BOBBIO Dicionario Da Politica UNB Conflito

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DICIONÁRIO DE POLÍTICA Conflito I. Para uma definição do conceito e de seus componentes. Existe um acordo sobre o fato de o conflito ser uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos. Essa proposição, porém, suscita imediatamente diferenciações e divergências atinentes à maior parte dos problemas ligados ao conceito de conflito e à sua utilização. Nesse estudo, antes de tudo, não se falará de conflitos entre indivíduos em sentido psicológico, mas se focalizará o conflito social e o conflito político (de que o conflito internacional pode ser considerado uma importante categoria (v. Guerra). Obviamente o conflito é apenas uma das possíveis formas de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Uma outra possível forma de interação é a cooperação. Qualquer grupo social, qualquer sociedade histórica pode ser definida em qualquer momento de acordo com as formas de conflito e de cooperação entre os diversos atores que nela surgem. Mas só uma perspectiva desse tipo introduz já diferenciações relevantes entre os autores que se ocuparam da análise do conflito, como veremos. Antes de abordar essa problemática, é oportuno analisar os componentes do conflito. Dissemos que seu objetivo é o controle sobre os recursos escassos. Prevalentemente esses recursos são identificados no poder, na riqueza e no prestígio. É claro que, de acordo com os tipos e os âmbitos do conflito, poderão ser identificados outros recursos novos ou mais específicos. Por exemplo, nos casos de conflitos internacionais, um importante recurso será o território; nos casos de conflitos políticos, o recurso mais ambicionado será o controle dos cargos em competição; no caso de conflitos industriais, como salienta Dahrendorf, objeto do conflito e, portanto, recurso em jogo serão as relações de autoridade e de comando. A essas anotações se acresce que, enquanto alguns recursos podem ser procurados como fins em si mesmos, outros recursos podem servir para melhorar as posições em vista de novos prováveis conflitos. Os conflitos – como se disse – podem acontecer entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Naturalmente existem também conflitos que contrapõem indivíduos a organizações (um conflito pela democracia interna no partido entre um discordante e os dirigentes), grupos a coletividades (um conflito entre uma minoria étnica e o Estado), entre organizações e coletividades (conflitos entre a burocracia e o Governo como representante da coletividade). Existem então diversos níveis nos quais podem ser situados os conflitos e seus diversos tipos, de modo que seria possível centrar somente a atenção sobre os conflitos de classe (esquecendo os conflitos étnicos) de um lado ou sobre os conflitos internacionais (esquecendo os conflitos políticos internos dos Estados, como os contrastes entre maioria e oposição ou as guerras civis), de outro lado.

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DICIONÁRIO DE POLÍTICA

Conflito I. Para uma definição do conceito e de seus componentes. Existe um acordo sobre o fato de o conflito ser uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choques para o acesso e a distribuição de recursos escassos. Essa proposição, porém, suscita imediatamente diferenciações e divergências atinentes à maior parte dos problemas ligados ao conceito de conflito e à sua utilização. Nesse estudo, antes de tudo, não se falará de conflitos entre indivíduos em sentido psicológico, mas se focalizará o conflito social e o conflito político (de que o conflito internacional pode ser considerado uma importante categoria (v. Guerra).

Obviamente o conflito é apenas uma das possíveis formas de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Uma outra possível forma de interação é a cooperação. Qualquer grupo social, qualquer sociedade histórica pode ser definida em qualquer momento de acordo com as formas de conflito e de cooperação entre os diversos atores que nela surgem. Mas só uma perspectiva desse tipo introduz já diferenciações relevantes entre os autores que se ocuparam da análise do conflito, como veremos.

Antes de abordar essa problemática, é oportuno analisar os componentes do conflito. Dissemos que seu objetivo é o controle sobre os recursos escassos. Prevalentemente esses recursos são identificados no poder, na riqueza e no prestígio. É claro que, de acordo com os tipos e os âmbitos do conflito, poderão ser identificados outros recursos novos ou mais específicos. Por exemplo, nos casos de conflitos internacionais, um importante recurso será o território; nos casos de conflitos políticos, o recurso mais ambicionado será o controle dos cargos em competição; no caso de conflitos industriais, como salienta Dahrendorf, objeto do conflito e, portanto, recurso em jogo serão as relações de autoridade e de comando. A essas anotações se acresce que, enquanto alguns recursos podem ser procurados como fins em si mesmos, outros recursos podem servir para melhorar as posições em vista de novos prováveis conflitos.

Os conflitos – como se disse – podem acontecer entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades. Naturalmente existem também conflitos que contrapõem indivíduos a organizações (um conflito pela democracia interna no partido entre um discordante e os dirigentes), grupos a coletividades (um conflito entre uma minoria étnica e o Estado), entre organizações e coletividades (conflitos entre a burocracia e o Governo como representante da coletividade). Existem então diversos níveis nos quais podem ser situados os conflitos e seus diversos tipos, de modo que seria possível centrar somente a atenção sobre os conflitos de classe (esquecendo os conflitos étnicos) de um lado ou sobre os conflitos internacionais (esquecendo os conflitos políticos internos dos Estados, como os contrastes entre maioria e oposição ou as guerras civis), de outro lado.

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Os vários tipos de conflitos podem ser distintos entre eles com base em algumas características objetivas: dimensões, intensidade, objetivos.

Quanto à dimensão, o indicador utilizado será constituído pelo número dos participantes, quer absoluto, quer relativo à representação dos participantes potenciais (por exemplo, uma greve da qual participam todos os trabalhadores das empresas envolvidas).

A intensidade poderá ser avaliada com base no grau de envolvimento dos participantes, na sua disponibilidade a resistir até o fim (perseguindo os chamados fins não negociáveis) ou a entrar em tratativas apenas negociáveis. A violência não é um componente da intensidade; ela, de fato, não mede o grau de envolvimento; mas assinala a inexistência, a inadequação, a ruptura de normas aceitas por ambas as partes e de regras do jogo (obviamente, no caso de conflitos internacionais o assunto é diferente, mesmo quando nos encontramos perante a violência "controlada", como na tentativa de codificar até as várias possibilidades de uma guerra atômica). A violência pode ser considerada um instrumento utilizável num conflito social ou político, mas não o único e nem necessariamente o mais eficaz.

Distinguir os conflitos com base nos objetivos não é fácil, se não se faz referência a uma verdadeira teoria que atualmente não existe. É possível compreender e analisar os objetivos dos conflitos somente na base de um conhecimento mais profundo da sociedade concreta em que os vários conflitos emergem e se manifestam. Portanto, a distinção habitual entre conflitos que têm objetivos de mudanças no sistema e os que propõem mudanças do sistema é substancialmente insuficiente. Nada impede, de fato, que uma série de mudanças no sistema provoque uma transformação do sistema; nem que tentativas de mudanças do sistema acabem por cooperar para reforçar e melhorar o sistema que se visava a destruir, a derrubar ou a transformar estruturalmente. Analisemos, portanto, as necessárias teorias do conflito e da mudança social.

II. Interpretações dos conflitos sociais e políticos. Sociólogos e politólogos se questionaram seriamente sobre o conflito social e, de acordo com suas teorias implícitas ou explícitas, forneceram interpretações diferentes.

O continuum parte daqueles que vêem qualquer grupo social, qualquer sociedade e qualquer organização como algo de harmônico e de equilibrado: harmonia e equilíbrio constituiriam o estado normal (Comte, Spencer, Pareto, Durkheim e, entre os contemporâneos, Talcott Parsons). Todo o conflito, então, é considerado uma perturbação; mas não é somente isso; já que o equilíbrio e uma relação harmônica entre os vários componentes da sociedade constituem o estado normal, as causas do conflito são meta-sociais, isto é, devem ser encontradas fora da própria sociedade, e o conflito é um mal que deve ser reprimido e eliminado. O conflito é uma patologia social.

Na posição oposta ao continuum estão Marx, Sorel, John Stuart Mill, Simmel e entre os contemporâneos Dahrendorf e Touraine, que consideram qualquer grupo ou sistema social como constantemente marcados por conflitos porque em nenhuma sociedade a harmonia ou o equilíbrio foram normais. Antes, são exatamente a desarmonia e o

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desequilíbrio que constituem a norma e isso é um bem para a sociedade. Por meio dos conflitos surgem as mudanças e se realizam os melhoramentos. Conflito é vitalidade. Naturalmente, uma clara dicotomia não pode fazer esquecer que alguns autores não podem ser simplesmente classificados entre uns ou outros, como Kant, Hegel ou Max Weber, que analisaram e identificaram quer as condições da ordem ou do movimento, quer os fatores que levam à harmonia como os que produzem os conflitos.

Na posição intermediária encontram-se também aqueles estudiosos – e são muitos – que aderem, numa forma ou noutra, à metodologia funcionalista. É indicativa a maneira como eles se interessaram pela problemática dos conflitos e como chegaram a considerá-los como o produto sistemático das estruturas sociais. Apesar disso, a metodologia desses autores os conduziu, na melhor das hipóteses, a considerar os conflitos como algo que traz mal-estar para o funcionamento de um sistema, isto é, em síntese, uma disfunção. Para os estudiosos funcionalistas mais atentos, como Robert Merton, o conflito é disfuncional em dois sentidos: é produto do não ou do mau funcionamento de um sistema social e produz por sua vez obstáculos e problemas, strains and stresses [tensão e estresse] no funcionamento do sistema.

Não é preciso acrescentar muita coisa a quanto foi escrito pelos estudiosos da harmonia e do equilíbrio social. Dahrendorf (1971:256-57) resumiu lucidamente as posições desses em quatro hipóteses:

1) toda sociedade é uma estrutura ("relativamente") estável e duradoura de elementos (hipótese da estabilidade);

2) toda sociedade é uma estrutura bem equilibrada de elementos (hipótese do equilíbrio);

3) todo elemento de uma sociedade tem uma função, isto é, contribui para o funcionamento dela (hipótese da funcionalidade);

4) toda sociedade se conserva graças ao consenso de todos os seus membros em determinados valores comuns (hipótese do consenso).

Os expoentes de uma visão conflitual da vida social se baseiam habitualmente em duas correntes de pensamento: de um lado, a corrente marxista, de outro, a corrente liberal descendente de John Stuart Mill. No centro da reflexão marxista está um tipo particular e notório de conflito: a luta de classes ("A história de toda sociedade que existiu até o presente é história de luta de classes", do Manifesto do partido

comunista, 1948). Mas, paradoxalmente, a concepção marxista é menos "conflitual" do que se pensa. Se, de fato, é verdade que a luta de classes é a principal força motriz da história e a luta (= conflito) entre burguesia e proletariado é a grande alavanca da mudança social, Marx concebe esse conflito como o conflito para acabar com todos os conflitos. Abolida a divisão entre as classes, o conflito, conseqüentemente, acabará.

Embora nem todos aqueles que se consideram "liberais" e descendentes de John Stuart Mill consigam manter-se fiéis a uma concepção conflitual da sociedade, não há dúvida que é entre os sociólogos e politólogos fautores de uma concepção semelhante (às vezes acompanhada por uma revisão das teorias marxistas) que se encontram as contribuições mais importantes para a análise dos conflitos sociais e

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políticos (e também internacionais) que não privilegiam acriticamente as bases econômicas dos conflitos e não levam ou não têm uma visão teleológica (os conflitos como força para realizar um sistema social definido antecipadamente).

É ainda Dahrendorf que formula as hipóteses com base na teoria alternativa antes mencionada, isto é, a teoria da coerção da integração social (19 17:257):

1) toda sociedade e cada um de seus elementos estão sujeitos, em qualquer período, a um processo de mudança (hipótese da historicidade);

2) toda sociedade é uma estrutura em si contraditória e explosiva de elementos (hipótese da explosividade); 3) todo elemento de uma sociedade contribui para a mudança da mesma (hipótese da disfuncionalidade ou produtividade); 4) toda sociedade se conserva mediante a coerção exercida por alguns de seus membros sobre outros membros (hipótese da constrição).

Em aberta polêmica com as interpretações funcionais e com Parsons e seus discípulos, Dahrendorf daí conclui que "uma teoria aceitável do conflito social pode ser criada somente se assumimos como plataforma a teoria da coerção da integração social" (1971:258). Em polêmicas igualmente explícitas com a maior parte das interpretações de origem marxista e com algumas formulações do próprio Marx, que deixam entender um conflito com raízes de natureza econômica, Dahrendorf afirma drasticamente que "confli to de classe indica qualquer conflito de grupo derivado da estrutura de autoridades de associações coordenadas por normas imperativas e relativo a elas" (1963 :413). Ele, portanto, coloca no centro do conflito de classes o problema das relações de autoridade, de subordinação e de superordenação. Dessa forma tenta oferecer uma explicação para a persistência do conflito de classes também nas sociedades pós-industriais (ou caracterizadas como tais), nas quais os conflitos sobre a distribuição dos recursos parecem (pareciam) se ter atenuado. Essa observação conduz à análise de causas e conseqüências do conflito social.

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III. Causas e conseqüências do conflito. Para efeito de clareza é oportuno fazer novamente referência a Dahrendorf a fim de definir as causas dos conflitos: "todas as sociedades produzem constantemente em si antagonismos que não nascem casualmente nem podem ser arbitrariamente eliminados" (1976:239). Embora dentro de um quadro teórico diferente, à mesma conclusão chega Touraine (1975) que sublinha a importância das tensões, dos desequilíbrios, dos contrastes entre os diversos níveis da realidade social. Ambos os autores acentuam a necessidade de analisar, para compreendê-los, os conflitos no âmbito de sociedades históricas.

O aspecto importante é que é rejeitada qualquer causa exógena, meta-social do conflito. O mesmo desenvolvimento técnico, às vezes considerado motor relevante do conflito social, é considerado causa marginal. Somente se explorado pelas forças em campo, pelos atores sociais e se inserido no contexto social, o desenvolvimento técnico pode ser causa de conflitos. Para compreender, porém, o conflito que daí decorre, será, contudo, indispensável focalizar a configuração da sociedade.

Num sentido bem definido, portanto, não existem causas específicas do conflito, nem do conflito de classes. De fato, todo conflito é ínsito na mesma configuração da sociedade, do sistema político, das relações internacionais. Ele resulta em elemento ineliminável que conduz à mudança social, política, internacional. Ineliminável a longo prazo, porque a curto e a médio prazos o conflito pode ser sufocado ou desviado. É nessa fase que intervêm os instrumentos políticos por meio dos quais os sistemas contemporâneos procuram abrandar o impacto dos conflitos sobre suas estruturas.

Partindo de uma determinada configuração social, em presença de determinados conflitos, condicionados em larga medida pelos próprios sistemas sociais, produz-se uma situação na qual os atores têm uma certa discricionariedade em seus comportamentos quer no modo de ampliar o número daqueles que estão envolvidos ou de reduzi-lo, quer no modo de aumentar a intensidade do conflito ou de moderá-lo, quer no modo de institucionalizar o conflito ou de mantê-lo fora e além das regras precisas e aceitas por todos.

Um conflito social e político pode ser suprimido, isto é, bloqueado em sua expressão pela força, coercitivamente, como é o caso de muitos sistemas autoritários e totalitários, exceto o caso em que se reapresente com redobrada intensidade num segundo tempo. A supressão dos conflitos é, contudo, relativamente rara. Assim como relativamente rara é a plena resolução dos conflitos, isto é, a eliminação das causas, das tensões, dos contrastes que originaram os conflitos (quase por definição um conflito social não pode ser "resolvido").

O processo ou a tentativa mais freqüente é o de proceder à regulamentação dos conflitos, isto é, à formulação de regras aceitas pelos participantes que estabelecem determinados limites aos conflitos. A tentativa consiste não em pôr fim aos conflitos, mas em regulamentar suas formas de modo que suas manifestações sejam menos destrutíveis para todos os atores envolvidos. Ao mesmo tempo a regulamentação dos conflitos deve garantir o respeito das conquistas alcançadas por alguns atores e a possibilidade para os outros atores de entrar novamente em conflito. O ponto crucial é que as regras devem ser aceitas por todos os participantes e, se mudadas, devem ser mudadas por recíproco acordo. Quando um conflito se desenvolve segundo regras aceitas, sancionadas e observadas, há sua institucionalização.

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A real ou presumida atenuação do conflito de classes deve-se, em parte, à recíproca aceitação dos atores em campo e, em parte, à consciência de que, não podendo proceder à eliminação da parte contrária, o procedimento melhor consiste na estipulação e na observância de regras explícitas e precisas. O mesmo discurso vale para o conflito político: uma vez esclarecido que os custos da destruição das minorias e das oposições por parte das maiorias e dos Governos são demasiado altos, as vantagens extraídas de regras explícitas para a gestão do poder, para a expressão das divergências, para a rotatividade e a troca nos cargos são o passo sucessivo que institucionaliza a democracia política [Dahl]. No decorrer do processo se apresenta também a possibilidade de expressar os conflitos políticos de maneira produtiva, canalizando-os dentro de estruturas apropriadas e sem deixá-los explodir improvisadamente e sem saídas previsíveis.

IV. O futuro do conflito. As sociedades organizadas procuram diluir o conflito, canalizá-lo dentro de formas previsíveis, submetê-lo a regras precisas e explícitas, contê-lo e, às vezes, orientar para o sentido preestabelecido o potencial de mudança. Talvez os dois fenômenos mais relevantes das sociedades, que somente por brevidade e comodidade podem ser definidos de pós-industriais, são, de um lado, o declínio da intensidade e, em geral, uma melhor regulamentação do conflito de classes (que, prescindindo das razões de Dahrendorf, se apresenta com conotações bem diferentes daquelas que foram focalizadas por Marx) e, de outro lado, o aparecimento de novos conflitos cujos veículos nas sociedades pós-industriais têm sido os movimentos coletivos e sociais (v. Movimentos Sociais).

A ligação entre conflitos e mudanças, quer na esfera social quer na esfera política e internacional, é clara e indiscutível. Naturalmente, daí não se segue absolutamente que todas as mudanças decorrentes dos conflitos tenham sinal positivo, indiquem melhoramentos e produzam maior adesão aos valores da liberdade, da justiça e da igualdade. Todavia, onde os conflitos são suprimidos ou desviados ou não chegam a se realizar, a sociedade estagna e enfraquece e sua decadência se torna inevitável. Sem precisar concordar plenamente com a conclusão de Dahrendorf, baseada no iluminismo, segundo a qual "no conflito se esconde o germe criativo de toda a sociedade e a possibilidade da liberdade, mas ao mesmo tempo a exigência de um domínio e controle racional das coisas humanas" (1971: 280), fica claro que as sociedades conflituais sabem acionar mecanismos de adaptação, da auto-regulagem e de mudança de que as sociedades consideradas consensuais (com consenso conformista ou coacto) são carentes, carência que é gravemente prejudicial para elas.

[Gianfranco Pasquino]

V. O conflito industrial. alguns resultados das pesquisas empíricas. Na casuística dos conflitos adquire uma importância particular, no quadro da moderna civilização industrial, o conflito industrial ao qual se dedicam os parágrafos finais do presente verbete.

A experiência mostra que o conflito, embora constitua uma das formas fundamentais das relações sociais, nem sempre está em ato, como também não necessariamente se desenvolverá abertamente naquelas situações que dentro de uma visão ingênua aparentam um potencial mais conflitual.

Uma das questões mais importantes que está no centro da reflexão teórica e da pesquisa empírica no âmbito das ciências sociais diz respeito à identificação das condições em presença das quais se passa de uma situação de conflito latente para

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uma de conflito manifesto (problema análogo à não solucionada questão marxista da passagem de classe em si para a classe por si).

Para que se tenha conflito aberto e manifesto, cuja forma principal é a greve (v. Greve), é necessário antes de tudo que no grupo de trabalhadores se tenha estabelecida alguma forma de organização. Quer se trate de um recurso organizativo estável (sindicato) quer da presença de uma l iderança natural ou carismática interna ao grupo, os estudos empíricos sobre casos de greve puseram claramente a necessidade de sua pré-existência, por ocasião da manifestação de conflitos abertos. A greve é, então, um conflito organizado.

Por outra parte, as formas de conflito organizado não esgotam todas as manifestações conflituais no trabalho. Elevada rotatividade, absenteísmo, sabotagem, indisciplina, todos esses comportamentos considerados freqüentemente como "desafeição ao trabalho" constituem formas, embora freqüentemente ambivalentes, de conflito individual ou não organizado (Hyman, 1972).

Baseando-se nas conclusões de várias pesquisas, parece poder sustentar-se que conflitos organizados e conflitos não organizados têm funções alternativas. Assim, Knowles (1952) afirma que, no caso dos mineiros por ele estudados, greves e absenteísmo aparecem "intercambiáveis". Turner (1967), no estudo sobre as empresas automobilísticas, observa que nos lugares onde os mais combativos líderes sindicais se demitiram, registrou-se uma diminuição de greves, mas um aumento de absenteísmo, de rotatividade e de acidentes. Pelo contrário, em outros casos se destacou que a uma redução das precedentes taxas normais de rotatividade, em razão da deterioração do mercado de trabalho, corresponde uma improvisada onda de conflito organizado (Hyman, 1970).

Uma diferença fundamental entre conflitos organizados e conflitos não organizados (individuais) consiste no fato de, no primeiro caso, a insatisfação poder ser traduzida em objetivos reivindicáveis e negociáveis e poder, portanto, ser composta, enquanto, no segundo caso, a situação conflitual não desemboca em negociações. Para que a mediação de negociação (v. Contrato Coletivo) possa ter lugar é necessário em geral que exista um agente reconhecido como representante do grupo de trabalhadores (v. Organizações Sindicais).

VI. A teoria da institucionalização do conflito industrial. Durante os anos 1950, perante o desenvolvimento da contratação coletiva em todos os países industrializados do Ocidente e perante uma tendência de diminuição da intensidade do conflito industrial organizado, foi elaborada por diversos estudiosos pertencentes a tradições de pensamento também não homogêneas (Karnhauser, Dubin, Ross, Kerr, Dunlop, Coser, Dahrendorf, etc.) uma teoria sobre a institucionalização do conflito nos países industriais.

Institucionalizar o conflito significa que, pela definição de normas e regras aceitas pelas partes que se contrapõem, normas que habitualmente se traduzem na prática de contratação coletiva, o potencial antagonístico não será voltado para a tentativa de destruir o outro, mas para o esforço de obter do outro o maior número possível de concessões.

Segundo alguns autores, o conflito, se institucionalizado, de fenômeno destruidor torna-se "parte integrante do modo de funcionar quotidiano da sociedade", a partir do

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momento em que ele desempenha as funções de "tornar explícitas as razões que dividem os grupos que se contrapõem", de "pôr em claro as reivindicações, expondo-as às pressões da opinião pública e ao controle social", de "apressar uma rápida solução das controvérsias", de "concorrer para estabilizar a estrutura social, fazendo emergir a identidade dos grupos detentores de poder nos pontos estratégicos da sociedade" (Kornhauser, Dubin, Ross, 1954, 16-7). O conflito, então, não é eliminado, mas canalizado e transformado em fator de estabilização.

Outros autores chegam, até, a prospectar um provável desaparecimento da necessidade de recorrer ao conflito baseando-se no andamento decrescente da conflitualidade industrial observada em alguns países (Ross e Hartman, 1960). De resto, parece bastante plausível imaginar que quanto mais os sindicatos são reconhecidos tanto menos lhes será necessário fazer uso do conflito como meio tático de pressão para conseguir benefícios das partes contrárias.

VII. Limites da teoria da institucionalização e desenvolvimento recentes. O ciclo imprevisto de lutas operárias que interessou muitos países industriais do Ocidente entre o fim dos anos 1960 e o início dos anos 1970 colocou em crise a tese de uma progressiva diminuição do conflito. Assim como não parece ter sido confirmada a hipótese de Dahrendorf (1959) sobre uma tendência ao isolamento do conflito industrial e a sua separação da esfera política, do momento em que o andamento das relações industriais nos últimos dois decênios indicam mais o contrário, isto é, o envolvimento dos poderes públicos na solução dos conflitos de trabalho e o envolvimento dos sindicatos nas opções negativas à política econômica dos Governos. O surgimento, enfim, de conflitos não completamente controlados pelos sindicatos indicou o fato de a regulação do conflito não acontecer uma vez por todos, isto é, não ter uma evolução unilinear.

Recentemente foi proposta uma teoria mais complexa sobre os efeitos quer da estabilização das relações industriais e, portanto, da contenção do conflito, quer da desestabilização e, portanto, de instigação para a reativação do conflito, que decorrem da ação sindical (Pizzorno, 1977). Se é verdade, como afirmaram os teóricos da institucionalização do conflito, que um sindicato quanto mais goza do apoio da base e do reconhecimento e da aceitação das partes contrárias tanto mais tenderá a moderar e a conter o conflito em troca de vantagens, também é verdade que, se mudarem aquelas condições, mudarão também as bases para o cálculo das conveniências. Em caso de perda do consenso de base ou de partes dessa ou de diminuição do reconhecimento das empresas ou dos Governos, poderá aparecer mais conveniente uma linha de intensificação do conflito e de intransigência reivindicativa em relação a uma linha de moderação. A tendência à desestabilização da ordem das relações industriais anteriores prevalecerá até que o refortalecimento das relações de representação de base, o maior reconhecimento por parte das empresas, um ulterior envolvimento no mercado político favoreçam uma nova estabilização do sistema. Mas isso não significa que o novo equilíbrio será mais firme do que o anterior.

[Ida Regalia]

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