Bobbio.formas.de.governo.1.2.31-35.46-54

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Norberto Bobbio A teoria das formas de governo Tradução Sérgio Bath 10 a Edição EDITORA UnB

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  • Norberto Bobbio

    A teoria das formas de governo

    Traduo Srgio Bath

    10a Edio

    EDITORA

    UnB

  • Sumrio

    Prefcio para a edio brasileira 3 Nota para a edio brasileira 7 Prefcio - Celso Lajer 13 Agradecimentos 29 Nota 31 Introduo 33 Captulo I Uma Discusso Clebre 39 Captulo II Plato 45 Captulo III Aristteles 55 Captulo IV Polbio 65

    Apndice 75 Captulo V Intervalo 77 Captulo VI Maquiavel 83 Captulo VII Bodin 95 Captulo VIII Hobbes 107 Captulo IX Vico 117 Captulo X Montesquieu 127 Captulo XI Intervalo: o Despotismo 139 Captulo XII Hegel 145

    Apndice (Michelangelo Bovero) A Monarquia Constitucional: Hegel e Montesquieu 157

    Captulo XIII Marx 163 Captulo XIV Intervalo: a Ditadura 173

  • Captulo I UMA

    DISCUSSO CLEBRE

    Uma histria das tipologias das formas de governo, como esta, pode ter incio na discusso referida por Herdoto, na sua Histria (Livro III, 80-82), entre trs persas-Otanes, Megabises e Dario-sobre a melhor forma de governo a adotar no seu pas depois da morte de Cambises. O episdio, puramente imaginrio, teria ocorrido na segunda metade do sculo VI antes de Cristo, mas o narrador, Herdoto, escreve no sculo seguinte. De qualquer forma, o que h de notvel o grau de desenvol-vimento que j tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a poltica ura sculo antes da grande sistematizao terica de Plato e Aristteles (no sculo IV). A passagem verdadeiramente exemplar porque, co-mo veremos, cada uma das trs personagens defende uma das trs formas de governo que poderamos denominar de "clssicas" - no s porque foram transmitidas pelos autores clssicos mas tambm porque se tornaram categorias da reflexo poltica de todos os tempos (razo por que so clssicas mas igualmente modernas). Essas trs formas so: o governo de muitos, de poucos e de um s, ou seja, "democracia", "aristocracia" e "monarquia", embora naquela passagem no encontremos ainda todos os termos com que essas trs modalidades de governo foram consignadas tradio que permanece viva at nossos dias. Dado o carter exemplar do trecho, e sua brevidade, convm reproduzi-lo integralmente:

    "Cinco dias depois de os nimos se haverem acalmado, aqueles que se rebelaram contra os magos examinaram a situao; as palavras que disseram ento pareceriam incrveis a alguns gregos, mas foram real-mente pronunciadas.

    Otanes props entregar o poder ao povo persa, argumentando assim: 'Minha opinio que nenhum de ns deve ser feito monarca, o que seria penoso e injusto. Vimos at que ponto chegou a prepotncia de Cambises, e sofremos depois a dos magos. De que forma poderia no ser irregular o governo monrquico se o monarca pode fazer o que quiser, se no

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    responsvel perante nenhuma instncia? Conferindo tal poder, a monar-quia afasta do seu caminho normal at mesmo o melhor dos homens. A posse de grandes riquezas gera nele a prepotncia, e a inveja desde o princpio parte da sua natureza. Com esses dois defeitos, alimentar todas as malvadezas: cometer de fato os atos mais reprovveis, em alguns casos devido prepotncia, em outros inveja. Poderia parecer razovel que o monarca e tirano fosse um homem despido de inveja, j que possui tudo. Na verdade, porm, do modo como trata os sditos demonstra bem o contrrio: tem inveja dos poucos bons que permanecem, compraz-se com os piores, est sempre atento s calnias. O que h de mais vergonhoso que, se algum lhe faz homenagens com medida, cr no ter sido bastante venerado; se algum o venera em excesso, se enraivece por ter sido adulado. Direi agora, porm, o que mais grave: o monarca subverte a autoridade dos pais, viola as mulheres, mata os cidados ao sabor dos seus caprichos.

    O governo do povo, porm, merece o mais belo dos nomes, 'isonomia'; no faz nada do que caracteriza o comportamento do monarca. Os cargos pblicos so distribudos pela sorte; os magistrados precisam prestar contas do exerccio do poder; todas as decises esto sujeitas ao voto popular. Proponho, portanto, rejeitarmos a monarquia, elevando o povo ao poder o grande nmero faz com que tudo seja possvel'.

    Esse foi o parecer de Otanes. Megabises, contudo, aconselhou a confiana no governo oligrquico: 'Subscrevo o que disse Otanes em defesa da abolio da monarquia; quanto atribuio do poder ao povo, contudo, seu conselho no o mais sbio. A massa inepta obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar que, para escapar da prepotncia de um tirano, se caa sob a da plebe desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo no tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia sab-lo, se nunca aprendeu nada de bom e de til, se no conhece nada disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho? Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrtico; quanto a ns, entregaramos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os melhores - e estaramos entre eles. natural que as melhores decises sejam tomadas pelos que so melhores'.

    Foi esse o parecer de Megabises. Em terceiro lugar, Dario manifestou sua opinio: 'O que disse Megabises a respeito do governo popular me parece justo, mas no o que disse sobre a oligarquia. Entre as trs formas de governo, todas elas consideradas no seu estado perfeito, isto , entre a melhor democracia, a melhor oligarquia e a melhor monarquia, afirmo que a monarquia superior a todas. Nada poderia parecer melhor do que um s homem- o melhor de todos; com seu discernimento, governaria o povo de modo irrepreensvel; como ningum mais, saberia manter seus objetivos polticos a salvo dos adversrios.

    Numa oligarquia, fcil que nasam graves conflitos pessoais entre os que praticam a virtude pelo bem pblico: todos querem ser o chefe, e fazer prevalecer sua opinio, chegando por isso a odiar-se; de onde

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    surgem as faces, e delas os delitos. Os delitos levam monarquia, o que prova que esta a melhor forma de governo.

    Por outro lado, quando o povo que governa, impossvel no haver corrupo na esfera dos negcios pblicos, a qual no provoca inimi-zades, mas sim slidas alianas entre os malfeitores: os que agem contra o bem comum fazem-no conspirando entre si. o que acontece, at que algum assume a defesa do povo e pe fim s suas tramas, tomando-lhes o lugar na admirao popular; admirado mais do que eles, torna-se monarca. Por isso tambm a monarquia a melhor forma de governo.

    Em suma, para diz-lo em poucas palavras: de onde nos veio a liberdade? Quem a deu? O povo, uma oligarquia, ou um monarca? Sustento que, liberados por obra de um s homem, devemos manter o regime monrquico e, alm disso, conservar nossas boas instituies ptrias: no h nada melhor' ".

    A passagem to clara que quase desnecessrio coment-la. A observao mais interessante que podemos fazer a de que cada um dos trs interlocutores faz uma avaliao positiva de uma das trs constitui-es e anuncia um julgamento negativo das outras duas. Defensor do governo do povo (que ainda no chamado de "democracia"; esse termo tem de modo geral, nos grandes pensadores polticos, uma acepo negativa, de mau governo), Otanes condena a monarquia. Defensor da aristocracia, Megabises condena o governo de um s e o governo do povo. Por fim, Dario que defende a monarquia, condena tanto o governo do povo como o governo de uns poucos (usando o termo destinado a descrever ordinariamente a forma negativa do governo de poucos - a oligarquia). Como j foi observado, o fato de que cada constituio apresentada como boa por quem a defende e como m pelos defensores dos dois outros tipos tem o efeito de deixar bem clara, no debate, a classificao completa, que ser enunciada por sucessivos pensadores, para quem elas no sero apenas trs, porm seis j que s trs boas correspondem trs outras, ms. A diferena entre a apresentao dessas constituies no debate de Herdoto e nas classificaes seguintes (como a de Aristteles) est em que no debate, que um discurso do tipo prescritivo (vide a Introduo), a cada constituio proposta como boa correspondem duas outras, vistas corno ms; em Aristteles, cuja lingua-gem simplesmente descritiva, a cada constituio boa corresponde a mesma na sua forma m. A diferena ficar clara nos dois esquemas seguintes:

    Herdoto

    monarquia aristocracia democracia

    Otanes - - +

    Megabises - + -

    Dario + - -

  • A Teoria das Formas de Governo

    Aristteles

    Monarquia + -

    Aristocracia + -

    Democracia + -

    Convm esclarecer, aqui, que a classificao sxtupla (com trs constituies boas e trs ms) deriva do cruzamento de dois critrios, um dos quais responde pergunta "Quem governa?", o outro pergunta "Como governa?" (isto , "como" governam aquele ou aqueles indicados pela resposta primeira pergunta). Como se pode ver no esquema seguinte (no qual empregamos a terminologia de Polbio):

    Como?

    bem mal

    um monarquia tirania

    poucos aristocracia oligarquia

    Quem?

    muitos democracia oclocracia

    Ser interessante considerar tambm brevemente os argumentos com que os trs interlocutores exaltam uma constituio e criticam as outras duas; alguns desses argumentos manifestam de forma surpreendente esses "temas recorrentes", aos quais me referi no incio deste curso. O contraste entre a monarquia considerada no seu aspecto negativo (isto , tirania) e o governo do povo, conforme representado por Otanes, o que existe entre ura governo irresponsvel e portanto naturalmente arbitrrio ("o monarca pode fazer o que quiser... no responsvel perante nenhuma instncia") e o governo baseado na igualdade perante a lei ("... o mais belo dos nomes, "isonomia"...") e no controle pelo povo ("todas as decises esto sujeitas ao voto popular") - portanto, nem irresponsvel nem arbitrrio. Ao tirano se atribuem alguns vcios, como a "prepotn-cia", a "inveja", a "irascibilidade", que constituem exemplos j bastante evidentes de uma fenomenologia da tirania que vem at nossos dias, com diversas variaes. Mais ainda: enquanto a tirania caracterizada por atributos psicolgicos, o governo do povo descrito sobretudo por meio de uma instituio - a distribuio dos cargos pblicos mediante sorteio, o que pressupe a igualdade absoluta dos cidados; fica clara assim, desde o incio - como se v, e se ver melhor ainda mais adiante - a relao existente entre os conceitos de "igualdade" e de "governo popular". Com efeito, o sorteio s no um procedimento arbitrrio se se baseia na premissa da igualdade dos cidados - isto , de que todos valem o mesmo

  • Uma Discusso Clebre 43

    e que, portanto, qualquer que seja a indicao da sorte, o resultado tem o mesmo valor.

    No que diz respeito s consideraes de Megabises, vale observar que o governo popular tambm caracterizado por atributos psicolgicos (o desatino). O mais interessante que das duas formas de governo rejeitadas, uma (o governo popular) considerada pior do que a outra (o governo monrquico); essa comparao nos d um exemplo claro da gradao das constituies, boas ou ms, de que falei na Introduo (no h apenas governos bons e maus, mas governos melhores e piores do que outros). O que falta na anlise de Megabises uma caracterizao especfica do governo proposto como melhor, diferentemente do que tnhamos observado no discurso de Otanes, onde o governo do povo caracterizado por uma instituio peculiar - o sorteio. A propsito do governo de poucos, seu defensor se limita a dizer, numa petio de princpio, que "as melhores decises (so) tomadas pelos que so melhores".

    Na exposio de Dario aparece pela primeira vez a condenao do governo de poucos; Otanes criticara o governo tirnico mas no o oligrquico, e Megabises havia considerado o governo de poucos como o melhor. O ponto crtico da oligarquia a facilidade com que o grupo dirigente se fragmenta em faces - isto , a falta de um guia nico, necessrio para manter a unidade do Estado. O ponto crtico do governo popular justamente o contrrio: no a discrdia dos bons, mas o acordo entre os maus (as "slidas alianas entre os malfeitores"); no a ciso do que deveria permanecer unido, mas a conspirao do que deveria estar dividido. Ainda que por razes opostas, tanto o governo de poucos como o de muitos so maus. Justamente por causa da sua corrupo eles geram por contraste a nica forma boa de governo - a monarquia que, portanto, no apenas melhor do que as outras constituies, de modo abstrato, mas tambm necessria, em conseqncia da corrupo das outras duas - por conseguinte, inevitvel. Devemos ter presente o argumento usado por Dario em favor da monarquia: sua superioridade depende do fato de que responde a uma necessidade histrica, sendo a nica forma capaz de assegurar a "estabilidade" do poder. No em vo que insistimos desde o incio neste tema da "estabilidade", porque, como veremos, a capacidade que tem qualquer constituio de perdurar, de resistir corrupo, degradao, de se transformar na constituio contrria, um dos critrios principais - se no mesmo o principal - com que podemos distinguir as boas constituies das que so ms.

  • Captulo III

    ARISTTELES

    A teoria clssica das formas de governo aquela exposta por Aristteles (384 - 322 a.C.) na Poltica; clssica e foi repetida durante sculos sem variaes sensveis. Aqui tambm Aristteles parece ter fixado em definitivo algumas categorias fundamentais que ns, seus psteros, continuamos a empregar no esforo de compreender a reali-dade. A Poltica est dividida em oito livros: destes, dois - o terceiro e o quarto - esto dedicados descrio e classificao das formas de governo. O primeiro trata da origem do Estado; o segundo critica as teorias polticas precedentes, em especial a platnica; o quinto trata das mudanas das constituies - isto , da passagem de uma forma de governo a outra -; o sexto estuda em particular as vrias formas de democracia e de oligarquia, as duas formas de governo em que Aristteles se detm com maior ateno em toda a obra; o stimo e o oitavo tratam das melhores formas de constituio.

    O termo empregado por Artistteles para designar o que at aqui venho chamando de "forma de governo" politeia, traduzido via de regra como "constituio". Vale notar que na.Poltica encontramos muitas definies de "constituio". Uma dessas definies est no livro terceiro:

    "A constituio a estrutura que d ordem cidade, determinando o funcionamento de todos os cargos pblicos e sobretudo da autoridade soberana" (1278 b).

    Essa traduo talvez seja um pouco redundante: Aristteles de fato se limita a dizer que a constituio, a politeia, "txis ton archon", isto , a "ordenao das magistraturas" (ou seja, dos "cargos pblicos"). Tal definio corresponde, "grosso modo", ao que entendemos hoje como "constituio". Digo "grosso modo" porque hoje incluiramos algo mais numa constituio: quando nos referimos constituio italiana, francesa ou chinesa falamos da lei fundamental de um Estado, que estabelece seus rgos, as respectivas funes, relaes recprocas, etc. Em suma, para repetir Aristteles, a "ordenao das magistraturas".

  • 56 A Teoria das Formas de Governo

    Um tema a respeito do qual Aristteles no cessa de chamar a ateno do leitor o de que h muitas constituies diferentes; portanto, uma das primeiras tarefas do estudioso da poltica descrev-las e classific-las. Aristteles enfrenta o problema no 7 do Livro III, em passagem, que, por sua importncia histrica, merece ser reproduzida por inteiro:

    "Como constituio e governo significam a mesma coisa, e o governo o poder soberano da cidade, necessrio que esse poder soberano seja exercido por 'um s', por 'poucos' ou por 'muitos'. Quando um s, pou-cos ou muitos exercem o poder buscando o interesse comum, temos neces-sariamente as constituies retas; quando o exercem no seu interesse privado, temos desvios... Chamamos 'reino' ao governo monrquico que se prope a fazer o bem pblico; 'aristocracia', ao governo de poucos..., quando tem por finalidade o bem comum; quando a massa governa visando ao bem pblico, temos a 'polida' , palavra com que designamos em comum todas as constituies... As degeneraes das formas de governo precedentes so a ' tirania' com respeito ao reino; a ' oligarquia' , com relao aristocracia; e a ' democracia', no que diz respeito ' polida'. Na verdade, a tirania o governo monrquico exercido em favor do monarca; a oligarquia visa ao interesse dos ricos; a democracia, ao dos pobres. Mas nenhuma dessas formas mira a utilidade comum" (1279 a-b).

    Em poucas linhas, o autor formula, com extrema simplicidade e conciso, a clebre teoria das seis formas de governo. Fica bem claro que essa tipologia deriva do emprego simultneo dos dois critrios funda-mentais - "quem" governa e "como" governa. Com base no primeiro critrio, as constituies podem ser distinguidas conforme o poder resida numa s pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia) e em muitas ("politia"). Com base no segundo, as constituies podem ser boas ou ms, com a conseqncia de que s trs primeiras formas boas se acrescentam e se contrapem as trs formas ms (a tirania, a oligarquia e a democracia). A simplicidade e a clareza desta tipologia so tais que seria desnecessrio qualquer comentrio, alm de certas consideraes ter-minolgicas. "Monarquia" significa propriamente "governo de um s", mas na tipologia aristotlica quer dizer "governo bom de um s", ao qual corresponde, como governo mau, a tirania. Do mesmo modo, "oligar-quia", que significa propriamente "governo de poucos", corresponde a "governo mau de poucos", a que est relacionada a "aristocracia", como forma boa de governo. O termo "oligarquia" conservou de fato, nos sculos seguintes, seu significado pejorativo original; ainda hoje se costuma falar de "oligarquias", no sentido negativo, para designar grupos de poder restritos que governam sem o apoio popular (contrapondo-se assim "democracia"). Quanto "aristocracia", que significa pro-priamente "governo dos melhores", o nico dos trs termos designando as formas boas que tem por si mesmo um significado positivo: no curso do tempo manteve significao menos negativa do que a de "oligarquia", mas perdeu o sentido original de "governo dos melhores" (na linguagem poltica moderna entendemos, via de regra, por governos "aristocrticos" os que se baseiam em grupos restritos, nos quais o poder transmitido por via

  • Aristteles 57

    hereditria). A maior novidade, a estranheza terminolgica, o uso de "politia" para indicar a constituio caracterizada pelo governo de muitos, e bom. Estranheza porque, como vimos, "politia" (termo que traduz "politeia" sem traduzi-lo) significa "constituio" - portanto um termo genrico, no-espedfico. Hoje, quando queremos usar uma palavra grega para indicar o governo de muitos dizemos "poliarquia" ( o que faz, por exemplo, o cientista poltico Robert Dahl, para denominar a democracia pluralstica dos Estados Unidos da Amrica). Os gregos conheciam esse termo (que encontramos, por exemplo, em Tucdides, VI, 72), mas o empregavam na acepo pejorativa de comando militar exercido por muitas pessoas, criando desordem e confuso. A confuso que cria no leitor o uso do termo genrico "politia" ou "constituio" para indicar uma das seis possveis constituies ainda maior porque em outra obra, a tica a Nicmaco, Aristteles, repetindo a classificao das formas boas e ms, emprega para denotar a terceira forma boa o termo "timocracia", que encontramos em Plato usado para designar a primeira das quatro formas de governo descedentes da forma boa. Convm reproduzir a passagem por inteiro:

    "Trs so as formas de governo e trs so os desvios e corrupes dessas formas. As formas so: o reino, a aristocracia e, a terceira, aquela que se baseia sobre a vontade popular, que pareceria prprio chamar de "timocracia", mas que a maioria chama apenas de "politia"... O desvio do reino a tirania... Da aristocracia se passa oligarquia, pela malvadez dos governantes... Da timocracia democracia" (1160 a-b).

    De qualquer forma o uso de um termo genrico, como "politia", ou imprprio, como timocracia, confirma o que Plato j nos havia ensinado: ao contrrio do que acontece com as duas primeiras formas, para as quais existem dois termos consagrados pelo uso para indicar respectivamente a forma boa e a m, com relao terceira h, no uso corrente, um s termo, "democracia", com a conseqncia de que, uma vez adotado para indicar exclusivamente a forma m, como fez Aristteles (ao contrrio do que far Polbio, como veremos), falta uma expresso tambm consagrada pelo uso para denotar a correspondente forma boa.

    O uso axiolgico de uma tipologia comporta, como se disse no captulo introdutrio, no s a distino entre formas boas e ms porm uma hierarquia entre as vrias formas - quer dizer, uma distino entre formas melhores e piores. A ordem hierrquica aceita por Aristteles no parece diferir da que Plato sustentou em O Poltico, que expus no fim do captulo precedente. O critrio da hierarquia o mesmo: a forma pior a degenerao da forma melhor, de modo que as degeneraes das formas que seguem a melhor so cada vez menos graves. Com base nesse critrio, a ordem hierrquica das seis formas a seguinte: monarquia, aristocracia, politia, democracia, oligarquia, tirania. E o que podemos dizer empre-gando as mesmas palavras de Aristteles:

    " evidente qual dessas degeneraes a pior e qual vem logo depois. Com efeito, necessariamente pior a constituio derivada por degene-rao da forma primeira, mais divina. Ora, o reino o s de nome, no na realidade; reino porque quem reina excede extraordinariamente os

  • 58 A Teoria das Formas de Governo

    demais, da mesma forma que a tirania, que a pior degenerao, a mais afastada da constituio verdadeira. Em segundo lugar vem a oligarquia (de que a aristocracia difere muito), enquanto a democracia mais moderada" (1289 a-b).

    Na tica a Nicmaco podemos confirmar essa ordem. Na mesma passagem que citamos h pouco l-se, depois da listagem das seis formas de governo:

    "Delas a melhor o reino, e a pior a timocracia" (1160 a). E pouco mais adiante: "Mas a democracia o desvio menos ruim: com efeito, pouco se afasta

    da forma de governo correspondente" (1160 b). Estabelecida assim a ordem hierrquica, observamos que o maior

    afastamento o que existe entre "monarquia" (a melhor constituio, dentre as que so boas) e "tirania" (a pior, dentre as ms); o menor o que existe entre a "politia" (a pior das formas boas) e a "democracia" (a melhor das ms). Explica-se tambm por que as duas formas da democracia podem ter sido denominadas da mesma forma; estando uma no fim da primeira srie e a outra no princpio da segunda, so semelhantes a ponto de poderem ser confundidas. Entre o que melhor e o que pior a distncia grande e inabrangvel; entre o menos bom e o menos mau h uma linha contnua que nos veda traar uma linha clara de demarcao.

    H ainda uma observao a fazer sobre a distino entre as formas boas e as ms. Com base em que critrio Aristteles distingue uma da outra? Vale lembrar o que disse na ltima parte da lio sobre Plato, a propsito da distino que o filsofo introduz em O Poltico. O critrio de Aristteles diferente: no o consenso ou a fora, a legalidade ou ilegalidade, mas sobretudo o interesse comum ou o interesse pessoal. As formas boas so aquelas em que os governantes visam ao interesse comum; ms so aquelas em que os governantes tm em vista o interesse prprio. Este critrio est estreitamente associado ao conceito aristotlico da polis (ou do Estado, no sentido moderno da palavra). A razo pela qual os indivduos se renem nas cidades - isto formam comunidades po-lticas no apenas a de viver em comum, mas a de "viver bem" (1252 b e 1280 b). Para que o objetivo da "boa vida" possa ser realizado, necessrio que os cidados visem ao interesse comum, ou em conjunto ou por intermdio dos seus governantes. Quando os governantes se apro-veitam do poder que receberam ou conquistaram para perseguir interes-ses particulares, a comunidade poltica se realiza menos bem, assumindo uma forma poltica corrompida, ou degenerada, com relao forma pura. Aristteles distingue trs tipos de relaes de poder: o poder do pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do governante sobre o governado. Essas trs formas de poder se distinguem entre si com base no tipo de interesse perseguido. O poder dos senhores exercido no seu prprio interesse; o patemo, no interesse dos filhos; o poltico, no interesse comum de governantes e governados. Da a seguinte concluso:

    " evidente que todas as constituies que miram o interesse comum so constituies retas, enquanto conformes justia absoluta; as que

  • Aristteles 59

    visam ao interesse dos governantes so errneas, constituindo degene-raes com respeito s primeiras" (1279 a).

    A importncia histrica da teoria das seis formas de governo, do modo como foi fixada por Aristteles, enorme. Mas no devemos dar-lhe uma importncia excessiva dentro da obra aristotlica, que mais rica de observaes e determinaes do que poderia parecer considerando a tipologia que estudamos. Poder-se-ia mesmo dizer que o xito histrico do esquema de classificao (facilmente compreensvel, como o de todos os esquemas que reduzem uma realidade histrica complexa, como era a das cidades gregas, de suas evolues e revolues) terminou induzindo uma leitura simplificada da Poltica, desprezando a complexidade das suas articulaes internas. Aristteles analisa cada uma das seis formas em especificaes histricas, subdividindo-as em muitas espcies particu-lares, cuja determinao faz com que o esquema geral parea muito menos rgido do que ficou consignado na tradio do pensamento poltico. Por vezes, deixa de seguir esse esquema, ao estudar a passagem de uma subespcie para outra. Considere-se, por exemplo, a primeira forma de governo - a monarquia. Ao iniciar o seu estudo, Aristteles afirma:

    " preciso antes de mais nada determinar se a monarquia constitui um s gnero ou se est diferenciada em vrios gneros; fcil perceber que abrange muitos gneros, em cada um dos quais o governo exercido de modo diferente" (1285 a).

    Estabelecida esta premissa, a exposio sobre a monarquia se articula por meio da distino de vrias espcies de monarquias, tais como: a dos tempos hericos, "que era hereditria, baseando-se no consentimento dos sditos"; a de Esparta, em que o poder supremo se identificava com o poder militar, tendo durao perptua; o regime dos "esimneti" - isto , dos "tiranos eletivos" bem como o dos chefes supremos de uma cidade eleitos por um certo perodo, ou em carter vitalcio, no caso de choques graves entre faces opostas; a monarquia dos povos brbaros. Detenho-me em particular nesta ltima, que introduz uma categoria histrica destinada a ter grande importncia nos sculos seguintes: a categoria da monarquia desptica ou, ratione loci, do "despotismo oriental", sobre a qual voltaremos a falar. So duas as caractersticas peculiares desse tipo de monarquia: a) o poder exercido tiranicamente; neste sentido se assemelha ao poder do tirano; b) esse poder exercido tiranicamente contudo legtimo, porque aceito; e aceito porque "como esses povos brbaros so mais servis do que os gregos, e como os povos asiticos so mais servis do que os europeus, suportam sem dificuldade o poder desptico exercido sobre eles" (1285 a). Essas duas caractersticas fazem com que no se possa assemelhar tal tipo de monarquia tirania, j que os tiranos "governam sditos descontentes com o seu poder", poder que no se fundamenta no consentimento - no "legtimo", no sentido preciso da palavra; ao mesmo tempo, uma forma de monarquia que difere das monarquias helnicas porque exercida sobre povos "servis", o que exige sua aplicao desptica. O poder desptico aquele que o senhor (em grego, despotes) exerce sobre os escravos; diferente, como j

  • 60 A Teoria das Formas de Governo

    vimos, tanto do poder paterno como do poder poltico. O poder desptico absoluto e, ao contrrio do paterno, exercido no interesse dos filhos, e do poder poltico ou civil, exercido no interesse de quem governa ou de quem governado, visa ao interesse do senhor, que o detm. Como se sabe, Aristteles justifica a escravido por considerar que h homens escravos pela sua natureza. Da mesma forma, h tambm povos natural-mente escravos (os "povos servis" das grandes monarquias asiticas). S se pode exercer sobre esses povos o poder do tipo desptico que, no obstante, perfeitamente legtimo: o nico tipo de poder ajustado natureza de certos povos, embora durssimo, como o do senhor de escravos. Tanto assim que esses povos o aceitam "sem dificuldade" -melhor dito, sem lamentar-se (na traduo latina medieval, "sine tris-titia") -, enquanto os tiranos, cujos sditos so povos livres, governam cidados "descontentes", sem serem aceitos por eles. Justamente por isso a tirania uma forma corrupta de governo, contrastando com a monarquia.

    Para avaliar o afastamento entre o esquema geral das seis formas de governo e as anlises particulares, nada melhor do que examinar de perto a forma denominada, falta de outro termo mais apropriado, "politia". No esquema, a "politia" corresponde terceira forma - deveria consistir, portanto, no poder de muitos exercido no interesse comum. Mas, quando se chega definio que lhe d Aristteles, encontramos coisa bem diferente:

    "A "politia" , de modo geral, uma mistura de oligarquia e de democracia; via de regra so chamados de polidas os governos que se inclinam para a democracia, e de aristocracias os que se inclinam para a oligarquia" (1293 b).

    E preciso ter muita ateno, neste ponto: a politia uma mistura de oligarquia e democracia. Mas, o esquema abstrato no nos diz que tanto a oligarquia como a democracia so formas corrompidas? O primeiro problema, portanto, colocado diante da politia, o de que uma forma boa pode resultar de uma fuso de duas formas ms. Em segundo lugar, se a politia no (conforme deveria ser, de acordo com o esquema) o governo do povo ou a democracia na sua acepo correta, mas sim uma mistura de oligarquia e democracia, isso significa que (este o segundo problema) o governo bom de muitos, que figura no terceiro lugar do esquema geral, uma frmula vazia, uma idia abstrata que no corresponde, concre-tamente, a qualquer regime histrico do presente ou do passado. Trata-se pois de um problema que complicado (o que quer dizer tornado historicamente mais interessante) pelo fato de que, contrariando tambm o esquema geral, para Aristteles nem a oligarquia o governo de poucos nem a democracia o governo do povo. O critrio adotado por Aristteles para distinguir a oligarquia e a democracia no o critrio numrico, de carter geral, mas um critrio bem mais concreto: a diferena entre ricos e pobres:

    "Na democracia governam os homens livres, e os pobres, que constituem a maioria; na oligarquia governam os ricos e os nobres, que representam a minoria" (1290 b).

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    O fato de que a oligarquia o governo de poucos e a democracia o governo de muitos pode depender apenas de que, de modo geral, em todas as sociedades os ricos so menos numerosos do que os pobres. Mas, o que distingue uma forma de governo da outra no o nmero, e sim a condio social dos que governam: no um elemento quantitativo, mas qualitativo. o que vemos claramente na passagem seguinte:

    "A democracia e a oligarquia diferem uma da outra pela pobreza e a riqueza; onde dominam os ricos, sejam muitos ou poucos, haver necessariamente uma oligarquia; onde dominam os pobres, uma demo-cracia, embora acontea, como se disse, que os ricos sejam poucos e os pobres numerosos, j que poucos so os que se arriscam, mas todos participam da liberdade" (1280 a).

    Dizamos, pois, que a poltica uma fuso da oligarquia e da democracia. Agora que sabemos em que consistem uma e outra, podemos compreender melhor em que consiste essa fuso: um regime em que a unio dos ricos e dos pobres deveria remediar a causa mais importante de tenso em todas as sociedades - a luta dos que no possuem contra os proprietrios. o regime mais propcio para assegurar a "paz social".

    "Na maioria das cidades se proclama em altos brados a "politia", procurando-se realizar a nica unio possvel dos ricos e dos pobres, da riqueza e da pobreza" (1294 a).

    Aristteles se ocupa tambm com o modo como se pode fundir os dois regimes, de forma a criar um terceiro, melhor do que os dois originais. Detm-se em particular sobre trs expedientes extremamente interessantes, do ponto de vista do que chamaramos hoje de "engenharia poltica":

    1) CONCILIANDO PROCEDIMENTOS QUE SERIAM INCOM PATVEIS: enquanto nas oligarquias se penalizam os ricos que no participam das atividades pblicas, mas no se concede nenhum prmio aos pobres que nelas tomam parte, nas democracias, pelo contrrio, no se inflige tal pena aos ricos e tambm no se concede esse prmio aos pobres. A conciliao entre os dois sistemas poderia consistir em "alguma coisa intermediria e comum", como diz Aristteles. Por exemplo: a promulgao de lei que penalize os ricos no-participantes e d um prmio aos pobres participantes.

    2) ADOTANDO-SE UM "MEIO-TERMO" ENTRE AS DISPO SIES EXTREMAS DOS DOIS REGIMES: enquanto o regime oli- grquico s d o direito de voto aos que tm uma renda muito elevada, o regime democrtico o atribui a todos, at mesmo aos que no possuem qualquer terra- ou pelo menos aos que possuem renda muito pequena. O "meio-termo", neste caso, consiste em diminuir o limite mnimo de renda imposto pelo regime dos ricos, elevando o admitido no regime dos pobres.

    3) RECOLHENDO-SE O MELHOR DOS DOIS SISTEMAS LEGIS LATIVOS: enquanto na oligarquia os cargos pblicos so preenchidos mediante eleio, mas s pelos que possuem uma certa renda, na democracia esses cargos so distribudos por sorteio entre todos os

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    cidados. Recolher o melhor dos dois sistemas, neste caso, significa conservar o mtodo eleitoral e excluir o requisito de renda.

    O princpio que inspira esse regime de "fuso" o da "mediao" -ideal de toda a tica aristotlica, fundamentado, como se sabe, no valor eminentemente positivo do que est no meio, situado entre dois extremos. um ideal referido pelo prprio Aristteles numa passagem relativa ao assunto de que estamos tratando:

    "Se exata a definio da tica segundo a qual a vida feliz a que se desenvolve de acordo com a virtude, e sem impedimentos, e se a virtude est no meio-termo, a vida mediana necessariamente a melhor, desde que se trate dessa mediania que acessvel a todos" (1295 a).

    Logo em seguida, o critrio da mediania aplicado s classes que compem a sociedade:

    "Em todas as cidades h trs grupos: os muito ricos, os muito pobres e os que ocupam uma posio intermediria. Como admitimos que a medida e a mediania so a melhor coisa, em todas as circunstncias, est claro que, em matria de riqueza, o meio-termo a melhor das condies, porque nela mais fcil obedecer razo" (1295 b).

    Uma vez introduzido na realidade histrica, o ideal tico da mediania se resolve no celebrrimo elogio ao "ponto intermedirio" (que interessa muito a quem, como ns, anda buscando "temas recorrentes"):

    "Est claro que a melhor comunidade poltica a que se baseia na classe mdia, e que as cidades que tm essa condio podem ser bem governadas - aquelas onde a classe mdia mais numerosa e tem mais poder do que as duas classes extremas, ou pelo menos uma delas. Com efeito, aliando-se a uma ou a outra, far com que a balana penda para o seu lado, impedindo assim que um dos extremos que se opem ganhe poder excessivo" (1295 b).

    A razo fundamental por que as cidades melhor governadas so aquelas onde predomina a classe mdia explicada mais adiante pelo prprio Aristteles:

    "Est claro que a forma intermediria a melhor, j que a mais distante do perigo das revolues; onde a classe mdia numerosa raramente ocorrem conspiraes e revoltas entre os cidados" (1296 a).

    Chamamos a ateno do leitor para este tema: a "estabilidade". Um tema verdadeiramente central na histria das reflexes acerca do "bom governo", pois um dos critrios fundamentais que permite distinguir (ainda hoje) o bom governo do mau sua estabilidade. O que faz com que a mistura de democracia e oligarquia seja boa (se com ela se busca uma determinada forma poltica correspondente a certa estrutura social, caracterizada pela predominncia de uma classe que no rica, como na oligarquia, nem pobre, como na democracia) justamente o fato de que est menos sujeita s mutaes rpidas provocadas pelos conflitos so-ciais - os quais, por sua vez, resultam da diviso muito ntida entre classes contrapostas.

    Resolvi deter-me tambm na "polida" por uma outra razo: ela o produto de uma "mistura". A idia de que o bom governo fruto de uma mistura de diversas formas de governo um dos grandes temas do

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    pensamento poltico ocidental, que chega at os nossos dias. Trata-se do tema do "governo misto", sobre o qual todos os grandes escritores polticos tero algo a dizer - pr ou contra. Sua formulao mais feliz ser dada pelo escritor que discutirei no prximo captulo - Polbio.