Blimunda N.º 25 - junho 2014

download Blimunda N.º 25 - junho 2014

of 135

description

No mês em que completa dois anos de existência, a Blimunda chega aos seus leitores em duas plataformas. Além da já tradicional publicação em formato digital, esta edição de junho pode ser lida também em papel. Ao disponibilizar a revista também como objeto físico oferece-se aos leitores uma Blimunda diferente, que pode ser manuseada e guardada, ao mesmo tempo que se mantém o compromisso de publicar, de forma gratuita e mensal, uma revista cultural. Para assinalar este segundo aniversário da revista foi produzida uma edição especial que recupera textos publicados desde o seu início, acrescida de um artigo inédito. Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, Clarice Lispector e, claro, José Saramago, são alguns dos personagens que fizeram parte desses dois anos de vida da Blimunda, e esta edição extraordinária da revista tem por objetivo homenageá-los. A revista em papel está à venda na loja/livraria da Fundação José Saramago, em Lisboa, e, a partir do dia 27 de junho, nas principais livrarias do país. Pode também ser adquirida através do site http://loja.josesaramago.orgBoa leitura, e até julho, mês em que a Blimunda volta a ser publicada exclusivamente em formato digital e com algumas novidades gráficas. "José Saramago disse várias vezes que o que pedia à vida era tempo. E depois, se o privilégio do tempo lhe fosse concedido, gostaria de reunir-se com leitores de todo o mundo e com eles falar interminavelmente de livros. Faltou-lhe tempo, os 87 anos de vida não foram suficientes para celebrar todos os encontros, mas a fundação que leva o seu nome abre as suas portas todos os dias para que os leitores se reconheçam em títulos e autores diferentes. Esta Blimunda também pretende recordar, uma vez mais, a impressionante estatura daqueles a que chamamos mestres e o nível que alcançamos, os leitores, quando nos aproximamos dos livros. A cultura salva-nos da mediocridade e do desânimo, as revista culturais são pontos de apoio quando a confusão nos aturde."Do Editorial

Transcript of Blimunda N.º 25 - junho 2014

  • M E N S A L N . 2 5 JUNHO 2 0 1 4 F U N DA O J O S S A R A M A G O

    Michel giacomettijorge amadogabriel garciaMrquezCarlos Fuentes Cortzardaniel Mordzinskiricardo arajo PereiraValter Hugo MeClarice LispectorMuseu da inocncia

    Novas Memrias

    Do Crcererevolues

    avant la lettreblimunda, o destino

    de um nomejos

    Saramago, escritor mundial

    o das barbas deus, o outro

    o diabo

  • Vivo desasossegado,escrevo para desassossegar.

    Jos Saramago

  • 0443

    24

    78100

    133

    10

    5832

    90105

    065027

    85102

    13

    7338

    99119108

    BlimundaPilar del Ro

    DanielMordzinski

    Ricardo Viel

    Jorge Amado

    Jos Saramago

    ClariceLispectorAndreia Brites

    Espelho meu

    Andreia Brites

    Agendajunho

    Estante

    ValterHugo Me

    Ricardo Viel

    Carlos Fuentes

    Federico Reyes Heroles

    Revolues Avant

    La LettreAndreia Brites

    Jorge Silva

    Blimunda, o destino

    de um nomeJos Saramago

    Leituras do Ms

    Sara Figueiredo Costa

    RicardoArajo Pereira

    Sara Figueiredo Costa

    Gabriel Garca

    MrquezToms EloyMartnez

    NovasMemriasdo Crcere

    Andreia Brites

    Notas de rodap

    Andreia Brites

    MichelGiacomettiSara Figueiredo

    Costa

    Museu daInocnciaSara Figueiredo

    Costa

    Jlio CortzarRicardo Viel

    DicionrioJorge SilvaYara Kono

    O das barbas Deus, o outro

    o DiaboHarold Bloom

    Jos Saramago, escritor Mundial

    Ricardo Viel

  • Tem nas mos, querido leiTor, um exemplar da revisTa Blimunda que acumula nas suas pginas dois anos de vida. esta publicao,

    em formato digital e de periodicidade mensal, nasceu da mesma urgncia que

    h algum tempo tivera estado na origem da Fundao Jos saramago e, tal

    como esta, cresceu com a sua prpria fora. em dois anos de existncia, ms

    a ms, celebrou-se a melhor literatura e expuseram-se as experincias mais

    curiosas e necessrias. agora, algumas delas apresentam-se de novo neste

    nmero extraordinrio da Blimunda, talvez para se poderem acariciar as palavras

    que falam de livros vivos e de autores que no podem morrer, ainda que j

    no estejam connosco. ou sim, esto: Jos saramago, Carlos Fuentes, Jorge

    amado, Gabriel Garca mrquez,

    Clarice lispector ou Julio Cortzar

    comparecem sempre aos diversos

    encontros que ns, os leitores, com

    eles combinamos, seja qual for a

    hora, o lugar ou a circunstncia.

    Com os seus livros, os escritores do

    nosso imaginrio sentimental mais

    exigentes visitam-nos, atentos,

    contendo as doses de inteligncia e sensibilidade de que necessitamos para

    reconhecer-nos humanos num mundo que precisa do uso da razo e da beleza

    tanto como do po e da paz.

    as revistas literrias so necessrias. Contra o dirigismo do mundo

    globalizado necessitam-se os esforos plurais que recordam a existncia

    da biblioteca universal. margem de modas ou de interesses de mercado,

    as revistas mergulham nas diferentes realidades para reconhecer o impulso

    criativo numa aldeia escassamente habitada, ou desfrutar do livro infantil que

    estimula olhares de quem um dia ler o dom quixote. ao longo de dois anos

    esta revista vem questionando, porque h homens e mulheres que escrevem

    com a constncia de um deus que fabrica o mundo apesar das crises de leitura

    anunciadas pelos que prefeririam que no houvesse leitores. Tambm perguntou

    aos leitores pelas razes das suas predilees , conscientes de que as respostas

    apenas serviro para manter o mundo de palavras que nos amparam como

    criaturas da mais alta estirpe. em memorial do Convento, Blimunda v o que h

    por detrs da pele que oculta o interior do corpo, apesar de ser transparente.

    Como a personagem de saramago, a revista procura no o Baltasar sete-sis

    mas sim os homens e as mulheres que pretendem salvar-se das inquisies

    deste tempo. para qu? para logo celebrarem o terem vencido o obscurantismo,

    a inrcia ou essa preguia intelectual que atordoa e escraviza.

    Jos saramago disse vrias vezes que o que pedia vida era tempo. e depois,

    se o privilgio do tempo lhe fosse concedido, gostaria de reunir-se com leitores

    de todo o mundo e com eles falar interminavelmente de livros. Faltou-lhe tempo,

    os 87 anos de vida no foram suficientes para celebrar todos os encontros,

    mas a Fundao que leva o seu nome abre as suas portas todos os dias para

    que os leitores se reconheam em ttulos e autores diferentes. esta Blimunda

    tambm pretende recordar, uma vez mais, a impressionante estatura daqueles

    a que chamamos mestres e o nvel que alcanamos, os leitores, quando nos

    aproximamos dos livros. a cultura salva-nos da mediocridade e do desnimo, as

    revistas culturais so pontos de apoio quando a confuso nos aturde.

    a Blimunda chega aos dois anos. vemo-la crescer enquanto observamos

    que os quatro anos sem Jos saramago, que se completam neste ms de junho

    de 2014, no so tempo de total ausncia porque dos seus livros continuam

    a nascer leitores. tambm uma revista, esta Blimunda que, humildemente,

    se junta ao universo dos que reconhecem o valor da criao dos outros e

    agradecem a experincia do conhecimento transmitido como um dom impagvel.

    por isso, aos criadores que tornaram possvel que a Blimunda tambm seja

    uma revista de cultura, o nosso agradecimento. e aos leitores, a lealdade e o

    reconhecimento devidos. as palavras levam consigo a sabedoria do vivido,

    disse um dia Jos saramago. nelas nos encontramos todos, sem pginas em

    branco, em papel ou em formato digital. para no esquecermos quem somos.

    publicado na Blimunda, edio especial em papel, junho de 2014

    BlimundaPILAR DEL RO

  • FUNDAO JOS SAR

    AMAGO

    THE JOS SARAMAGO

    FOUNDATION

    CASA DOS BICOS

    ONDE ESTAMOS WHERE TO FIND USRua dos Bacalhoeiros, LisboaTel: ( 351) 218 802 [email protected]

    COMO CHEGAR

    GETTING HERE

    Metro Subway Terre

    iro do Pao

    (Linha azul Blue Lin

    e)

    Autocarros Buses 25

    E, 206, 210,

    711, 728, 735, 746, 75

    9, 774,

    781, 782, 783, 794

    5

    Segunda a SbadoMonday to Saturday10 s 18 horas10 am to 6 pm

    MADAL

    ENA MA

    TOSO

    Blimunda 25

    junho 2014

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIO E REDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    FOTOGRAFIA

    Daniel Mordzinski

    Joo Barrigana (capa)

    Joo Caetano

    Lusa Ferreira

    Miguel Gonalves Mendes

    Sara Figueiredo Costa

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados so da responsabilidade

    dos respetivos autores. Os contedos desta

    publicao podem ser reproduzidos ao

    abrigo da Licena Creative Commons

    A oliveira centenria fotografada para

    a capa da Blimunda foi transportada

    de Azinhaga do Ribatejo para junto

    da Casa dos Bicos, em Lisboa. As suas razes

    acolhem as cinzas de Jos Saramago e esto

    acompanhadas pela frase final de

    Memorial do Convento, mas no subiu

    para as estrelas se terra pertencia.

  • 6colocando-o perante o dilema de todas as entrevistas se referirem a este livro, mesmo quando outros acabam de ser publicados. Reconhecendo-se a injustia, compreende-se o fennemo, j que entre a extensa produo sobre os campos de concentrao no haver muitas obras que rivalizem com Maus no modo como trata, a memria e no desassombro com que expem a tragdia.Uma nota final para a traduo desta edio, que acertadamente opta por respeitar o idioleto de Vladek, ao contrrio do que acontecia com a edio portuguesa anterior. Imigrante polaco nos Estados Unidos da Amrica, Vladek fala, na verso original, um ingls cheio de erros de sintaxe e concordncia que a traduo de Joana Neves decidiu manter, vertendo-os para portugus com as equivalncias possveis e sempre mantendo a coerncia no erro que caracteriza estas falas. Talvez uma nota no incio do livro pudesse esclarecer os leitores, evitando surpresas de quem desconhea este facto sobre a edio original, ainda que seja bastante bvio que os erros so apenas de Vladek e unicamente quando fala ingls, ou seja, depois de chegar aos EUA.

    s suas pranchas um efeito visual e narrativo poderoso, assumindo a ofensa como resposta corajosa. No entanto, talvez a caracterstica mais forte desta narrativa seja a da honestidade sem complacncias, uma atitude que questiona tudo constantemente, da veracidade das memrias de Vladek s suas falhas de carcter, que parecem ter esquecido a dura realidade dos campos (a cena com um negro, nas pranchas 258-9, ilustrativa).Maus acabou por transformar-se numa espcie de monstro na carreira de Art Spiegelman, obscurecendo a restante obra do autor, pelo menos junto do grande pblico, e

    MAUSA MEMRIA FEITA OBRA-PRIMACom algumas seces publicadas em revistas ao longo da dcada de 80 do sculo passado, a obra que faria de Art Spiegelman um autor de referncia muito para alm dos crculos da banda desenhada publica-se em dois volumes, o primeiro deles em 1986, e a sua receo ser responsvel pela atribuio de um Prmio Pulitzer ao autor em 1991. Maus conta a histria de Vladek Spiegelman, pai do autor, desde a Polnia da sua infncia aos alvores do antissemitismo nazi que haveria de culminar na infmia dos campos de concentrao. E Vladek atravessou todo esse perodo, conseguindo sobreviver-lhe e chegando, depois, aos Estados Unidos da Amrica onde Art haveria de nascer.Mais do que uma narrativa histrica sobre um acontecimento coletivo, Maus um exerccio sobre a memria. Por um lado, temos a memria como patrimnio e herana, referindo o que aconteceu nos campos de concentrao nazis e afirmando essa histria como algo essencial para sabermos quem

    somos, independentemente de no termos tido essa experincia, e por onde passmos no nosso percurso enquanto comunidade. Por outro lado, Maus reflete sobre a memria individual, as armadilhas que enfrenta (e em que cai) e o modo como a sua construo cria outras memrias noutras pessoas, as que nem sequer estiveram perto dos acontecimentos e mesmo assim conseguem integr-los na sua prpria histria e identidade. A estrutura de Maus a de um dilogo entre pai e filho, a partir do qual se recua ao passado, mas onde o presente nunca esquecido. Retomando a longa tradio de recorrer a animais, antropomorfizando-os, para contar uma histria vivida com humanos, Spiegelman faz mais do que honrar uma linhagem de criadores de banda desenhada como George Herrimann, entre outros, justificando a sua opo na estrutura do prprio livro: uma frase de Hitler, citada em epgrafe, onde se l os judeus constituem sem dvida uma raa, mas no so humanos. Respondendo a esta ignomnia, Spiegelman desenha os judeus como ratos e os alemes como gatos, para alm de outros animais que utiliza para outros povos, o que confere

    Leituras do Ms /Sara Figueiredo CoSta

  • 7cada un dos arquivos que mostran en imaxes e documentos inditos boa parte da historia musical recente do Brasil.Entre os milhares de documentos j disponveis esto os dessa seleo nica, que talvez no tivesse condies para enfrentar em p de igualdade nenhuma das candidatas Copa do Mundo de 2014, mas que seguramente permanecer como um marco dessa relao intensa entre a msica brasileira e o futebol.

    "l

    vdeos disponveis no Instituto Antnio Carlos Jobim, um fundo documental precioso sobre as ltimas dcadas da msica brasileira. Catalogar, conservar e disponibilizar os acervos dixitais de artistas de Brasil o grande obxectivo do Intituto Jobim que abre o espazo dixital para milleiros de documentos de Dorival Caymmi, Chico Buarque, Gilberto Gil ou Lcio Costa aos que se estn a incorporar o de Milton Nascimento e Paulo Moura. Un equipo composto por especialistas en msica, investigacin, historia e deseo contriben catalogacin de

    Feria del Libro A crtica na era da internetA 73 Feria del Libro de Madrid teve, como de costume, uma programao paralela intensa, entre apresentaes de livros, conferncias e debates. Um desses debates debruou-se sobre a questo da crtica, colocando em confronto diferentes abordagens e refl etindo sobre o que tem mudado num setor habitualmente fechado com a vulgarizao dos blogs e das redes sociais, onde qualquer pessoa, independentemente do seu grau de domnio das ferramentas de leitura e anlise literria, escreve sobre os livros que vo sendo publicados. No blog Papeles Perdidos, do suplemento Bablia, do El Pas, ngel Luis Sucasas resumiu o debate que juntou crticos dos meios tradicionais, autores de blogs, livreiros e jornalistas: Tras una hora y muchas palabras de debate sufi cientes para leerse sin prisas el Aleph de Borges en el que qued claro que el mestizaje entre estos actores est a la orden del da, lo inefable de la pregunta, De quin se fa el lector?, sigui siendo una piedra fi losofal. S, hay

    crticos de referencia en los medios tradicionales y en la red. S, un tuit de un Reverte o un Gaiman pueden ser ventas directas. S, los clubes de lectores online son un bien a preservar y cultivar. Pero la eleccin, esos 20 euros en la cartera que van para un solo libro siguen siendo un misterio. Tal vez porque, como explic Larumbe, la mitad o ms de las ventas parten de una decisin del lector. De alguien formado y con su propio criterio que quiere encontrarse con un libro.

    "l

    Maracanuma seleo brasileira de luxoCom o Campeonato Mundial de Futebol a decorrer, o jornal Sermos Galiza recupera a histria do mtico jogo que juntou no relvado do estdio Maracan msicos como Chico Buarque, Djavan, Jorge Ben ou Paulinho da Viola. O jogo, que aconteceu h 30 anos, apenas um pretexto para divulgar uma srie de acervos digitais constitudos por fotografi as, gravaes sonoras e

    Chico Buarque no Maracan

    Leituras do Ms

  • 8de calar-se uns dias mais tarde, propagando-se o silncio por vrios anos, de tal modo que s este ano, 25 anos depois do massacre, Macau teve direito a assinalar Tiananmen na praa principal da cidade, o Largo do Senado - em anos anteriores, uma qualquer atividade cultural ou recreativa era sempre misteriosamente marcada para o dia 4 de Junho nesse mesmo espao, normalmente por uma das associaes pr-Pequim do territrio, impedindo a realizao de uma manifestao ou viglia. Coincidncias, claro, j que em Macau a censura no opera nos moldes que se conhecem no territrio da Repblica Popular da China. Ainda assim, demasiadas vozes se calaram desde 1989.

    "l

    25 anosTiananmen vista a partir de MacauNo aniversrio do massacre de Tiananmen, o jornal Ponto Final, de Macau, publicou uma srie de artigos sobre o dia 4 de Junho de 1989, em Pequim, e sobre o modo como essa herana, cuja memria o governo chins tem procurado fazer desaparecer por todos os meios, se manifesta atualmente. Um dos artigos, assinado por Snia Nunes, viaja at aos arquivos da imprensa de Macau, que na altura pertencia administrao portuguesa, para relatar o impacto de Tiananmen naquele territrio do sul da China. A brutal represso do movimento pr-democracia em Pequim, a 4 de Junho de 1989, trouxe o luto a Macau e um novo protesto em massa. Os manifestantes fi zeram um minuto de silncio pelas vtimas do massacre, entregaram uma carta de condenao pelas atrocidades do Governo de Pequim, chamaram assassinos e fascistas a Li Peng e Deng Xiaoping, e repetiram que a democracia e a liberdade so eternas. A condenao haveria

    Mama djumbaum cometa chamado frica NegraNo site Buala, Filho nico conta a histria fulgurante da banda so tomense frica Negra, que nas dcadas de 70 e 80 do sculo passado ganhou fama internacional, afi rmando-se como uma das grandes lendas da msica africana. Entre outros episdios relevantes da biografi a da banda, o texto conta como o cntico frica Mama Djumba se tornou uma espcie de hino dos frica Negra e da sua atitude perante a msica e os outros: O grupo tocava regularmente por todo o pas natal, fazia visitas regulares a Portugal, visitou Angola nove vezes (em tours pelas provncias de Luanda, Benguela e Cabinda) e foram um sucesso retumbante em Cabo Verde. O icnico epteto de Mama Djumba pelo qual o seu estilo musical conhecido entre os fs, teve origem num concerto em 1981 em Portugal, onde se celebrava o 8 aniversrio da independncia da Guin-Bissau. Os frica Negra dividiam a noite com os igualmente fabulosos Super Mama Djombo da Guin-Bissau, com as

    duas bandas alternando sets tendo atingido 4 horas de espetculo. Perto do fi nal do sero, perguntaram ao pblico presente qual a banda que queriam que trouxessem de volta ao palco para fechar a noite. O pblico maioritariamente guineense preteriu os Super Mama Djombo e comeou a cantar frica Negra. Os fi lhos preferidos de So Tom regressaram orgulhosamente ao palco, e para suavizar a tenso com os seus colegas desolados, a banda arrancou o encore com um tributo aos Super Mama Djombo, entoando a espaos a expresso impromptu frica Mama Djumba. Passado alguns minutos o pblico comeou a repetir esse simples canto. Quando o grupo regressou a So Tom, as notcias do seu triunfo em Portugal j os tinha precedido, e no seu prximo concerto subiram ao palco ao som do mesmo cntico de frica Mama Djumba.

    "l

    Leituras do Ms

  • ESTANTE

    10

    VVAAGranta 3Tinta da China

    O terceiro nmero da Granta portuguesa tem a casa como tema, reunindo contos de Mrio de Carvalho, Hlia Correia, Teresa Veiga, Alexandra Lucas Coelho ou Valrio Romo, poemas de Ruy Belo e Antnio Osrio, uma fotonovela assinada por Tiago Rodrigues e uma srie de ilustraes originais de Alex Gozblau, entre outras colaboraes.

    Eugnio de Andrade, Cristina ValadasAquela Nuvem e OutrasAssrio e Alvim

    Depois de Histria da gua Branca em 2013, a Assrio e Alvim recupera outra obra de receo infantil de Eugnio de Andrade. Aquela Nuvem e Outras rene mais de vinte poemas de toada popular, onrica e ldica, onde os animais so os protagonistas, muitas vezes interpelados por um narrador em dilogos que roam o absurdo. A composio plstica de Cristina Valadas, que oferece fi guras plenas de movimento e texturas, assenta como uma luva a estes poemas, como j havia acontecido com a narrativa, no livro anterior, deste poeta maior da poesia portuguesa.

    Pedro Piedade MarquesA Tcnica do Golpe Lite-rrio. A sesso do teste Montag

    Excerto que antecipa um volume maior, dedicado a Fernando Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, este livrinho resume um episdio que marcou o pequeno mundo literrio lisboeta dos anos 60 do sculo passado. Numa sesso de poesia, Ribeiro de Mello decidiu medir os aplausos com que o pblico recebia a leitura (cujos autores no foram revelados) dos poemas escolhidos. O resultado foi a srie de bengaladas verbais que haveria de marcar a carreira do editor, to dado a polmicas como a livros de gosto irrepreensvel.

    Flamarion MausLivros Contra a Ditadura. Editoras de oposio no Brasil, 1974-1984Publisher Brasil

    Estudo completo e muito bem documentado sobre a atividade editorial de oposio no Brasil durante o perodo de alguma abertura poltica que antecedeu o fi m da ditadura. Flamarion Maus, que escreveu igualmente sobre as editoras portuguesas na oposio ao fascismo, assina um trabalho essencial para compreender o papel da edio de livros no contexto cultural e poltico da oposio, dando destaque a trs dessas editoras: Livraria e Editora Cincias Humanas, Kairs e Editora Brasil Debates.

  • 11

    Lusa Costa GomesCludio e ConstantinoD. QuixoteCludio e Constantino assinala o regresso de Lusa Costa Gomes ao romance depois de Iluso (ou o que quiserem), publicado em 2009. O percurso de dois irmos pelos momentos quotidianos ou excecionais das suas vidas o cenrio onde ganham espao as refl exes fi losfi cas que so o pano de fundo desta narrativa. A par com a fi losofi a, o humor e a ironia, mecanismos to produtivos para olhar o mundo como as mais profundas refl exes fi losfi cas.

    Catarina Sobral / Afonso CruzVazio / CapitalPato LgicoA Pato Lgico d continuidade coleo Imagens que Contam com duas novas narrativas sem texto, assinadas por Catarina Sobral e Afonso Cruz. Muito diferentes na temtica e na esttica, em comum tm apenas o facto de ambas acompanharem um protagonista. Se Vazio lhe traa o percurso emocional atravs do quotidiano, Capital cria a biografi a de um rapaz desde a pequenez da infncia at idade adulta, numa fbula moral. Em ambos os casos, o leitor reconhecer algo. E no ser necessariamente apaziguador.

    Jos Eduardo AgualusaA Rainha GingaQuetzalO mais recente romance de Jos Eduardo Agualusa recupera uma das personagens mticas e centrais da histria e da identidade angolanas. Personagem histrica de entre os sculos XVI e XVII, a Rainha Ginga considerada por muitos como uma espcie de fundadora de Angola, feroz opositora ao domnio portugus e mulher forte e determinada num mundo dominado por homens. Agualusa parte desse lastro histrico para construir uma fi co sobre identidade e memria.

    Shaun TanLas Reglas del VeranoBarbara FioreEmbora a edio anglo-saxnica no seja deste ano, o novo lbum de Shaun Tan chegou ao mercado hispnico em maro pela editora espanhola Barbara Fiore. Basta folhear algumas pginas para perceber que o autor no se desviou do seu universo fantstico, alimentando-o, desta vez, com algumas regras que se devem cumprir para apreciar fi guras mecnicas, evitar coelhos gigantes ou caminhos espetrais. Las Reglas del Verano abre as portas ao imaginrio infantil, quando as frias transformam o espao da cidade num mundo de espanto surrealista.

    ESTANTE

  • portugal 1

    portugal 2

    portugal 3

    portugal 1

    portugal 2

    portugal 3

    Receba quatro nmerosda GRANTA em sua casacom um desconto de 25%.

    Faa a sua assinatura em www.granta.tintadachina.pt.

    portugal 54

    europa 74

    resto do mundo 86

  • 13

    P E S S O A SGiacomettiSARAFIGUEIREDOCOSTA Fotografias da COLEO DO MUSEU DA MSICA PORTUGUESA CASA VERDADES DE FARIA, DA CMARA MUnICIPAL DE CASCAIS

  • 14

    P E S S O A S

  • 15

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    Enquanto a europa fervilhava com o despontar dos movimentos sociais e polticos que have-riam de alterar a paisagem do mundo, entre os primeiros indcios de mudana social e os processos que conduziriam ao Maio de 68 ou Revoluo dos Cravos, um homem pal-milhava o pas mais ocidental do continente com um gravador s costas. Isolado dos ares da mudana, o pas vivia fechado sobre si prprio graas mo de ferro de um ditador que haveria de cair da cadeira, literal e figu-radamente falando, e a um sistema onde os idelogos do regime, com a ajuda sempre dedicada da polcia poltica que os protegia, asseguravam que no havia espao nem oportunidade para mu-danas. ramos pobres, mas isso dar-nos-ia honra, tnhamos a misria porta de casa, e isso era apenas uma oportunidade para praticarmos a caridade, ouvamos dizer que o progresso podia ser uma coisa boa, mas logo nos convenciam de que o progresso era uma ideia perigosa. Nesse Portugal miservel e bafiento, um ho-mem vindo da Crsega soube encontrar o melhor de ns sem nun-ca elogiar o que nos mantinha parados no tempo. E soube perceber que o melhor tinha de ser registado, no para que se preservassem velhas tradies custa de uma qualquer ideia de glorificao do

    passado, mas antes para garantir que no se perdia um patrim-nio essencial para compreender a Histria, perceber as razes e caminhar para o futuro sabendo de onde se vem.

    Michel Giacometti chegou a Portugal em 1959. Nascido na Crsega, j tinha passado por Frana, pelo Norte de frica e pela Noruega, onde o seu interesse pela cultura popular o levou a observar, a estudar e a aprender sobre tradies locais e expresses culturais cuja origem se perdia no tempo. Conhecedor da cultura portuguesa atravs de leituras feitas durante os seus estudos de Letras e Etnografia na Universidade da Sorbonne, o casamento com uma portuguesa acabou por conceder--lhe o melhor pretexto para se instalar em Portugal e investigar o objeto do seu interesse in loco.

    Ao longo de trs dcadas, entre 1960 e 1990, Giacometti percorre o pas recolhendo gravaes udio de msicas e cantares que foram passando de gerao em gerao e que parecem estar a chegar ao fim desse continuum de transmisso. Esse , alis, um dos elementos que se destaca no trabalho do autor, e do qual ter tido conscincia medida que foi realizando o seu trabalho. Ouvindo os registos so-noros que nos deixou ou vendo os episdios da srie Povo Que Canta percebe-se que as condies de vida das pessoas que gravou, quase sempre miserveis, no se mantero cristalizadas durante muito mais tempo, tornando-se urgente regist-las antes que desapaream.

    UM CORSO nA DEMAnDADA TRADIO PORTUGUESA

  • 16

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    Se o Portugal rural dos anos 60 parecia pouco diferente do pas que existia desde os tempos medievais, a chegada iminente do progresso, sob a forma de vias de comunicao, transportes, saneamento bsi-co, e da to esperada Democracia (que ainda tardaria uns anos, mas finalmente chegaria em 1974) anunciava mudanas muito desejveis ao nvel das condies de vida e dos direitos humanos, mas irrevers-veis no que manuteno de algum patrimnio cultural diz respeito.

    nesse contexto que Giacometti se dedica ao registo sonoro de um patrimnio imenso e praticamente desconhecido, percorrendo vilas e aldeias e gravando a msica que inte-grava as festividades, o trabalho, o lazer, os momentos de transio social. Sem apoios financeiros, cria um projeto a que chama Ar-quivos Sonoros Portugueses e que, graas

    cumplicidade e ao apoio de alguns entusiastas com quem vai esta-belecendo contacto, chegar a ter edio parcial em alguns discos, nomeadamente na coleo de vinis que ficou conhecida pelas ca-pas de serap lheira, a Antologia da Msica Regional Portuguesa, rea-lizada com Fernando Lopes-Graa. Durante os trinta anos em que percorreu o pas para gravar a sua expresso musical, Giacometti experimentou tambm o modo de vida das pessoas que lhe servi-ram de matria-prima. As descries que podem ler-se, ou ouvir--se a quem conheceu Giacometti pessoalmente, sobre esse enorme empreendimento ajudam a justificar parte do fascnio exercido

    Pgina 13: Michel Giacometti recolhendo um canto de lavra, Arrebenta,

    Sobreiro, Mafra, 1971. Fotografia de Leonor Lains

    Alexandre Vasconcelos e Michel Giacometti entrevistando o regedor,

    Rio de Onor, Bragana, 1963. Fotografia de Artur Moura

  • 17

    P E S S O A S

    pela figura do corso de gravador ao ombro. Sem reservas, Giaco-metti chegava s vilas e aldeias pelos meios possveis, fossem eles o carro, o transporte pblico ou a carroa, e muitas vezes chegava a p, vindo de um qualquer carreiro. Dormia onde lhe ofereciam guarida, e isso queria dizer que umas vezes tinha sorte e podia ficar numa cama, mas muitas outras tinha de passar a noite em palheiros, casas de guardar o gado ou abrigos improvisados. Se o dinheiro para a empreitada era pouco ou nenhum, isso refletia-se na comida disponvel ao longo dos dias de trabalho, o que nun-ca o impediu de partilhar um pedao de po ou um punhado de azeitonas com os camponeses que o recebiam e lhe cantavam as suas canes. Outras vezes, eram os camponeses que partilhavam o po com Giacometti, assegurando-lhe o sustento para continuar o seu trabalho.

    Os testemunhos desta realidade repetem--se onde quer que os procuremos e de-pois de lidos inevitvel que a imagem que se forma deste homem, que dedi-cou parte considervel da vida msi-ca cantada pelo povo, seja uma imagem quase mtica, algures entre o peregrino, o profeta e o heri. Cruzando os textos sobre Giacometti com os testemunhos dados por quem o conheceu bem, no de crer que o prprio apreciasse este gnero de ima-gem, elegaca e herica, mas difcil fugir sua fora, sobretudo

    quando se percebe a dimenso e o alcance do trabalho que deixou feito e do que infelizmente deixou por fazer.

    Longe da viso padronizada do Secretariado Nacional de Infor-mao, Cultura Popular e Turismo (SNI), com os seus ranchos fol-clricos cuidadosamente farpelados e os repertrios tantas vezes definidos e adaptados pelo regime, Giacometti estava interessado na expresso genuna e ancestral da cultura popular e era a partir da que planeava construir um arquivo. Mas o projeto de construir um arquivo sonoro do territrio portugus no existia isoladamen-te. Para Giacometti, essa necessidade de registar insere-se numa viso mais ampla daquilo que o patrimnio cultural de um povo e cedo se torna claro que, para alm das gravaes em udio, onde fica guardada a msica mas igualmente os sons do trabalho no cam-po (os chamamentos usados pelos pastores para manter o gado na linha ou o barulho das alfaias agrcolas que marcam o ritmo agrrio tanto como o musical), essencial criar um modo coerente de regis-tar igualmente as lendas, as mezinhas populares para curar esta ou aquela maleita, as supersties e outros elementos daquilo a que cha-mamos cultura popular, para alm dos registos fotogrficos, a que Giacometti tambm se dedicar, como comprovam as imagens deste dossier (gentilmente cedidas pelo Museu da Msica Portuguesa/C-mara Municipal de Cascais). Se a esses vrios testemunhos pudes-sem juntar-se registos flmicos, o projecto amplo e multidisciplinar a que Giacometti dedicou a sua vida ganharia outra dimenso. assim que, em 1970, o musiclogo v aprovada pela Rdio Televiso Portu-guesa a produo de uma srie intitulada Povo Que Canta, que pas-

  • 18

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    sar na televiso ao longo dos quatro anos seguintes, mostrando ao pas uma das vertentes fundamentais da sua cultura e revelando um patrimnio conhecido por pouco mais pessoas do que aquelas que o faziam viver nas suas tarefas quotidianas. Com realizao de Alfre-do Tropa, responsvel pela definio dos cenrios e enquadramentos em que se registaria a msica cantada ou tocada pelas pessoas que a conheciam, Povo Que Canta teve um total de 37 episdios, hoje guar-dados nos Arquivos da RTP e recentemente disponibilizados numa coleo de DVDs realizada pela Tradisom em parceria com a RTP e o jornal Pblico, que assegurou a distribuio dos DVDs nas bancas. Vendo esses episdios hoje fica a dvida de como tero passado pela Censura, ainda por cima sendo claro que a viso do mundo de Giaco-metti se situaria no espetro oposto ao do fascismo, tendo o etnlogo chegado a estar bastante prximo do Partido Comunista Portugus.

    Muito mais do que um registo de msicas e canes com ligaes profundas a cada uma das ter-ras, Povo Que Canta mostrava um Portugal que em nada se harmo-nizava com a viso que o regime queria transmitir sobre o pas e mostrava, alm disso, que era possvel olhar para o patrimnio tradicional sem a artificialidade de grande parte das abordagens do SNI, encontrando a genuini-dade entre as pessoas que trabalhavam, que lutavam diariamente

    Cantadeiras, Ermida, Ribeira, Ponte de Lima, 1962,

    Fotografia de Michel Giacometti

  • 19

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    contra a fome e a misria, e que no pareciam minimamente inte-ressadas em cantar loas ao Governo e ordem instituda. Talvez, como tantas vezes aconteceu, os censores no tenham tido a inteli-gncia e a sensibilidade necessrias para perceberem semelhante dimenso, ou talvez a equipa que realizou e produziu a srie tenha conseguido manter a sua essncia afastada de um olhar mais es-crutinador. De um modo ou de outro, ficmos todos a ganhar.

    Numa entrevista dada ao jornalista Adelino Gomes, do jornal P-blico, em agosto de 1990, Michel Giacometti fala sobre o seu trabalho sem adivinhar que morrer nesse mesmo ano. Ainda assim, nota-se um certo tom de balano, mas mais relevante a constatao de que uma vida dedicada a um projeto com as caractersticas e a importn-cia daquele que fixou Giacometti no nosso pas no permitiu ao etn-logo alcanar um mnimo de conforto material:

    P Quando comeou a viver deste trabalho? R Nunca vivi. Nem agora. Vivia das margens deste trabalho. Ima-

    gine-se uma edio de 300 exemplares como foi a da Antologia da Msi-ca Regional Portuguesa. Nem para uma semana de trabalho no terreno dava.

    P O que foi para si a margem? R Programas para a WDR da RFA, para estaes da Sucia e da

    Blgica, um ou outro para Frana e artigos em jornais estrangeiros (muitas vezes no assinados). Ganhei algum dinheiro com a edio das obras de Fernando Lopes-Graa, vendidas nas associaes de es-tudantes, mas o dinheiro nem sempre me chegava s mos. De todas as edies que fiz, mandava 50 exemplares para um comit antifascista

    em Itlia. Comecei a viver melhor quando vendi ficando apenas com o usufruto os arquivos sonoros Secretaria de Estado da Cultura; de-pois, a coleo de instrumentos musicais e mais recentemente a minha biblioteca (muito me custou, mas enfim, tenho o usufruto) Cmara Municipal de Cascais. Quando eu morrer, vai tudo para o Museu de Instrumentos de Msica Regional Verdades de Faria, no Monte Esto-ril. (In Pblico Magazine, 5 agosto 1990).

    O museu referido o actual Museu da Msica Portuguesa, instalado na Casa Verdades de Faria e pertencente ao Mu-nicpio de Cascais, e o desconforto que pode produzir a certeza de que algum que dedicou a vida recolha, preserva-o e divulgao de um patrimnio to fundamental no teve grande recom-pensa por parte de quem deveria assumir esse gnero de compro-missos (ser exigir demasiado de um Estado que d algum valor cultura? A pergunta poder no caber num texto de ndole jor-nalstica, por isso deixemo-la entre parntesis) acaba por ser mi-tigada pela existncia de uma estrutura museolgica como esta, que preserva a herana de Michel Giacometti (assim como a de Fernando Lopes-Graa) e a d a conhecer ao pblico.

    Na visita ao Museu da Msica Portuguesa, a Blimunda foi re-cebida por Catarina Roquette, responsvel tcnica do museu, que nos conduziu numa apresentao dos vrios espaos, referindo a

  • 20

  • 21

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    construo da Casa Verdades de Faria, da autoria do arquiteto Ral Lino, e a instalao dos esplios de Michel Giacometti e Fernando Lo-pes-Graa. Houve ainda oportunidade para conversar com Conceio Correia, coordenadora do Centro de Documentao do Museu da M-sica Portuguesa, integrada no trabalho do museu desde a sua instalao, que falou sobre Giacometti fornecendo-nos uma preciosa viso de con-junto sobre o trabalho do etnlogo e a sua relao com Portugal e contan-do como foi o processo de criao do Museu a partir do imenso esplio do musiclogo, com quem conviveu nessa altura.

    Depois de vrias tentativas de reunir todos os registos resultantes do seu trabalho num fundo que pudesse ser acolhido pelo Estado portugus, Giaco-metti percebeu que esse desejo no ser concretizado. Uma parte do que gravou foi adquirido pela Secretaria de Estado da Cultura, mas h uma imensido de materiais que fica sem destino. Segundo nos explicou Conceio Correia, tentando encontrar uma outra instituio que pudes-se albergar o esplio, que lhe permitisse ter algum dinheiro para continuar a investigao, por um lado, e fazer a correta manu-teno das colees, por outro, Giacometti chega Cmara Mu-nicipal de Cascais, municpio onde vivia. O pedido chega Cma-ra encaminhado pela Direo Regional de Lisboa, com quem ele vai ter inicialmente, e a Cmara de Cascais dispe-se a adquirir a

    Pginas 12 e 13: Tocadores de concertina e viola, Joane, Vila Nova

    de Famalico, 1973. Fotografia de Michel Giacometti

    A malha, Moreira de Rei, Trancoso, 1969. Fotografia de Michel Giacometti

  • 22

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    coleo, que comea por ser a parte dos instrumentos musicais e etnogrficos, com alguma documentao de apoio, e mais tarde, quando surge a Casa Verdades de Faria disponvel para ser um museu, mas sem coleco, as coisas juntam-se. Portanto, a cria-o do Museu tal como hoje o conhecemos no foi imediata: Di-gamos que h um programa que vai dando forma construo do Museu, porque no apenas uma coleo que faz um museu, e aquilo que eu considero a grande viragem desta casa foi, mais tar-de, a aquisio da biblioteca de Michel Giacometti, uma biblioteca completssima, com bibliografia desde o sculo XIX, que serviu de base a todo o percurso de Giacometti e que traduz muito bem a qualidade e a seriedade do seu trabalho. O Museu da Msica Por-tuguesa hoje resulta desse caminho.

    Mais tarde, respondendo a um de-safio que o Giacometti lhe tinha lanado e provavelmente apoiado nos passos seguros que o Museu entretanto tinha dado, o Fernan-do Lopes-Graa decide deixar o seu esplio a este museu. Acabou por dar-se, assim, uma espcie de casamento da msica tradicional com a msica erudita, prosse-guindo o seu trabalho de investigao e o de outras pessoas, alian-do a coleo a um centro de documentao e assumindo a parte da divulgao que Giacometti considerava to importante. E a Lenhadores Nespereira, Cinfes, 1973. Fotografia de Michel Giacometti

  • 23

    P E S S O A S M I C H E L G I A C O M E T T I

    imagem que hoje temos de Michel Giacometti, com a sua vida de-dicada a uma causa, como se no houvesse distino entre viver e fazer o trabalho que fazia, confirmada por algum que teve opor-tunidade de o conhecer? Creio que sim. E h alguns dados nesse sentido. Por exemplo, todas as relaes afetivas de Giacometti de que ns tivemos conhecimento so ligadas ao trabalho e nascem da paixo por esse trabalho. E depois, acho que s uma grande paixo pode levar algum a passar trinta anos da sua vida atrs disto, nas circunstncias e nas condies em que ele o fez. Os re-latrios detalhados do processo de trabalho, com a indicao do nmero de horas dedicado a cada coisa, a preparao prvia das sadas de campo, a rede de apoios que teve de construir para poder concretizar o que queria, enfim, tudo isso confirma essa paixo.

    A imagem elegaca e herica que talvez no agradasse a Giacometti persiste a cada revisitao do seu trabalho, atravs dos discos ou dos filmes, do esplio que reuniu e que o Museu da Msica Portu-guesa disponibiliza ao pblico ou da herana que se mantm, viva e de boa sade, no trabalho de msicos e intrpretes que continuam a revisitar a msica tradicional portuguesa, confirma a justeza do ngulo.

    Publicado na Blimunda #9, fevereiro de 2013Os Bombos de Lavacolhos (Festa de Santa Luzia)

    Castelejo, Fundo, 1970. Fotografia de Michel Giacometti

  • Ama doP E S S O A S

    JOS SARA

    MAGO

    Jorge

  • 25

    P E S S O A S J O R G E A M A D O

    Durante muitos anos Jorge Amado quis e soube ser a voz, o sentido e a alegria do Brasil. Poucas vezes um escritor ter conseguido tornar-se, tanto como ele, o espelho e o retrato de um povo inteiro. Uma parte importante do mundo leitor estrangeiro comeou a conhecer o Bra-sil quando comeou a ler Jorge Amado. E para muita gente foi uma surpresa descobrir nos livros de Jor-ge Amado, com a mais transparente das evidncias, a complexa heterogeneidade, no s racial, mas cultural da sociedade brasi-leira. A generalizada e estereotipada viso de que o Brasil seria reduzvel soma mecnica das populaes brancas, negras, mu-latas e ndias, perspetiva essa que, em todo o caso, j vinha sendo progressivamente corrigida, ainda que de maneira desigual, pelas dinmicas do desenvolvimento nos mltiplos setores e atividades sociais do pas, recebeu, com a obra de Jorge Amado, o mais solene e ao mesmo tempo aprazvel desmentido. No ignorvamos a emi-grao portuguesa histrica nem, em diferente escala e em pocas diferentes, a alem e a italiana, mas foi Jorge Amado quem veio pr-nos diante dos olhos o pouco que sabamos sobre a matria. O leque tnico que refrescava a terra brasileira era muito mais rico e diversificado do que as percees europeias, sempre contaminadas pelos hbitos seletivos do colonialismo, pretendiam dar a entender:

    UMA CERTA InOCnCIA

  • 26

    P E S S O A S J O R G E A M A D O

    afinal, havia tambm que contar com a multido de turcos, srios, libaneses e tutti quanti que, a partir do sculo XIX e durante o s-culo XX, praticamente at aos tempos atuais, tinham deixado os seus pases de origem para entregar-se, de corpo e alma, s sedu-es, mas tambm aos perigos, do eldorado brasileiro. E tambm para que Jorge Amado lhes abrisse de par em par as portas dos seus livros.

    Tomo como exemplo do que venho dizendo um pequeno e delicioso livro cujo ttulo A Descoberta da Amrica pelos Turcos capaz de mobilizar de imediato a ateno do mais aptico dos leitores. A se vai contar, em princpio, a histria de dois turcos, que no eram turcos, diz Jorge Amado, mas rabes, Raduan Murad e Jamil Bichara, que decidi-ram emigrar para a Amrica conquista de dinheiro e mulheres. No tardou muito, porm, que a histria, que parecia prometer unidade, se subdividisse em outras histrias em que entram de-zenas de personagens, homens violentos, putanheiros e beber-res, mulheres to sedentas de sexo como de felicidade doms-tica, tudo isto no quadro distrital de Itabuna (Bahia), onde Jorge Amado (coincidncia?) precisamente veio a nascer. Esta picaresca brasileira no menos violenta que a ibrica. Estamos em terra de jagunos, de roas de cacau que eram minas de ouro, de bri-gas resolvidas a golpes de faco, de coronis que exercem sem lei

    um poder que ningum capaz de compreender como foi que lhes chegou, de prostbulos onde as prostitutas so disputadas como as mais puras das esposas. Esta gente no pensa mais que em for-nicar, acumular dinheiro, amantes e bebedeiras. So carne para o Juzo Final, para a condenao eterna. E contudo... E, contudo, ao longo desta histria turbulenta e de mau conselho, respira-se (perante o desconcerto do leitor) uma espcie de inocncia, to na-tural como o vento que sopra ou a gua que corre, to espontnea como a erva que nasceu depois da chuvada. Prodgio da arte de narrar, A Descoberta da Amrica pelos Turcos, no obstante a sua brevidade quase esquemtica e a sua aparente singeleza, merece ocupar um lugar ao lado dos grandes murais romanescos, como Jubiab, A Tenda dos Milagres ou Terras do Sem Fim. Diz-se que pelo dedo se conhece o gigante. A est, pois, o dedo do gigante, o dedo de Jorge Amado.

    Publicado na Blimunda #3, agosto de 2012

  • 27

    P E S S O A S

    TOMS ELOy

    MARTnEz

    FotograFia de daNieL MordZiNSKi

    P E S S O A S

  • 28

    P E S S O A S G A B R I E L G A R C A M R q u E z

    to, porque as formas que assume so as mesmas formas que as primei-ras fices humanas adotaram, as de toda a cultura em erupo: assim como em Espanha o romance comeou por ser um cantar de gesta, uma louca aventura de cavalarias, uma coleo de aplogos em que falavam os animais e os Dees de Santiago viajavam no tempo, a Amrica Lati-na ergue agora os seus prprios Calila e Dimna, os seus Conde Lucanor, os seus Mo Cid e os seus Amadises. No improvvel que dentro de mil anos Giraldes e Rmulo Gallegos, Azuela e Jos Eustasio Rivera figurem como palimpsestos perdidos da infinita histria literria; que Macedonio Fernndez, e Arlt, e Borges, sejam apenas a origem de um mundo cujos pais se chamaro Cortzar, Vargas Llosa, Onetti, Guima-res Rosa, Carpentier. Este pai mais velho que a eles se juntou definiti-vamente, com os seus Cem Anos de Solido, aporta, sozinho, uma nova bandeira para a aventura: o romance que acaba de publicar resume, melhor que nenhum outro, todas essas correntes alternativas. A magia celebra aqui o seu casamento com a pica; os filtros maravilhosos, as ascenses ao cu de corpo e alma, os festivais interminveis de sexo, passeiam-se orgulhosos pelo brao das guerras revolucionrias, dos polticos hipcritas, das plantaes de bananeiras que aniquilam, onde quer que estejam, a felicidade e a inocncia.

    Cem Anos de Solido conta a histria completa de Macondo atravs da famlia Buenda desde que o primeiro Jos Arcdio e a primeira

    Uma literatura em estado de nascimento no tem nada a perder: pode inventar a sua linguagem a partir do zero, ima-ginar uma sintaxe louca, lanar para o mundo gordas de duzentos quilos e gi-gantes de trs metros, burlar todas as tradies culturais dado que no deve responder a nenhuma. O acto de criar transforma-se ento numa experincia de vida livre, e a literatura que nasce vai-se nutrindo dessa generosa desmesura, como um feto de cabea monstruosa que apenas o ar, as relaes com os de-mais homens, o acto de caminhar e de crescer vo modificando. Pode acrescentar-se que essas so as regras de toda a criao ver-dadeira; mas as mos do que trabalha num pramo esto sempre mais soltas que as do que habita entre runas ou monumentos. A realidade a quotidiana ou a fantasmagrica foi sempre a ferra-menta do romance. Mas o nico gesto capaz de dotar de grandeza um romance a falta de respeito por essa realidade.

    Se a literatura latino-americana assoma agora quase com certeza como a mais original de todas as literaturas, apenas pela aceitao do seu destino subversivo, pela sua desmedida caminhada atravs de uma imaginao sem limites. Essa originalidade enganosa, no entan-

    PUBLICADA EM Primera Plana,

    20 JUnhO DE 1967PRIMEIRA CRTICA AO LIVROCem anos de solido

  • 29

    P E S S O A S G A B R I E L G A R C A M R q u E z

    Ursula a fundaram, mitologicamente, a doze quilmetros de um ga-leo espanhol ancorado em plena selva. Mas aponta para algo mais: uma metfora minuciosa de toda a vida americana, das suas lutas, os seus maus sonhos e as suas frustraes. Os quatro livros anteriores de Gabriel Garca Mrquez aparecem agora como meros afluentes deste romance total: os tumultos verbais de La hojarasca moderaram o seu passo; as ntimas inclinaes de cabea de El coronel no tiene quien le escriba aplicam-se com as suas mesmas reticncias histria de Remedios Buenda, uma casada impbere que Garca Mrquez retra-ta atravs de jogos psicolgicos. Apenas Los funerales de la Mam Grande, ltimo conto de um livro homnimo, antecipa, com as suas tempestades episcopais e o seu tremendismo babilnico, os melho-res momentos de Cem Anos. Macondo foi sempre, salvo em El coronel, o obsessivo protagonista dessas fices, o fornecedor de smbolos e criaturas. Mas agora, com um golpe certeiro, Garca Mrquez chega para assassinar a povoao que engendrou em 1955 (Macondo era j um pavoroso remoinho de p e escombros centrifugado pela clera do furaco bblico...). Essa matana em massa parece atribuir ao seu romance um destino apocalptico; talvez o seja, talvez a partir do mo-mento em que escreveu a ltima palavra de Cem Anos, o autor tenha aparado os seus bigodes literrios, tenha mudado de lugar o seu co-rao. Mas, para a Amrica Latina, este romance tem o sabor de um gnesis, de uma abertura para as formas mais profundas da sua vida.

    Tudo o que ocorre em Cem Anos importante: a peste de insnia que acaba numa peste de esquecimento e obriga os habitantes a mar-car cada coisa com o seu nome, mesa, cadeira, relgio, parede, cama,

    caarola, a gravar um grande letreiro na rua central que assegura que Deus existe; as guerras inteis do coronel Aureliano Buenda, um ini-migo furibundo do governo cuja efgie prcer acaba por entronizar--se nos santorais colombianos; os prodigiosos amores de Petra Cotes com Aureliano Segundo, que levam as vacas, as ovelhas e as galinhas a parirem desaforadamente. No seu labirinto de histrias entrelaa-das, de genealogias que inebriam, nenhum personagem perde o pas-so, no entanto: que Garca Mrquez lanou-os ao mundo vigiando que as suas aparncias sejam sempre iguais aos seus atos. Esse fio de Ariadne permite reconhecer no gigante Jos Arcdio, que regressa a Macondo com o corpo riscado de tatuagens, o filho adolescente que partiu um dia atrs de uma tribo de ciganos com um trapo de cores preso cabea. E permite entender tambm por que persistir sobre o seu tmulo um oculto cheiro a plvora.

    As grandes exploses picas de Cem Anos de Solido acabariam por devorar os esplendores do li-vro se no fossem aplacadas, de vez em quando, pelas ondulaes suaves da poesia: nesse sentido, no h talvez em todo o romance um momento mais alto que o da histria de Remedios, a bela, uma sereia homrica cuja inocncia leva morte os seus amores. Imune s tentativas de violao, at santidade, Remedios acaba os seus dias de cristal numa tarde de maro, quando sai para dobrar no jardim os lenis de famlia. Esse

  • 30

    P E S S O A S G A B R I E L G A R C A M R q u E z

    instante to anglico, to denso de vapores e poesia, que a sua sim-ples transcrio melhor que todas as demais palavras, para abrir caminho leitura do livro: Pelo contrrio disse [Remedios] , nunca me senti melhor. Acabava de diz-lo, quando Fernanda sen-tiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lenis das mos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anguas e tratou de se agarrar ao lenol para no cair, no instante em que Remedios, a bela, comeava a ascender. Ursula, j quase cega, foi a nica que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparvel, e deixou os lenis merc da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mo, entre o deslumbrante esvoaar dos lenis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dlias, e passavam com ela pelo ar onde as quatro da tarde ter-minavam, e perderam-se com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pssaros da memria a podiam alcanar.

    Mas esse pargrafo tambm um olhar para as debilidades do livro, do seu nico calcanhar de Aqui-les: a uniformidade da escrita. Cada pgina de Cem Anos respira de uma maneira idntica da p-gina que se segue, repete as suas cadncias secretas, os clares dos seus adjetivos, as mutaes cenogrficas. O cheiro a maravilha e

  • 31

    a lavanda persiste tanto dentro do estilo de Garca Mrquez como a sua aluvial ternura, a sua vitalidade cataclsmica. Numa obra menos vasta como El coronel, essa fidelidade da prosa a si mesma era um prodgio; em Cem Anos, a perfeio verbal adoa a leitura, entorpece-a em alguns momentos, acaba por anestesiar o olfato e a lngua.

    No entanto, nunca esse dilvio de bele-za arrefece o romance: por momentos Garca Mrquez pra-o a seco inserin-do notcias aritmticas, detalhes proli-xos. Que o coronel Aureliano Buenda retire a tranca de sua casa, e veja na porta dezassete homens; que Pilar Ter-nera morra numa cadeira de baloio de cip, enterrada por oito homens num buraco enorme; que chova em Macondo durante quatro anos, onze meses e dois dias, no so precises inteis. O romance abunda nelas para fortalecer os seus msculos, para demonstrar que os seus acontecimentos prodigio-sos tm uma cor, um sabor, uma medida.

    Chamar barroco a Cem Anos de Solido qualific-lo pela metade: porque a semente do seu barroquismo esta Amrica luxuriosa de uma ponta outra. O coronel que est prestes a fuzilar o seu ami-go Gerineldo Mrquez, apenas porque se atreveu a reprov-lo, e que acaba lutando pelo mero gosto da guerra, encastra, dentro das suas loucas e solitrias artrias, dez geraes de coronis americanos; o

    plantador Brown que desaparece de Macondo na sua sumptuosa carruagem de vidro, juntamente com os representantes mais conhe-cidos da sua empresa, antes de uma greve, o resumo de uma raa de Grandes Mestres bananeiros, petroleiros e fazendeiros que asso-laram outras dez geraes de trabalhadores do Caribe.

    Nada fica sem ser arrastado pela torrente dos Cem Anos: aqui as-somam o Beb Rocamadour de Cortzar, o Artemio Cruz de Carlos Fuentes, e at a prpria Mercedes Garca Mrquez, sob a mscara de uma boticria silenciosa, como se o romancista tivesse querido assina-lar que a vida, os amigos, o amor e as criaturas de fico so um nico feixe demonaco no momento de criar. Mas talvez estas Mil e Uma Noi-tes povoadas de nascimentos e de mortes, de casamentos e virgindades, no possam entender-se por completo sem a ajuda de uma confidncia do autor: Importava-me mais terminar o romance que public-lo. O repto solenidade que repousa nessa frase, a alegria criadora que a sustm, so outras das chaves que explicam o triunfo actual do ro-mance latino-americano. A partir de Garca Mrquez e de seus pares j ningum ter direito a escrever para ser conhecido, mas sim para descobrir o modo mais elevado, mais limpo de conhecer-se a si mesmo. Texto publicado por cortesia da Fundao Toms eloy martnez

    Publicado na Blimunda #12, maio de 2013

    P E S S O A S G A B R I E L G A R C A M R q u E z

  • 32FotograFia de deNiS daiLLeux / ageNCe Vu

    P E S S O A S

    Fuen tesFEDERICO REyES hEROLES

  • 33

    P E S S O A S C A R L O S F u E N T E S

    Dizia Alexis de Tocqueville que a fortale-za de uma nao radica na solidez das suas memrias e no poderio dos seus sonhos. Mas a memria e os sonhos de uma nao tm de plasmar-se em pala-vras. S a palavra permite o reconheci-mento, a partilha, ser-se no individual e no coletivo. Contudo, a palavra no cai de uma rvore como um gracioso fruto. A palavra necessita de en-genheiros que consolidem o cimento, de arquitetos que imaginem uma forma e, talvez o mais difcil de encontrar, de uma alma que sinta por si mesma e pelos outros.

    Cruzvamos o Atlntico num navio a por volta dos anos ses-senta. Olha, est ali Carlos Fuentes, vamos cumpriment-lo, disse a minha me. Eu era um mido. Conheciam-se desde muito jo-vens do Corpo Diplomtico. Esquadrinhava a biblioteca do bar-co quando o interrompemos. Foi afvel, vestia jeans, pareceu-me satisfeito. um grande escritor, foi a nica explicao que recebi. Escritor, pensei, que mistrio. Com os anos compreendi que a ta-refa de um escritor era ampliar a alma para sentir mais e melhor e poder colocar esses sentimentos preto no branco, prend-los em

    palavras. O referente do escritor era Fuentes. De Quetzalcatl a Pepsicatl escreveu Fuentes num livro to arbitrrio como bri-lhante, Tiempo Mexicano. Mas a quem que ocorrer algo assim? A Fuentes, que ligou a tenso entre as tradies e a modernida-de. Para mais, no prprio ttulo da obra denunciava uma das suas grandes obsesses: o Tempo, com maiscula, no aquele que me-dem os ponteiros de um relgio que fcil seria , o outro, o sub-jetivo, o de Kant, no qual um olhar, um minuto, pode transformar uma vida, e um sculo ser um interminvel assombro.

    Os teus dedos gelados... sem tato... as tuas unhas negras, azuis... o teu queixo trmulo... Artemio Cruz... nome... intil ...corao... massagem ... intil ... j no sabers... trouxe-te por dentro de mim e morrerei contigo... os trs... morreremos... Tu... morres...morreste... morrerei. So as ltimas linhas de La muerte de Artemio Cruz, romance icnico do labirinto social e emo-cional da ps-revoluo.

    Nele Fuentes procurava nas memrias, fazia-o para construir nao, para criar uma identidade atravs da palavra, a sua gran-de obstinao. Dizer as coisas, diz-las a tempo e com um senti-do final capaz de irmanar emoes, esse era o objetivo. Mas se a Revoluo era o tema arquetpico da literatura mexicana da se-gunda metade do sculo xx, o retrato de uma grande cidade no o era. Fuentes j vinha de La rgion ms transparente, onde lograra denunciar a pseudo-aristocracia, os Betos e as Gladys, os amea-ados no seu imaginrio coletivo pela revolta popular. Triunfado-res de ouropel, fracassados com disfarces, o proletariado to em

    A CARLOS FUEnTESin memoriam

  • 34

    P E S S O A S C A R L O S F u E N T E S

    moda nessa poca e os que flutuam de uma classe para outra di-zia Fuentes para designar aquelas a que hoje chamamos classes mdias. Muitos deles personagens representativos de um Mxico que, lamentavelmente, ainda no se fica atrs do todo. A capital tomou conscincia de si prpria. A nao tomou conscincia da sua capital.

    Passado, Artemio Cruz, presente, La regin ms transparente, e porque no futuro. Por que no imaginar um transporte areo em massa para os trabalhadores mexicanos que ganham os seus pesos dependurados das janelas dos grandes edifcios de Chica-go ou de Nova Iorque, cidade que Carlos amava como a poucas. Oscilam nas cordas limpando vidros sujos para o que j no h corajosos no nosso vizinho do Norte. Fazem dinheiro e voltam ao Mxico voando. L esto os relatos que imaginavam um futuro que cria nao. Por que no uma identidade nacional que surge no norte do Mxico e no sul dos Estados Unidos. Uma nova identida-de que obriga ao encontro. Cidados de Oaxaca ou de Michoacn convivendo com texanos e californianos. Pintores, poetas, dra-maturgos, produto desse encontro fantstico e incompreendido. Fuentes sempre acreditou nessa fora, resultado do encontro de culturas. O que da sair ser melhor, pensava. O purismo no era a sua convico.

    Aluno informal de um grande tutor a quem o unia uma pro-funda amizade, refiro-me a Alfonso Reyes, Carlos Fuentes sempre defendeu a tese do regiomontano: a cultura ou universal ou no cultura. O resto folclore. Por isso se lanou numa aventura mag-

    na como El espejo enterrado, onde nos fala de Zurbarn ou de As Bodas de Fgaro, um esplndido e complexo texto em que cruza os mares, o Atlntico em particular, para mostrar as pontes invisveis mas indestrutveis que unem as culturas de uma e de outra costa. Que homem mais complexo e completo era Fuentes. Recordo-o na excelente verso desse livro El espejo enterrado elaborada pela televiso britnica. A o nosso grande escritor revela-se perante as cmaras como se no tivesse feito outra coisa durante toda a vida.

    E j que falamos em cmaras, como deixar de mencionar a esse Carlos cinfilo que compe-tia com Jos Luis Cuevas e com Monsivis ao recordar realizadores, guionistas, opera-dores de cmara e evidentemente atores e atrizes, sobretudo as belas. Porque tambm havia esse Fuentes capaz de cantar trechos inteiros de Don Giovani ou de repetir ao des-pique com Garca Mrquez grandes excertos de Quevedo ou de Gngora. Um escritor no pode ter limites, deve experimentar emoes diversas, desfrutar de uma neve deliciosa ou danar em algum arrabalde de Buenos Aires, cidade pela qual tambm tinha uma fraqueza muito particular, consequncia dos tempos de in-fncia em que a permaneceu como filho de diplomata.

    Mas Carlos Fuentes viu com toda a clareza que tinha vrias mis-ses culturais a cumprir: a sua obra o seu trabalho nas memrias e nos sonhos era a principal. Mas podia tambm servir de ponte,

  • Monsivis, Cuevas, Bentez e Carlos Fuentes no Bar La pera, em 1965. Fotografia de hctor Garca, Arquivo Silvia Lemus

  • 36

    P E S S O A S C A R L O S F u E N T E S

    de ligao entre os brilhantes, todavia desorganizados, arranques da literatura em lngua espanhola. Da a sua fantstica produo como ensasta e crtico literrio: desde La nueva novela hispanoame-ricana, em que faz uma radiografia de Vargas Llosa, de Carpentier, do seu grande amigo Garca Mrquez, de Cortazr e de Goytisolo, livro de finais dos anos sessenta, a La gran novela latinoamericana, de 2011, passando por Geograa de la novela, de 1993. Mas chega de evocar os ttulos infinitos da sua vastssima obra. Lamentavelmen-te, teremos muito tempo para sistematizar e reconsiderar. Seria in-justo ficarmo-nos por aqui. Porque h muito mais. Vou s virtudes.

    Carlos Fuentes, o grande conversador. No me refiro apenas s recordaes ntimas de noites prolongadas, mas tambm s ml-tiplas entrevistas em que o esprito peda-ggico imperava e a paixo se engalanava. Admirador dos seus grandes mestres da Faculdade de Direito da UNAM, Fuentes conhecia o poder da oralidade e explorava-o segundo a segundo. Nada odiava mais do que uma conversa insos-sa, inspida e incolor.

    Carlos Fuentes, o laborioso. Parece fcil, dezenas de livros, mas a disciplina quotidiana de Fuentes, o seu ritual de trabalho, a sua severidade para consigo prprio, o sacrifcio implcito, so uma lio para todos. Fuentes levou a srio o seu ofcio e isso deve ser um exemplo para muitos.

    Carlos Fuentes, o conferencista. Francs, ingls e evidente-mente espanhol, todos corretssimos, Fuentes era um grande se-dutor que prendia com um nico instrumento: a palavra. A cons-truo das oraes e dos pargrafos; os adjetivos, a entoao, a sua cuidada dico e, tambm, a sua grande capacidade histrinica ao servio das ideias. Nem ecrs, nem luzinhas, nem msica de fun-do. Carlos rompia o silncio da audincia e sabia qual o instante preciso para o fazer voltar e provocar uma ovao.

    Carlos Fuentes, o organizador de aventuras. Como se nada ti-vesse que fazer, arranjava tempo para organizar encontros, con-gressos e inclusivamente uma instituio como o o Foro Iberoa-mrica, com mais de uma dcada de vida, e que proporcionou, ano aps ano, a reunio de empresrios, intelectuais e personagens da envergadura de Felipe Gonzlez, os ex-presidentes Sanguinet-ti, Cardoso, Gaviria, Lagos, entre outros, tudo com o objetivo de manter viva a chama da sua s obsesso iberoamericanista.

    Mas nem tudo era suavidade e cortesia na naturalidade diplo-mtica que lhe era inata. O comentarista jornalstico Fuentes era uma caneta temvel. Basta reler um texto implacvel que se des-creve no ttulo: Contra Bush. O seu posicionamento liberal e pro-gressista levou-o a compreender os limites das iluses dos anos sessenta e a fortalecer as liberdades como nica via para a grande liberdade.

    Impossvel no recordar outro atributo. Carlos Fuentes foi um homem muito generoso. Foi-o com os amigos, pois era muito amigo dos seus amigos, mas tambm com desconhecidos a quem

  • 37

    P E S S O A S C A R L O S F u E N T E S

    autografava, aparentemente sem cansao, centenas de exemplares, ainda que depois ficasse esgotado. Generoso, muito generoso, com os escritores jovens, a quem nunca se cansou de estimular. Parece premonio que tenha morrido no dia do mestre. Uso o plural, ge-nerosos, porque Silvia e ele no podiam impedir-se de partilhar os seus comentrios sobre um bom filme ou DVD ou a subida cena de uma pera. Generosidade que inundou a sua casa para a conver-ter em local de encontro de diferentes, de discusso, de abraos fra-ternais dos adversrios polticos. Que lio de civilidade! Viajantes incansveis, Silvia Lemus, o seu grande amor, a sua grande compa-nheira nas horas boas e nas horas ms, que tambm as houve, fa-zia lar aonde fosse que Carlos tivesse que ir. Os Fuentes erigiram-se numa antena muito sensvel do que se passava no mundo. Durante meses de ausncia e inumerveis voos por todo o globo acumula-vam informao e conhecimento que chegavam a partilhar.

    Hoje pode parecer pouca coisa, mas num pas fechado esse trabalho foi vital. Encarnou a convico de levar o Mxico ao mundo e de trazer mais mundo ao Mxico. Vejo-o naquele navio muito distante na memria; vejo-o no seu estdio observando os vulces, rodeado de livros; vejo-o enftico e convincente numa conferncia. Vejo-nos tomando um potente martini, simplesmente porque sim; vejo-nos, em La Or-

    dua, perto de Xalapa, visitando sozinhos o engenho de acar onde havia sido concebido, disse-me; vejo-o danando com Silvia em Cartagena ao lado dos Gabos; vejo-o em Londres subindo ao seu apartamento e em Roma desfrutando a cidade e uma pasta; vejo-o com os dedos indicadores torcidos, para no dizer defor-mados, de tanto premir a tecla, mas acima de tudo vejo-o discu-tindo sobre o seu Mxico, esse que sempre quis que fosse melhor, mais prspero, mais justo, um Mxico que estivesse altura do mundo. Neste vazio abrupto temos um consolo: chegou ao fim como queria, lendo, viajando, com projetos, discutindo, e sobretu-do com os dedos em cima do teclado. Foi um homem atravessado pela paixo, na conversa, frente folha em branco, perante a estti-ca. Que belo artigo, disse-lhe na segunda-feira por volta das duas da tarde. Se gostaste deste, espera pelo de amanh. E depois o comen-taremos, disse-me. Brincmos durante um bocado, falou-me do seu novo projeto e do problema de deslocar tantos livros. Olha, temos de ir ao teatro. Claro, procura alguma coisa. V l, respondi-lhe. Eu convido-te para a ceia, pagaste a ltima comida. Dessa no te esca-pas, querido Carlos. Voltando a Tocqueville, procurar-te-emos nas nossas memrias e nos nossos sonhos, sabendo que s parte central da grande nao que ajudaste a construir. Obrigado, Carlos, pelo muito que nos deste, aos indivduos, ao teu Mxico. Descansa. Sem ti, mas rodeada dos muitos que te querem, a tua gerita1, a tua grande preocupao, h de ficar bem. Foi uma honra. Obrigado.

    1. Gerita: loirinha, assim tratava Carlos Fuentes a sua mulher. (nota da redao)

    Publicado na Blimunda #1, junho de 2012

  • 38

    P E S S O A S

    Cortzar

    RICARDOVIEL

  • 39

    P E S S O A S J u L I O C O R T z A R

    F oram chegando e pouco a pouco ocuparam todas as mesas. Depois, as cadeiras colocadas nos cantos da sala, e em seguida sentaram-se no cho, na sada de emergncia, no corredor, e quando j no havia onde estar, tomaram o saguo. Em p, braos colados uns aos outros, ficaram nas pontas dos ps para no perder nenhum detalhe do que viam e ouviam.Era fim de tarde em Lisboa e o Jardim de Inverno do Teatro So

    Luiz estava tomado por cronpios, e famas e esperanas que acu-diram ao convite para celebrar a imortalidade do criador de todos eles, Julio Cortzar.

    Durante cerca de uma hora e meia, o ator Jos Rui Martins, do grupo Trigo Limpo Teatro ACERT, acompanhado do quarteto de Carlos Martins, alimentou as criaturas ali presentes com frag-mentos do conto O Perseguidor e com jazz, a msica que o homena-geado do dia tanto admirava.

    Era 12 de fevereiro, data da morte de Julio Cortzar. Trinta anos antes, num dia de muita neve em Paris, o escritor argentino fale-cera na capital francesa. Conta-se que Buenos Aires, naquele mes-mo dia de 1984, foi invadida por borboletas amarelas. Trinta anos depois, no s em Lisboa mas em vrias outras cidades do mun-do como em Madrid, onde Aurora Bernrdez, a ex-companheira

    de Cortzar, esteve presente para participar numa homenagem ao escritor leitores reuniram-se para celebrar a imortalidade do ar-gentino mais querido de todos, como disse certa vez Garca Mr-quez.

    Era querido por todos, porque era capaz de criar figuras encan-tadoras e doces como os cronpios, seres descobertos em 1951 por um Julio Cortzar recm chegado a Paris. Ele havia ido a um teatro assistir a uma homenagem a Stravinski. No intervalo do concerto teve a epifania: viu pequeninos e divertidos seres verdes a flutua-rem em crculo um pouco acima das cabeas da audincia. Junto com a apario desses objetos verdes, que pareciam inflados como balezinhos ou sapos ou algo assim, veio-me a viso de que esses eram os cronpios, contou numa entrevista. Durante dez anos, Cortzar foi pacientemente reunindo histria sobre essas criatu-ras sensveis, tmidas e ingnuas, idealistas e desordenadas, ca-pazes de fazer das situaes mais banais momentos de enorme beleza. Em 1962 publica Histria de Cronpios e de Famas, e quase imediatamente recebe, dos seus leitores, o ttulo de o maior cro-npio de todos. Mas o que afinal um cronpio? Um cronpio um desenho fora da margem, um poema sem rima, explicou o pai desses seres. A anttese de um cronpio uma fama: rgida, organizada e metdica. A meio caminho esto as esperanas, que so desinteressantes e ignorantes.

    UM JARDIM ChEIO DE CROnPIOS PARA CORTzAR

  • 40

    P E S S O A S J u L I O C O R T z A R

    Com esse jogo literrio de ar inocente, Cor-tzar instigava os seus leitores a no se resignarem, a arriscarem-se em busca de um outro modo de viver. Creio que des-de muito pequeno a minha desgraa e a minha sorte, ao mesmo tempo, foi o no aceitar as coisas como elas me eram da-das. No me bastava que me dissessem que isso era uma mesa, ou que a palavra me era a palavra me e ponto [...] desde muito pequeno a minha relao com a palavra, com a escrita, no se diferenciava da minha relao com o mundo em geral. Parece que eu nasci para no aceitar as coisas como elas me so dadas, disse Cortzar numa entrevista. No aceitava, e provocava os seus leitores a fazer o mesmo. No aceitava sequer os limites da linguagem, desrespeitava as estruturas, e por isso escreveu Rayuela, uma novela aberta que invoca a subverso em to-dos os aspetos.

    Cortzar espalhou pontes nas suas histrias. Pontes que eram metforas dessa possibilidade de alcanar outro universo, de se habitar uma vida onde se destroem as convenes, o estabelecido, para que algo novo, repleto de poesia e de beleza, surja. Essa era a utopia que Cortzar defendia e que compartilhou com os seus leitores espalhados pelo mundo. Todos eles querem ser cronpios para poderem cantar com tal entusiasmo a ponto de perderem tudo o que trazem nos bolsos, o clculo dos dias e das horas includo. Para Cortzar a realidade era mtica nesse sentido: estava tambm

    na outra face das coisas, no que est um pouco alm dos sentidos, invisvel porque no soubemos esticar a mo a tempo de tocar a pre-sena que ela contm, escreveu Carlos Fuentes. Por isso eram to extensos os olhos de Cortzar: via a realidade paralela, o que est alm da esquina; o vasto universo latente e seus pacientes tesouros [...] a iminncia de formas que esperam ser convocadas por uma palavra, um trao de pincel, uma melodia cantarolada, um sonho.

    Com a ajuda da literatura e da msica, ou de ambas, como acon-teceu em Lisboa no ltimo dia 12, que se constroem as pontes invi-sveis que permitem aos cronpios que por acreditarem que elas existem so os nicos que se atrevem a cruz-las a chegada ao outro lado. Um cronpio como uma flor, escreveu Cortzar. E algum respondeu: e dois so um jardim. E o Jardim do Teatro So Luiz estava repleto de cronpios. Um bosque inteiro. Todos conten-tes, felizes a ponto de esquecerem as contas do banco, as chaves de casa, os telemveis e os chapus de chuva.

    Publicado na Blimunda #21, fevereiro de 2014

  • 41

    P E S S O A S

    Interpretao de temas de Charlie Parker pelo quarteto de Carlos Martins

    P E S S O A S J u L I O C O R T z A R

  • 42

    P E S S O A S

    Jos Rui Martins, do Trigo Limpo Teatro ACERT, e o quarteto de Carlos Martins no final do espetculo

    P E S S O A S J u L I O C O R T z A R

  • 43

    P E S S O A S

    DANIEL MORDzINSKI:

    RETRATOESCRITORES

    PARAHOMENAGE-LOS

    C O N V E R S A S

  • 44

    C O n V E R S A S D A N I E L M O R D z I N S K I

    Durante o Hay Festival de Xalapa havia uma figura omnipresente. Um homem loiro, calvo na parte de cima da cabea e cabelos compridos na parte de trs, sempre vestido de negro e munido de uma cmara fotogrfica. Estava em to-das as conferncias, no saguo do hotel, na piscina e no restaurante, sempre na sombra de algum escritor. Era Daniel Mordzinski, o fotgrafo ofi-cial do Hay Festival pelo mundo, e conhecido por ser o fotgrafo de escritores. H mais de 35 anos, sua rotina fazer instantneos de personalidades do mundo da literatura.

    Argentino de nascimento, Mordzinski, de 53 anos, um cidado do mundo, e percorre os quatro cantos do planeta fazendo e mos-trando os seus retratos. Durante o evento em Xalapa, pedi uma entrevista. Disse que queria que ele me contasse o seu segredo. A resposta estava no papel que trazia na mo: uma caderneta com as sesses de fotos que tinha para aquele dia. Das oito da manh s dez da noite havia trabalho. O segredo trabalhar, s onze da noite volto para o hotel e fico at s trs da madrugada tratando as fotos, respondeu. Solcito, no s aceitou conceder esta entrevista Bli-munda, como ofereceu as fotos do festival para que fossem usadas.

    A primeira foto de escritores que voc fez foi aquela mtica imagem de Jorge Luis Borges, cego, sentado numa cadeira, olhando o hori-zonte. Voc tinha apenas 18 anos quando a fez. Nessa poca j tinha claro que queria ser fotgrafo?Desde muito jovem fui leitor, e desde a adolescncia amei in-

    condicionalmente a literatura. De alguma maneira intua que que-ria dedicar-me a algo relacionado com as letras, mas eu gostava de muitas coisas ao mesmo tempo: ler, escrever, fazer fotos, fazer fil-mes, tambm sonhava com fazer edifcios... O facto que comecei com algo que unia quase tudo, a foto fixa de um filme sobre Borges, dirigido por Ricardo Wullicher, e assim, pouco a pouco, fui retra-tando os autores que admirava. E de repente j se vo 35 anos nisso.

    muito forte dizer que voc est obcecado pelos escritores? Por que retrat-los?Suponho que uma maneira de lhes render homenagens, de

    dizer-lhes o quanto os respeito e valorizo o trabalho que fazem. E tambm uma maneira de compartilhar com os demais leitores o meu amor pelas letras.

    Voc costuma dizer que fotografa de ouvido e que as suas influncias vo muito alm da fotografia ou do cinema. Como que funciona?Tento que os retratos no sejam literais, ou seja, que no refli-

    tam necessariamente o que se supe que deve ter uma tpica foto de

    Entrevista por

    RICARDO VIELFotografias de DAnIEL MORDzInSkI

  • juaN gabrieL VSqueZ

  • 46

    C O n V E R S A S D A N I E L M O R D z I N S K I

    escritor. No me interessam os lugares tpicos da literatura, quero dizer, gosto de me deixar levar pela intuio tambm, pela harmo-nia de cada cenrio e situao. certo que sempre procuro ler os autores antes de fotograf-los, sobretudo porque continuo a gostar muito de ler. Mas tambm verdade que o retrato s vezes surge quando menos se espera, fruto de uma conversa, da casualidade, do tempo...

    Provavelmente a sua foto que mais me impressiona aquela do Gar-ca Mrquez sentado numa cama de um quarto de hotel. Acho que a solido, que aparece sempre nos livros dele, est magistralmente retratada naquela foto. Pode contar como fez aquele retrato? Foi um momento muito especial depois de muitos anos a conhe-

    cer o Gabo e a Mercedes [esposa do escritor colombiano]. Estava a trabalhar no Hay Festival de Cartagena de ndias e lembro-me com nitidez daquele 29 de janeiro de 2010. Sinto que essa foto reflete mo-mentos mgicos de serenidade quando um escritor est em estado de graa, sem a menor pose artificial.

    Um mgico nunca revela os seus truques, mas pode contar como tra-balha? Antes de retratar um escritor j tem presente a foto que quer fazer?No, ao contrrio. Nunca deixo que a intelectualizao me

    condicione. Uma coisa a imagem que um leitor faz de um autor que l e admira e outra coisa quem aquela pessoa na realidade. Por isso preciso de conhecer um pouco a pessoa, tento sempre falar, ter o mnimo de intimidade, no sentido espiritual, de maneira que o retratado no sinta que tenha de representar um papel. Por isso,

    s vezes surgem situaes chamativas que podem parecer muito ar-tificiais, mas ajudam a tirar a verdadeira maneira de ser. A melhor maneira de tirar um escritor de sua pose de escritor coloc-lo nou-tra pose.

    No sei o quo difcil pode ser para voc falar do assunto, mas j con-seguiu entender exatamente o que aconteceu com seus arquivos que estavam no Le Monde? Havia uma cruzada para tentar recuperar os negativos. Em que p est a situao?Sim, di muito falar disso. Em essncia acho que a estupidez

    humana e a m sorte se aliaram para que algum empregado com sensibilidade nula no digo pela arte, simplesmente pelo bom senso deitasse para o lixo tantos anos meus de trabalho e de vida. Tambm acho que algum tem de assumir a responsabilidade por uma ao descabelada como essa. Dito isso, o perdido irrecuper-vel e uma ferida minha memria pessoal, claro, mas sobretudo di-me a mutilao que supe a memria coletiva de tantos autores que passaram as suas vidas a escrever para que ns vivamos me-lhor, com mais dignidade e liberdade. Penso em fotos de Cortzar, Borges, Bioy Casares, etc., que nunca vero a luz e no podero ser includas na histria visual das nossas letras. E di-me por mim, por eles, e pelas geraes vindouras, e digo-o sem qualquer sombra de vaidade, juro. Claro que h pessoas generosas, compreensivas e conscientes no s do meu trabalho, mas de todos os que trabalha-mos com a palavra, a memria e a dignidade humana, que encontrei nesses ltimos meses, com a solidria ajuda de Karina Wroblewski, a diretora da Audiovideoteca de Buenos Aires, que, a pedido do Mi-

  • erNeSto CardeNaL

  • jody WiLLiaMS

  • 49

    C O n V E R S A S D A N I E L M O R D z I N S K I

    nistrio de Cultura de Buenos Aires, est a convocar amigos, escri-tores, instituies e organismos de todo o mundo para recuperar o possvel ainda que seja s uma mnima parte do arquivo. Se no doesse tanto a perda, diria que estou contente pelo apoio que recebi de gente to querida, valente e digna.

    Conheceu muitos escritores nesses anos. Acontece muito, ao conhe-c-los, descobrir que no so pessoas agradveis? No, muito pouco. Na maioria dos casos fantstico compro-

    var que os autores que amas so tambm pessoas belssimas e tive a sorte, alm de tudo, de me tornar amigo de muitos deles. Penso no grande Jos [Saramago], um exemplo de criador tambm pela sua tica, o que se via em cada gesto da sua vida quotidiana; como tambm era um gigante, no s como escritor. E poderia dar uma lista infinita: Luis Seplveda, Osvaldo Soriano, Jos Manuel Fajar-do, Antonio Sarabia, Ldia Jorge...

    Que lembranas tem dessas fotos de Saramago? Tenho muitas e muito interessantes, porque nos vimos muito, em

    muitos lugares e em situaes diferentes. Jos era um homem como a sua obra literria: baseou a sua esttica numa tica que corria pelas suas veias e em cada conversa, em cada passeio junto ao Sena, em cada cafezinho na sua cozinha de Lanzarote. Sempre conto a anedota de quando fiz o Jos sofrer o lado mau da amizade em Paris depois de ganhar o Nobel. As fotos no me convenciam, eram centenas, mas eu queria alguma coisa especial, diferente, que refletisse o novo Jos, to inteiro e to digno apesar da alegria global (sua e de tanta gente, em Portugal e no mundo todo) do Prmio. E depois de passar mais

    de uma hora fazendo fotos no Hotel Raphael telefonei para dizer que as fotos tinham sado mal. Ele voltava s sete da manh a Portugal, mas com uma pacincia milenar disse-me: Entendo, Daniel: retra-tar voltar a tratar, e encontrmo-nos novamente naquela noite na beira do Sena. E andando ao lado do rio, de repente as luzes de um barco iluminaram-no, e senti que aquele era o momento, o Jos que eu procurava: na penumbra fria da noite, sempre sereno, mas nunca despreocupado, radiante apesar da escurido dominante. Claro, tudo isso conta-se agora, com calma, mas acontece num nano-segundo, e eu gritei: Jos, j tenho! E clic, clic. No foram mais de dois minutos. Por isso gosto de preparar os retratos, nunca se sabe quando vo sur-gir, e por isso adoro o meu trabalho, porque me d a oportunidade de estar to perto de pessoas to boas, lcidas e valentes como Jos Saramago.

    O escritor peruano Ivan Thays diz que uma das suas virtudes fa-zer os escritores acreditarem que o privilgio de fotograf-los seu, quando o contrrio. E Juan Gabriel Vsquez diz que voc maltrata os escritores com carinho. Quem tem razo? Os dois so bons amigos e com certeza ambos tm razo. Acho

    que a chave que eles compreendam que a aventura que lhes pro-ponho rpida, segura, divertida e que nunca, nunca uso armadi-lhas ou a traio.

    Publicado na Blimunda #17, outubro 2013

  • 50

    P E S S O A S

    RICARDO

    ARAJO

    PEREIRA,

    A MECNICA

    DO RISO

    C O N V E R S A S

  • 51

    C O n V E R S A S R I C A R D O A R A J O P E R E I R A

    Humorista dedicado (e benfiquista de corao, tal como nos pediu para referir na nota biogrfica), Ricardo Arajo Pereira comeou a sua car-reira escrevendo os textos que outros interpretavam para fazer rir as audi-ncias. Com o fenmeno criado pelo coletivo Gato Fedorento (onde parti-cipam tambm Jos Diogo Quintela, Miguel Gis e Tiago Dores), tornou-se um dos humoristas mais reconhecidos da sua gerao, passando a interpretar os prprios textos. Para alm da televiso, j passou pela rdio, assinando rubricas de humor, e escreve se-manalmente uma crnica na revista Viso. Recentemente, foi dis-tinguido com o Prmio da Associao Portuguesa de Escritores na categoria de crnica, com o livro Novas Crnicas da Boca do Inferno (Tinta da China). Qualquer um destes factos era motivo suficiente para uma entrevista, mas a Blimunda quis conversar com Ricardo Arajo Pereira sobre os temas a que volta recorrentemente sem-pre que o convidam para debates e conversas pblicas: que mec-nica faz funcionar o riso, de que que nos rimos e por que motivo o fazemos, como que podemos entender o humor luz das teo-rias dos filsofos que o estudaram com ateno quase cirrgica?

    O livro que Aristteles ter dedicado comdia, e que se perdeu deixando a Potica unicamente com a parte sobre a tragdia, uma espcie de Santo Graal para ti?No diria tanto. H um senhor chamado Richard Janko que pu-

    blicou um livro onde tenta fazer uma reconstruo do que seria essa parte da Potica de Aristteles. H um documento chamado Tractatus coislinianus e h uma suspeita forte de que o seu contedo possa ser essa segunda parte da Potica, dedicada comdia. Mas admito que a curiosidade de saber o que que o filsofo, como lhe chamavam na Idade Mdia, dizia sobre a comdia muito grande. Embora talvez tambm pudesse ter um lado de desapontamento, porque estamos a falar de um texto com dois mil anos. um pouco o que acontece com o Philogelos, a mais antiga coleo de histrias humorsticas de que se tem memria, e onde h histrias s quais temos muita dificuldade em achar piada. Por exemplo, h uma gran-de incidncia de piadas sobre eunucos, e essa uma referncia que hoje perdemos. Uma das histrias sobre um eunuco que arranjou uma hrnia no escroto, e portanto parece que tem testculos, mas na verdade no tem; ora, eles achavam isto uma coisa hilariante...

    Mas achas que a nossa viso do humor seria profundamente diferente se conhecssemos essa parte da Potica?Talvez, sim. A tese do Umberto Eco que seria diferente pelo

    menos no sentido em que aquilo que o monge de O Nome da Rosa

    Entrevista por

    SARA FIGUEIREDO COSTAFotografia de JOO CAETAnO

  • 52

    C O n V E R S A S R I C A R D O A R A J O P E R E I R A

    pretende quando apaga a parte da Potica respeitante comdia retirar comdia a respeitabilidade que a tragdia tem, ou seja, no caucionar com o prestgio do filsofo uma coisa que ele acha que menor. E nesse sentido, as coisas seriam diferentes se conhecsse-mos o texto.

    Voltemos a Umberto Eco. O monge de O Nome da Rosa, que tenta man-ter o texto aristotlico da comdia longe dos olhares do mundo, parece ter noo de que o riso uma coisa com muito poder.Sem dvida, essa tambm uma leitura lgica da atitude do

    monge. O problema do humor que difcil falarmos dele sem es-tarmos sempre a acrescentar mais um ponto de vista, mais uma lei-tura. No sei nada sobre engenharia civil, por exemplo, mas acredi-to que nesse campo no se possa dizer uma coisa e o seu contrrio com igual propriedade. J relativamente ao humor, podes dizer, por exemplo, que o humor a arma dos fracos, e verdade, at porque muitas vezes os fracos no tm outra arma, mas por outro lado, tambm a dos fortes: veja-se o bullying, que quando no violn-cia fsica, escrnio, ou os nazis, que faziam caricaturas sobre os judeus. Mas voltando ao monge, o que o preocupa sobretudo o po-der que o humor tem relativamente morte. H poucos dias li uma entrevista com Umberto Eco em que ele dizia que no sabia explicar o que era o riso e que tinha muita dificuldade em falar do tema de modo perentrio, mas que suspeitava que o riso tinha alguma coisa a ver com o facto de ns sabermos que vamos morrer. Somos o ni-co animal que faz ambas as coisas: sabe que vai morrer e capaz de rir. E eu tambm suspeito que as duas coisas andam ligadas. A pala-

    vra que os gregos antigos usavam para dizer homem era a mesma que usavam para dizer mortal e o riso parece ser uma consequn-cia disto. O monge teme exatamente esse poder que quem ri tem sobre a morte.

    Que espcie de poder esse?H um opsculo de Freud, Der Humor, em que ele apresenta

    uma teoria sobre o humor e onde conta uma espcie de anedota. a sada da priso de um condenado morte no momento em que se dirige forca, para ser morto; quando chega c fora, sado da mas-morra, olha para o cu e v que est cheio de nuvens, dizendo olha, a semana comea bem.... Freud diz que isso o que o riso nos per-mite, olhar para o mundo e perceber que no assim to perigoso e assustador, mas antes uma espcie de brincadeira com a qual vale a pena fazer uma piada. Estou a citar mais ou menos, porque no leio alemo. Mas essa capacidade de encarar a vida como uma brin-cadeira com a qual vale a pena fazer uma piada no agrada a quem acha que isto no de todo uma brincadeira, mas antes um exame no fim do qual vamos ser castigados ou premiados. E parece-me que por isso que o monge de O Nome da Rosa teme tanto a divulga-o do texto do filsofo.

    Essa possibilidade de o riso ser uma forma de lidar com a morte uma leitura que se aplica a certo tipo de humor, mas ser fcil aplic-la a todo o humor? claro que se agora nos lembrarmos da anedota mais reles, pode-

    mos sempre perguntar o que que isso tem a ver com a morte?. Re-almente, se calhar no tem. Mas de um certo ponto de vista, qualquer

  • 53

    C O n V E R S A S R I C A R D O A R A J O P E R E I R A

    histria humorstica, da mais sofisticada ou erudita at mais reles, tem um propsito comum, aquele que distingue a comdia de outros gneros e que a eficcia. H uma preocupao de fazer rir as pesso-as. O autor de uma tragdia no est preocupado em medir as lgri-mas que gera numa plateia e nem isso uma condio de sucesso, mas uma comdia que no faz rir ningum dificilmente ser bem sucedida. E mesmo quando a gente conta uma piada sobre as mais bsicas fun-es do organismo humano, coisas sobre as quais a comdia tambm se debrua, o riso que isso pode gerar e a dessacralizao do corpo que uma piada do gnero implica, no deixa de se relacionar com uma cer-ta afronta morte. Isso outra coisa curiosa: habitualmente, a comdia chama a ateno para coisas consideradas ms, quer seja uma piada escatolgica, quer seja um texto de Molire sobre um misantropo, um hipocondraco ou algum com a mania das grandezas. Molire no fez comdia sobre um benemrito, a no ser que seja um benemrito est-pido, ou to exagerado que perde a sua fortuna. E o facto de ns cha-marmos a ateno para essas coisas a que podemos chamar ms, ou inferiores, e conseguirmos rir-nos delas uma prova de superioridade. Um dos paradoxos que me interessa no humor este: se olharmos para o mundo, vemos gente a sofrer, gente com dificuldades de toda a es-pcie, e podemos perguntar-nos se justo rir num mundo destes; por outro lado, o riso alivia tudo isso.

    O facto de nos rirmos por uma questo de superioridade no faz do riso uma coisa autoritria ou at violenta?De certo modo, sim, e at eticamente duvidosa, o que constitui

    um dos motivos pelos quais o riso tem m reputao. Desde Aris-

    as pessoas que concordam

    com os meus pontos de vista acusam-me de

    no usar os meus textos para

    derrubar o governo.

  • 54

    C O n V E R S A S R I C A R D O A R A J O P E R E I R A

    tteles at Thomas Hobbes vigorou uma nica teoria sobre o riso, precisamente a que diz que nos rimos porque nos sentimos supe-riores aos outros. a primeira grande teoria sobre o riso e durou cerca de dois milnios, chegando at Thomas Hobbes que cunhou a expresso glria sbita, referindo-se superioridade e a uma coisa importantssima no riso que o facto de ser surpresa; se no houver surpresa, no h riso, e por isso que no nos rimos tanto na segunda vez que ouvimos uma piada. A partir de certa altura, Francis Hutcheson faz algumas crticas teoria da superioridade, e coloca a questo: se nos rimos porque nos sentimos superiores e se nos rimos mais quanto mais superiores nos sentimos, por que que no vamos passar uma tarde a uma enfermaria para rirmos gargalhada de todos os que l esto internados? E mais: se o riso nos chega pela superioridade, por que que no nos rimos quan-do vemos um co, mas j rimos se virmos um co vestido com uma saia? Esse co est mais prximo de ns do que aquele que no tem saia, por isso no devamos sentir-nos to superiores. Claro que podemos objetar que nos sentimos superiores a esse co pre-cisamente porque ele est a tentar imitar-nos e no consegue... Mas estas foram objees pertinentes teoria da superioridade, e seguiu-se a teoria da incongruncia, subscrita por autores como Kant ou Schopenhauer, que diz que nos rimos porque aquilo que ns estamos espera que a realidade seja no aquilo que a reali-dade . O que curioso que todas as teorias podem ser aplicadas mesma coisa: se virmos uma velhota a cair na rua e a espalhar os sacos das compras por todo o lado, podemos dizer que nos rimos

    porque estvamos de p ou porque no estvamos espera que aquilo acontecesse. D para as duas teorias e ai