. Desta associação respeitosa e funcional do homem com a

natureza, surgem as ações preventivas para proteger a saúde das pessoas

e os componentes dos ecossistemas.

Referências:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em 15 dez. 2015.

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